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O Processo e A Metamorfose de uma história artificial

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (páginas 83-101)

“E st „ n pa san do dem a si a d a s cosa s r a r a s p a r a que t odo p u e d a segui r t an n orm a l.

Des c on fŠ o de t u ca r a de in for m a do y de t u i n st int o de super vi ven ci a . Ha ce t i em p o que n o l eo n i ve o n a da por que m e ofen de que t od o e st • t a n m al . Y h a st a la s per son a s lin d a s m e dan r a bi a y l o s ch i cos y l a s ch i ca s n o h a cen n a da por ca m bi ar . Por que a l g • n dŠ a se va a a br ir est a tr a m pa m ort a l p er o h a st a en t on ces l l eva r „ s en t u car a una som b r a. ”

Se r ú G i r á n , B a n c a t e e se de fe c to.

“A per g u n t a sobr e o p a ssa d o de u m h om em des en ca dei a o r el a t o: a ver d a de des sa vi d a • u m en i g m a que a s per son a gen s p r ocur a m deci fr a r atr a v•s d e u m a pesqui sa q u e os i n cl u i e o s per t ur ba . Na a ven t u r a dessa bu sca , o r om a n ce va i a m pli an do seu n •cl eo i n i ci a l a t • i n t egr ar em s u a tr am a os m a t eri a i s m ai s

90Texto original: “ Un desplazamiento hacia el otro, un movimiento ficcional, dirŠa yo, hacia una escena que condensa y cristaliza una red m•ltiple de sentido. AsŠ se transmite la experiencia, algo que est„ mucho m„s all„ de la simple informaci•n. (...) la distancia, el desplazamiento, el cambio de lugar. Salir del centro, dejar que el lenguaje hable tambi•n en el borde, en lo que se oye, en lo que llega de otro”. PIGLIA, 2001. p.8

h et er og€n eos: a r ec on st r u‚ƒ o d a vi ol en t a bi ogr a fi a d e u m pos sŠ vel t r a i dor , um en con t r o m i st er i oso en t r e Fr an z Ka fka e Adol f Hi t l er , d i scur s os a l uci n a dos, s on h os u t •pi c o s e a t ran scr i ‚ƒ o d e d et er m in a d a s ca r t a s on de e c oa m voz es d o p a ssa do e ou vem- s e voz e s d o fut u r o. O r om a nce m o v e- s e em est i l o s e r egi st r os d i ver sos, a t • t ran sfor m ar- se n a gr an de m et „ for a desse s t em p o s s om br i os, em que h om en s p a r ecem p r eci sa r de um ar ar t i fi ci a l par a poder sobr e vi ver . ”91

O fragmento acima corresponde ao coment„rio presente na contracapa de Respiração artificial.

Se, ao inv•s de tentar tra‚ar algumas linhas sobre esse romance, tivessem tentado resumir brevemente a hist•ria, poderia ter sido assim: um homem ouve falar de seu tio, um professor de hist•ria, de quem h„ muitos anos nƒo recebe notŠcias. Em viagem para tentar encontr„-lo, esse sobrinho come‚a a conhecer pessoas que fazem parte do passado de seu tio e que, atrav•s de suas narra‚‘es e met„foras liter„rias, ele pode entender o que lhe aconteceu: a ditadura se encarregou de apag„-lo do cen„rio hist•rico.

Como uma alegoria de um arque•logo, que sai em busca de f•sseis tentando recuperar alguns tra‚os de seu passado, EmŠlio Renzi vai ‹ procura de Marcelo Maggi, o tio que nas entrelinhas se l€ ser um desaparecido. Contudo, em uma atmosfera sufocante, na qual, diariamente, v„rias pessoas somem como se fossem provas que precisam ser queimadas para nƒo delatarem um borrƒo presente na escrita de um paŠs, o trabalho desse arque•logo • encontrar-se com o fracasso. Ainda que se reconstrua a hist•ria, ela nƒo pode ser dita, pois • velada pelo discurso oficial, por um sistema fr„gil e obsoleto que insiste na afasia como tentativa de “calar os monstros”.

