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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS RENATO PEREIRA CORREA

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Academic year: 2019

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RENATO PEREIRA CORREA

HISTÓRIA E MEMÓRIA DO TERREIRO AXÉ ILÊ OBÁ

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RENATO PEREIRA CORREA

HISTÓRIA E MEMÓRIA DO TERREIRO AXÉ ILÊ OBÁ

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Antropologia. Orientadora: Prof. Dra. Teresinha Bernardo. Área de Concentração: Antropologia das Populações Afro-brasileiras

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

_______________________________________________

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AGRADECIMENTOS

À todos os meus interlocutores, muito obrigado, o trabalho de coleta de histórias de vida, me tornaram um bom ouvinte.

À Mãe Sylvia de Oxalá, Mojubá Yá Mi. Não tenho palavras para agradecer, respeito, carinho e admiração sempre, nossa vivência no terreiro, possibilita cada dia mais, o

fortalecimento pra vida. Exemplo de resistência, de força e de axé.

À Yamorô Maria Antunes Perdigão e à Paula Regina Egydio, Yás do Axé Ilê Obá: continuidade.

À toda a comunidade do Terreiro, axé!

À Profª. Dra. Teresinha Bernardo, respeito, aprendizado, dedicação durante toda a pesquisa. Agradeço pela força indispensável para enfrentar os percalços que enfrentamos. Diálogos e interlocuções de grande valia para a vida, não só para o mundo

acadêmico.

Às Profª Dra. Eliana Hojaij Gouveia e Profª Dra. Lúcia Maria Machado Bógus pelos apontamentos agregadores no Exame de Qualificação e pelo carinho com que trataram o

tema.

Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, pela entrevista concedida, pelas orientações precisas sobre o processo de tombamento e pela disponibilidade em atender nossos

pedidos sempre.

Ao Prof. Dr. Miguel Wady Chaia, pelos momentos agradáveis e pelas discussões profundas nas aulas de arte/política.

Aos professores do Departamento de Ciências Sociais: Marisa do Espírito Santo Borin, Carmen Sylvia de Almeida Junqueira, Lúcia Helena Rangel.

À Kátia, Secretaria da Pós-Graduação pelos inúmeros esclarecimentos em relação à burocracia acadêmica.

À Capes/Cnpq pelo fomento à pesquisa.

Ao Eduardo Matarazzo Suplicy pela disponibilidade e apoio à comunidade do Axé Ilê Obá.

Ao Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior, um griot da história do negro em São Paulo. Ao Patrício Araújo Carneiro e à Joanice da Conceição, companheiros que colaboraram

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À Maria Célia Virgolino, conversas que sempre me deram força.

Aos meus amigos Mauricio da Silveira Silva, José Alves da Rocha Filho, Patrícia Lutfi Morgado, Ricardo Mariano, Thais Mariano, Luís Gustavo Dabar.

Ao Grupo de Estudos Kilombagem, coletivo no qual milito, esse trabalho é nosso. À Danieli de Castro, pela revisão do texto feita com muito carinho, dedicação e cuidado, os últimos momentos dessa dissertação foram emocionantes, confesso. À Telma Witter pelo excelente trabalho de recuperação fotográfica e pela força que me

deu em momentos tensos.

Aos meus pais que suportaram minha ausência por conta desse trabalho. Obrigado pela força ancestral.

Haydée Paixão Fiorino Soula, sempre, filha do vento, minha companheira preta, esse trabalho é nosso, o capítulo sobre as mulheres negras tem como inspiração a sua

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RESUMO

O objetivo desta pesquisa é resgatar a história do terreiro Axé Ilê Obá. Para a análise utilizamos aspectos políticos, sociais e econômicos, base para a compreensão de possíveis rupturas e continuidades. O estudo da memória a partir das histórias de vida dos sujeitos envolvidos privilegiou o vivido. Assim, a articulação em âmbitos além do religioso por parte da atual liderança religiosa, Mãe Sylvia de Oxalá, possibilitou o tombamento histórico do terreiro, garantindo assim, a continuidade e a consolidação desse território enquanto lugar de sociabilidade coletiva. A despeito das políticas segregacionistas e racistas estruturadas no período do pós-abolição que afetaram os territórios negros, nos debruçamos sobre o movimento do terreiro pela cidade e como se tornou em lugar de referência para a cultura afro-brasileira em São Paulo.

Palavras Chave: Antropologia Urbana. Antropologia das Populações Afro-Brasileiras. Candomblé. Axé Ilê Obá. Cidade de São Paulo.

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ABSTRACT

The objective of this research is to rescue the history of terreiro Axé Ilê Obá. For the analysis we use political, social and economic aspects, the basis for the understanding of possible ruptures and continuities. The study of memory from the life stories of those involved has privileged lived. Therefore, the articulation in areas besides religion by the current religious leadership, 'Mother' Sylvia of Oxalá, provided the historical stumbling of the terreiro, guaranteeing the continuity and consolidation of the territory as a place of collective sociability. Despite segregationist and racist policies structured in the post-abolition affecting blacks territories, we concentrate on the movement of the terreiro by the city and how it became a place of reference for the african-Brazilian culture in São Paulo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO  ...  9  

CAPÍTULO  1         1.1  O  contexto  histórico  e  as  transformações  sociais  ocorridas  em  São  Paulo   em  meados  do  século  XIX      ...  22  

1.2  Os  territórios  negros  na  cidade  de  São    Paulo    ...    33      

1.2.1  As  irmandades  negras    ...  34  

1.2.2  Os  folguedos  carnavalescos,  os  cordões  e  as  Escolas  de  samba    ...  37  

1.2.3  As  religiões  de  matrizes  africanas    ...  40      

CAPÍTULO  2       2.1    Da  macumba  paulista  à  umbanda:  A  umbanda  de  Pai  Caio  de  Xangô    ...  46  

2.2  Memórias  da  umbanda:  Lembranças  de  Pai  Caio  de  Xangô    ...  57  

2.3  Do  Brás  ao  Jabaquara:  Imposições  da  segregação  espacial    ...  61  

2.4   Entre   as   folhas   e   o   concreto:   Reorganização   do   terreiro   de   Pai   Caio   e   a   construção  do  palácio  de  Xangô    ...  70  

2.5  A  formação  do  Seminário  Religioso  –  Fundação  Caio  Aranha    ...  79    

CAPÍTULO  3       3.1    O  lugar  da  mulher  no  Axé  Ilê  Obá:  Memórias  de  Mãe  Sylvia  de  Oxalá    ...  83  

3.2  O  dilema  da  ruptura  e  da  continuidade:  Morte  e  sucessão  no  terreiro  Axé   Ilê  Obá    ...  93  

3.3  O  tombamento:  Da  negação  à  oficialização  do  território  negro  na  cidade   de  São  Paulo    ...  99  

3.4  Mãe  Sylvia  de  Oxalá,  liderança  religiosa,  cultural  e  política:  Mulheres  em   movimento    ...  109    

CONSIDERAÇÕES  FINAIS    ...  124    

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS    ...  127  

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Introdução

O objeto dessa dissertação é analisar, a partir dos fragmentos da memória, o terreiro de candomblé Axé Ilê Obá.

A ideia surgiu a partir da vivência e da minha trajetória como membro da comunidade do terreiro e, ao refletir sobre a necessidade do registro da memória do Axé Ilê Obá. Deste modo, o elegi como objeto de estudo por três razões, devido à importância deste espaço religioso para São Paulo, com finalidade de análise e compreensão da sua continuidade e permanência, bem como de compreender de que maneira tornou-se espaço referência da cultura afro-brasileira na cidade.

Outro foco da pesquisa é registrar a história dos sujeitos que foram os responsáveis pela consolidação do terreiro como espaço referência para a cultura afro-brasileira, através da perspectiva destes.

