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Alucina•‰es de um percurso sombrio

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (páginas 70-83)

H„ uma outra figura nƒo poderia ficar de fora dessa margem imposta socialmente: o louco. Em um cen„rio vitoriosamente capitalista, agravado pelo pragmatismo financeiro que impede polŠticas de estado mais humanizadas, ter ilus‘es, utopias, e defend€-las • estar no “fio da navalha”, com o seu discurso sempre sendo recha‚ado pelo poder.

Em delŠrio, Enrique Ossorio escreve uma das cartas mais intrigantes ‹ proposta de verifica‚ƒo desse estudo e que ser„ discutida no pr•ximo t•pico.

Uma das figuras mais instigantes presente em Respiração artificial • Echevarne Ang•lica In•s, ou AnahŠ, que no romance se situa como um heter•nimo de Enrique Ossorio.

No emaranhado de cartas que ele escreve, uma recebe o tŠtulo “1979” e, como epŠgrafe, a seguinte frase aludida ao escritor e historiador franc€s especialista em Revolu‚ƒo Francesa: “Cada época sonha a anterior. Jules Michelet”. Quem a assina seria essa suposta mulher, AnahŠ.

O que se torna interessante nessa carta sƒo os in•meros fatores que – aos olhos de um leitor atento – podem ser desvendados como cifras que remetem a uma linguagem que est„ sendo interditada. ” produzido um discurso que, nas entrelinhas, pede socorro e denuncia o horror pelo qual est„ passando a Argentina naquele ano.

Em um processo an„logo ao do escritor George Orwell, em 198470, esta carta, supostamente escrita no exŠlio, em 1850, se projeta mais de cem anos, e “imagina” como estaria o paŠs em tal momento, assim como o escritor ingl€s, criando em sua narrativa uma sociedade controlada pelo estado, que oprimia e dominava as pessoas sob uma rŠgida repressƒo ling•Šstica ao instaurar a “NovilŠngua”.71

Piglia, em 1980, tra‚a um percurso semelhante ao de seu precursor ingl€s que, em 1950, pensou no que a repressƒo totalitarista poderia transformar a sociedade descrita em 1984. Atrav•s da personagem de Enrique Ossorio, • produzido um discurso que caminha na linha limŠtrofe entre a razƒo e a loucura e faz ecoar uma voz desesperada.

70ORWELL, 1950.

71No livro de George Orwell, a lŠngua que o povo passa a falar • a “NovilŠngua”, que consistia em um processo de redu‚ƒo lexical, no qual o uso de afixos era vastamente explorado. Ao adotar tal lŠngua, as pessoas restringiam seu vocabul„rio e, assim, o que queriam expressar ficava reduzido ao que era possŠvel nesse instrumento de domina‚ƒo ideol•gica.

“Encarnada” na presen‚a de uma mulher, • delata uma tripla condi‚ƒo de subalternidade:

louca, mulher e latino-americana.

A carta come‚a com a seguinte explica‚ƒo de Enrique Ossorio:

“Fa l o s obr e o t em a d e m eu r el a t o c om Li s et t e. E l a m e d i z : voc€

va i c ol oca r n el e u m a m ulh er com o eu, que sa i ba l er o fut u r o n o v•o d os p „ ssa r os n ot u r n os? T a l vez , d i g o- l h e, col oque em m eu r el a t o u m a a d i vinh a , u m a m ulh er com o voc €, que sa i ba ol h a r o que n in gu•m con segue ver ”.72

P„ginas antes, • explicado ao leitor quem • Lisette, ou seja, a amante de Enrique Ossorio e que, segundo ela, possuŠa uma arte divinat•ria, consistida em descobrir o futuro atrav•s do v•o dos p„ssaros.

Dotados de uma falta de credibilidade, os discursos que se ap•iam no que ainda est„ para acontecer, como esses produzidos pelas adivinha‚‘es, recebem o status de loucura, ou seja, ver o que ningu•m v€ e ouvir o que ningu•m ouve deixa de ser um dom para ser um desvio. Dessa maneira, quem o tem deveria ser banido da sociedade e enclausurado, para que nƒo se criem problemas ao evidenciar a falibilidade das rela‚‘es de poder.