Sobre a sele‚ƒo dos discursos que circulam socialmente, Foucault diz:

“(. . . ) em t oda a soci eda de a p r odu ‚ƒ o d o d i s cur so • a o m esm o t em po c on t r ol a d a , sel eci on a d a , or gan iz a da e r edi st r i buŠ d a por

91Iluminuras, 1980.

cer t o n • m er os de p r ocedi m en t o s que t €m por f u n ‚ƒ o c on jur ar seus p oder e s e p er i gos, d om i n ar seu c on h eci m en t o a l ea t •r i o, esqui va r s u a pesa d a e t em Š vel m at er i al i d a de. (. .. )” .92

E, um pouco mais adiante, conclui:

“S e • n e ce ss„ r i o o si l €n ci o d a r a zƒ o p a r a cura r os m on st r os, ba st a que o si l €n ci o e st e ja a l er t a, e ei s q u e a s epa r a ‚ƒ o per m an ece” .93

Em um contexto como este no qual a Argentina estava inserida, preservar a hist•ria s• era possŠvel na fic‚ƒo, possibilitando ao historiador Ricardo Piglia transformar seu texto para que os fatos nƒo se perdessem, assim como os desaparecidos, nos f•tidos por‘es da ditadura.

Kafka, Hitler e Descartes saem da realidade para se tornarem personagens dessa trama que respira um ar filtrado e artificial. A paran•ia de narrativas como A metamorfose e O Processo, o horror do Holocausto e a busca por uma razƒo que exclua qualquer d•vida, para que nƒo sejam vistas as fraudes dessa sociedade vulner„vel, dialogam formando vozes de medo e apreensƒo ante esse pesadelo que se mescla com a vida, impossibilitando distinguir o onŠrico do real.

Quando questionado em entrevista sobre qual seria a especificidade da fic‚ƒo, Piglia retoma algumas posi‚‘es acerca do discurso produzido pela ditadura:

“Sua r el a ‚ƒ o e s p e cŠ fi ca c om a ver d a de. In t er essa- m e t r a ba lh ar n essa z on a i n det erm in a da em que s e cr u z a m a fi c‚ƒ o e a ver d a de. An t es de m a i s n a da , por que n ƒ o h „ um ca m po p r •pr i o d a fi c ‚ƒ o. D e fa t o, t udo p ode ser fi c ci on a l iz a do. A fi c ‚ƒ o t r a ba l h a com a cr en ‚a e n es se s en t i do l e va ‹ i d e ol ogi a , a o s m odel os c on ven ci on a i s de r ea l i d a de e, n at ur a lmen t e, t am b•m ‹ s c on ven ‚ ‘es q u e t or n am ver d a dei r o (ou fi ct Š ci o) u m t ext o. A r ea l i da de • t e ci d a de fi c‚ ‘ e s. A Ar gen t ina at u a l • u m bom l u g a r p a r a ver a t • q u e p on t o o d i s cur s o d o p od er fr eq•en t em en t e

92FOUCAULT, 1970. p. 9.

93Idem, p. 13.

a d q u i r e a for m a de u m a fi c ‚ƒ o cr i m in a l. O d i scu r so m i l i t ar t eve a pr et en sƒ o de fi cci on a l i zar o r ea l par a a p a gar a opr essƒ o. ” 94

Numa met„fora de compromisso com a hist•ria do povo argentino, ou seja, a hist•ria de presos polŠticos, de mƒes e av•s da Pra‚a de Maio e de outros movimentos e figuras emblem„ticas deste tortuoso perŠodo, o relato ficcional aparece na narrativa de Ricardo Piglia com a fun‚ƒo de desvelar os fatos.