O espaço ora estudado está situado no bairro do Jabaquara, que faz parte de minha trajetória de vida na cidade de São Paulo. Nasci e cresci na região de Santo Amaro, mais especificamente no bairro de Cidade Júlia no extremo Sul.

O bairro do Jabaquara com suas ladeiras e becos é um lugar de sociabilidades negras, uma vez que por lá existem várias expressões da cultura afro-brasileira, escolas de samba tradicionais como, por exemplo, a Flor de Liz, a Barroca Zona Sul e a Portela da Zona Sul, além dos sambas de comunidade como o samba da Laje e o Moleque Travesso e o Espaço da Cultura e Viver Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha.

Tais espaços são locais de encontros, conversas, de história e memória, onde passei, onde viveram amigos e familiares.

Por diversas vezes passei em frente ao Axé Ilê Obá - Avenida Engenheiro Armando de Arruda Pereira - e me chamava atenção a fachada imponente do terreiro, destoando da arquitetura caótica do bairro. As quartinhas brancas expostas, o letreiro escrito em ioruba “Ache Ilê Obá”, os galhos e as folhas de Iroko1, a sonoridade dos atabaques: o terreiro aparentava ser outro cosmo, espaço diverso dentro da cidade.

1 Iroko: Gameleira Branca, árvore sagrada associada ao orixá Iroko, guardião da ancestralidade.

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Todo mês de setembro, da rua, observava a Procissão de Oxaguian2 conduzidas pelos filhos de santo da casa que, nas ruas do bairro saem aos sons de atabaques em louvação ao orixá.

A procissão de Oxaguian dava a sensação de estar em outro território, e seu cortejo pelas ruas do bairro demarcava território e me fazia sentir fortalecido ao ver, uma expressão da negritude nas ruas, o sentimento era de pertencer e fazer parte disso.

Outras vezes, percebia o movimento de acesso ao terreiro, mulheres vestidas de branco carregando fios coloridos, acompanhadas de seus filhos, famílias, dialogando, sorrindo, quebrando e rompendo a sociabilidade fria da cidade de São Paulo.

As notícias que corriam no bairro davam conta de que ali no terreiro existia uma mãe de santo muito respeitada na comunidade e que solicitou o tombamento do terreiro, dando visibilidade ao bairro e à comunidade religiosa.

Por conta dessas sociabilidades, em 1998, resolvi conhecer o terreiro. Era festa do orixá Oxóssi, considerado dono das matas, o caçador, festa que ocorre todo mês de abril, entro no terreiro e um caleidoscópio de imagens domina meus olhos.

Atabaques soando, a grandeza e a imponência do espaço físico do barracão, roupas coloridas, os mais velhos, as crianças dançando, o xiré3, os cantos e a alegria da festa foram as boas vindas e a partir daí, o encanto.

Entre uma festa e outra, alguém sempre conversava comigo, me mostrava os espaços de culto, contavam histórias de vida, davam conselhos, fortaleciam minha identidade.

Por volta de 2001 o contato com a comunidade do terreiro se intensificou até a minha entrada oficial como abiã4- considerado filho-de-santo, mas ainda não iniciado. Durante dois anos nesta condição participava ativamente de todas as atividades do terreiro e me sentia como se estivesse em família, ouvindo conselhos, aprendendo mitos, ouvindo histórias do bairro, da negritude e histórias de vida.

2 Procissão de Oxaguian: Rito realizado na rua em memória a colheita de inhame em África, a procissão

faz parte o inicio do ano litúrgico do Terreiro Axé Ilê Obá e, é realizado todos os anos no segundo domingo do mês de setembro

3 Xiré: Cerimonia de abertura onde são louvados os orixás ao som de atabaques, grande roda que se

movimento no sentido anti-horário em volta do poste principal do terreiro que relembra o retorno da ancestralidade à terra.

4 Abiã:é o primeiro grau hierárquico no candomblé, nessa condição ficam os membros mais novatos do

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Em 2003, foi determinado no Jogo de Búzios da Ialorixá5 Mãe Sylvia de Oxalá pelo orixá Ogum, a necessidade de minha iniciação que se concretizou no mês de agosto de 2003, a partir daí aumentaram a participação e as responsabilidades perante a comunidade do terreiro.

Durante todo esse tempo sempre ouvi muitas histórias sobre como era o bairro do Jabaquara em tempos idos, como foi a construção do terreiro, histórias carregadas de nostalgia e de força. Ouvir tais histórias colaboraram para que eu me tornasse um bom ouvinte e fizeram com que despertasse para a importância dessas histórias de vida para o bairro e para a história do negro em São Paulo.

Em sua maioria, mulheres as “tias” do terreiro falavam de outros espaços na cidade em que passaram e ou viveram. Igrejas do Rosário dos Pretos, das Almas dos Enforcados, de Nossa Senhora dos Remédios além das escolas de samba como Vai-Vai, Flor de Lis, Camisa Verde e Branco e Peruche.

Alguns espaços conheci, outros apenas são referências guardadas nas lembranças dos mais velhos. Através desses fragmentos de memórias imaginava quais relações elas estabeleciam com esses espaços e o que poderia ser revelado se essas memórias pudessem ser trazidas à tona. Que sociabilidade? Que tempo? Que espaço?

Fragmentos das memórias dos mais velhos transmitidos em conversas do dia-a-dia, me davam a impressão de ter vivido tais acontecimentos por tabela e, logo, refletia sobre esses espaços dentro da cidade de São Paulo que se pretende constituir como cidade multicultural, múltipla e aberta a todos.

É comum: a história do colonizador, do bandeirante e do homem branco que se constitui e está inscrita nos monumentos da cidade, bem como nos nomes de avenidas e rodovias.

São lugares da história e da memória (Nora, 1993, Le Goff, 2006), que tem privilegiado a história dos grupos hegemônicos, resulta no enquadramento da memória (Pollak, 1989) que negligência as memórias dos grupos excluídos.

A cidade que para mim existe e eu vivenciei é a cidade negra, da resistência, do racismo e das tentativas de superação. Constituindo-se como parte dessa história, nós afro-brasileiros paulistas, estamos diante de condições contraditórias. O que me faz expressar-me no plural em razão do sentimento de pertencimento. Assim, ao referir-me

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a nós na presente dissertação quero salientar a importância dos espaços negros para a sociabilidade, bem como expressar as contradições sociais às quais somos submetidos.

Um desses espaços de sociabilidades na cidade é o terreiro Axé Ilê Obá, fundado em 22 de julho de 1950, por Caio Egydio de Souza Aranha – Pai Caio de Xangô - e por um grupo de mulheres. Inicialmente chamado Congregação Espírita Beneficente Pai Jeronimo6, o terreiro funcionava nos fundos de uma pensão entre as ruas Caetano Pinto e Carneiro Leão, no então bairro operário do Brás, manteve-se no bairro até meados de 1958.

O terreiro transfere-se do bairro do Brás para a Rua Mucuri no bairro do Jabaquara e a partir de 1960, começa a se definir como terreiro de candomblé7, porém

manteve o nome original.

Até onde alcançam as lembranças dos membros mais antigos, foram várias os motivos da mudança, em especial, a necessidade de maior espaço para as atividades em virtude do grande número de membros, um lugar mais restrito para não chamar atenção da polícia e a necessidade de estar próximo à natureza, uma vez que os rituais e a organização do culto, dela necessitam. O bairro do Jabaquara àquela época era um local onde havia uma grande área verde, devido à proximidade com o atualmente chamado Parque Estadual das Fontes do Ipiranga.

Por volta de 1968, com a ajuda da comunidade do terreiro e de seus recursos pessoais - Pai Caio possuía um açougue no bairro da Lapa e trabalhou também como cantor e organizador de atividades artísticas na Boate Feitiço, onde teve contato com influentes personalidades, na Avenida São João.

Foi iniciada a construção da atual sede, na Rua Azor Silva, 77, também no bairro do Jabaquara, mais próximo ao Parque do Estado e da atual Rodovia dos Imigrantes, em terreno próprio. O que viabilizou a reorganização ritual e ampliação das atividades possibilitando agregar diversas famílias que residiam no referido espaço.

