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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

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Academic year: 2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

DIÁLOGOS EM TRANSE: A FICÇÃO DE RICARDO PIGLIA COMO ALTERNATIVA DE QUESTINAMENTO

DO DISCURSO HISTÓRICO OFICIAL

Maria Fernanda Garbero de Aragão

UFJF

Programa de Pós-Graduação em Letras Mestrado em Teoria Literária

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Instituto de Ci€ncias Humanas e Letras

Departamento de Letras

Programa de P•s-Gradua‚ƒo em Letras Mestrado em Teoria Liter„ria

DI…LOGOS EM TRANSE: A FIC†‡O DE RICARDO PIGLIA COMO ALTERNATIVA DE QUESTINAMENTO DO DISCURSO HISTˆRICO OFICIAL

Maria Fernanda Garbero de Aragão Disserta‚ƒo apresentada ao Curso de P•s-Gradua‚ƒo em Letras, como requisito para a obten‚ƒo do grau de mestre em Teoria Liter„ria da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Juiz de Fora – Minas Gerais 2005

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A Washington Garbero, luz do meu vogar...

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AGRAD EC IM ENTOS

Agrad e‚o a De us po r sua luz e co mp a nhia. Ao s me us pa is, F„t ima e Maur Šc io , pe lo ca minho ; a minha ir mƒ La ila h, po r seu so rriso ; a min ha a v•

E mŠlia, po r acred it ar se mpr e e m meu s so nho s e ‹ R it a, po r suas p a la vra s e a miz ad e.

Πminha o r ie nt ado ra Terez inha Sc her, q ue so u be acre d it ar naque la me n ina d e de ze no ve a no s que quer ia e st udar lit erat ura po rque go st ava de Dru mmo nd. ΠPro fe sso ra Jo vit a Ger he im, po r seus co nse lho s.

Ao s pro fe s so res e co lega s do M est rado da U niver s id ade Fe dera l d e Ju iz de Fo ra, e m e spe c ia l ‹ Ang e la Gu id a, po r t er me apre se nt ado a O Laborató rio d o e sc ritor, do , at • ent ƒo para mim de sco nhe c ido , R ic ardo P ig lia. Œs pro fe sso ras Mar ia Lu iza Sc her, CŽ nd id a Le it e Geo rgo po ulo s, Ne iva P int o Ferre ir a e S• nia B it e nco urt , o rie nt ado ras dura nt e meu p er Šo do de gradua ‚ƒo .

Ao meu a migo Cr ist ia no M ira nd e lla, agr ade‚o po r esse s de z a no s d e cu mp lic id ade, co mpree nsƒo e et erna br iga co nt ra a mio p ia do se nso co mu m;

‹ quer id a e t er na a miga He lia ne M is c a li, po r no s sa s a ng• st ia s, no ss as d•v ida s, vo nt ade de fug ir, ma s sa ber e co nsegu ir c hegar at • aqu i. A Gust a vo D ix, po r sua vo z que me t raz a paz.

Œ minha a miga e pro fe sso ra S ilv ina Carr izo , a arge nt ina ma is bra s ile ir a que co nhe‚o . Obr ig ada, S ilv i, p o r me o r ie nt ar e po r co mp art ilhar co migo que st ‘ es que t o ca m no sso s pa Šs e s e no s sa s e mo ‚‘ es. “C at a la cat a la t r•gua tr•gua..”

Œ minha quer id a fa mŠlia arge nt ina, “Ma mi” M a be l C ia pp in i, Cec i e Nat y Le• n, que eu apre nd i a a mar, po r me aco lhere m s e mpre e m sua ca sa e e m se us co ra‚‘ es. A Fer na ndo Ro se nbe rg, po r me mo st rar u ma Bue no s Aire s qu e eu nƒo co nhe c ia e a br ir meu s o lho s p ara a hist • r ia de seu p a Šs.

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Ao s co mpa nhe iro s C hr ist ia n, Mar ia no , Her n„ n e Fa br Šc io , do Ho st e l Int ernat io na l de Me ndo za, co m o s qu a is , e m no it e s de cha rla s, mat es e vinos pude me e nt e nd er e me reco nhec er part e de u ma a ng• st ia e d e u ma bu sc a lat ino-a mer ica na.

Ao s s e nho res Cruz e La va zza, po r sabere m me o uvir, me dar ‹s mƒo s e, e m s eu s co nst a nt es s il€ nc io s, me t razere m fo r‚ a.

Œs pes so as que pa s sara m e m minha vida, de ixa ndo impo rt Žnc ia s, le mbr a n‚ as e sa udad es. Agrade ‚o pe lo t e mpo e m qu e e st ive mo s ju nt o s e pe lo res pe it o ao meu so nho , e mbo ra so nhar t enha s ido mu it o ma is fo rt e do que sua s pre se n‚a s. Ho je, fe it as e m a us € nc ias.

Quero t erminar, agrade ce ndo ‹ lu z d a pres e n‚ a de me u a v•

Was h ingt o n Gar bero , a que m de d ico est e est udo e que, desde u ma t arde de inve r no de ju lho de 1998, • me u o lhar ao c•u. Obr iga da, “Vo zƒo ” quer ido ! Obr ig ada po r me e ns ina r que nada aca ba o u se de s faz no ar e me a jud ar a segu ir at • o fina l, s e mpre sa be ndo que iss o • apena s ma is u m co me‚o .

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SUM€RIO

Introdu•‚o

I. Diƒlogos em transe – Ricardo Piglia e as alternativas de se pensar um discurso latino-americano

I.I. “No olvidaremos, ni perdonaremos”: a voz se faz na Pra•a.

I.II. Nas telas do cinema argentino: Buenos Aires e o saldo de suas fraturas.

II. Nas linhas da R.A: Respiração Artificialou a outra hist‡ria da Repˆblica Argentina.

II.I. Cartas ap‡crifas e biografias de um futuro imaginado.

II.II. Alucina•‰es de um percurso sombrio.

II.III. O Processoe A Metamorfosede uma hist‡ria artificial.

III. Fragmentos de hist‡rias: A cidade ausentee Plata quemada.

III.I. Lˆcida loucura ou o eterno retorno do presente.

III.II. Plata quemadae a perda reiterada.

Conclus‚o

ReferŠncias Bibliogrƒficas

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“O se g r e d o , d i s se M a c e d o n i o , • q u e e l a a p r e n d e ‚ me di d a que v ai n a r r a n d o . A p r e n d e r q u e r d i ze r q u e e l a l e m b r a o q u e j ƒ f e z e te m c a d a v e z m a i s e x p e ri „ nc i a ”.

Ri ca r do Pi g l i a

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INTRODUÇÃO

Pensar o sil€ncio derivado da impossibilidade da fala • pensar nas polŠticas que sancionam o direito de expressƒo. Na justificativa da busca de uma ordem homog€nea, busca esta que, ao se tra‚ar um ideal de integra‚ƒo identit„ria, anula as diferen‚as e retira das p„ginas da hist•ria o que nƒo pode ser “o nacional”, ou seja, aquilo que nƒo deve pertencer ao imagin„rio simb•lico de na‚ƒo, v€ que a hist•ria que se forma como narrativa de um povo • uma fic‚ƒo com o estatuto de realidade. Apagar as diferen‚as, para o discurso do poder • estabelecer, a duras penas, um sil€ncio baseado no medo, na amea‚a e no engano.

” por pensar nesta perspectiva que abarca as alternativas de constru‚ƒo de um discurso que possa dar voz ao que a hist•ria procurou calar, que este estudo busca verificar a importŽncia da presen‚a do intelectual argentino Ricardo Piglia – hoje, radicado nos Estados Unidos, lecionando na Universidade de Princeton – para o contexto hist•rico- cultural de seu paŠs e, partindo daŠ, pens„-lo em sua inser‚ƒo num di„logo que se constr•i sobre a Am•rica Latina.

Com base nos contextos da Argentina em dois momentos de sua hist•ria:

durante seu perŠodo de ditadura militar (1976/1983) e o da abertura polŠtico-econ•mica ocorrida na “Era Menemista” (1989/1999), verificar-se-„, a presen‚a de um discurso ficcional que falar„ e dar„ voz a temas e personagens que fazem parte por•m nƒo podem estar na cena do grande discurso oficial ou, como Piglia considera, a verdadeira fic‚ƒo: a sociedade polŠtica (o que abarca tamb•m a id•ia de uma na‚ƒo criada por mitos e tradi‚‘es inventadas).

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Desta forma, este trabalho se prop‘e a refletir sobre alternativas de expressƒo e preserva‚ƒo de uma mem•ria que ser„ encontrada nƒo s• nas prosas de fic‚ƒo de Ricardo Piglia, mas tamb•m em g€neros que existem ‹ margem do cŽnone liter„rio, como os testemunhos, letras de m•sicas e produ‚‘es cinematogr„ficas.