Uma vez que a realidade est„ entrecortada pela fic‚ƒo, o discurso do poder tamb•m se instala neste campo. Na literatura, a ficcionalidade serve de instrumento de reflexƒo e estrat•gia para enganar a censura militar. J„, na polŠtica ditatorial, ela • tida como um instrumento de batalha capaz de apagar os danos reais e transform„-los em narrativas ufanistas, nas quais homens tentam defender o Estado do poder corrosivo que o questionamento e a crŠtica podem representar. Um procedimento nƒo muito diferente do que foi feito pelo Führerna •poca do nazismo alemƒo.

Isso faz com que se produza uma narrativa por uma na‚ƒo que, para falar de si, precisa desconsiderar os rastros de desigualdade presentes em sua composi‚ƒo, revelando-se artificial e falaciosa. Em rela‚ƒo a esrevelando-se aspecto, Luis Alberto Brandƒo dos Santos, em seu texto “M„quinas de retramar”95, prop‘e reflex‘es que tocam ‹s tens‘es acerca das inverdades produzidas pelo discurso nacionalista. Ele aborda, tamb•m, as discuss‘es sobre as tradi‚‘es inventadas e sua imposi‚ƒo ao povo. No fragmento a seguir, pode-se verificar as posi‚‘es desse autor:

“Na op ‚ƒ o pel a r e cusa d o Hor r or, n ƒ o • a pen a s a Ra z ƒ o q u e s e r evel a d est r o‚a d a . T a m b•m s e d est r o‚a a c on c ep‚ƒ o d e n a ‚ƒ o en quan t o r edut o de i den t i da des ess en ci a i s a ser em i sol a d a s e p r eser va d a s a t r a v•s d o ext er m Šn i o de t oda e q u a l quer im pur ez a i n t ern a ou a m ea ‚a ext er n a. Dest r o‚a- s e, a i n da, a con c ep‚ƒ o d e h i st •r ia com o p r ogr ess o, c om o p r oc es s o c on t Šnuo de c on q u i st a

94PIGLIA, 1994. p.68.

95SANTOS, 1997.

do fut u r o, de c ol on i z a ‚ƒ o do a ca s o pel a p r evi si b i l i d a de. Pa ssa a ser pos sŠ vel , en t ƒ o, que se c om ec e a d i fun d i r o q u a n t o h „ de i n v e r d a d e n a con st i t u i ‚ƒ o d a n a ‚ƒ o en quan t o for ‚a si m b•l i ca e, c om o c on seq•€n ci a , do q u a n t o h „ de m ani p u l a‚ƒ o n o m od el o a par en t em ent e n a t ura l d a n a ‚ƒ o en quan t o m od el o c on cr et o d e or g a n i z a ‚ƒ o soci a l . T orna- se pos sŠ vel , a ssi m , passa r a per ceber a s t r a d i ‚‘es n a ci on a i s com o t r a d i ‚‘es i n ven t a das; a n a ‚ƒ o c omo n arra t i va ” .96

A questƒo de tradi‚ƒo, em Piglia, • muito presente, j„ que, em seu texto, sƒo inseridos os escritores Jorge Luis Borges, Roberto Arlt, Macedonio Fern„ndez, Edgar Alan Poe, Kafka, Fitzgerald, James Joyce e outros tantos que, nessa “biblioteca a que os outros chamam universo”, fazem parte da forma‚ƒo intelectual do autor de Respiração Artificial.

Autor de romances, contos e ensaios, Piglia dialoga com a tradi‚ƒo, ao resgatar os fragmentos e tentar reconstruir a mem•ria cultural, sendo esta associada ‹ liter„ria.

Como dito anteriormente, ao encontrar na literatura uma outra forma de falar e questionar a hist•ria, ele elege seus precursores e tra‚a uma realidade mediada pela fic‚ƒo:

“Pa r a u m escr i t or a m em •r i a • a tr a d i ‚ƒ o. Um a m em •r ia i m pess oa l , fei t a de ci t a ‚ ‘e s, don de s e fa l a m t oda s a s l Š n gua s.