A atual sede foi oficialmente inaugurada em 12 de fevereiro de 1977, fato esse amplamente divulgado pelos jornais da época, graças à polêmica missa em ação de graças que a comunidade do terreiro pretendia realizar na Igreja da Nossa Senhora do

6 Nome que consta dos registros civis do Terreiro Axé Ilê Oba, nesta fase, o rito é de umbanda, religião de

matriz africana que mistura elementos da tradição católica e das culturas indígenas, onde se cultua por sincretismo, santos católicos, orixás africanos e os espíritos dos pretos-velhos e indígenas brasileiros.

7 Religião de matriz africana, que se difere da umbanda, pois cultua os orixás sem a presença de imagens

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Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu, tendo sido proibida pelo padre da época.

Pai Caio de Xangô e a comunidade do Terreiro buscavam com a inauguração da nova sede, a formação de um espaço onde fosse possível formar um Seminário religioso do candomblé, fato esse que consta na placa de fundação do terreiro, haja vista a necessidade de legitimação do terreiro e formar como uma confraria negra que pudesse organizar os conhecimentos litúrgicos, valorizando-se a transmissão sistemática dos conhecimentos com o propósito de garantir a continuidade das atividades do terreiro, pela geração seguinte. Tal pretensão, por fim, não se concretizou, visto que em 15 de fevereiro de 1984, repentinamente, Pai Caio de Xangô veio a falecer aos 59 anos, sem deixar filhos consanguíneos.

Porém, dois anos antes de sua morte, Pai Caio de Xangô iniciou sua sobrinha, Sylvia Egydio, que após muita resistência inicia sua participação efetiva na comunidade do terreiro.

Começa um polêmico processo de sucessão, uma vez que, não deixando herdeiros legais a propriedade do terreiro passaria legalmente à família do fundador que não tinha interesse na continuidade das atividades. A única representante da família era Sylvia Egydio que legalmente não teria amplos direitos sobre a propriedade, posto que existiam outros herdeiros para a partilha dos bens. A propriedade do terreiro, sendo partilhada entre os herdeiros legais, impossibilitaria a continuidade das atividades já que os interesses entre os herdeiros eram divergentes.

A sucessão religiosa foi decidida em favor de Sylvia Egydio, através da determinação da Ialorixá Mãe Menininha do Gantois, no ano de 1985, Sylvia Egydio foi indicada pelos orixás para ser a nova Ialorixá do terreiro, responsável pela continuidade das atividades.

Com a posse de Sylvia Egydio – Mãe Sylvia de Oxalá – em 1986, ficou garantida a continuidade religiosa da comunidade do terreiro, mas, sob o ponto de vista legal, não tendo direito à propriedade, fatalmente as atividades seriam encerradas.

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O tombamento histórico pelo CONDEPHATT, no bojo do processo sucessório do terreiro, foi uma conquista histórica da comunidade envolvida que suscitou inúmeras análises acadêmicas, como por exemplo, Prandi, (1991) e Silva, (1993).

Os principais estudos sobre o candomblé em São Paulo, Prandi (1991) e Silva (1993), nos alertam sobre sua especificidade na cidade de São Paulo que o diferencia dos “modelos” surgidos nas cidades de Salvador e do Rio de Janeiro.

Segundo o estudo de Prandi (1991), os candomblés em São Paulo, originam-se da umbanda e dela transitam num primeiro momento para o candomblé angola e após por conta do processo de maior visibilidade e de legitimação para o candomblé queto.

Esse trânsito, para o autor ocorreu em virtude da migração nordestina a partir dos anos 60, quando diversas pessoas já iniciadas no Nordeste ao migrarem para a cidade, aqui deram seguimento às práticas religiosas, fundando terreiros e articulando redes com candomblés tradicionais de Salvador e Recife.

Para Prandi (1991), diante dos processos de transformações da cidade, o candomblé surge como uma opção a mais no mercado de bens religiosos e organiza-se não como uma religião para a preservação de um patrimônio étnico, mas universal e aberta a todos.

Já o trabalho de Silva (1993) busca explicitar a forma que o candomblé toma no contexto urbano moderno, como por exemplo, a cidade de São Paulo. Para o autor, o candomblé paulistano abarca a problemática da vida urbana alterando-se o contexto ritual para adaptar-se a estrutura do urbano.

Outros dois estudos anteriores aos já citados, Bastide (1973) e Moura (1980), abordaram a questão das culturas negras na cidade. Em ambas, o foco de análise não recaiu apenas sobre as religiões de matrizes africanas, mas sobre as diversas expressões da cultura negra presentes em São Paulo.

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Outra razão para a desagregação das religiosidades negras, era o perigo que as culturas negras representavam à segurança pública e à política escravagista, o que influenciou na forma de organização dispersa em São Paulo. Além disso, o número de negros escravos aqui aumentou significativamente a partir do século XVIII com o ciclo do café, entretanto, a população escrava era em sua maior parte nascida no Brasil e não mais no continente africano, configurando um dos fatores que impossibilitou a formação de cultos mais próximos a um modelo africano.

Moura (1980) analisa as razões da degradação e desagregação das organizações negras que, segundo este autor, são a política escravagista e seu sistema de repressão oficial os quais perseguiam os espaços negros no período do pós-abolição e a política republicana de branqueamento da população que inviabilizou a organização coletiva. Os negros paulistas desarticulados cultural e politicamente e, com uma carga de ansiedade intensa, tentam, sob diversas formas se rearticularem. A umbanda surge como um movimento de congregação importantíssimo que possibilitou restabelecer padrões religiosos e tornou-se pólo de reencontro cultural, politico e religioso.

Partindo das duas perspectivas apontadas por Prandi (1991) e Silva (1993), o candomblé em São Paulo possui uma realidade específica que o singulariza. Ou seja, o Terreiro Axé Ilê Obá transita, assim como destacado por Prandi (1991), da umbanda para o candomblé, e não apenas se adapta a estrutura urbana conforme Silva (1993), sendo resultado de mudanças e transformações mais amplas na cidade além do âmbito espacial.

A hipótese que aqui levantamos está amparada na obra de Clóvis Moura em Sociologia do Negro Brasileiro. Segundo Moura (1988), durante toda a trajetória das populações negras, foi criada uma ampla diversidade de grupos: a) de lazer, b) religiosos, c) sociais, d) econômicos, e) de resistência armada, f) musicais, g) culturais, h) intercruzados8. São considerados grupos de resistência na medida em que, se organizam dentro de uma sociedade contraditória e conflitante. Buscam em diversos níveis, e sob diversas maneiras, organizarem-se para sobrevivência, autopreservação e ainda, para fornecer para seus membros elementos compensadores nas cotidianidades.

São considerados grupos diferenciados pela sociedade abrangente em razão das suas especificidades e, são vistos dentro de uma ótica especial, de aceitação ou rejeição, através de valores e representações desta mesma sociedade que os diferencia.

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De outro modo, tornam-se grupos específicos quando os próprios grupos, cientes da diferenciação que lhes é dada, passam a encarar essa marca como valor positivo revalorizando aquilo que a sociedade inferioriza criando, assim, valores no presente ou aproveitados do passado como forma de autoafirmação grupal.

Partimos da premissa que esses grupos possuem um determinado território, formatado pela sua cultura (Henrique Cunha Junior, 2007), que funciona como suporte politico, mítico e religioso (Muniz Sodré, 1998).

Nesse sentido, ao analisar a formação desses territórios, analisaremos historicamente como se estabeleceram. Esta variável está ligada ao processo de introdução do negro em São Paulo, no contexto da escravidão, bem como no pós-abolição com as diversas políticas de reorganização do espaço urbano que afetaram esses territórios.