Em rela‚ƒo a Ricardo Piglia, o corpus escolhido compreende os tr€s romances do escritor. Sƒo eles: Respiração artificial, escrito em pleno regime militar, A cidade ausente e Plata quemada, escritos durante a d•cada de 90. A escolha dessas obras • motivada pela diversidade tem„tica – a loucura, a marginalidade, o exŠlio – que o autor encontra como formas contestat•rias de seu tempo. Ao escrev€-las, ele resgata e faz a hist•ria que nƒo pode ser esquecida, o que se constitui como um compromisso com a mem•ria.

Parte de uma Argentina que vive sob um regime totalitarista, que censura, rasura e exclui o discurso que deixa entrever suas fissuras, o relato de Piglia se situa num “entre- lugar”, ou seja, em um lugar de fronteira, onde sƒo requisitadas articula‚‘es e negocia‚‘es discursivas que possibilitem sua exist€ncia.

” nesse clima de tensƒo que surge seu primeiro romance: Respiração artificial (1980). Atrav•s de um jogo metonŠmico e cheio de refer€ncias hist•ricas, a personagem central, o professor de hist•ria Marcelo Maggi, representa o terror dos desaparecidos no perŠodo militar e a impossibilidade de se falar o que a experi€ncia de uma •poca traria como dŠvida para o futuro.

Nesse romance, pode-se perceber as ang•stias do autor por ser testemunha de seu tempo e nƒo poder express„-lo. Para ilustrar tal tensƒo, h„ refer€ncias ‹s figuras de Franz Kafka e Adolf Hitler, atrav•s das quais Piglia faz uma compara‚ƒo entre os livros Minha luta, do ditador alemƒo, e o Processo, do escritor tcheco. Em uma rela‚ƒo

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interdiscursiva, aparecem as alus‘es ao “Processo de Reorganiza‚ƒo Nacional”, ou mais conhecido como a •ltima ditadura militar Argentina.

Para narrar essa hist•ria, s• mesmo como James Joyce e seus jogos ling•Šsticos, e • assim que o romance se escreve. Como uma grande fic‚ƒo, em que elementos como cartas ap•crifas, personagens loucos e fracassados, escritores em crise e um professor desaparecido, • construŠda uma alternativa de linguagem que, al•m de questionar a leitura dessa dita hist•ria oficial, mostra como o sil€ncio tamb•m pode pronunciar um “estado de afasia”.

Pelo resgate de mem•ria, o autor cria uma saŠda discursiva, envolvendo a figura de seu precursor liter„rio Roberto Arlt. Ao fazer isso, Piglia declara quƒo importante • a presen‚a desse escritor para a identidade Argentina, que tem seu passado criado sob o signo da tradi‚ƒo europ•ia, como a maioria dos paŠses da Am•rica Latina.

Os outros dois romances em estudo j„ aparecem em um momento de abertura polŠtica. Frutos de uma sociedade neoliberal, na qual o consumismo lembra ‹s pessoas, constantemente, que nƒo h„ mais tempo para as experi€ncias e o tempo • o do ef€mero, o autor resgata hist•rias que fazem parte do passado argentino. Em A cidade ausente (1992), a recupera‚ƒo das presen‚as do escritor Macedonio Fern„ndez e de sua esposa Elena permite que o leitor, atrav•s das linhas da fic‚ƒo, se encontre com a mem•ria de seu paŠs.

Em tempos de fragmenta‚ƒo e apagamento das tradi‚‘es para dar lugar ao que • novo, Piglia reconhece na literatura um vi•s de preserva‚ƒo de uma hist•ria que nƒo pode ser esquecida, tampouco apagada.

E, por •ltimo, Plata quemada (1997) que narra o famoso assalto a um carro forte, ocorrido em meados da d•cada de sessenta, que ficou conhecido nƒo s• pela fortuna roubada, mas, principalmente, pelo destino dado a ela: o dinheiro •, literalmente, queimado.

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Narrar esta hist•ria mais de trinta anos ap•s seu acontecimento • mais que recuper„-la; • p•r em questƒo uma sociedade consumista que v€, no dinheiro, o objeto de ascensƒo social e de poder.

O tŠtulo do livro merece um coment„rio: plata pode ser uma refer€ncia ao Rio da Prata, o maior rio argentino, ou tamb•m ao dinheiro, que neste paŠs • chamado assim, uma vez que sua maior riqueza mineral • a prata. Mais do que o ato de queimar pap•is, o tŠtulo sugere a “hist•ria queimada”, ou seja, o assalto do passado voltando para explicar uma fraude atual e uma de d•cada da impunidade. Pela presen‚a do rio, surge a hip•tese acerca do atual car„ter das fronteiras, que se nƒo mostram mais como limites, ao assumirem uma id•ia lŠquida e flutuante nos tempos de globaliza‚ƒo e apagamento das heterogeneidades.

Sƒo por essas biografias fictŠcias que podemos ter acesso a uma hist•ria que nƒo foi contada. Os relatos da margem que nƒo aparecem no discurso da hist•ria oficial estƒo presentes nas narrativas de Piglia para questionar e apontar, incessantemente, as falhas de um sistema que busca homogeneizar-se, anulando o que nƒo reconhece.

Os estudos de Michel Foucault acerca da interdi‚ƒo e exclusƒo do discurso permitem pensar a veicula‚ƒo de outros relatos que coexistem ‹s margens. Textos das latino-americanas Nelly Richard e Beatriz Sarlo apresentam importantes contribui‚‘es ao tema do discurso feminino – visto como relato subalterno – e para tratar de quest‘es que tangem ‹s estrat•gias desenvolvidas para possibilitar articula‚‘es dial•ticas que se insiram num di„logo global.

Tentar-se-„ mostrar, nas obras em an„lise, o surgimento de uma voz, que, sob a forma da aporia, da loucura e da perda da identidade, insiste em existir e se tornar necess„ria na sociedade contemporŽnea, onde • preciso falar de si e da agonia finissecular.

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Uma vez que o sil€ncio consegue suprir e suprimir a narrativa da experi€ncia, • na narrativa feminina que isso pode ser resgatado.

Com base em estudos te•ricos desenvolvidos pelos autores Homi Bhabha e Walter Mignolo acerca do local de enuncia‚ƒo e sua rela‚ƒo com a hist•ria, Hugo Achugar, sobre a situa‚ƒo e produ‚ƒo do discurso intelectual perif•rico, Beatriz Sarlo, sobre a cultura

“massamidiƒtica”e ensaios sobre a sociedade de consumo, buscar-se-„ trabalhar a questƒo da margem e da subalternidade, pontos imprescindŠveis para a reflexƒo sobre as personagens presentes em Ricardo Piglia, visto que o lugar de onde falam nƒo • o “centro”.

Os textos hist•ricos relativos ‹s Mƒes da Pra‚a de Maio – grupo formado por mulheres que perderam seus filhos durante o perŠodo militar argentino – bem como os poemas escritos por elas e uma entrevista realizada em Buenos Aires, tamb•m entram neste estudo, pois podem ser vistos como relatos que surgiram da urg€ncia em se criar novas possibilidades restauradoras de identidades e viv€ncias.

A questƒo do g€nero do testemunho tamb•m se torna um importante objeto para este estudo, uma vez que possibilita o estudo de discursos produzidos atrav•s do relato da experi€ncia e que nƒo pertencem ao cŽnone liter„rio.

Al•m dos textos ficcionais de Ricardo Piglia presentes neste estudo, baseando- se em seus textos crŠticos, como ensaios e entrevistas, tentar-se-„ incitar alguns questionamentos acerca do papel da literatura na atualidade, enquanto linguagem promovedora de reflex‘es e possŠvel lugar de imagina‚ƒo do futuro.

Buscar-se-„ pensar na questƒo do intelectual Ricardo Piglia em dois momentos, como j„ foi mencionado anteriormente. O primeiro, quando h„ a necessidade de narrar, mas isso • dificultado pela opressƒo. E, num segundo momento, quando a necessidade de falar

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permanece, e, apesar de j„ se ter recuperado a liberdade polŠtica, aparece uma crise de interlocu‚ƒo, relacionada a “para quem se vai falar”.

Para abordar esse tema, as reflex‘es de Alberto Moreiras sƒo muito importantes, pois tocam no papel do intelectual inserido na atualidade que perdeu seus referenciais e paradigmas, e suas estrat•gias de negocia‚ƒo para sair desse impasse.

