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Depois de Tudo Um Rapaz Meio Estranho

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Academic year: 2022

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Depois de Tudo

Um Rapaz Meio Estranho

Retumbante

Mas e se eu dissesse que. Mas e se eu. E se eu.

Martelava esta frase amiúde em sua cabeça, numa espécie de auto punição pelo agora irreversível. Mas e se eu. E se eu. Eu vou subir pro meu quarto, sapatos de plataforma nas mãos, cabelo preso atrás, maquiagem borrada, se alguém quiser jantar é só pegar a comida que está no forno, avisou, e se foi. Na sala, ficara o marido e seus três filhos, e, claro, o silêncio retumbante ali presente. Amanhã vou catar todas as roupas e se alguma servir pra você você me fala, disse, inclinando apenas a cabeça em direção ao filho mais novo, depois eu vejo lá, respondeu, o filho mais novo.

Fosse uma foto, estariam todos bem, seriam quatro indivíduos e dois sofás numa sala quieta, quatro indivíduos de preto em contraste às paredes brancas, alvas, feito alma de bebê, suponhamos. Todo o problema é que não se tratava de uma foto. Eram

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quatro indivíduos de preto e mais dois sofás e as paredes, brancas, alvas, feito alma de bebê, suponhamos, apenas suponhamos. Embora sob um silêncio, assustadoramente, absoluto, possível fosse ouviríamos as mais diversas frases gritadas nas cabeças de cada um. A do mais novo era consideravelmente simples de se ouvir, gritavam frases como: como eu não vi, como eu não vi, como eu não vi?. A do meio, talvez, entre todos ali, fosse das mais reconfortantes, eram dizeres como: logo passa, logo passa, logo passa. obviamente não acreditava naquilo, porém necessitava acreditar em tais palavras, era isso ou a auto culpa. A cabeça da mais velha, óbvio, metaforicamente falando, nem presente ali estava, viajava sob imaculadas lembranças;

lembranças de dias, lembranças de frases, lembranças de pequenas lembranças até então esquecidas.

Quanto melhor fossem as lembranças, melhor ela ficaria.

Árduo trabalho imaginar a cabeça do pai. Havia sempre um muro entre ela e qualquer outra coisa que lhe fosse de fora, algo um tanto quanto sutil, via-se uns olhares, um recolher de ombros, ou alguns dedos na testa, mas pouco ouvia-se palavras. Tentar adivinhar os pensamentos era tentar decifrar os sinais.

Só que os sinais eram sinais de um corpo esmagado.

Talvez a frase certa praquilo fosse: onde eu errei, onde

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eu errei, onde eu errei?. Levantou-se, vou fazer um chá pra mãe de vocês, disse, fecha tudo aí quem for dormir por último, pediu, sem olhar nos olhos, somente levantando e dando as costas para os três.

Vou subir, disse a mais velha. Subiu. Ligou a TV, o mais novo. Olhou o celular, a mais nova, colocou os fones e por ali permaneceu. Minutos depois, o pai também se retirara com dois copos de chá nas mãos, deu boa noite, ouviu um "boa noite" e depois um singelo "boa". Partiu. O mais novo desligou a TV. Sem falar nada, subiu. Permaneceu apenas a do meio. E enquanto ouvia música, encarava absorta ao retrato no canto da estante; uma bela foto dos dois sofás ocupados por seus país e seus três irmãos. No fundo, as mesmas paredes brancas, alvas, feito alma de bebê.

Suponhamos.

Contemplação

Contrapondo-se a um quase ritual de vida, naquela manhã ele levantou cedo da cama, dobrou com cirúrgica precisão os lençóis, se debruçou a ajeitar seu travesseiro para que parecesse o mais redondo do mundo, na cabeceira, onde constantemente deixava algumas camisas penduradas, restou apenas um solitário pingente, falsamente esquecido. Na pior das

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hipóteses não haverá nada para arrumarem, dizia a si mesmo, enquanto observava cauteloso todos os pontos dentro do seu quarto.

Não liga agora não porque eu vou colocar umas roupas aí também, disse sua mãe, ao vê-lo jogar algumas peças de roupa na máquina de lavar, mas vai demorar muito?, perguntou, ela olhou para a máquina, pensativa, panelas no fogão, a faca não parou de cortar o tempero, gotas da pia da cozinha, cachorro latindo na rua, o mundo girava e ela pensava na resposta, foram três segundos a parte no mundo, lá pra'manhã eu vejo isso, respondeu. Aquele diálogo, aquele pequenino diálogo não poderia acabar assim, pensou, mas o que dizer, o que dizer, o que dizer, matutava. O que dizer para uma mãe quando não tem nada a dizer? Questionou-se. Não, essa não é a pergunta correta, a pergunta é: o que dizer para uma mãe quando esta pode ser uma das últimas coisas a se dizer? Repensou, mas sem resposta. Sentou na cadeira da cozinha e passou a observá-la.