Em rela‚ƒo a essa inc•moda presen‚a do louco, cabe ressaltar o pensamento do fil•sofo franc€s Michel Foucault, que estudou durante anos o papel desse sujeito e seu (nƒo)lugar na sociedade:

“D esd e a a l t a I d a de M•di a , o l ouc o • a quel e cu j o o d i scur s o n ƒ o pod e ci r cul a r com o o d os out r o s : pod e o c or r er que s u a p a l a vr a se ja c on si der a d a n u l a e n ƒ o se ja a c ol h i d a , n ƒ o t en do ver d a de

72PIGLIA, 1980, p. 73

n em i m por tŽn ci a , n ƒ o p oden d o t e st em u n har n a just i ‚a , n ƒ o pod en do a u t en t i ca r u m at o ou u m c on t r at o, n ƒo p od en do n em m esm o, n o sa cr i fŠ ci o d a m i ssa , p er m i tir a tr ansubst a n ci a ‚ƒ o e fa z er do p ƒ o u m c or po; pod e oc or r er t a m b•m , em con t r a par t i da , que s e l h e a tr i bua , por oposi ‚ƒ o a t oda s a s o u t r a s, est r anh os pod er es, o d e d i ze r u m a v e r d a d e e sc o n d i d a, o de p r on u n ci ar o fut u r o, o de en xer gar com t oda a in gen u i d a de a q u i l o que a sa bed or i a dos out r os n ƒ o pode per c e ber ( g r i fo n o s s o)” .73

Ao presentificar a loucura em seu romance na pele da personagem heteronŠmica AnahŠ, Piglia lhe confere a capacidade de enxergar e dizer o que est„ sendo calado. Ainda que seu discurso seja construŠdo em uma perspectiva ap•crifa e futura, na narrativa em questƒo ele tem um lugar muito importante, pois sƒo nessas entrelinhas da loucura e da fic‚ƒo que o autor deixa as pistas que se referem aos centros de deten‚ƒo clandestinos que existiram na Argentina durante a Ditadura Militar.

Em um apelo desesperado, essa mulher imagin„ria escreve uma carta pedindo ajuda ao Ministro74. Ela diz que est„ sendo perseguida por uns g€meos que usam botinas pretas – refer€ncia esta que pode ser facilmente aplicada a qualquer descri‚ƒo cifrada de um policial, visto que todos usam uniformes e botinas pretas.

Al•m disso, deixa uma dire‚ƒo de onde eles poderiam ser encontrados:

“Sul - S u d est e em d i r e‚ƒ o a o Oest e ( c om o s e f o s s e n a d i r e‚ƒ o d e M u n r o)” .75

A dire‚ƒo do lugar indicado, a priori, poderia estar ali apenas como mais um artifŠcio borgeano, no qual as dire‚‘es se bifurcam em fontes imagin„rias que retomam os

73FOUCAULT, 1970. p.10

74Durante a carta, o tratamento dado ao destinat„rio muda v„rias vezes. Ora • chamado de Ministro, ora Prefeito, sempre com o uso de termos que se remetam a uma posi‚ƒo polŠtica.

75PIGLIA, 1980, p.74.

labirintos de “O Aleph”76. Por•m aqui se trata de uma narrativa que precisa ser escrita, ao pedir socorro e exigir que exista.

Portanto, ao procurar se esse lugar no livro escrito sobre o informe da Comissƒo Nacional de Desaparecimento de Pessoas77(CONADEP), Nunca Mas78- onde sƒo relatados casos de desaparecimentos que ocorreram durante o perŠodo ditatorial, bem como as descri‚‘es dos centros clandestinos para onde os presos polŠticos eram levados – pode-se supor a refer€ncia a um dos maiores centros de tortura clandestino, a Escuela de Mec„nica de la Armada79, mais conhecida como “ESMA”. Ainda que um pouco distante, a dire‚ƒo deste tamb•m • ao norte da Capital Federal.