Personagens loucos, mulheres, desaparecidos, homossexuais fazem-se presentes em Piglia para dar voz aos que nƒo podem falar e nem fazer a hist•ria de seu paŠs. Mƒes da Pra‚a de Maio, escritores incompreendidos e presidi„rios sƒo encarnados por personagens que, atrav•s de relados cifrados, contam uma hist•ria que nƒo pode ser esquecida, a hist•ria que nƒo • contada, de um povo que guarda seus resŠduos como via de resist€ncia.

Um povo, um paŠs, uma ang•stia latino-americana e suas estrat•gias de sobreviv€ncia.

Plateado sob re plat eado

Char ly Ga rcía

Vi la luna cho rr eando sin pa rar su luz de c ated ral y un ba rco viejo cru zando el m ar de Su damé ric a a Europa sob re un e spejo lle no de sal.

Aeroplan os co rtan do el celof án de un cielo tr opical abrie ndo un su rco suav e a lleva r hacia el exilio dan vu elta s a los que ya no agua ntar on má s.

Huella s en el ma r

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sang re en nu est ro hoga r tenemo s que i r tan lejo s para e sta r acá, p ara e star a cá.

Nos qu edamo s po r tene r f e nos f uimos po r amar.

Ganamo s algo y algo se f ue.

Algunos hijo s son pa dre s y alguna s huella s ya so n la piel Huella s en el ma r sang re en nuest ro hoga r tenemo s que i r tan lejo s para e sta r acá, p ara e star a cá.

1 DI€ LOGOS EM TRANS E - RICA RD O PIG LI A E AS AL TE RNA TIV AS DE SE PENSA R UM DISCURSO L AT IN O-AM ERICA NO

“Mi mente tuvo dudas y fingŠ que ya las vi.

Ya no quiero vivir asŠ repitiendo las agonŠas del pasado con los hermanos de mi ni–ez es muy duro sobrevivir aunque el tiempo ya los ha vuelto desconfiados.

Tenemos algo para decir no es la misma canci•n de 2 x 3 las cosas ya no son como las vez.”

C h a r l y G arc ‹ a, “ C a n c i ‡n de l dos p or t r e s”

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A idéia de estudar os romances do intelectual argentino Ricardo Piglia foi motivada em grande parte pela maneira como ele constrói suas narrativas. Capaz de mesclar vários gêneros em um mesmo livro, esse autor consegue, como poucos, mediar em suas ficções histórias que remontam ao passado de seu país e combiná-las ao que está em processo de criação.

Uma das grandes dificuldades quando se pensa em Piglia é delimitar seguramente qual gênero literário em que ele se destaca. Autor de ensaios, romances e conto, ele mistura em seus textos aspectos que podem ser vistos sob a perspectiva de hibridismo, na qual vários gêneros possibilitam o ato narrativo.

A combinação de diferentes discursos é uma presença constante nas obras desse autor. Em um mesmo romance, pode-se identificar aspectos que remetem ao testemunho, ao texto jornalístico, à história, às tradições que evocam o imaginário nacional e, até mesmo, encontrar longos períodos nos quais o autor disserta sobre crítica literária.

Mesmo que este estudo não se destine a uma abordagem biográfica do autor, há alguns aspectos que precisam ser reconhecidos em relação à sua vida e ao seu percurso intelectual.

Ricardo Piglia nasceu em Adrogue, província de Buenos Aires em 1941. Aos quatorze anos, mudou-se com a família para Mar de Plata, onde descobriu a literatura e a amizade com o americano Steve Ratliff, uma das pessoas mais importantes para sua a formação literária, uma vez que foi considerado pelo autor como o seu primeiro leitor.

Hoje, além de seus vários livros publicados em muitos países e línguas, é Professor Titular da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e dá aulas nas universidades norte-americanas de Harvard e Princeton, onde está atualmente.

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A trajet•ria acad€mica de Ricardo Piglia • um tema relevante para se pensar em sua escritura. Em uma entrevista preparada por Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano presente em O Laborátório do escritor(1992), Piglia fez a seguinte declara‚ƒo:

“Fui e st u d a r Hi st •r i a em La Pl a t a por que quer ia m e tr an sfor m a r em es cr i t or e pen sa va ( c om r a zƒ o) que se est u d a sse L et r a s i a ser d i fŠ ci l c on t in uar in t er essa do em l i t er a t ura . ”1

Em sua bibliografia, destacam-se as seguintes obras: A Invasão (1967), Nome Falso (1975), Respiração Artificial (1980), Prisão Perpétua (1988), A Cidade Ausente (1992), O Laboratório do escritor (1992), La Argentina en pedazos (1993)2, Plata Quemada (1997), Crítica y Ficción (1986/2000)3, Formas Breves(1999) e Diccionario de la Novela de Macedonio Fernández(2000)4.

Al•m de seus livros, em sua carreira, o trŽnsito por outras formas narrativas tamb•m est„ presente. Para o cinema, durante a d•cada de noventa, escreveu o roteiro de

“Foolich heart”, do diretor H•ctor Babenco; “Comodines”, de Jorge Nisco (1997); “La sonámbula, recuerdos del futuro”, de Fernando Spiner (1998); realizou a adapta‚ƒo de “El astillero”, de Juan Carlos Onetti (1999) e de “Cora‚ƒo iluminado”5 de H•ctor Babenco, (1998).

Em suas obras, Ricardo Piglia consegue captar a realidade de uma maneira

"distinta", ao dar um acento pessoal quando foge das conven‚‘es formais e cria um discurso que requisita um leitor atento ‹s quest‘es que ele prop‘e.

Os escritos de Piglia revelam uma forte tensƒo entre o rigor crŠtico e as proje‚‘es imagin„rias. Sƒo ensaios que tocam em quest‘es presentes na literatura

1PIGLIA, 1992, p. 83.

2Nƒo h„ tradu‚ƒo em portugu€s.

3Idem.

4Idem.

5“Fool i c h h e a r t”.

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contemporŽnea, sem que haja um enquadramento ou meras simplifica‚‘es absurdas. Al•m disso, pode-se aproximar a crŠtica liter„ria e a autobiografia, j„ que, tanto em Piglia como em outros escritores da atualidade, escrever significa deixar sua vida no interior do texto.

Com isso, surge a met„fora da literatura como elemento mediador entre a cria‚ƒo liter„ria e a forma‚ƒo imagin„ria das personagens. Nesse sentido, a literatura se alimenta de seu pr•prio c•digo, valendo-se da sedu‚ƒo provocada pelo mundo dos livros, assim como encenam o maior ou menor grau de distŽncia ou de proximidade das personagens com o mundo da imagina‚ƒo.

A presen‚a da tradi‚ƒo liter„ria • um tema recorrente na obra desse escritor argentino. Escritores como Roberto Arlt, Macedonio Fern„ndez e Jorge Luis Borges sƒo alguns dos in•meros precursores de Ricardo Piglia, que projeta em sua escritura a importŽncia deles para a sua forma‚ƒo intelectual e para a mem•ria hist•rica argentina.

Al•m de pensar na literatura nacional, o autor reflete acerca dos cl„ssicos da modernidade como Joyce, Kafka e Gombrowicz; sobre as rela‚‘es entre literatura e psican„lise; a natureza do conto; sobre a polŠtica e as alternativas discursivas presentes no di„logo intelectual.

Uma das quest‘es mais freq•entes em seus textos • sobre o ato de narrar. O constante questionamento da interpreta‚ƒo aparece em planos narrativos, nos quais o autor flutua entre diversos g€neros, questionando, indagando e propondo discuss‘es para se pensar a fic‚ƒo e sua rela‚ƒo com a verdade.

No ensaio “Teses sobre o conto”6, ele argumenta que, no conto cl„ssico, existem duas hist•rias: uma em primeiro plano e outra que vai se construindo em segundo plano. Nessa segunda, • que est„ o espa‚o para a imagina‚ƒo e para a alusƒo. O relato •

6PIGLIA, 1992.

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construŠdo pelo “nƒo-dito”, pelo que se sup‘e. Isso se remete ‹ id•ia acerca da “teoria do iceberg”7, de Hemingway, na qual o mais importante nunca se conta, por•m est„ presente por todo o texto.

Ao partir de uma perspectiva de polifonia, nƒo h„ uma delimita‚ƒo de fronteiras em seus textos, pois eles incorporam variados discursos, nos quais a hist•ria, a biografia, o ensaio, o di„rio e a fic‚ƒo convivem em heterogenia abrindo possibilidades para que se discuta a rela‚ƒo entre ficcionalidade e veracidade daquilo que est„ sendo narrado. Al•m dessas media‚‘es discursivas, Piglia usa a linguagem como um instrumento capaz de se mostrar ir•nico, ao inserir cita‚‘es e alus‘es bibliogr„ficas – quando usa um registro mais erudito – e, simultaneamente, uma linguagem coloquial.