Sendo assim, amparados pelos questionamentos propostos por Alex Ratts e José Paulo Teixeira (2012), analisaremos como esses territórios se produzem e reproduzem no espaço urbano, como se apropriam e ordenam, quais os locais que utilizam e ainda, se a segregação social os atinge. Estabeleceremos deste modo, uma relação entre territórios negros e sociedade.

Se de um lado Bastide (1973) aponta que os cultos negros em São Paulo abortaram em virtude da falta de organização coletiva e da repressão, Moura (1980) destaca que diante desse mesmo contexto, a umbanda é o pólo articulador e, portanto, a possibilidade de continuidade.

No entanto, os anos 60 mostram que elementos das religiões afro-brasileiras estariam encobertos. Teresinha Bernardo (1998), a partir do estudo com fragmentos da memória de negros e brancos na cidade de São Paulo, destaca a existência de práticas religiosas afro-brasileiras presentes na cidade, mas que permaneceram na sombra em razão das consequências do racismo. Se de um lado, o racismo inviabiliza o grupo, de outro, a resistência a suas consequências possibilita a continuidade do grupo e seu fortalecimento.

Diante do contexto histórico, econômico e sociocultural da cidade de São Paulo, que faz dela forte centro de influência cultural para o resto do país e ainda, local onde o capitalismo e a política do branqueamento se instituíram, os territórios negros sofrem ameaças e ações discriminatórias mais intensas do que em outras localidades.

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continuidades que se articulam no jogo tenso entre tradição/ruptura, em que a inventividade e a adaptação possibilitam a continuidade.

Portanto, essa dissertação pretende descortinar um dos terreiros mais antigos da cidade. Que aqui se faz presente por mais de 60 anos, tendo sido o único terreiro de candomblé até o momento tombado como patrimônio histórico da cidade de São Paulo pelo CONDEPHATT, órgão que na época estava sob a direção do antropólogo Edgar de Assis Carvalho.

Tendo em vista o histórico desse território na cidade, bem como sua continuidade, a análise adotada partirá das histórias de vida dos membros do grupo, que se constituem como a história viva do terreiro e também como responsáveis por sua continuidade. Pelo fato de o candomblé ter na oralidade uma das suas formas de transmissão, a análise terá como foco a memória de seus membros. É importante ressaltar que as substâncias da memória serão analisadas a partir da perspectiva do arcabouço da memória em Halbwachs (1990), Pollak (1989) e Bernardo (1998).

Partindo da teoria da memória proposta por Halbwachs (1990), o que se pretende é analisar a importância da memória para o grupo. A memória está além de mera construção individual e é construção social a partir do grupo de referência. A memória social do grupo é uma reconstrução e é ressignificação do passado pelo presente porque é nele que se inicia, chegando a um passado de relações e situações vivenciadas e sentidas. Assim, a história pela via da memória opõe-se a história oficial e linear, abrindo a possibilidade de tecê-la à maneira específica de um determinado grupo, que a reconstrói.

Portanto, pretende-se, com base na teoria da memória em Halbwachs (1990), é destacar a importância do grupo para os membros e a reconstrução da história na perspectiva dos sujeitos envolvidos. Tal movimento, ademais, poderá inclusive revelar também a importância de determinados membros do grupo – como é o caso das lideranças – para a configuração da memória, tanto coletiva quanto individual.

Ainda na perspectiva proposta por Halbwachs (1990) será destacada a importância da espacialidade tendo em vista que, segundo o autor, o espaço deixa marcas nos sujeitos em que nele vivem e os sujeitos também o marcam, possibilitando, assim, captar as continuidades no espaço/terreiro.

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memória subterrânea, pretendendo-se destacar as consequências das relações raciais e, portanto, as possíveis rupturas.

Essas lembranças subvertem-se no silêncio e passam como histórias imperceptíveis, voltando a emergir em momentos de crise ou quando encontram uma escuta. Assim o presente trabalho, ao incluir os sujeitos envolvidos no terreiro, almeja abrir espaço para essa escuta, interpretando os significados dos silêncios, dos não ditos e dos conflitos, onde as situações de discriminação estão embutidas, conforme destacado por Bernardo (1998).

Em relação à técnica utilizada para o trabalho de campo é a qualitativa, que se justifica por sua eficácia, pela natureza da pesquisa e pela hipótese levantada. Dessa maneira, para a inclusão dos sujeitos, o caminho escolhido foi a coleta das histórias de vida, visto que evidenciam as situações vividas em grupo, bem como, as possíveis consequências do racismo.

Quanto às histórias de vida, estas foram colhidas entre 2009 e 2013, por motivo de minha participação como membro da comunidade do terreiro. O primeiro contato se deu de forma pessoal e, após breve exposição sobre a pesquisa, procedi com a coleta das histórias, sem formulário estruturado para que as narrativas fluíssem livremente, realizando pouquíssimas intervenções.

No que concerne aos sujeitos da pesquisa, eles demonstraram estar à vontade em relação à coleta de suas histórias de vida, uma vez que outros trabalhos acadêmicos já realizados no terreiro focaram-se apenas nas lideranças e não na comunidade envolvida. Abria-se, então, a escuta para essas vozes não ouvidas. No que se refere à pesquisa de campo, um dado a ser destacado é que, devido à minha participação no terreiro, obtive confiança sem a necessidade de um longo caminho ou incursão prévia no campo.

Em alguns casos de situações de conflito ou racismo ligadas a sua história de vida, os sujeitos sentiam-se constrangidos pela presença do gravador, fato compreensível devido à forte carga emocional que essas situações trazem quando vem à tona. Partia então, para uma conversa mais informal – algumas em tom de confissão – o que geralmente demostrava-se mais rica em detalhes e narrações. Nessas ocasiões, passava a fazer uso do registro em caderno de campo.

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ao que viviam no momento dos relatos. Isto me remeteu às reflexões tanto de Halbwachs (1990) quanto de Marcel Proust (1995), nas quais o filósofo e o romancista discorrem sobre as profundas marcas que o espaço imprime nas memórias daqueles que com ele tem contato. E, ouvindo as memórias daqueles velhos e velhas, eu me certificava, cada vez mais, de que o espaço deixa marca nos sujeitos e os sujeitos também marcam o espaço.

Ao entrar no outro tempo da memória dentro de um espaço, os sujeitos demonstraram ligação afetiva com o terreiro bem como com o grupo ainda ali presente. Apesar disso, em razão da idade avançada de alguns deles e dada sua mobilidade reduzida, algumas entrevistas foram coletadas em suas residências. Contudo, mesmo nessas circunstâncias, a menção ao espaço/terreiro sempre se fazia presente nas lembranças narradas.

Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos por faixas etárias e pela participação em períodos diferentes da história da casa. Já no início da coleta das memórias pude perceber que os interlocutores faziam muito uso de duas expressões que funcionavam como marcadores temporais para se referir a diferentes momentos da história evocada.

Nos relatos das memórias, as expressões “no tempo do Pai Caio”, “lá na Mucuri”, “no tempo da Mãe Sylvia” eram uma constante nas falas. Foi então que percebi que deveria lançar mão dessas categorias espaço/temporais, tanto como instrumento de evocação das memórias quanto como unidades de análise das memórias que emergiam durante a interlocução. Essas mesmas categorias me deram um significativo critério de seleção dos sujeitos com os quais eu deveria estabelecer a interlocução. Decidi então que entrevistaria tanto pessoas do “tempo de Pai Caio”, devendo essa categoria ser entendida como os períodos imediatamente precedentes e subsequentes à fundação do terreiro, quanto pessoas do “tempo de Mãe Sylvia”, período este que deveria ser compreendido como aquele que começa com o processo sucessório já apresentado e se estende até os dias atuais.

Tal escolha se deu para a compreensão das rupturas e continuidades nesses dois períodos históricos diferentes, assim como para captar os “pontos de contatos” entre as memórias.

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terceiro grupo é composto por membros de 39 anos em diante no sentido decrescente, em sua maioria membros do “tempo de Mãe Sylvia”.