Infelizmente, trata-se de um capŠtulo muito doloroso da hist•ria Argentina. Isso remete ao fato de que, al•m desse centro clandestino citado acima, esse paŠs teve espalhado por todo seu territ•rio lugares onde eram praticadas as mais atrozes torturas. Em v„rios bairros, provŠncias e cidades, o terror se alastrava como uma epidemia, contaminando pessoas e levando vidas.

Ainda com refer€ncia a esses locais, vale lembrar que as pessoas eram pegas independente de sexo. Homens e mulheres podiam estar trabalhando normalmente, em qualquer setor, e serem “chupados”80.

A amea‚a teve uma dimensƒo tƒo grande que at• os filhos desses desaparecidos tiveram a hist•ria de suas vidas bruscamente borrada por esse horror. As gr„vidas presas tiveram os filhos retirados e entregues ‹ ado‚ƒo clandestina que, em in•meros casos, era

76BORGES, 1961,p.117.

77Comisi•n Nacional sobre la Desaparici•n de Personas.

78Edeba, 1985.

79Escola de MecŽnica da Marinha.

80 “Chupados” • t er m o q u e er a em p r ega do a os q u e m or r ia m desa p a r eci dos p el a d i t a d u r a m i l i tar .

negociada por algu•m ligado ao governo militar. Algumas crian‚as pequenas tamb•m foram levadas de seus pais e tiveram destinos como filhos adotivos, ou melhor,

“apropriados”.

O filme argentino “A Hist•ria Oficial” (1985), ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, retrata com muita clareza este perŠodo. Nele, • narrada a hist•ria de um casal – uma professora de hist•ria e um funcion„rio do governo – que tem uma filha adotada, Gaby. O que, a princŠpio parecia normal, com o desenrolar da narrativa, vai se transformando numa hist•ria de desaparecimento, na qual Alicia (Norma Aleandro) descobre que a menina foi roubada e seu marido, Roberto (H•ctor Alterio), o mediador desse crime.

O diretor Luis Puenzo consegue captar com muita sensibilidade o clima de tensƒo pelo qual passava a Argentina durante o processo. Alicia • uma professora de hist•ria que desconhece o que estava acontecendo ao seu redor. Ao entrar em contato com o professor de literatura Benitez e com Ana – uma amiga que havia sido exilada – ela come‚a a conhecer a realidade de seu contexto, at• chegar ‹s mƒes e av•s da Pra‚a de Maio, e encontrar a verdadeira av• de Gaby.

O filme termina com a no‚ƒo de que, a partir dali, uma outra hist•ria come‚a e que a Hist•ria Oficial precisa ser questionada. Sempre.

Em um processo an„logo ao de Ricardo Piglia, pode-se ver a fic‚ƒo apontando as falhas da narrativa hist•rica. No filme, o professor de literatura come‚a a questionar Alicia acerca do que ela est„ ensinando aos seus alunos (vale lembrar que ambos dƒo aula em uma escola de segundo grau). Benitez encontra na literatura uma possibilidade dial•tica que, na hist•ria de Alicia, est„ fechada. Em um processo duplo, a fic‚ƒo reitera o papel de

relatar sua •poca. Atrav•s de um filme e de um professor de literatura, outros discursos sƒo construŠdos para “preencher” as lacunas do processo.

Ao trazer essa dor dos desaparecidos polŠticos para a sua narrativa na voz de uma personagem delirante e fictŠcia Ricardo Piglia continua a reescrever a hist•ria. AnahŠ tem em seu discurso o medo dos que estavam amea‚ados e sabiam do perigo que corriam.