A senhora vai sair pra algum lugar amanhã?, não, por quê?, por nada, você vai sair?, eu não, pra onde eu iria?, qualquer lugar, sair, ver gente, não tenho nenhum lugar pra ir e nem ninguém pra ver, se for pensar assim nunca vai sair de casa, besteira — foi como ele respondeu, indiferente, como sempre fora.

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Mas o que dizer, o que dizer, o que dizer, ainda matutava. Neste meio tempo, seu irmão mais novo aparecera, tomou uma xícara de café, conversou algumas bobagens e rapidamente foi embora. Logo após foi a vez de seu pai, andou pra lá e pra cá, mexeu aqui e ali, resmungou meia dúzia de coisas e, também, rapidamente foi embora. Naquela manhã ele ainda não havia visto suas irmãs, talvez uma frase ou outra vinda de outros cômodos da casa, porém nenhuma delas havia de fato aparecido perante seus olhos. Se não houvesse passado tanto tempo ali, sentado na cadeira da cozinha, teria visto mais, falado mais, entretanto sentia que ainda tinha de dizer o que precisava ser dito, mesmo não sabendo ao certo como ou o quê.

Levantou. Abriu o armário, pagou uma xícara, pequena, de vidro, tirou a jarra da cafeteira, encheu até o limite da xícara, voltou à mesa e sentou. Está fervendo, observou, em voz alta, se a cafeteria está ligada..., ela disse, eu sei, então qual o problema?, só falei que está fervendo, mas é pra ferver mesmo, mas nem sempre fica assim, é porque tá só pela metade ali dentro, e se o vidro quebrar com o calor?, não vai quebrar, mas e se quebrar?, foi feito pra aguentar né, mas nem tudo que foi feito pra aguentar aguenta, só vai quebrar se deixarem o pote vazio ali esquentando, então é igual a garrafa térmica que se cair vazia acaba

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quebrando dentro, é igual sim, então tudo que é vazio quebra mais fácil?, ah não sei, se ligar a máquina de lavar sem nada dentro o que acontece?, vai dar defeito né, então nada funciona bem quando está vazio?, ah sei lá, ela disse, com indiferença, deve ser por isso que eu estou quebrado, ele disse, mentalmente, claro frases assim já nasciam caladas em sua cabeça.

Mas o que dizer, mas o que dizer, matutava enquanto a olhava, pito da panela, mas o que dizer, abre-fecha da tampa, desliga a quarta boca acesa, estava de bom gosto, mas o que dizer, mexe e vê que está cozido, desliga a terceira boca acesa, o que dizer, o que dizer, lava uns pratos sujos, uns talheres, umas panelas, guarda-os, vai, vem, desliga a segunda boca, ajeita o pano no canto da pia, mas o que dizer, o que dizer, limpa as mãos, enxuga as mãos, suspira um suspiro de satisfação, abre-fecha da tampa, estava de bom gosto, desliga a última boca acesa, mas o que dizer, o que dizer, o que dizer, o almoço já tá pronto, ela brada enquanto se dirige para a sala, deixando-o ali, sozinho, sentado no canto da mesa, com a xícara vazia entre as mãos e um constrangido silencioso. Até o término daquele dia, ele pensou em diversas coisas para dizer, mas naquele dia ele nada disse — e nos seguintes também não.

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Alvorada

Adeus, ou dizem-se A-Deus? perguntava-se, mentalmente. Não, sem Deus por hoje, exclamou, em alto e bom som, que ecoou fino pelo quarto. Sua história não era tão incomum aos demais de sua idade, classe ou sexo, principalmente sexo, uma história sem grandes emoções pra bom ou pra mau. É indiferente tudo isso, diria o próprio. Sua história também não acabaria muito diferente de outras milhares de histórias, lamentava somente não ter vivido mais — e se tomaria gosto ou não pela vida isso nunca saberemos.