Assim, considerando a história das populações negras em São Paulo, a configuração dos territórios negros nesta cidade, a história do Axé Ilê Obá e as memórias dos seus membros, esse trabalho pretende desenvolver uma análise a partir das substâncias das memórias e da análise histórica dos territórios negros na cidade de São Paulo, bem como sua dinâmica, rupturas e continuidades no qual o grupo envolvido se vê submetido em razão dos processos de transformações sociais, políticas e econômicas da cidade que os afetam e os constituem. Para tanto, a dissertação está estruturada da seguinte maneira:

Capitulo I: Do contexto histórico às transformações sociais ocorridas em São Paulo, em meados do Século XIX. Capítulo que tem como objetivo focar o cenário social, político e econômico da cidade de São Paulo, desde a constituição da “metrópole do café” até o processo de urbanização/industrialização e como esse contexto afetou a população negra bem como seus territórios específicos. Essas transformações ocorreram em razão das novas emergências comerciais que levaram o povo negro à segregação espacial e a reelaboração das práticas, crenças e reestruturação dos espaços. Além do cenário social, nesse capítulo pretende-se focar nas especificidades dos territórios negros, enquanto locais importantes de agregação e pertencimento, tais como as Irmandades Negras, Escolas de Samba e a Umbanda.

Capítulo II: Da macumba paulista à umbanda: A Umbanda de Pai Caio de Xangô. A ideia é trazer à tona às memórias sobre Pai Caio de Xangô, com foco na formação do terreiro de umbanda Congregação Espírita Pai Jerônimo, no bairro do Brás em 1950, e a posterior reorganização no bairro do Jabaquara. Tal movimento consolidou o terreiro enquanto território de referência para a cultura afro-brasileira na cidade. Advirto que a análise que se pretende constituir irá apenas enfocar o terreiro Axé Ilê Obá, e não possui a intenção de criar um modelo de análise para todos os terreiros de São Paulo.

No Capítulo III: O lugar da mulher no Axé Ilê Obá: Memórias de Mãe Sylvia e

Oxalá. A análise tem como foco o processo de sucessão devido à morte do fundador.

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outras frentes de atuação estendendo a esfera de ação política para os espaços religiosos, reconhecendo-os como espaços de resistência dos descendentes de africanos residentes na cidade. Também ressaltaremos a transferência da liderança masculina para a liderança feminina, contextualizando, inclusive, essa transição nas dinâmicas atuais das relações de gênero.

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CAPÍTULO I

1.1 O contexto histórico e as transformações sociais ocorridas em São Paulo em meados do século XIX

De Vila Colonial à constituição da metrópole, a cidade de São Paulo, a partir da segunda metade do Século XIX, passará por mudanças radicais em sua constituição.

Tais mudanças se deram em razão da expansão econômica da província, e que a nível nacional, segundo Caio Prado Jr. (2000), o período se caracterizou pela ampliação das forças produtivas sob o comando do Segundo Império. O período anterior se caracterizou pelo ajustamento diante da nova condição política em virtude da independência nacional em 1822. Já a segunda metade do Século XIX se caracterizou como um período de grande crescimento que implicou na ampliação da infraestrutura necessária para a efetivação da nova ordem econômica.

Com a proibição do tráfico de negros escravos em 1850, assiste-se a uma verdadeira crise, em razão da falta de mão de obra necessária para a vida econômica. A Guerra do Paraguai (1865-1870) trouxe também um endividamento do Império, que só consegue se reestabelecer antes de sua queda, em razão da inversão dos capitais antes investidos no tráfico humano. Tal inversão dos capitais possibilitou a emergência e efetivação de um mercado interno, bem como o aumento do comércio. Para que isso se efetivasse, ampliou-se a infraestrutura de transportes com o aumento da malha ferroviária, ampliação dos portos e ainda, a ampliação de obras urbanas. Junto a esse desenvolvimento, aumentou também o número de instituições financeiras.

Uma incipiente indústria começa a se estabelecer no Brasil, em particular as pequenas manufaturas nas regiões mais populosas como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Tais indústrias surgem no cenário nacional e encontra mão-de-obra barata por conta da população livre disponível a baixo custo.

Caio Prado Jr (2000), destaca ainda, a importância de um novo gênero que será o responsável pelo ajuste econômico, devido à da ampliação do mercado internacional e o fluxo investido na sua produção: o café.

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produtos primário no comércio internacional. A frase famosa, “O Brasil é o café”, pronunciada no Parlamento do Império e depois largamente vulgarizada, correspondia então legitimamente a uma realidade: tanto dentro do país como no conceito internacional o Brasil era efetivamente, e só, o café.( Prado Jr., 2000, p. 166/167).

Note-se que no Estado de São Paulo, o café encontrou condições favoráveis para seu plantio que se iniciou no Vale do Paraíba, por volta dos meados do Século XIX. Com seu declínio, uma “frente pioneira” segue rumo ao Oeste no final do referido século, tendo como mão de obra, os negros escravizados.

A então província de São Paulo passa por grandes transformações iniciadas em 1840, com o aumento da população e a ampliação da malha ferroviária, como por exemplo: as Estradas de Ferro Santos-Jundiaí, a Sorocabana e a Mojiana. Na esteira dessas transformações, o número de habitantes também cresceu de forma considerável na direção das “frentes pioneiras” que tomaram o rumo oeste.

Quanto às relações de trabalho, mesmo diante da proibição do tráfico de negros escravizados, uma nova modalidade se estabelecerá: o tráfico interestadual. Esta prática estava voltada para o desenvolvimento econômico da província e a mão de obra necessária era a negro escravizado. A expansão do café coincide com a crise e o colapso do sistema escravocrata, como aponta Florestan Fernandes (2008). Ainda assim, houve um deslocamento da população escrava do Norte para o Sul.

Florestan Fernandes (2008), destaca:

O açúcar, a aguardente e o café (este em menores proporções no começo), atraíam para São Paulo, tanto a “mão-de-obra escrava”, quanto a “gente branca”. A procura e a importação de negros (crioulos ou africanos) aumentava sensivelmente – nem poderia acontecer outra coisa. Nessa época, cada fazenda absorvia de 20 a 30 escravos, em média, havendo, contudo plantações em que se empregavam escravarias superiores a 100 ou a 150 indivíduos. (Fernandes, 2008. p.46).

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Clóvis Moura (1988), define o período de 1851 a 1888, como fase do “escravismo tardio” que se caracteriza pela diversidade das relações escravistas, centralidade e aumento de contingente de negros escravizados nas regiões de São Paulo e Rio de Janeiro considerados pólos mais dinâmicos da economia, presença de alguns trabalhadores livres, subordinação aos interesses e financiamentos da infraestrutura necessária por parte do capital inglês. Nas relações comerciais há subordinação ao capital externo realizados pelas casas comerciais estrangeiras, além da urbanização e modernização da cidade. Tudo isso sem mudança nas relações sociais de produção e do aumento do preço dos negros escravizados.

O desenvolvimento da economia cafeeira coincide com a crise na obtenção de mão-de-obra que com a proibição do tráfico, a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, por pressão inglesa, criou-se o chamado tráfico interprovincial que vai absorver, em parte, um grande número de negros escravizados vindo do Norte e Nordeste, em razão do declínio econômico daquelas regiões. Período de grande desiquilíbrio demográfico, a população da província tem um aumento significativo. Se de um lado a força econômica do café possibilitou mudanças estruturais e significativas em São Paulo, de outro a situação da população negra será um problema a ser resolvido diante do processo de modernização/urbanização que se instaura. Outra questão que urgia ser resolvida era a emergência de novas relações com o trabalho, problema este que perpassava as diferentes camadas sociais.