Ao combinar essas variantes, o autor negocia sua tradi‚ƒo herdada pelos cŽnones da literatura com a fala que est„ presente no cotidiano das pessoas. Com isso, as literaturas consideradas “secund„rias” ou “menores” t€m a possibilidade de dar ‹s tradi‚‘es liter„rias um tratamento irreverente e questionador. Nesse contexto, a falsifica‚ƒo, a tradu‚ƒo como pl„gio, a combina‚ƒo de registros e o roubo aparecem como uma tradi‚ƒo, reiterando a presen‚a de Roberto Arlt8para a forma‚ƒo do percurso liter„rio de Piglia.

Por meio de suposi‚‘es e filia‚‘es ocultas que reinventam a vida de

“personagens reais”, ele exerce a crŠtica liter„ria. A imagina‚ƒo est„ sempre presente como o centro do pensamento crŠtico. Sendo assim, a crŠtica • ressemantizada como um g€nero liter„rio tƒo inventivo quanto o romance, ou a poesia. Por pertencer ‹ literatura, ela seria sua cria‚ƒo artŠstica.

7Idem, p.39.

8Em rela‚ƒo a esse autor, cabe destacar o seu car„ter de marginaliza‚ƒo na Literatura Argentina. Como uma esp•cie de “escritor do fracasso”, suas personagens sƒo pessoas que convivem numa condi‚ƒo de

deslocamento social, tentado sobreviver a seus problemas e ‹ exclusƒo que as lega a um “nƒo-lugar”.

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Nas obras de Piglia, as reflexões podem ser tão complexas e sofisticadas quanto numa obra filosófica, porém com a condição de que pareçam falsas. É como se a ilusão da falsidade fosse a própria literatura, na qual pode-se expressar pensamentos complexos, mas sob a condição de que eles ainda não tenham sido pensados.

Essa forma ensaística permite o gesto de apagar e rasurar textos que se superpõem, pois está em consonância com a reflexão narrativa que aposta nas pausas e nas lacunas do saber. Nesse quadro, estão presentes os signos que se remetem ao precário, ao que ainda está se formando. Ao se optar por fragmentos biográficos, histórias de vidas comuns, o que se percebe em Piglia é uma valorização da escrita como enunciação, abordada em desalinho com o discurso da ciência. É como se o relato fosse uma possibilidade alternativa de resposta à inoperância dos grandes textos, circunscritos a projetos de natureza totalitária e globalizante.

Sem pensar o saber narrativo dos pequenos relatos como uma força legitimadora, percebe-se a presença de um pluralismo discursivo, no qual várias vozes, de diferentes referenciais e vivências, se inserem num diálogo para construir uma rede mais ampla.

Para esse contexto, Piglia trabalha com a relação entre a criação literária e o gênero policial. Em seus escritos, está presentificada a interessante articulação entre política e ficção, crítica e ficção, teoria e ficção, mediada pela metáfora do relato policial.

Essas formas discursivas se ficcionalizam na negociação do entrecruzamento de narrativas próprias ao universo político, literário ou histórico, marcado pela marginalização, por crimes e complôs organizados por criminosos e policiais. Isso se configura em uma perspectiva metanarrativa, em que as figuras do autor e do crítico se espelham e se encontram nos textos clandestinos e nas citações roubadas ou falsas.

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A novela policial •, em Piglia, a grande forma ficcional da crŠtica liter„ria. Essa transforma‚ƒo na visƒo do objeto hist•rico permite o questionamento dos antigos paradigmas, centrados em datas impostas pelo discurso oficial, em grandes fatos ou na valoriza‚ƒo dos nomes consagrados pela mitologia polŠtica. Vidas comuns e, aparentemente, sem gra‚a para a composi‚ƒo das cenas hist•ricas passam a participar desse quadro das pequenas narrativas, paralelamente respons„veis pela forma‚ƒo do sentido subjacente da hist•ria.

Para esse novo enfoque acerca do objeto liter„rio, no qual as fronteiras disciplinares estƒo sendo diluŠdas e h„ um surgimento de narrativas ficcionais com valor enunciativo, h„ o aparecimento de outras „reas, o que significa uma literatura liberta dos da academia. Dessa maneira, a dramatiza‚ƒo e o perform„tico suplantam o epistemol•gico, pois favorecem a encena‚ƒo de subjetividades. Tal fato, ao aliar-se com o narrativo, possibilita uma escritura na qual o sujeito liter„rio e o sujeito crŠtico interagem e, ao mesmo tempo, se distanciam do objeto para poder narr„-lo. Piglia, assim, ultrapassa os limites do texto e se insere num espa‚o biogr„fico, hist•rico e cultural.

Al•m trabalhar nessa linha fronteiri‚a entre realidade e fic‚ƒo, uma das presen‚as mais marcantes nas narrativas de Piglia • em rela‚ƒo a uma esp•cie de bovarismo que a literatura proporciona. Segundo o autor, a mem•ria cultural seria como um livro cheio de refer€ncias bibliogr„ficas, no qual as cenas lidas voltariam e interagiriam com a vida das pessoas, num tipo de “Eterno retorno”, de Nieztsche. Em rela‚ƒo a isso, h„ um relato presente em O laboratório do escritorque parece oportuno para ilustrar essa id•ia de que a narrativa liter„ria pode ser pensada como produtora de fic‚‘es vivenciadas:

“Uma das cenas mais famosas da hist•ria da filosofia • um efeito do poder da literatura. A comovedora situa‚ƒo em que Nietzsche, ao ver como um cocheiro castigava brutalmente um cavalo caŠdo, se abra‚a chorando ao pesco‚o do animal

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e o beija. Foi em Turim, no dia 3 de janeiro de 1888, e essa data marca, num certo sentido, o fim da filosofia: com este fato come‚a a loucura de Nietzsche que, como o suicŠdio de S•crates, • um esquecimento inesquecŠvel na hist•ria da razƒo ocidental. O not„vel • que a cena • uma repeti‚ƒo literal de uma situa‚ƒo de Crime e castigo de Dostoi•vski (Parte I, CapŠtulo 5), na qual Raskolnikov sonha com uns camponeses b€bados que batem num cavalo at• mat„-lo. Dominado pela compaixƒo, Raskolnikov se abra‚a ao pesco‚o do animal caŠdo e o beija.

Ningu•m parece ter reparado no bovarismo de Nietzsche, que repete uma cena lida. (A teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descri‚ƒo do efeito de mem•ria falsa que a leitura causa.)9.

O bovarismo – atitude que explica o acontecimento acima – representaria o fascŠnio do sujeito pela experi€ncia do outro, numa ilusƒo de estar deslocado de si, exilado.

Com a frase sobre o fim da filosofia e o inŠcio da loucura de Nietzsche, Piglia mostra o poder de mimetiza‚ƒo da vida em rela‚ƒo ‹ literatura. O mistura de momentos textuais com os vividos possibilita pensar a no‚ƒo de um texto – nƒo s• exclusivo na palavra escrita – que engloba outra experi€ncias, que podem ser lidas como integrantes de um universo simb•lico em transforma‚ƒo. Assim, o interdiscurso, al•m de se referir ao di„logo entre textos, desloca o texto ficcional para o aspecto biogr„fico.

A estrat•gia de Piglia, ao construir em sua narrativa um gesto de distanciamento e de proximidade com o objeto, coloca-o em uma rela‚ƒo de herdeiro liter„rio da po•tica de Jorge Luis Borges, pois a pr„tica discursiva sobre a mem•ria alheia passa a ser trabalhada na experi€ncia liter„ria. Isso provoca o deslocamento e redimensionamento de lugares antes reservados ao autor, ao diluir a concep‚ƒo de texto primeiro e criatividade.

As narrativas resgatam a tradu‚ƒo, o exilar-se de si para criar, assim como revisitam a tradi‚ƒo cultural como um arquivo em transforma‚ƒo constante. Ao compor a dramatiza‚ƒo da fala pessoal pelo vi•s da experi€ncia do outro, os relatos elaboram procedimentos relacionados a uma autobiografia alheia ao autor.

9PIGLIA, 1992, p.62.

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Em rela‚ƒo a esse car„ter tradut•rio mencionado acima, vale lembrar a questƒo da rela‚ƒo entre a tradi‚ƒo da literatura argentina e a tradu‚ƒo, uma vez que se encontra a

“importa‚ƒo” de cita‚‘es da palavra do outro para a constru‚ƒo de discursos e de palavras roubadas e ressemantizadas que desmistificam o texto original ao se imporem em condi‚ƒo de moeda falsa. Nessa literatura, os roubos, assim como as recorda‚‘es, nunca sƒo inocentes.