Em sua cama, dois papéis cortados rigorosamente iguais, em um deles havia os dizeres: "eu os amo, por favor não se culpem", em outro dizia um breve e sucinto "Desculpem!". A grande dúvida naquela noite fria era escolher qual dos dois iria pro lixo e qual permaneceria intacto. Levantou. Deu algumas voltas pelo quarto. Abriu e fechou as janelas. Nada aconteceu, a dúvida era simples, mas para ele cruel.

Desceu as escadas em direção à sala, deitou no sofá, frente àquela parede branca e alva, ligou a TV e deixara no volume mais baixo possível. Repassou duas ou três vezes todos os canais existentes, seu irmão desceu, dirigiu-se até a cozinha, tomou um

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copo d'água e subiu. Sem palavras. Nestes momentos quase nunca havia palavras. Porque se eu disser será ainda pior, pensou, se é que tenho algo a dizer, completou, tanta gente me disse tanto nesta vida, mas nunca ouvi àquelas três doces palavras, serei o único ser vivo a não ouvi-las, pensou, novamente.

Antes de tudo, sentia era um frio. Não, não frio de pele, do qual pudesse resolver com um simples cobertor, embora caso fosse não o pegaria para não ter que dobrar depois. Sentia era frio na barriga. Essa é a primeira vez em que me sinto vivo porque é a primeira vez onde eu desejo engolir o mundo, sussurrou, que irônico, sussurrou novamente, e rio consigo mesmo. Levantou-se, foi até a geladeira, virou uma garrafa d'água que já estava a dois dedos pro fim, deixou a garrafa enchendo na torneira do filtro e voltou para o sofá. Não mais de alguns segundos, voltou a levantar, desta vez abriu a porta da frente e saiu uns 2 metros pra fora. Ela não está aqui, disse, ao olhar o céu e não encontrar a lua, pelo menos tem as estrelas, agradeceu. Enquanto encarava o céu, relembrou um pouco de sua infância, e a sua adolescente após a infância, e a juventude após a adolescência, e a fase adulta, e a fase em que se encontrara, que era um pouco após a fase adulta, apesar de ainda se considerar adulto — adulto-não- maduro, era como se definia. Naquele instante ele

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relembrou toda sua vida. Mas quando foi que tudo deu errado? perguntou-se, e, claro, não obteve respostas. Entrou. fechou e trancou a porta da frente.

Voltou à cozinha, e a três dedos da boca ele desligou a torneira e fechou a garrafa, a guardou na geladeira, pegou desta vez uma jarra, verde, com flores amarelas desenhadas nela, pegou um copo, de vidro, encheu pela metade, guardou a jarra, tirou uns comprometidos do bolso, engoliu, bebeu, apagou a luz da cozinha, desligou a TV e subiu. Em sua cama, e ele quase havia esquecido, ainda persistia dois pedaços de papel, agora eu já sei o que devo dizer, falou, pegou um deles e rasgou, amassou bem amassado e jogou debaixo do colchão, onde ninguém vai ver por tão cedo, assim ele disse. Deitou. Barriga pra cima, braços esticados pra baixo, sem cobertor — e ele quase nunca dormia sem um cobertor —, luz acesa, para focar nas manchas do teto, o papel enrolado em uma das mãos, durma bem, disse, como uma espécie de última frase pronunciada. E foi assim.

Foi assim que ele dormiu.

Ao amanhecer daquele dia, não exatamente ao amanhecer mas ainda pela manhã, evidentemente, seu pai fora o primeiro a se levantar. Em seguida, sua mãe. Depois a mais velha, e então o mais novo e finalmente a do meio. Logo todos naquela casa estavam de pé. Não há como uma manhã ser diferente

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das outras, quer chova quer faça sol, uma manhã será sempre igual a alguma outra manhã já vivida, porém, aquela manhã, sem motivos claramente claros, não estava sendo uma manhã normal, era como todos sentiam. Não eram os relógios, eles não mentiam, eles marcavam às onze porque eram onze e parecia ser onze. O cachorro do vizinho latia como também por vezes latiu. Em alguma outra casa, e era indiferente em qual casa, alguém repetia as mesmas músicas de quase sempre. Eles não sabiam mesmo como explicar, mas algo estava sim diferente. Cadê seu irmão?, perguntou, acho que ainda tá dormindo, respondeu.

Vou pegar as roupas pra lavar e chamar ele, disse.

Subiu. Pegou todas as roupas da cesta. Ao passar pelo corredor, abriu a única porta que até então estava fechada. Sim. Agora estava claro, naquela manhã e naquela casa algo havia realmente mudado.

Irreversivelmente mudado.

Fim

Referências

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