Já desarticulada pela proibição do tráfico, a escravidão começava a ser questionada. Extraídos do Norte/Nordeste, muitas vezes de áreas urbanas, os escravos recém-chegados eram em sua maioria afro-brasileiros, ou seja, nascidos no Brasil, dominavam o idioma e com maior potencial de consciência e coesão sobre seus direitos, em muitos casos, já cientes da crise na qual a escravidão entrara9.

A questão da escravidão já vinha sendo questionada por uma parcela significativa da população e da opinião pública. De um lado, os fazendeiros necessitavam dessa mão-de-obra, mas de outro, uma forte pressão da opinião pública, sinalizava para o seu fim. Assim, Célia Marinho de Azevedo (1987), descreve esse processo:

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Porém, em São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX, as possibilidades de manter a disciplina e o controle sobre os escravos na grande produção agrícola tornavam-se cada vez mais difíceis. Isto devido à grande concentração de negros subitamente criada nestes anos, sobretudo em fins da década de 1860, em atendimento às necessidades crescentes de mão-de-obra colocadas pela expansão do café rumo ao oeste. Além disso, as dificuldades com a disciplina tinham muito haver com o descrédito em que caía a escravidão e com as inevitáveis mudanças de atitudes psicossociais, tanto de parte dos senhores como de escravos, bem como da população geral. (Azevedo,1987, pp. 181).

Nessa fase do “escravismo tardio”10, a ação do Estado se diferenciava utilizando-se de mecanismos diferentes, se antes se caracterizou por medidas repressivas brutais e de uma legislação terrorista, agora, o Estado, através de medidas protetivas como as Leis do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885), visava garantir a permanência dos negros escravizados, uma vez que se tornava mais difícil sua aquisição.

A “onda negra” tornou-se um problema e diante desse cenário, a imigração começa a ser articulada para tentar solucionar o problema. Assim:

“A onda negra” – imagem vívida do temor suscitado pela multidão de escravos transportados do norte do país para a província no decorrer das décadas de 1860 e 1870 – esteve na raiz das motivações que impulsionaram os deputados provinciais a se mobilizarem numa forte e decisiva corrente imigrantista” (Azevedo,1987, p.96).

E ainda sobre a imigração:

O projeto imigrantista começou a ser praticado em São Paulo, pelos fins da década de 1840 quando, em meio às pressões externas e também internas contra o tráfico africano, iniciaram-se as primeiras experiências com imigrantes europeus, contratados para trabalhar como parceiros, no interior da fazenda Ibicaba, do senador Nicolau Vergueiro. Até então a experiência com a imigração reduzira-se à fundação de colônias pelo governo geral, onde colonos, em geral suíços e alemães, congregavam-se como pequenos proprietários e produtores de gêneros de primeira necessidade para o abastecimento de cidades e vilas próximas. Mas em São Paulo pretendia-se provar que os imigrantes também poderiam ser aproveitados como trabalhadores livres a serviço da grande propriedade, acenando-se assim com a possibilidade de num futuro próximo substituir o escravo nas lides rurais.” (Azevedo, Id., pp.51).

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A onda negra provocada pelo aumento da população negra revelaria ainda outra faceta: a criação de um imaginário por parte das elites que tentaram determinar um lugar para o negro. Criado pelo medo continha em seu interior concepções racistas que nesse primeiro momento, - da invasão de escravos na lavoura de café, perpetraram diversas medidas de controle, disciplina e enquadramento, classificando-os como mal-educados, massa inerte e inculta. Tal premissa também iria influenciar o movimento abolicionista então nascente.

Aproveitando-se do contexto social, político e econômico da época, o movimento de luta dos negros escravizados começa a radicalizar-se já a partir de 1870. Essa radicalização se materializava nos crimes praticados por negros escravizados ou por pequenos grupos de libertos contra seus senhores e, partir de 1875 por revoltas coletivas (1879 – Limeira/SP), (1881 – Conspirações em Campinas/SP) e também por fuga em massa das fazendas do café com destino a Capital e daí com apoio do movimento abolicionista fuga para Santos/SP.

Na cidade de São Paulo, o movimento dos caifazes11, liderados por Antônio Bento, após a morte de Luís Gama em 1882, estrutura uma rede de abolicionistas, que incitaram os negros escravizados a levantes e fugas contra os senhores. Em 1887, as tropas imperiais são chamadas para São Paulo, com o intuito de reformar o contingente na repressão aos escravos que fugiam em massa das lavouras de café.

Com isso, o sistema escravagista desarticulou-se em três níveis12: (i) Sob o ponto de vista econômico a fuga torna escassa a mão-de-obra já rara. (ii) Sob o ponto de vista político, a possível articulação de negros com a classe oprimida poderia gerar mais levantes ou insurreições. (iii) E sob o ponto de vista psicológico, cria-se um imaginário de medo por parte da elite, pelo perigo que os negros representavam.

Porém, o movimento abolicionista definia-se de forma racional e planejado e seria responsável, no plano político, de racionalizar a luta dos negros escravizados,

11 Além de denunciarem pela imprensa os horrores da escravidão os caifazes defendiam na Justiça a causa

dos escravos, faziam atos públicos em favor da sua emancipação, coletavam dinheiros para alforrias e protegíamos escravos fugidos. Ademais, perseguiam também os capitães-do-mato, sabotavam a ação policial e denunciavam os abusos cometidos por senhores, expondo-os à condenação pública. Os caifazes operavam em São Paulo(capital) como no interior da província, instigando os escravos a fugir. Retiravam os cativos das fazendas e forneciam-lhes outros empregos como assalariados. Também encaminhavam os escravos para portos seguros onde poderiam escapar à perseguição de seus senhores. Um desses lugares era o Quilombo do Jabaquara, nas cercanias de Santos. Moura, Clóvis, Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp.2013.

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entendidos como entes passivos e isolados13. Seriam, portanto, os abolicionistas os conciliadores entre os escravos e os fazendeiros.

Promulgada em 13 de maio de 1888, a Abolição, sem alterar as relações sociais e de produção, em meio ao processo de fugas, rebeliões, manifestações na cidade por negros e abolicionistas, integrou-se com os projetos de tentativas de integração e conciliação das raças, mote o processo de instauração da nova ordem política: A República.

Acreditava-se que a substituição da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra livre, seria solucionada pela imigração que já antes da abolição, em 1860, encontrou na figura do Estado seu agente promotor. Solução para o novo momento que se instaura, a imigração vai buscar na teoria do branqueamento a legitimação ideológica para sua instituição.

Clóvis Moura (1980) destaca com Skidmore que o período de auge do ciclo do café coincide com o “pique” do pensamento racista:

Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais, durante o período alto do pensamento racial – 1880 a 1920- a ideologia do “branqueamento” ganhou foros de legitimidade científica, de vez que as teorias raciais passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das suas ideias de que a raça superior – a branca -, acabaria por prevalecer no processo de amalgamação”. (Skidmore, apud Moura, 1980. pp. 81).

Com a possibilidade da imigração, política pública oficial do Estado, o imaginário das elites, influenciados pelas teorias positivistas, universalistas e higienistas classificaram os negros como incapazes para o trabalho por serem ociosos, degradados e propensos ao crime. Ao negro ainda se atribuía a passividade e a falta do senso de responsabilidade e disciplina. Segundo seus defensores, a imigração, com a vinda de braços brancos e europeus, traria o progresso à nação e a possibilidade de regenerar racialmente a população da nação.

Contudo, o processo de discriminação já estava presente bem antes da política de imigração. O próprio regime de escravidão já se sustentava sobre mecanismos de exclusão discriminatória. Com a abolição, a elite intelectual amparou-se em uma explicação “científica” para racionalizar e justificar a exclusão social do negro. Com a ajuda da ciência da época, foi criado um aparato ideológico, expresso nas diversas

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políticas de racionalização dos espaços para imobilizar o negro. Assim, Maria Clementina Cunha (1986), ao discorrer sobre a história do manicômio do Juquery, descreve esse processo:

Os negros, com sua história de marginalização posterior à abolição da escravatura – “degradados” demais para serem facilmente incorporados à força de trabalho industrial, resistentes às práticas senhoriais do antigo sistema, confinados aos redutos de extrema pobreza que a cidade define desde seus primeiros momentos de expansão, e vivendo em grande parte do subemprego, do biscate quando não da contravenção. Para esses, a psiquiatria reservou as designações “inferiores” da degeneração, categorias próximas da animalidade ou dos estágios mais primitivos da “evolução humana”. (Koguruma apud Cunha, 1986, p. 31).