Quando Piglia afirma em suas narrativas o fim das experi€ncias, ele prop‘e ao leitor que a mem•ria do outro seja vista como um componente capaz de suprir a falta de narrativas pessoais ou a inexist€ncia de fatos novos para se contar. A apropria‚ƒo de relatos alheios permite aos textos a hip•tese de que todas as hist•rias estariam atravessadas pelo olhar do outro.

Nessa fic‚ƒo que pode ser vista sobre o ainda problem„tico prisma da p•s- modernidade, o "voyeurismo" e o roubo aparecem como alternativas para sair da banalidade e do vazio de suas experi€ncias. Imitar e inventar sƒo formas de contar uma hist•ria que precisa existir para contar outra hist•ria, o que remete a sua id•ia acerca do conto, que conta sempre duas hist•rias, continuamente reiterada em sua obra. A leitura • vista como uma realidade, processada atrav•s de negocia‚‘es imagin„rias da literatura.

Dessa forma, a inser‚ƒo de Piglia em um cen„rio intelectual latino-americano torna-se uma questƒo que abre para a cria‚ƒo de um discurso que, em uma situa‚ƒo de margem, aponta para alternativas de constru‚ƒo de um di„logo em rede.10

A composi‚ƒo de uma narrativa que apaga as fronteiras acerca dos g€neros e intercala novas formas discursivas lhe permite “andar” por espa‚os que estƒo em transi‚ƒo, abordando quest‘es que, pelo caminho da fic‚ƒo, preparam um discurso que convida o

10SARLO, 2001, p.225.

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leitor a pensar sobre temas e problemas que estƒo na agenda do pensamento intelectual ocidental em uma •poca de crise dos paradigmas.

Ao romper com as amarras que prendiam a literatura a normas e conceitos que a inseria no campo das belles – lettres, Piglia usa o testemunho, as cartas, as personagens que vivem em situa‚‘es de deslocamento e emigra‚ƒo, o ap•crifo e o roubo para dar voz a situa‚‘es que requisitam um redimensionamento acerca do discurso produzido num territ•rio em processo de forma‚ƒo.

Portanto, • partindo dessa premissa que h„ uma outra forma de inser‚ƒo discursiva no di„logo global – nƒo presente no cŽnone – em que sujeitos e vozes, na fic‚ƒo e na realidade, constroem caminhos de resist€ncia para que uma hist•ria de mem•ria possa ser restituŠda e presentificada em uma •poca de perdas e danos decorrentes de processos de homogeneiza‚ƒo e apagamento de alteridades.

1. 1 No olvidaremos, ni perdonaremos: a voz se faz na pra•a

“Ma m „ l a l i ber t a d, si em pr e l a l l eva r „ s den tr o del c or a z •n t e pueden c or r om per t e p u e d e s ol vi d a r per o el l a si em p r e est „ A yer so– • c on l os h am br i ent os, l os l o c os, l os que s e fuer on , l os que est „ n en pri si •n h oy d e sper t • ca n t an do est a ca n ci •n q ue ya fue e scr i t a h a ce t i em po a tr „ s.

E s n ecesa r i o ca n t ar de n uevo, u n a vez m „ s. ” Serˆ Girƒn, “Inconciente Colectivo”

Analisar o discurso do corpo como resist€ncia e o testemunho como um processo de escrita vi„vel para o resgate da alteridade e preserva‚ƒo da mem•ria sƒo caminhos que possibilitam pensar na exist€ncia de uma voz que nƒo se constr•i no chamado “centro”. Entretanto, ela consegue alcan‚„-lo numa perspectiva desestabilizadora

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do sistema hegem•nico que visa ao apagamento das diferen‚as ao propor rearticula‚‘es dial•gicas.

Ao se ter como base a presen‚a das “Madres de Plaza de Mayo”11na Argentina, buscar-se-„ neste momento verificar a importŽncia da perman€ncia dessas mulheres para o contexto polŠtico-cultural, bem como os discursos que elas produzem.

Sejam em formas de poemas, crŠticas, manifestos, biografias ou entrevistas, o g€nero do testemunho requisita seu lugar de exist€ncia / resist€ncia, pois se analisa um movimento social composto por mulheres que, em decorr€ncia da experi€ncia da perda, resolveram ir ‹ luta e falar de si. A perman€ncia delas no cen„rio de Buenos Aires ainda hoje sinaliza para a emerg€ncia de se construir, ‹s margens de estruturas que privilegiam os valores s•cio-masculinos12, relatos que possam expressar a dor, a morte e, sobretudo, requisitarem seu espa‚o num contexto que prop‘e o esquecimento como estrat•gia de domina‚ƒo.

“Les folles de la Place de Mai”13, como sƒo chamadas na Fran‚a, nƒo pejorativamente, mas pelo papel que desempenharam frente a um regime repressivo, essas mulheres que tiveram seus filhos desaparecidos durante a •ltima ditadura militar Argentina saŠram da esfera privada e foram para a pra‚a construir um discurso na contra mƒo do poder.

O movimento que, a princŠpio, seria formado por apenas algumas mƒes que se reuniam em frente ao pal„cio do governo, A Casa Rosada, para estarem juntas e, nessa ang•stia compartilhada, buscarem notŠcias de seus familiares levados pelo terror, ganhou

11No presente estudo, trabalharemos com as mƒes da “Asociaci•n Madres de Plaza de Mayo”. Sobre este tema, • importante ressaltar que h„ duas linhas: uma composta pelas mƒes dessa associa‚ƒo e outra chamada

“LŠnea Fundadora”. Embora ambas tenham uma hist•ria de vida importante para contar, a op‚ƒo feita • motivada pela resist€ncia delas em rela‚ƒo ao governo.

12RICHARD, 1996.

13As loucas de Pra‚a de Maio (a tradu‚ƒo dos textos sƒo de minha autoria)

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uma dimensƒo enorme. At• os dias de hoje, na mesma pra‚a, as Mƒes se re•nem semanalmente, todas as quintas-feiras, e fazem a ronda ao redor da pirŽmide, levantando pol€micas e bandeiras acerca da polŠtica atual daquele paŠs.

Ao t•rmino desse percurso que, temporalmente nƒo passa de trinta minutos, elas vƒo para frente da Casa Rosada e uma Mƒe l€ um texto de crŠtica e combate ‹s posi‚‘es do governo, sempre lembrando que a presen‚a delas ali • para que nƒo se apague uma hist•ria de luta.

Quando esse pronunciamento termina, elas e as pessoas que as acompanham – alguns estudantes, outros turistas que passam pela principal pra‚a de Buenos Aires – come‚am a cantar juntos o que elas estƒo buscando: “Alerta, alerta que camina, milicos asesinos por Am•rica Latina. Alerta, alerta que camina, aparici•n con vida y castigo a los culpables”.14

Faz mais de vinte e cinco anos que muitos desapareceram. Os n•meros sƒo terrŠveis, beirando trinta mil pessoas. Estar na pra‚a at• hoje gritando por justi‚a e por vida

• a maneira que elas encontraram de fazer com que essa hist•ria permane‚a viva.

O terror na Argentina se instaurou alguns anos antes do golpe militar de 76.

Dois anos antes, j„ havia amea‚as e algumas pessoas j„ estavam desaparecendo. As mulheres que estavam gr„vidas, durante o processo, foram levadas para os centros clandestinos de deten‚ƒo, tiveram seus filhos roubados e, muitos destes, foram entregues ‹ ado‚ƒo a diversas pessoas ligadas ao governo.15

14“Alerta, alerta que caminha, milicos assassinos por Am•rica Latina. Alerta, alerta que caminha, apari‚ƒo com vida e castigo aos culpados”.

15” importante ressaltar que o termo empregado ao que foi feito com essas crian‚as • “apropria‚ƒo”, o que confere um car„ter de ilegalidade e contraven‚ƒo ao ato.

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Portanto, era nesse clima de medo e amea‚a que o paŠs se encontrava. O que poderia ser apenas mais um agrupamento de algumas mƒes na pra‚a, em 1977, torna-se a Marcha, ap•s policiais lhes gritarem “Circulem, circulem”, e essas mulheres come‚arem a dar voltas. O len‚o branco que usam, at• hoje, • a maneira que encontraram de se reconhecerem. Uma vez que • comum que as mƒes tenham alguma fralda de recorda‚ƒo de seus filhos, o len‚o era isso: a lembran‚a, o resgate e o reconhecimento na dor.