Os fr a g m en t os os t on s d e out r a s es cr i t ur a s vol t a m c om o r ecor d a ‚ ‘e s pes s oa i s” .97

Ao falar que a mem•ria • a tradi‚ƒo e que as leituras voltam como recorda‚‘es pessoais, Ricardo Piglia, antes de se situar como escritor, se posiciona como leitor, permitindo identificar a necessidade de que os textos t€m de dialogarem entre si. Em um movimento de recupera‚ƒo e preserva‚ƒo, este autor faz de sua escritura o laborat•rio do possŠvel, onde Borges, com sua “Biblioteca de Babel”, encontra-se com Edgar Alan Poe, para que “juntos” possam escrever uma hist•ria.

96Idem, p.95

97Texto original: Para un escritor la memoria es la tradici•n. Una memoria impersonal, hecha de citas, donde se hablan todas las lenguas. Los fragmentos y los tonos de otras escrituras vuelven como recuerdos personales” PIGLIA, 1988.

Para o escritor que busca revisitar os textos que constituŠram sua forma‚ƒo de leitor, a mem•ria ao ser resgatada e associada ‹ no‚ƒo liter„ria permite que sua escritura seja uma ponte com a tradi‚ƒo perdida, um elo entre o passado e o presente que nƒo se liga a uma no‚ƒo teleol•gica do tempo, mas a uma no‚ƒo disjuntiva98, na qual os temas do passado nƒo devem ser vistos como algo j„ ocorrido, os do presente como algo que acontece e os do futuro como fruto dessas duas conjun‚‘es. Em Respiração artificial, Borges, Kafka, Descartes e Roberto Arlt aparecem mesclando o tempo e a hist•ria para com Ricardo Piglia, ao permitirem que apare‚a a narrativa em questƒo e demonstrar o di„logo intermitente que se estabelece.

Em O laborat•rio do escritor99, ao ser questionado em entrevista a Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano acerca de qual seria o seu leitor ideal, Piglia relata:

“O leitor ideal • aquele produzido pela pr•pria obra. Uma escrita tamb•m produz leitores, • assim que a literatura evoluŠ. Os grandes textos sƒo os que transformam o modo de ler. Todos n•s trabalhamos a partir do espa‚o de leitura definido pela obra de Macedonio Fern„ndez, de Leopoldo Marechal, de Roberto Arlt.”100

O leitor ideal – ao contr„rio do que se cria na •poca da crŠtica bibliogr„fica e do auge do estruturalismo – nƒo • mais mero recept„culo de informa‚‘es presentes nos livros.

Para Piglia, o ideal • o leitor que, ao interagir com o texto, consegue modific„-lo, atualiz„-lo, num processo parecido com o que ocorre ‹ m„quina de narrar de Macedonio Fern„ndez, presente em A cidade ausente. Transformar o texto lido • ter o poder de se inserir na tradi‚ƒo, recortando-a e a adaptando ao texto que ser„ escrito. ” usar alegoricamente o legado hist•rico para recuperar um contexto fraturado pelo tempo da inverdade.

98BHABHA, 2001.

99PIGLIA, 1994.

100Idem.

Essa concep‚ƒo de leitor pode ser relacionada ‹ de “leitor informado” de Fish, que consistia na pretensƒo de descrever os processos em que os textos sƒo atualizados pelo leitor e verificar os efeitos que o texto poderia produzir neste quando se • capaz de colocar em pr„tica suas compet€ncias e relacion„-las ao que est„ sendo lido.101

Ainda que em Piglia nƒo se encontre uma preocupa‚ƒo em tra‚ar e nomear o leitor, a visƒo de Fish nƒo se distancia da do autor argentino, pois, assim como este, h„ a possibilidade de intera‚ƒo entre quem l€ e o texto lido, provocando uma constante a‚ƒo de transforma‚ƒo tanto do objeto quanto do agente.

Sem se aprofundar tentando formular uma teoria crŠtica, por•m sem deixar de falar, esse tema se apresenta recorrente nos textos de Ricardo Piglia. Nas narrativas analisadas neste estudo h„ presen‚as de personagens que, atrav•s da mem•ria liter„ria, conseguem tecer relatos nos quais se • possŠvel ouvir os ecos da tradi‚ƒo.