No fragmento a seguir, extraŠdo de Respiração Artificial, pode-se pensar, com as alegorias que o texto precisa, em alguns procedimentos que eram realizados pelos agentes do processo ditatorial:

“A c on t ece o s egui n t e, senh or Int en den t e: fi z eram- m e u m a i n ci sƒ o e m e c ol oca r a m u m a par el h o tr an smiss or esc on d i d o en tr e a s a r bor es c€n ci a s d o c or a ‚ƒ o. E n quan t o eu e st a va dor m in do puser a m- m e o t a l a pa r elh inh o, pequeni n o a ssi m , para pod er tr an sm it ir . ” uma c„ p s u l a de vi d r o, i g u a l a u m Di xe, t odo de cr i st a l , e a l i se r efl etem a s i m a gen s. Vej o t udo p or ess e a par el hinh o que m e c ol oca r a m , com o u m a t el i n h a de T V. A gen t e ol h a p a r a o d e sca m p a d o e n ƒ o fa z i d•i a do q u e eu vi : q u a n t o sofr i m en t o” .81

Angustiada por estar sendo testemunha dessas terrŠveis cenas, AnahŠ pede que a ajudem e fa‚am com que essas imagens possam acabar. Nesse relato entrecortado pela realidade da Argentina militar e pela fic‚ƒo, sƒo delatadas as torturas e lugares onde isso poderia estar acontecendo.

“S e d i go a s i m a gen s que p a ssa m pel o Di xe, n i n gu•m a cr ed i ta . Por que eu ? P or que t em q u e s er eu a p e ss oa q u e v€ t u d o ? ( . . . ) F u i desi g n a d a com o t e st em u n h a de t oda essa d o r . Nƒ o a g•en t o m a i s, E xcel €n ci a . Fech o os ol h os p a r a n ƒ o ver o m a l . E aŠ can t o p a r a n ƒ o ver t od o o s ofr i m en t o. Sou a C a n t a tri z ofi ci a l e q u a n do ca n t o n ƒ o vej o a s m i s•r i a s dest e m u n do”. 82

81PIGLIA, 1980. p. 74.

82Idem.

Ao mesmo tempo em que se torna portadora do discurso do porvir, ela passa a nƒo ter mais cr•dito, ou seja, a rela‚ƒo de poder que se estabelece, contra a sua vontade denota o car„ter velado do discurso feminino no contexto s•cio-masculino, onde os testemunhos de emo‚‘es ou experi€ncias sƒo protelados em detrimento de uma razƒo legada ‹ representa‚ƒo masculina.

Em seu relato alucin•geno, uma realidade • denunciada: ‹ margem, o louco produz seu discurso no cruzamento de sua patologia e de sua exclusƒo social. Ao ser interditada, h„ a cren‚a de que se afasta o perigo, isolando-se um discurso que – num contexto paran•ico apoiado na m„scara da normalidade para sobreviver – questiona as fissuras de uma estrutura que nƒo d„ conta de si mesma.

Marginalizada e vetada pela loucura e pelo sexo, AnahŠ declara sua ang•stia em rela‚ƒo ao que v€, sabe e nƒo pode pronunciar. Fechar os olhos para nƒo ver o mal e calar-se para nƒo falar de sua experi€ncia • o que o Estado, como uma figura centralizadora de poder e vigilŽncia, procura instaurar em seus limites. Portanto, consciente dessa realidade, AnahŠ s• tem uma saŠda: pedir socorro ao Ministro.

Com o fragmento anteriormente mencionado, pode-se perceber nƒo somente o desespero da personagem em questƒo. V€-se, tamb•m, a dupla rela‚ƒo de domina‚ƒo que se estabelece: ele, o homem do domŠnio, ocupa uma situa‚ƒo que lhe possibilita dispor do poder. Nƒo s• portador do discurso masculino, ele • o portador da razƒo. Uma vez que a loucura nƒo se faz presente em sua voz, ele nƒo corre o risco de amea‚ar a ordem.

Mais adiante, Piglia constr•i seu enredo fazendo uma compara‚ƒo ‹ situa‚ƒo da Pol•nia durante o nazismo de Adolf Hitler. Nesta parte, a narradora faz uma refer€ncia ‹s torturas pelas quais os judeus passavam e cita Bel•m, na Palestina, como o local onde eram cremados esses corpos.

Contudo, algo de provocador • inserido nesse momento do relato. Como se essa mulher estivesse confusa – atitude comumente ligada aos dist•rbios mentais – ela “mescla”

a localidade supracitada com a de Bel•m, provŠncia de Catamarca, localizada ao norte do territ•rio argentino.