Com isso, a questão do branqueamento tinha uma proposta clara, de exclusão do negro da sociedade que surge exatamente no momento em que ocorre a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Tal ideologia reflete o dilema entre a constituição do velho versus o novo, progresso versus atraso e do negro versus o branco. A questão era definir um lugar para o negro e, nesse processo, a implementação da imigração representava a garantia da introdução de membros de uma raça tida como superior. Nas palavras de Clóvis Moura (1988), essa relação entre branqueamento e imigração se dá por que:

Remetidas para a própria população negra as causas fundamentais de seu atraso social e cultural, político e existencial, resta apenas procurar branqueá-la cada vez mais para que o Brasil possa ser um país moderno e civilizado e participante do progresso mundial. Todas as medidas que possam ser tomadas neste sentido são válidas. A filosofia do branqueamento não tem ética social. (Moura,1988, pp.99)

Nessa mesma perspectiva, Azevedo (1987, p. 61) afirma que:

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Se por um lado, sob o ponto de vista econômico, a nova fase da economia traria o progresso da nação que por conta da pujante produção de café fez com que a província de São Paulo se desenvolvesse, de outro, a presença do negro representava um perigo e era um problema para a nação que se pretendia modernizar, cujo modelo ideal era o da modernidade europeia. Para tanto, inspirados nas teorias em voga à época, ou seja, o darwinismo social e o positivismo, o que se observa é a instituição de políticas oficiais para a modernização da “metrópole do café” que afetaram principalmente os espaços negros que na metrópole se estabeleceram.

Cenário de profundas mudanças sociais, articuladas pelo crescimento econômico perpetrado pelo café, assim como pelas alterações demográficas e pela organização espacial, a população negra seja ela escrava, ex-escrava ou liberta, na província de São Paulo e na cidade de São Paulo, inserida nesse processo tenso e contraditório, viu-se excluída do processo de transformação sem mudanças sociais radicais, excluídas da “modernidade” vindoura.

A escravidão deixou raízes profundas de exclusão no Brasil, mais especificamente no Estado de São Paulo, local em que o capitalismo se instituiu e que passou por mudanças tão especificas e contundentes. Não é de se espantar que a população negra tenha sido excluída e impedida de inserir-se social, política e economicamente. Exclusão essa que se manifesta do ponto de vista (i) econômicocom a substituição pela mão-de-obra imigrante considerada “mais evoluída”, “razão do progresso”; (ii) político, com a impossibilidade de criação de mecanismos legais de segregação e exclusão e (iii) social, com a marginalização de seus territórios.

No mesmo sentido, Domingues (2003), diz em relação ao racismo em São Paulo, que há determinadas especificidades que determinará as relações raciais que aqui se constituem e também que o racismo e suas consequências estão inseridos em todos os âmbitos da sociedade. Para ele:

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estabelecimentos comerciais, cinemas, bares, restaurantes e bairros da cidade.(Domingues,2003. Pp.201).

No tocante a cidade de São Paulo, de Vila Colonial ao final do século XVIII, torna-se, no século XIX, a “metrópole do café” em razão da centralidade política, econômica e administrativa, passando por mudanças profundas em seu território. A população negra na cidade representava 50% da população em 1872. Deste percentual, apenas 33% eram escravos e, por conta da imigração, houve uma inversão demográfica e o aumento do número de brancos que em 1893 representava 62% da população, cinco vezes a mais que a população negra14.

Além da presença marcante como mão-de-obra nas lavouras da Província, denota-se também a presença de negros em outras atividades econômicas, atuando em setores administrativos, no comércio, na produção e venda de alimentos atividades emergentes na região urbana. Liana Trindade (2004), aponta que:

Na região urbana os escravos que pertenciam aos pequenos proprietários do comércio trabalhavam como vendedores; portanto, denominados “escravos”, auferiram lucros que sustentavam os seus proprietários empobrecidos. Eles comercializavam bens de consumo, mendigavam, vendiam pequenos produtos e artefatos de madeira (obílias) e de metais (pratos e jóias); eram artesãos, pois praticavam nas oficinas das senzalas a tradição africana de arte do trabalho em metais. Exercendo ofícios de artesão, trabalhavam no corte de madeira para confeccionar objetos e uso e esculpir imagens de santos. Também eram ourives além de mediadores do comércio clandestino de gêneros alimentícios. (....). Os mercados e as ruas propiciavam o comércio e a sociabilidade, criavam condições comunitárias aglutinadoras de escravos forros, quilombolas, ou seja, africanos de várias etnias que trocavam mercadorias e experiências vividas. (Trindade, 2004, pp.101)

Historicamente, portanto, o espaço público da rua foi um local importante de sociabilidade entre a população negra escrava e liberta, no início do Século XIX. Os negros escravizados habitavam áreas próximas ao espaço dos senhores, as ruas, os becos, as bicas e os chafarizes foram os locais onde as escravas lavavam roupas, trocavam informações e ainda um comércio significativo, esses locais funcionavam como “territórios de conexões”15, além de trocas materiais e simbólicas.

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No mesmo sentido, Raquel Rolnik(1997), destaca:

A venda nas ruas estabelecia contatos, permitia a troca de informações e garantia a sobrevivência de quilombos urbanos, lugares onde se acoitavam os escravos fugidos. Tais eram os Campos do Bexiga, naquele momento Mata do Saracura, em cujo grotão se podia sobreviver de coleta – pesca de peixes e caranguejos de água doce, palmito e iguarias do sertão que circulariam nos tabuleiros (carás cozidos, pinhões quentes, ibás, cuscuz de bagre, jabuticabas, araçás, guabirobas, grumixamas, pitangas, cambucis) – ou venda de lenha...Ou no que viria a ser posteriormente o bairro do Ypiranga, onde havia uma olaria que apoiava fugas ou servia de abrigo provisório para aqueles que iriam a serra para Santos, a caminho do mar.

Rua dos Piques, local onde se concentravam as quitandeiras negras, além dos chafarizes da Rua dos Piques e do Largo do Rosário, o Mercado São João na Ladeira da Rua do Acu, Mercado dos Caipiras, Mercados da Rua das Sete Casinhas, Mercado de Ervas do Largo de São Gonçalo, a rua dos Lavapés, o bairro da Liberdade, Beco das Minas, e ainda o antigo Quilombo da Saracura, próximo ao Ribeirão da Saracura, configuravam-se como territórios negros na cidade de São Paulo, onde circulavam escravas de ganhos, libertos, quitandeiras, curandeiros, denota-se a presença marcante e protagonista nas mulheres negras.

Outros locais de sociabilidades conforme nos aponta Maria Cristina Cortez Wissenbach (1998), eram os ranchos, locais de parada de tropeiros, viajantes e seus agentes, locais de sociabilidades mais soltas onde existiam trânsitos, trocas de mensagens, laços de amizades e uma determinada mobilidade social, esses locais eram pontos de agregação entre diversos indivíduos da cidade se os mais conhecidos eram o das Rua Lavapés, do Bexiga, os dos Piques, atual Ladeira de Memória e ainda do Rio das Pombas e do Rio Juquery.

Maria Odila Leite da Silva Dias (1984), acrescenta a importância das mulheres negras no comércio desses territórios.