Desacreditadas inicialmente pelos governantes, estas Mƒes da Pra‚a de Maio sabiam do perigo que representava a voz que elas ecoavam. Muitas foram reprimidas e houve casos de seq•estros, como o de Azucena Lidia Villaflor De Vincenti, criadora do movimento das Mƒes da Pra‚a de Maio, desaparecida em 1977.

O desaparecimento de Azucena e as constantes amea‚as ratificaram a necessidade de se fazer presente na pra‚a. Perseguidas, chamadas de loucas – argumento

•bvio quando • necess„rio anular a alteridade, visto que o discurso do “louco” • interditado socialmente – elas resistiram.

Muitas foram presas e, j„ no perŠodo neoliberal de Carlos Menem, quando protestavam acerca de seu plano econ•mico e faziam v„rias marchas relacionadas a assuntos polŠticos, o entƒo presidente disse uma frase terrŠvel:

“a dver t i u a os p a i s dos est u d a n t es que se m an i fest a va m que se n ƒ o dei x a ssem de m a r ch ar, de l u t ar , de den un ci ar , i a h a ver m u i t o m a i s Mƒ es d a P r a ‚a de Ma i o n a Ar gen tin a” .16

16Texto original: “advirti• a los padres de los estudiantes que manifestaban que si no dejaban de marchar, de luchar, de denunciar, iba a haber mucho m„s Madres de Plaza de Mayo en la Argentina”. (Historia de las Madres de Plaza de Mayo, Bs As, 1996, p.51)

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Em janeiro de 1989, Hebe Bonafini, a presidente da Associa‚ƒo, finalizou seu discurso dizendo que quando as Mƒes morressem poderiam dizer: “aqui jaz uma iludida, aqui jaz uma louca, mas jamais aqui jaz uma que traiu os princŠpios”.17

Infelizmente, as amea‚as nƒo pararam por aŠ. O ano de 1991 foi de v„rios assaltos ‹s resid€ncias das Mƒes, com roubos de todas as fotos que elas tinham dos militares acusados de tortura durante o perŠodo militar. Sobre tal epis•dio, pode-se perceber o posicionamento de resist€ncia delas diante de fatos assim:

“Cr em os q u e er a o o b j et i vo fi n a l de s eus a t os: p or que, n o fun do, a pesa r de t an t a vi ol €n ci a e t a n ta for ‚a b r uta , sƒ o m uit o c ova r des, e t €m m edo de n •s” .18

Al•m de resistirem com seus corpos em protestos, elas fundaram em 1996 a Universidade Popular da Associa‚ƒo das Mƒes da Pra‚a de Maio, onde oferecem um lugar aberto para discuss‘es e produ‚ƒo intelectual.

Se a ditadura tentou apagar o “perigo” que via naqueles jovens revolucion„rios romŽnticos que desapareceram, talvez os militares nƒo tivessem tido id•ia do legado ‹s avessas que eles deixariam: suas mƒes. O espa‚o que elas passaram a ocupar tomou uma grande dimensƒo, pois a hist•ria est„ sendo reescrita. Nas lutas, nas marchas, ou em seus escritos produzidos nas oficinas liter„rias, o relato e o testemunho se fazem presentes para reabrir uma ferida que nƒo pode ser fechada. Pedir apari‚ƒo com vida • mais que uma simples frase. ” requisitar da hist•ria a parte de uma mem•ria coletiva.

Neste momento, a presen‚a da performance surge como alternativa dial•tica, uma vez que as rondas ao redor da pirŽmide nos dias atuais ganharam um outro sentido. Por

17Texto original: “AquŠ yace una ilusa, aquŠ yace una loca pero jam„s aquŠ yace una que traicion• los principios”. Idem, p.53.

18Texto original: “Creemos que era el objetivo •ltimo de sus actos: porque, en el fondo, a pesar de tanta violencia y tanta fuerza bruta, son muy cobardes, y nos tienen miedo.” Idem, p.53.

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mais que elas saibam do destino tr„gico que tiveram seus filhos, elas continuam na Pra‚a redesenhando o quadro polŠtico da Argentina e criando novas alternativas de discurso.

O texto a seguir • o pr•logo do livro El corazón en la escritura, publicado pela Associa‚ƒo das Mƒes da Pra‚a de Maio, a partir da Oficina de Escritura que elas realizaram entre os anos de 1993 e 1996, sob o incentivo e orienta‚ƒo do escritor Leopoldo Brizuela.

Nesta parte, entende-se a importŽncia da experi€ncia para a composi‚ƒo da escritura realizada pelas Mƒes. A palavra surge-lhes como um instrumento mediador entre a perda dos filhos e o reencontro com a viv€ncia. A literatura possibilita uma linguagem derivada da emo‚ƒo, na qual a identidade dessas mulheres pode ser expressada e reconquistada.

“Qua n do n o i n Š ci o de 1 9 9 4 , dep oi s d e u m l on go t em po d edi ca d o a “a p r en der a escr e ver ” n a l i ber d a de do j og o e i m a g i n a ‚ƒ o, deci d i m o s “e scr e ver a l u t a ” , pr opus ‹ s Mƒ es q u e p el a p r i m eira vez se fi z es sem r epor t a gen s en tr e el a s; e quan do c om e‚a m o s a el a bor a r en tr e t odos u m p os sŠ vel q u est i on „ri o, a p r i m eir a per g u n t a un Žn im e foi “c om o p •d e c on t i n uar vi ven do?” O l i vr o que o l ei t or t em en t r e a s m ƒ os •, a p r in cŠ p i o, a r espost a a essa per g u n t a , a h i st •r i a de u m a r essurr ei ‚ƒ o; m a s t a m b•m • a i n di spen s„ vel r essur r ei ‚ƒ o d os d esa p a r eci d o s , su a a par i ‚ƒ o com vi d a n a pal a vr a, desde o m e sm o a m or que o s t r ouxe a o m u n do; e u m a vez m a i s, a ssi m , a r essur r ei ‚ƒ o de n •s m esm os d esd e o si l €n ci o e a i n fŽ m ia dos t em pos q u e n os t o c ou vi ver , g r a ‚a s a essa s m u l h er es do p o v o q u e s e d e fi n i r am pel o f e i t o d e d a r vi d a , que i n ven t a r a m a P r a ‚a p a r a d e fen d €- l a , e q u e segu em d a n d o- n os, a in d a h oj e, c om o el a s d i z em , “n ƒ o s • a m em •r i a , ma s a m em •r i a em l u t a” . 19

Os poemas e textos narrativos autobiogr„ficos deste livro permitem identificar a luta e a descoberta da palavra escrita como protesto e recupera‚ƒo. A literatura feita por

19Texto original: “Cuando a principios de 1994, despu•s de largo tiempo dedicado a “aprender a escribir” en la libertad del juego y imaginaci•n, decidimos “escribir la lucha”, propuse a las Madres que por primera vez se hicieran reportajes entre ellas; y cuando empezamos a elaborar entre todos un posible cuestionario, la primera pregunta un„nime fue “c•mo pudiste seguir viviendo?” El libro que el lector tiene entre manos es, en principio, la respuesta a esa pregunta, la historia de una resurrecci•n; pero tambi•n es la indispensable resurrecci•n de los desaparecidos, su aparici•n con vida en la palabra, desde el mismo amor que los trajo al mundo; y una vez m„s, asŠ, la resurrecci•n de nosotros mismos desde el silencio y la infamia de los tiempos en que nos toc• vivir, gracias a estas mujeres del pueblo que se definieron por el hecho de dar vida, que inventaron la Plaza para defenderla, y que siguen d„ndonos, a•n hoy, como ellas dicen, “no s•lo la memoria, sino la memoria en lucha”. BRIZUELA, 1997.

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elas representa um resgate de alteridade, esta que foi, primeiro, imputada aos seus filhos e, por extensƒo, deixou-lhes uma marca que nƒo p•de ser esquecida. Ao contr„rio:

semanalmente, • ressemantizada em luta, em amor, em escritura.

Mis m anos - Hebe Mis mano s

acuna ron su eño s. Mis mano s acuna ron niño s. Mis mano s acari cia ron

mucho. Mis mano s Semb rar on la tier ra.

se va ciar on mis ma nos un día. Se llenaro n de

hor rible s sil encio s. Pe ro un día mis puño s ce rr ado s

devolvi er on la f uerza y los su eño s.

Con mis m anos esc ribo a mis hijos. Co n mis ma nos abra zo los día s. Con mi s mano s apriet o las ot ras

que me tiend e gene ros a la vida.20

Em rela‚ƒo ao poema acima, • possŠvel pensar no que a escritora Nelly Richard chama de “revaloriza‚ƒo da experi€ncia”21, que aparece como a base material-corporal, ao sustentar um conhecimento vivenciado desde a natureza (corpo) ou desde a biografia, nƒo sendo mediado pela ideologia da razƒo – aspecto tƒo comumente imposto pelo meio faloc€ntrico no qual essas personagens latino-americanas estƒo inseridas.