“Vi a s fot ogr a fi a s: m at a va m os judeu s c om a r a m e. Os for n os cr em a t •r i os l oca l i z a va m- se em Bel •m , Pa l e st i n a. A o N or t e, bem a o N or t e, em Bel •m , p r ovŠ n ci a de C a t a m a r ca. Os p „ ssa r os voa m sobr e a s ci n z a s (.. . )” .83

Novamente, tomando o livro Nunca Mascomo referencial, pode-se encontrar a men‚ƒo feita ao massacre ocorrido na localidade de Margarita Belen, na provŠncia de Chaco (tamb•m mais ao norte do paŠs), onde v„rios presos polŠticos foram mortos por policiais durante o traslado da cidade de Resist€ncia para Conc•rdia, em 13 de dezembro de 1976.

Resguardado pela loucura da personagem criada e pelo deslocamento temporal, visto que essas cartas sƒo escritas anos antes pelo exilado Enrique Ossorio, Ricardo Piglia evidencia, na entrelinhas de uma escritura artificial, o pŽnico de uma •poca e reproduz o terror. Isso ocorre em decorr€ncia de como o discurso ser„ produzido, pois a atmosfera de medo e os subterf•gios que precisam ser criados para (sobre)viver nela sƒo os mediadores essenciais para a sua narrativa.

AnahŠ, com sua biografia fictŠcia, • a testemunha que foi designada para falar e pedir socorro sobre o que est„ vendo. Quando canta para nƒo ver o sofrimento, entoa o hino p„trio, o que o remete diretamente ‹ situa‚ƒo pela qual a Argentina est„ passando. As torturas e os desaparecimentos sƒo embalados e ocultados pelas trilhas do discurso do

83Idem

poder, por emblemas que remetem a uma tradi‚ƒo inventada por um ideal civilizat•rio de nacionalismo.

No fragmento a seguir, ela pede ao Ministro que lhe designe como a “Cantatriz oficial”. Ser cantora • fazer com que sua voz seja escutada; atriz, com que sua imagem seja vista, e oficial, creditada. Um dado que nƒo pode deixar de ser mencionado • a refer€ncia feita ‹ figura hist•rica de Eva Per•n que era atriz de r„dio e cabar•s, antes de ser casada com Juan Domingos Per•n, presidente da Argentina na d•cada de 40. A presen‚a dessa mulher na constitui‚ƒo identit„ria da mulher argentina • muito forte, uma vez que era dela a voz que o povo ouvia de Per•n.

“(. . . ) Os p „ ssa r os voa m sobr e ci n z a s. Por a ca so E vi t a Per •n n ƒ o d i sse ? E l a t a m b•m vi a t udo e l h e a r r an car a m a s vŠ sc er a s e en ch er am -n a de pan os, c om o se f o s se u m a bon eca84. A m et „ st a se, c om o t ei a de a r anh a a z ul, sobr e a pel e. Dei t a do n u m a ca m a de fer r o, por q u e a p e ss oa q u e p r e ci sa v €- l o s ofr er t em que ser eu? F u i d esi g n a d a com o t est em u n h a de t oda essa d or . Nƒ o a g•en t o m a i s, E xcel €n ci a . Fe ch o os ol h os p a r a n ƒ o ver t odo o m a l . E a Š ca n t o p a r a n ƒ o ver t od o o s ofr i m en t o. Sou a C a n t a tr iz ofi ci a l e q u a n do ca n t o n ƒ o ve j o a s m i s•r ia s dest e m u n do(. .. ) ”85.

Nesse misto de delŠrio e realidade, ser quem pode relatar o que v€ oficialmente

• dar voz ao testemunho que escreve relatos de mem•ria sob as vias da fic‚ƒo.

Por•m, nesse momento, o texto da experi€ncia sucumbe ‹ voz do poder. Dado que nƒo • permitido narrar a dor que presencia, ela pede a prote‚ƒo do governo e o direito por sua voz, embora ela nƒo seja mais produtora de seu pr•prio discurso e seja reprodutora de uma linguagem que ecoa de uma sociedade marcada pelo falocentrismo e pela intolerŽncia.