Em Respiração artificial, h„ a suposi‚ƒo de que h„ uma linha de continuidade entre O discurso do método, de Ren• Descartes, e Minha luta, de Adolf Hitler, e que seriam – na verdade – “um s• livro”.102A posteriori, este •ltimo se relacionaria ‹ fic‚ƒo Kafkiana, claro que esta pensada como uma alternativa apresentada pela literatura para criticar uma

•poca de terror.

Para Tardewski, a personagem que fala sobre tal id•ia, um mesmo princŠpio b„sico norteia o fil•sofo franc€s e o Führer: “o princŠpio de uma verdade absoluta que se alimenta de sua pr•pria infalibilidade. A a‚ƒo nazista representaria a atualiza‚ƒo concreta do racionalismo europeu (...)”.103

101ISER, 1996. p.67

102PIGLIA, 1980, p.174.

103SANTOS, 1997. p.94.

Um pouco mais adiante ele relaciona o pavor apresentado na fic‚ƒo de Kafka ao livro de Hitler:

“Kafka faz em sua fic‚ƒo, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia fazer.

Seus textos sƒo a antecipa‚ƒo daquilo que via como possŠvel nas palavras perversas daquele Adolf, palha‚o, profeta que anunciava, numa esp•cie de sopor let„rgico, um futuro de uma maldade geom•trica. Um futuro que o pr•prio Hitler via como impossŠvel, sonho g•tico onde chegava a transformar-se, ele, um artista piolhento e fracassado, no F•hrer. Nem o pr•prio Hitler, tenho certeza, acreditava em 1909que aquilo fosse possŠvel. Mas Kafka sim.

Kafka, disse Tardewski, sabia ouvir. Estava atento ao murm•rio enfermi‚o da hist•ria”104

A •ltima frase do excerto supracitado torna vi„vel o pensamento no qual o escritor de fic‚ƒo nƒo se aliena dos fatos. Ao contr„rio, ele, atrav•s de seu relato, pode capt„-los nas entrelinhas do discurso hist•rico, antecipando-os ou transformando-os a fim de que o leitor possa entrever nessas fissuras as outras hist•rias que tamb•m fazem parte desse discurso. Uma vez que • preciso um olhar mais objetivo para relatar os fatos hist•ricos, ‹ fic‚ƒo cabe instigar e negociar tens‘es que, muitas vezes, estƒo presentes em abafamento nos textos da hist•ria oficial.

J„ no outro romance em estudo, A cidade ausente105, Ricardo Piglia traz a figura de Macedonio Fern„ndez – autor argentino que influenciou tamb•m a gera‚ƒo de Borges – transformando-o em personagem de sua fic‚ƒo ao lado de Elena Fern„ndez, sua esposa. Sobre este assunto, no terceiro capŠtulo do presente estudo ser„ feita uma an„lise mais abrangente.

Tanto em Respiração artificial quanto em A cidade ausente, o autor, antes de situar-se como escritor, delata sua eterna condi‚ƒo de leitor. Relacionar os textos de Ren•

Descartes, Hitler e Kafka, nƒo s• • criar uma nova fic‚ƒo a partir de sua leitura, mas • transformar esses textos ao perceber que h„ um interdiscurso entre eles. Tal capacidade est„

104PIGLIA, 1980, p.190.

105PIGLIA, 1992.

em consonŽncia com a visƒo de leitor de Piglia j„ mencionada anteriormente e que pode ser comparada ao “leitor informado” de Fish.

Assim como a narrativa hist•rica que nunca se fecha, ou seja, cada fato pode ser contado de diversas maneiras, o romance de Ricardo Piglia tenta tra‚ar um caminho parecido, podendo ser lido como uma versƒo para os fatos. Uma versƒo que, pelo caminho da fic‚ƒo, possibilita rever a hist•ria e – nos fatos nƒo narrados e nos relatos nƒo ouvidos – ser reconstituŠda, sem que se tente apagar suas diferen‚as e se excluam suas personagens secund„rias, como faz o discurso oficial.