20 Tradu‚ƒo: “Minhas mƒos cunharam sonhos. Minhas mƒos cunharam crian‚as. Minhas mƒos acariciaram muito. Minhas mƒos semearam a terra. Esvaziaram minhas mƒos um dia. Encheram de horrŠveis sil€ncios.

Mas um dia meus punhos fechados devolveram as for‚as e os sonhos. Com minhas mƒos escrevo a meus filhos. Com minhas mƒo abra‚o os dias. Com minhas mƒos aperto a outras que me t€m generosa a vida”.

21RICHARD, 1996, p. 735.

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O testemunho, assim, aparece como um g€nero capaz de dar voz a essas identidades que se inscrevem num “entre-lugar”. ” por sua inser‚ƒo nesse cen„rio que se requisitam novas articula‚‘es e di„logos.

Em uma dupla situa‚ƒo de marginalidade – mulheres e latino-americanas – reconhecer esses relatos • uma urg€ncia polŠtica que acompanha o discurso crŠtico, que deve cumprir, neste momento, uma tarefa duplamente descolonizante, ao ter em sua agenda quest‘es que tocam os preconceitos sexuais e as mutila‚‘es de depend€ncia cultural.

Segundo o escritor espanhol Alberto Moreiras, em A exaustão da diferença22, o testemunho, ao ser visto como uma nova forma de inscri‚ƒo discursiva, permite um favor„vel “abandono” do cŽnone liter„rio em favor de um novo parŽmetro que abarca a experi€ncia subalterna. Com isso, restabelecem-se novos valores para a secular tradi‚ƒo liter„ria, o que reitera a necessidade supracitada em rela‚ƒo ao processo de descoloniza‚ƒo.

Para os intelectuais ocidentais – em destaque, os latino-americanistas – que vivem a crise dos paradigmas decorrente do perŠodo que se instaurou ap•s o t•rmino da Guerra Fria, ou seja, ter que viver num mundo globalizado, onde as diferen‚as precisariam ser apagadas para que se desce inŠcio a um sinistro projeto de igualdade e “anula‚ƒo” de problemas, o g€nero do testemunho emerge como uma possŠvel saŠda dial•tica, na qual o relato da experi€ncia ganha um lugar privilegiado nos estudos da academia.

A este contexto de homogeneiza‚ƒo, a polŠtica identit„ria possibilitou contesta‚‘es ‹ globaliza‚ƒo s•cio-econ•mica imposta ‹ esfera cultural.

Estudar essas personagens e seus relatos • uma alternativa de possŠvel resgate do debate acad€mico a fim de se inserir em temas que tocam ‹ sociedade em seus problemas.

22MOREIRAS, 2000

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A rela‚ƒo de tal aspecto com as Mƒes da Pra‚a de Maio surge quando se aborda a questƒo da resist€ncia. Com seus atos perform„ticos e seus relatos de experi€ncias inseridos socialmente, estudados e, sobretudo, respeitados por seu valor hist•rico, abrem-se possibilidades de investiga‚ƒo acerca de um fen•meno que questiona ‹s estruturas de poder e, assim, • consolidado.

No fragmento abaixo, extraŠdo do livro A exaustão da diferença, Moreiras argumenta sobre a importŽncia dessa polŠtica que busca, na identidade subalterna, um caminho para se refletir acerca dessa nova ordem:

“A d i m en sƒ o cul t u r a l d a pol Š t i ca i den t i t „r ia • s obr et udo c om p r om et i d a com r epr esen t a ‚‘es d e i den t i d a de que n ƒ o p a ssa m m a i s pel a r evol u ‚ƒ o ou pel a s a l egor i z a ‚‘es n a ci on ai s/ in d i vid u a i s e que sƒ o m el h or , ma s n ƒ o exa u s t i va m en t e, en t en d i da s com o r esi st €n ci a c on tr a a for ‚a h om ogen ei z a dor a da p•s- m od er n i d a de g l oba l , m esm o que m edi a d a s n eces sa r i am en t e pel a s c on fi g u r a ‚‘e s de p od er n o n Š vel n a ci on a l ou in tran a ci on a l. ”23

Ainda que o estatuto da literatura de testemunho seja uma questƒo altamente discutida, • imprescindŠvel pensar nesse car„ter liter„rio como “uma presen‚a constante e irredutŠvel no texto testemunhal”.24

Como mediadora, a po•tica revela o momento extraliter„rio, no qual toda simboliza‚ƒo se suspende para que exista uma biografia que expresse o relato de vozes que se encontram em uma condi‚ƒo de subalternidade. Como j„ mencionado, mulheres, latino- americanas e chamadas de “loucas”, as Mƒes da Pra‚a de Maio constroem em seus textos linhas que questionam a narrativa que • dada ao povo como a sua hist•ria oficial.

23Idem, p„g. 252.

24Idem, p„g. 253.

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Os relatos delas ainda permitem lembrar a figura de Scherazade, que • resgatada para que apare‚a uma voz que requisita ser ouvida e, desta forma, haja uma mem•ria preservada. ” preciso resistir “aos ditames do rei”25, neste caso representado pelas polŠticas que encerram o ideal de homogeneiza‚ƒo, em detrimento de um sistema globalizado implantado horizontalmente, sobretudo nos paŠses latino-americanos, ap•s a derrubada do Muro de Berlim.

Sintomaticamente, as Mƒes produzem uma revista crŠtica chamada “Locas”.

Esse epŠteto tido no inŠcio um sentido pejorativo, produzido pelos militares, com o tempo ganhou um aspecto de desafio, que dissemina o fruto proibido das vers‘es que nƒo estƒo escritas e das confabula‚‘es est•tico-polŠticas, que permitem a emerg€ncia de hist•rias escritas nas margens e de um outro e possŠvel jeito de viver, ser e narrar.

Em seu ensaio, “Intelectuales hoy: ni afitriones, ni turistas”, Adriana P•rsico fala sobre a importŽncia do g€nero feminino e de sua valoriza‚ƒo no Žmbito intelectual, como viabilizadores de uma crŠtica que – imersa na crise de valores – possa rever e se dar conta dessas vozes e testemunhos que interagem numa rela‚ƒo desestabilizante com as esferas de poder. No excerto abaixo, expressam-se as posi‚‘es da autora acerca desse novo quadro:

“A m„quina, a mulher, a louca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia Plurabelle, Hip•lita, Eva P•ron: todas, personagens liter„rios e hist•ricos, nomes pr•prios e an•nimos – loucas argentinas, mƒes de Praza de Maio – t€m id€ntico estatuto ao aceitar a primeira tarefa encomendada: ser testemunhas, contar, cantar. Em sŠntese, • a literatura, mulher e m„quina, a encarregada de conservar a mem•ria comunit„ria: um belo anacronismo imortal, questionador que salva ao mundo ao dar-lhe um sentido, a ordem do relato.”26

25PIGLIA, 1994. p. 63.

26Texto original: “ La m„quina, la mujer, la loca Argentina, Amalia, Elena, Molly Bloom, Ana Livia Plurabelle, Hip•lita, Eva P•ron: todas, personajes literarios y hist•ricos, nombres propios y an•nimos – locas argentinas, madres de Plaza de Mayo – tienen id•ntico estatuto al aceptar la primera tarea encomendada: ser testigos, contar, cantar. En sŠntesis, es la literatura, mujer y m„quina, la encargada de conservar a memoria

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Para ilustrar melhor o car„ter testemunhal presente no discurso das Mƒes, abaixo est„ transcrita uma entrevista realizada na “Asociaci•n Madres de Plaza de Mayo”.

Nela, pode-se ler e perceber a importŽncia da experi€ncia como uma alternativa que resgata a identidade e, ao mesmo tempo, requisita de seu leitor – que nƒo • o sujeito testemunhal – um pacto de solidariedade, em que ambos se encontrem – ele e a testemunha – como agentes de um processo que suprimiu alteridades e que, agora, reivindica novas articula‚‘es que possibilitem um di„logo •tico e restitutivo. Segundo Moreiras, esse leitor que escolhe o testemunho • porque prefere a vida ‹ fic‚ƒo. E nesse sentido, ele se torna c•mplice (co- autor) do texto testemunhal.

Questionamentos acerca do papel polŠtico desempenhados por elas; posi‚‘es crŠticas em rela‚ƒo ‹ polŠtica que se instaurou na Am•rica Latina durante e p•s o perŠodo ditatorial e o percurso at• chegar ‹ escritura que lhes permitiu serem inseridas no g€nero do testemunho – pois passaram a produzir textos escritos – sƒo alguns dos momentos que aparecem na entrevista a seguir:

Entrevista realizada em 11/06/2004, com Beba (Evel Petrini), na “Asociaci‡n Madres de Plaza de Mayo”, Buenos Aires, Argentina.