84O corpo de Evita Per•n foi embalsamado para que nƒo se decompusesse. Hoje ele se encontra no mausol•u de sua famŠlia, Os Duarte, no Cemit•rio da Recoleta, em Buenos Aires. Aclamada como diva do povo argentino, seu funeral parou o paŠs. Milhares de pessoas, extremamente comovidas, acompanharam o cortejo f•nebre pelas principais vias da Capital Federal.

85PIGLIA, 1980, p. 74.

Fruto desse meio obsessivo por uma necessidade de estabilidade que nƒo ameace uma possŠvel ordem, AnahŠ faz parte de um contexto que, incansavelmente, marginaliza e exclui o que lhe parece estranho, usando um termo de Sigmund Freud,

“unheimlich“.

O exerto a seguir • retirado do texto hom•nimo. Nele, o psicanalista alemƒo analisa a sensa‚ƒo de estranheza decorrida por circunstŽncias que, inconscientemente, foram recalcadas. Por remeterem a algo familiar, por•m nƒo reconhecido imediatamente, elas provocam afastamento e atra‚ƒo:

“(. . . ) o est r a n h o n ƒ o ser i a r ea l m ent e n a d a n ovo, por •m a l g o q u e sem p r e foi fa m i l i a r ‹ vi d a p s Š q ui ca e que s• s e t or n ou est r anh o m edi a n t e o p r o c ess o d e s u a r epr essƒ o ( . . . ) o est r a n h o ser i a a l go que, deven do t er fi ca d o ocul t o, s e m an i fest ou”.86

Ao sentir que algo lhe pode parecer amea‚ador – pois h„ o reconhecimento – a sociedade veta e excluŠ os discursos que nƒo sƒo produzidos pelos centros de domina‚ƒo e poder. Abafa-se uma voz que questiona a estrutura viciada pela busca da ordem. Com isso, ao contr„rio de estabelecer uma possŠvel paz, se provoca ainda mais segrega‚ƒo e desrespeito.

De um centro, surge um discurso autorit„rio que • imposto verticalmente aos relatos que se encontram ‹ margem. Acerca disso, Michel Foucault sup‘em que, em toda sociedade, h„ procedimentos encarregados de sancionar discursos que podem ser perigosos para as instŽncias de poder que controlam, selecionam, organizam e distribuem a hist•ria esquiva de “sua pesada e temŠvel materialidade”.87

86Texto original: “(...) lo siniestro no serŠa realmente nada nuevo, sino m„s bien algo que siempre fue familiar a la vida psŠquica y que s•lo se torn• extra–o mediante el proceso de su represi•n (...) lo siniestro serŠa algo que, debiendo haber quedado oculto, se ha manifestado.”86FREUD, 1919. p. 2498.

87FOUCAULT, 1970. p. 9.

A necessidade ilus•ria de apagamento das diferen‚as a fim de que se mantenha a id•ia de unidade como algo est„vel, marginaliza o discurso que nƒo se enquadra nessa arquitetura de domina‚ƒo. Dessa forma, na narrativa em questƒo a presen‚a de AnahŠ vem apontar a precariedade desse sistema que descarta os sujeitos ao nƒo admitir a heterogenia.

Echevarne Ang•lica In•s se despede em Respiração artificial para voltar no conto “A louca e o relato do crime”, presente no livro Prisão Perpétua.

” inserida nessa perspectiva de resist€ncia que ela (re)surge tecendo um relato em que se misturam realidade e alucina‚ƒo e se reconstr•i seu discurso psic•tico.

Sua volta noves anos depois continua a sinalizar a fraqueza dessa ordem.

Echevarne Ang•lica In€s • a •nica testemunha de um assassinato e tem no seu relato a oportunidade de revelar a verdade. Contudo, devido novamente ‹ sua patologia, seu discurso ser„ interditado e creditado apenas pelo jornalista Emilio Renzi, quem utiliza m•todos de ling•Šstica para chegar ‹ conclusƒo do caso, j„ que o testemunho se apresenta como uma carta enigm„tica. Mesmo assim, a impossibilidade de circula‚ƒo desse testemunho provoca a condena‚ƒo de um inocente.