Ao eleger a mem•ria liter„ria como mem•ria cultural, o autor Ricardo Piglia coloca os textos oficiais, os documentos e as biografias dos mitos que constituem a hist•ria da na‚ƒo em igualdade com os textos de Jorge Luis Borges, Roberto Arlt, Macedonio Fern„ndez e outros escritores que participam da hist•ria da literatura argentina.

Resgat„-los em uma narrativa que busca ser uma nova versƒo para se pensar e questionar a fal€ncia do discurso do poder • expandir os limites que os prendiam ‹ hist•ria da literatura e os inserir na hist•ria que nƒo pretende ser hegem•nica, uma vez que a escolha da fic‚ƒo j„ indica uma desconfian‚a acerca da exist€ncia realidade. Sobre esse aspecto, Piglia destaca:

“Se a polŠtica • a arte do possŠvel, a arte do ponto final, entƒo a literatura • sua antŠtese. Nada de pactos, nada de transa‚‘es, a realidade nƒo • a •nica verdade.

Frente ‹ lŠngua vigilante da realpolitik, a voz argentina de Macedonio Fern„ndez. “Emancipemo-nos dos impossŠveis”, dizia, “de tudo o que buscamos e, ‹s vezes, acreditamos que nƒo existe, e, pior ainda, que nƒo pode existir. Nada, entƒo, deve nos deter na busca da solu‚ƒo plena, sem restri‚‘es, nem ressaibos irredutŠveis”. A fic‚ƒo argentina • a voz de Macedonio Fern„ndez, um filete de „gua na terra seca da hist•ria. Al•m da barb„rie e do horror que vivemos, em algumas p„ginas de nossa literatura persiste uma

mem•ria que nos permite, penso eu, nƒo nos envergonharmos de ser argentinos”106

Personagens como Joseph K. e Greg•rio Samsa, respectivamente, as figuras centrais dos romances O Processo e A Metamorfose, de Franz Kafka delatam, metonimicamente, o desespero pelo qual passavam os presos durante o Processo de Reorganiza‚ƒo Nacional. Todos os dias, v„rias pessoas eram levadas a interrogat•rios, culpadas por crimes que nƒo cometeram e presas sem saber o porqu€.

O inŠcio da narrativa de Kafka pode ser lido como um texto de fic‚ƒo referente aos procedimentos adotados pelos militares quando invadiam uma casa em busca de algo que pudesse incriminar algu•m:

– D e se j o fa l a r com a senh or a Gr uba ch – excl a m ou K. , e fa z en do u m m ovi m en t o c om o p a r a l i vr ar- se d os d oi s h om en s que, c on t udo, se en c on tr a va a u m a con si der „ vel d i st Ž n ci a del e, i n t en t ou dei x a r a sa l a.

– Nƒ o – r et r ucou o h om em que j„ est a va ju n t o ‹ ja n el a, dei x a n do seu l i vr o s obr e u m a m esi n h a e pon d o- se de p •. – Voc€

n ƒ o pode sa i r ; est „ det i do.

– ” o que par ece – d i ss e K. – , e por qu€?– per gun t ou depoi s.

– Nƒ o n o s ca be expl i ca r i ss o. V ol t e p a r a seu q u a r t o e e sper e a l i . O in qu•r i t o est „ em cur s o, de m od o q u e s e i n t eir ar „ de t udo em seu d e vi d o t em p o. Sa i ba q u e ex or bi t o d e m i n h a s at r i bui ‚ ‘e s a o fa l a r - lh e t ƒ o a m i st osa m en t e. Con fi o, por •m , em que a pen a s m e ou‚a Fr a n z , o q u a l , i g u a lm en t e, in fr in gin do t oda s a s r egra s, m ost r a - se- l h e m u i t o cor d i a l . Se voc€ c on t in ua ten do t a n t a sor t e c om o n a desi g n a ‚ƒ o de seu s g u a r d a s pod e a l i m ent ar esp er an ‚a s. ”107

Como Joseph K. que • inserido em um processo e at• o t•rmino da narrativa nƒo • dado nem ao leitor nem ‹ personagem o conhecimento de qual seria o delito (se • que o houve), em Respiração artificialalgo muito pr•ximo ocorre com Marcelo Maggi.