1) Ent revi stado ra: Po r fa vo r, o que a se nho ra pe nsa e m re la ‚ƒo ‹

“h ist • ria o fic ia l” e o que re a lme nt e a co nt eceu dura nt e a • lt ima D it adura M ilit ar na Arge nt ina ?

comunitaria: un bello anacronismo inmortal, cuestionador que salva al mundo al darle un sentido, el orden del relato.” (P”RSICO, 1996.)

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B eba: Bem, os pol‡tic os que estavam a‡, os milita re s, os te rrori sta s do Estado, por meio d a menti ra, do ho r ror, do ter ro r, da repr essˆo e da morte, pa ra aniqu ilar o s opo sito re s pol‡ti cos e a f im de implant are m um plano pol‡ti co qu e, ne sse mom ento, ma nti nham co m o s Estad os Unido s e com gran de s emp re sƒri os, banco s, Igrej a – que f oi muito c‰mplice e partici pante da Di tadu ra -, todo esse co njunto de ho rro r, pinta ram-no s como o s g rand es sal vado re s da pƒtri a, o s g rande s d emoc rata s q ue, em realid ade, f oram os gr ande s a s sassino s e vended ores da pƒ tria, q ue espal hara m tanta m enti ra, nˆo sŠ em no sso pa‡ s, mas em toda Am •ri ca Latina, como Brasi l, Uruguai, Chil e e etc. Foi um projet o pol‡tico dese nvol vido com o s Estado s Unido s, que pre par ou os milita re s na

“Escola das Am• rica s” na m ort e e no horro r d o d esap ar ecim ento, aliados com todo o est a blis h me nt para im plantar na Am •ri ca Lati na u ma d‡vida imp re ssionant e que nˆ o era p ara o po vo, sen ˆo pa ra os ass as sino s e pa ra ele s te re m, depo is, o povo do minado po r m eio d esse espan toso cli ma qu e e stamos viv endo h oje e m todo s os pa‡ses latino- ameri cano s.

2) E: Qua ndo e co mo vo cês co meç ara m a faz er a lgo , a se reu nire m?

B: Quando, f oi em distinta s •po cas. NŠs, Mˆes, so mos p rod uto do maio r hor ror que pode vive r u m ser huma no, que • o de sapa re cim ento d e nossos f ilhos, e ca da u ma com e‹ou a participar ou a se mob iliza r pa ra sabe r po r onde el es an dava m. Nos l ugare s ond e ‡amo s f azer a s den‰nci as ou f alar sob re o s ho rror es qu e e stƒva mos vi vendo – qu e no s haviam l evad o o f ilho – on de no s encont rƒva mos, o nde n os reu n‡amo s, porqu e, logicame nte, ir‡am os pa ra os mesmos lado s, justi ‹a, igreja, pol‡cia, e x• rcito, mari nha, todo s o s l ugare s onde cada uma havi a sof rido a rep re s sˆo e o de sapa reci mento dos f ilhos. Entˆo, a‡, nŠs f omos nos enc ontrando. Distin tos luga re s, disti ntas ve ze s, distinta s mˆe s, at•

que chego u um mome nto em que u ma das mˆe s, hoje tamb •m

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desap ar ecida como nosso s f ilhos, Azu ze na Villaflor De Vincenti, que e ra uma mˆe muito lutado ra e vinha da luta p ol‡tica, dis se-no s “Bom, vamos leva r um a c arta a Vid ela” e, pel a p rime ira ve z, f omos ‚ Pra‹a, em 30 d e abril de 1 977. Assi m que, a pa rtir d a‡, come‹ amo s com p ouca s, era m quatorze mˆe s e, de pois, f omo s no s enc on trando, i nf ormando-no s, in do ‚ Pra ‹a. N o in‡c io, cu stou-no s m uito, havia muito medo, •ra mos rep rimida s, ti ravam-n os d ali, leva va m-nos p re sa s, mar cava m-nos, amea‹a vam-no s, cham avam a m ˆe s de terrori sta s, hor ro re s muito ter r‡vei s. Eles i mplanta ram o medo, m as era mui to mai s impo rtant e o probl ema qu e t‡nh amo s: sa ber onde e st avam no ssos f ilhos. Po rtant o, segui mos n os ju ntando e, d esg ra‹ adam en te, cada ve z • ramo s mai s, at•

que cheg ou um mom ento e m que jƒ • ramo s um grupo ba stante g rand e, e a pol‡ci a no s reti rou, di ze ndo q ue h avia “est ado d e s‡tio”, qu e nˆo se podia reuni r, da‡ c ome ‹amo s a c aminha r. Nˆo no s f omos. Ca minha mos.

E, assim, com e‹am os. A Pr a‹a f oi o lu gar o nde v‡amo s que nˆo n os sepa rƒv amo s, onde est ƒvam os co m o mesmo probl ema e, al•m di sso, a‡

pas sava muita gent e, a qu em pode r‡am os inf orm ar sob re o q ue, e m realid ade, esta va se pa s sando no pa‡ s. Esse f oi o come‹o e, depoi s, rec ente mente, no s organi zam os. Somo s um dos ‰nico s orga nism os qu e prime iro saiu p ara b riga r e d epoi s se organi zou, qua ndo no s dem os conta de que nˆ o ia s er f ƒcil e ncont rƒ- los. NŠ s nun ca pen sa mos q ue iriam d esa parec er, nun ca i riam se v er mais. Da‡, pa s so a pa sso, ‚ medida qu e a s ci rcun stŒn cias nos l ev aram, • qu e nŠ s f omos no s organi zand o. Nˆo h ƒ uma data e stip ulad a para diz er: “I sso se f ormou tal dia”.

3) E: E co mo é, at é ho je, segu ir lut a ndo ?

B: Lutamos m uito. NŠ s, hƒ 2 7 ano s, no s reun imo s na Pra‹a, to das as quintas-f eira s. Temo s est a cas a, temos uma unive rsid ade, um caf • literƒ rio e u ma liv ra ria, uma bibl iotec a, uma edito ra, edi ‹ˆo de li vros,

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um jor nal, tudo muito a r rumad o pa ra a educa ção, pa ra a p arti cipaç ão das pe s soa s, para qu e juve ntude t enha um lugar o nde se manif e star, onde pen sa r. Assi m que, e stamo s ao la do de toda s as lut as do p ovo, vamo s a tod as as manif esta çõe s qu e c onsid era mos que são just as e def endemo s a libe rdade d as pe s soa s. Estamos ao lad o de todo s aque le s que lutam pela lib erda de e indep endê nci a do povo. Consid er amo s que cada po vo tem o di reito d e e scol he r e qu e ninguém t em o dir eito de pari- lo. Estamos totalm ente cont ra o impe riali smo e os Estad os Unid os, est e país mai s a ss as sino do mundo, que tudo solu ciona mata ndo e o úni co que impo rta é o dinhei ro. Bem, es se é o f eito das Mães.

4) E: Co mo é a re la ção ent re o go ver no argent ino e vo cê s at ua lme nt e ?

B : Bom, hoje, pos so t e di ze r qu e te mo s uma boa re lação com e ste gove rno, que ve mos qu e f ez cois as qu e nã o f ez nenhum gov erno, como as dete rmina çõe s que to mou com o s milit ar es, com a pol ícia, com a cort e sup rema, c om is so d e den uncia r co nsta n tement e toda a m áf ia. Mas há coisa s de qu e não gos to. Con side ramo s que isto d e manda r trop as ao Haiti não est á ce rto, pois não s e tem o direito de inv adir u m lugar, sob retudo po rque es tão c om o s Est ado s Unid os. Naçõ es Unida s são Estados Uni dos, po r mais que lhe pon h am outro rót ulo, e este paí s, quando p ede as t ropa s, nó s já sab emo s para que a s p ede m. Não as pedem pela p az; p ede m-nas pela mort e. N ós, mãe s, não que rem os, sob re nenhum p onto d e vi sta, que no s so paí s p articip e co m a mo rte d e out ro país. Estado s Unido s não con hec e a paz.

5) E: Aqu i t e nho do is livro s q ue são po e ma s e co nt o s que vo cê s escre vera m. Co mo co meç ara m a e scre ver ?

B: Nós mãe s somo s muito c oraj osa s (r is o s). Metemos-nos e m qualque r coisa e no s at rev emo s a q ualque r cois a. Um dia veio u m jov em mu ito

Referências

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