No fragmento abaixo, pode-se perceber o cruzamento entre a dificuldade de cren‚a e a ironia que surge a partir dos meios que Renzi usa para desvendar o mist•rio do caso:

“(. . . ) t r €s h or a s depoi s, E m i l i o Ren z i est en d i a sobr e a s u r pr een d i d a escr i va n inh a do vel h o Lun a u m a t r a n scri ‚ƒ o l i t er a l do m on •l og o d a l ou ca , subl i n h a do c om l „ p i s de d i fer en t es c or es e ch ei o d e m ar ca s e de n • m er os.

E u t enh o a pr ova de que An t u – ez n ƒ o ma t ou a m ulh er . Foi u m out r o, u m s u j ei t o d e q u e el e fa l ou, u m t a l de Al m a d a , o gor do Al m a d a .

Ma s q u e •t i m o! – d i ss e Lun a , sa r c„ st i co. – Q u e r d i z er que An t u– ez diz que foi Al m a d a e voc€ a cr edi t a .

Nƒ o. ” a l ouca q u em d i z i ss o, a l ou ca q u e r epet e h „ dez h or a s a m esm a coi sa s em d i z er n a da . Ma s just a m en t e por r epet i r a m esm a c oi sa • q u e d „ p a r a en t en der o q u e el a d i z . T em u m a

s•r i e de r egr a s de l i n g • Š st i ca , u m c•di go q u e s e u s a p a r a a n a l i sar a l in g u a gem p s i c•t i ca .

E scut a a q u i , g a r ot o – d i s se Lun a l en ta m ent e. – V oc € e st „ m e goz a n do? ( . . . ) ”88

Ao repetir durante horas a mesma narrativa, pode-se pensar nƒo s• na hip•tese de estabelecimento de um discurso psic•tico, mas de uma resist€ncia que beira a exaustƒo decorrente da necessidade de relatar. Ainda sobre AnahŠ, Renzi continua:

“ – C a l m a , m e dei xe fa l a r u m min u t o. N u m del Š r i o o l ou c o r epet e, ou m el h or , se v€ obr i g a do a r epet ir cer t a s est r u t ura s ver ba i s que sƒ o fi x a s, c om o u m m ol de, p er ce b e ? Um m ol de q u e el e va i en ch en do c om p a l a vr a s. Pa r a an a li sar es sa est r u t ur a t em os 3 6 ca t eg or i a s ver ba i s que sƒ o ch a mada s oper a dores l •gi c o s . Sƒ o c om o u m m a p a , o sen h or p‘e s obr e o que d i z em e v€ que o d el Š r i o t em uma or dem , o q u e n ã o é p o s s í v el c l assi f i c a r , o q u e s o b r a , o d e s p e r d í ci o , , é o nov o : é o q u e o l o u c o e st á t e nt a n d o d i ze r ape sar d a c o m p u l s ã o re p e t i ti v a. (gri fo n oss o)(. . . ) ” 89

” atrav•s da impossibilidade de classifica‚ƒo e do reconhecimento de algo suplementar que o relato de AnahŠ existe. Louca, mulher e latino-americana, ela traz em si as marcas que segregam as vozes em um contexto no qual o discurso, al•m de vir do centro, vem carregado de preconceito e discrimina‚ƒo cultural.

O caminho da fic‚ƒo escolhido por Ricardo Piglia permite pensar uma realidade que – embora abafada – nƒo deixa de existir e resiste se instalando ‹ margem. Ainda conforme este autor, cabe ‹ fic‚ƒo dizer a verdade, na qual o relato se desloca para uma situa‚ƒo concreta, possibilitando falar e ver o que est„ velado.

” atrav•s desse movimento de deslocamento que pode se dar voz ao relato da experi€ncia, ao testemunho. No fragmento abaixo, Piglia comenta sobre a importŽncia

88PIGLIA, 1989. p. 122.

89Idem.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (páginas 70-83)