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maioria de escravas recém-vindas do tráfico e em pleno processo de aculturação. (Dias, 1984, pp.115-116)

O crescimento econômico resultado, como se vê, da expansão do café, a partir de 1870 alterou profundamente o cenário urbano da cidade. A infraestrutura urbano se alterou com a implementação de ferrovias que cortavam a cidade em direção ao interior, a criação da Companhia de Bondes em 1872, com diversas linhas de atravessando a cidade, e da Companhia de Águas em 1875.

Novos bairros começam a surgir para abrigar as elites, em 1879 é criado o bairro de Campos Elíseos com grandes lotes e ruas arborizadas, em 1890 o bairro de Higienópolis, e em 1891 a Avenida Paulista. Tais mudanças deram nova cara à cidade que agora se urbanizava rapidamente.

Já em relação aos territórios negros, o aparato legal através de mecanismos institucionais – higienistas, urbanistas, planejadores, amparados por princípios civilizatórios eurocêntricos e ainda, das teorias raciais, projetaram um modelo de cidade em que o negro e seus territórios foram extirpados, segundo Rolnik (1993):

Na cidade que se quer civilizada, europeizada, o quilombo é uma presença africana que não pode ser tolerada. Isso se manifesta desde a formulação de um Código de Posturas Municipais em 1886, visando proibir essas práticas presentes nos territórios negros da cidade: as quituteiras devem sair porque ‘atrapalham o trânsito’; os mercados devem ser transferidos porque ‘afrontam a cultura e conspurcam a cidade’; os pais-de-santo não podem mais trabalhar porque são embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural’” (Rolnik, 1989, p. 32-33)

Definida no plano político, a Abolição e a instituição da República, a cidade de São Paulo, berço da modernidade, caminhava aceleradamente para a mudança. O aparato cientifico-tecnológico responsável pelo projeto de consolidação da modernidade, instituem pelas Leis medidas para racionalização do espaço público.

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meio às transformações urbanas, conforme destacou Roberto Moura (1983), em análise sobre a pequena África e Tia Ciata.

Quanto aos territórios negros, diante de condições adversas, conforme delimitamos nesse Capítulo, passaram por uma reelaboração de suas práticas e reterritorialização no período precedente.

Esse processo de reelaboração e reterritorialização, segundo Liana Trindade (2004), se trata de uma das formas que a população negra encontrou para se adaptar ao sistema, promovendo à inovação de funções possibilitada pelo processo de mudanças estruturais, recorrendo, para tanto, aos recursos da sua cultura, organizando-se em grupos musicais, locais de encontro e nas casas de culto de origem africana16.

Bexiga, Barra Funda, Largo da Banana, Pinheiros, Jabaquara, Bosque da Saúde, serão os locais onde práticas serão reelaboradas, mas a “metrópole do café” não cessa seu crescimento é sobre alguns desses territórios com seu conjunto de práticas culturais e religiosas que trataremos.

1.2 Os territórios negros na cidade de São Paulo.

Marcadas por rupturas, em razão do contexto histórico a que foram submetidas às populações descendentes de africanos, na cidade de São Paulo com o processo de transformações ocorridas no final do Século XIX e início do Século XX, verifica-se a presença de diversos territórios negros onde é possível afirmar a continuidade de práticas culturais e religiosas, presentes desde o Século XVII.

Na presente análise, nos apropriamos da noção de “territórios negros” ou “territórios de maioria afrodescendentes”, conforme Henrique Cunha Jr, que assim o define:

São espaços urbanos de identidade específica e de histórias singulares, percebidos pelo restante da sociedade, sob forma particular, muitas vezes estigmatizadas e racistas. (Cunha Jr, 2007, pp.85)

Estigmas e racismos que se manifestam em políticas urbanas de base eugenistas que removeram as populações afro-brasileiras do centro urbano. Expulsos das ruas, largos, becos e chafarizes do Centro Velho, forjaram-se nos locais próximos às Várzeas

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do Tamanduateí e do Tietê e ainda, em locais próximos às Estações de Trem da antiga São Paulo Railway outros territórios de resistência onde foram possíveis ocorrer continuidades socioculturais. Segundo Maria Estela Rocha Ramos (2007):

Mesmo sob pressões contrárias do desenvolvimento social da população negra, é visível nesta relação entre africanos e afrodescendentes no meio urbano uma ocupação do território, um domínio de territórios, definindo áreas com caráter majoritariamente afrodescendente, formando uma comunidade territorial, isto é, relacionando determinados territórios à cultura e identidade negra, uma vez que a produção do espaço é resultado da ação de homens e mulheres agindo sobre o próprio espaço. (Ramos,2007, pp.105).

Territórios de resistência que possibilitaram a continuidade e a reelaboração de práticas foram locais onde se expressavam os folguedos, os cordões carnavalescos, os sambas, batuques tocados nas festas da Igreja, as Irmandades Negras, a macumba paulista e as escolas de samba que segundo Wissenbach (1998):

Costuma-se dizer que se estabeleciam nas cidades territórios negros, espacialidades marcadas por laços sociais, estruturas de parentescos e expressões culturais singulares que revelavam fulcros significativos no processo de resistência à dominação escravista e à discriminação social que se lhe seguiam. (Wissenbach,1997, pp.66)

Assim, partindo dos argumentos de Moura (1980), esses grupos são diferenciados pela sociedade mais ampla, mas tornam-se grupos específicos na medida em que utilizam essa diferenciação como valor positivo revalorizando aquilo que a sociedade inferioriza criando, assim, valores no presente ou aproveitados do passado como forma de autoafirmação grupal.

1.2.1 – As Irmandades Negras.

As Irmandades Negras na cidade de São Paulo foram locais de extrema importância para o movimento de luta abolicionista e ainda como pólo de agregação, e sociabilidades negras.

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negros libertos que algum tempo depois foi desapropriada para a construção do Largo do Rosário. A Irmandade do Rosário foi local de encontros do movimento abolicionista pós 1870, articulado com o movimento dos caifazes.

Outra irmandade importante foi a da Nossa Senhora dos Remédios localizada no Largo de São Gonçalo – atual Praça João Mendes -, fundada em 17 de julho de 1812. Antônio Bento, um dos líderes deste da luta de libertação reorganiza a irmandade em 1877, tornando-a sede do movimento dos caifazes.

Nascida no interior da Irmandade do Rosário a irmandade de Santa Efigênia e Santos Elesbão foi fundada em 1758, e alcançou sua sede própria em 1801, atual Igreja de Santa Efigênia. Foi despejada do interior desta Igreja em 1890, por ordem expressa do comando da Igreja em razão de disputa entre ela e o padre “visitador”17 das

irmandades.

O cronista Antônio Egydio Martins (2003) também menciona a existência de outra importante irmandade negra em São Paulo, a Irmandade da Boa Morte dos Homens Pardos, que data de 1810, estabelecida no interior da Igreja da Boa Morte, local em que vários negros escravizados condenados à forca passavam antes da execução no antigo Largo da Forca, atual Praça da Liberdade. O enterro acontecia em terrenos contíguos à Capela dos Aflitos ou Igreja Nossa Senhora dos Aflitos, situada no beco do mesmo nome, atual Rua dos Estudantes.

Antônia Aparecida Quintão (2002) ressalta a importância das Irmandades enquanto outro espaço de luta e resistência no período de 1870-1890, como já vimos anteriormente, foi uma fase de grandes transformações na sociedade paulistana e também, como espaço de coletividades.

Ao participar dessas associações, os negros poderiam reconhecer um significado para as suas vidas, na medida em que estas estimulavam a solidariedade, possibilitaram o culto aos mortos garantiam um enterro aos seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados compravam de forma cooperativista cartas de alforrias e realizavam grandiosas festas coletivas (Quintão, 2002, pp.103.104)

Mesmo diante dos olhos da Igreja Católica, as irmandades foram locais importantes de afirmação e propiciavam a solidariedade entre os negros, bem como a formação de vínculos sociais.

17 Padre responsável pela visitas às igrejas que instruía sobre as soluções ao comando da Igreja, sobre a

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