Ainda numa recupera‚ƒo do legado Kafkiano, a sensa‚ƒo provocada pela condi‚ƒo subumana na qual se encontra Greg•rio Samsa • an„loga ‹ das pessoas que

106PIGLIA, 1994. p. 93.

107KAFKA, 1925, p.39.

perderam sua identidade, seja por um regime ditatorial, ou pelas estrat•gias de sobreviv€ncia que precisaram ser desenvolvidas.

A personagem Tardewski, um exilado polon€s amigo de Maggi, • quem deixa passar nas entrelinhas de Piglia, a rela‚ƒo paralela existente entre o romance de Kafka e o regime nazista de Hitler. Em uma proje‚ƒo que permite deslocar tempo e espa‚o, pode-se pensar na hip•tese de o ditador alemƒo encarnar qualquer outro ditador, at• mesmo o parecido General Videla, uma das figuras mais representativas do perŠodo do Processo argentino:

“O s enh or l eu O Proc e sso, diz Tar dewsk i . Ka fka sobr e ver a t • n o det a l h e m a i s p r eci s o c om o o h or r or est a va se a cum u l a n do. O r om an ce a p r esen t a de man ei r a al uci nan t e o m od el o cl „ ssi c o d o E st a do t r an sfor m a do em i n st r um en t o de t er ror . Des cr e ve a m a quin ari a an •ni m a de u m m un do on de t odos p od em ser a cusa d o s de cul p a d o s , a si n i str a in segur an ‚a que o t ot a l i t ar i sm o i n sin u a n a vi d a dos h om en s, o t •di o sem r ost o d os a ssa ssi n os, o sa d i sm o fur t i vo. De sde q u e Ka fka e scr e veu ess e l i vr o, a p a n ca da n ot u r n a ch egou a in • m er a s por ta s e o n om e dos que for a m arr a st a dos p a r a m orr er c o m o u m c ã o , com o J oseph K. , • l egi ƒ o.

Ka fka fa z em s u a fi c ‚ƒ o, a n t es de Hi t l er , o q u e Hi t l er l h e d i sse que i a fa z er . Seus t ext o s sƒ o a a n t eci p a ‚ƒ o d a q u i l o que vi a c om o p os sŠ vel n a s p a l a vra s per ver sa s d a quel e Adol f, p a l h a ‚o, p r ofet a que a n un ci a va , n um a esp•ci e d e s op o r l et „r g i co, um fut u r o d e m a l d a de g e om •t r i ca . Um fut u r o q u e o p r •pr i o Hi t l er vi a c om o i m pos sŠ vel , s on h o g•t i c o on de ch ega v a a tr an sfor m ar-se, el e, u m a r t i st a p i ol h ent o e fr a ca ssa do, n o F • h r er . Nem o p r •pr i o Hi t l er , t enh o c er t ez a, a cr edi ta va em 1 9 0 9 que a q u i l o fos se p ossŠ vel . Ma s Ka fka si m . Ka fka , Ren z i , di sse T a r dewski , sa bi a ou vi r . E st a va a t en t o a o m u r m •r i o en fer m i ‚o d a h i st •r ia . ”108

Para se construir um possŠvel discurso, uma possŠvel narrativa, Piglia faz um jogo joyceano, no qual as trocas ling•Šsticas permitem que o sufoco de uma •poca possa ser dito. Ainda que muitas vezes o desespero seja inef„vel, nas malhas da fic‚ƒo ele ganha uma voz que pede socorro.

108PIGLIA, 1980, p.190.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (páginas 83-101)