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Mais uma vez, seu aniversário : as poéticas do esquecimento = Once again, your birthday: the poetics of oblivion

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

ISABELLA AMARAL SOARES

MAIS UMA VEZ, SEU ANIVERSÁRIO: AS POÉTICAS DO ESQUECIMENTO

ONCE MORE, YOUR BIRTHDAY: THE POETICS OF OBLIVION

CAMPINAS 2019

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ISABELLA AMARAL SOARES

MAIS UMA VEZ, SEU ANIVERSÁRIO:

As poéticas do esquecimento

ONCE MORE, YOUR BIRTHDAY: The poetics of oblivion

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

Dissertation presented to the Institute of Arts of the Campinas State University in partial fulfilment of the requirements for the Master degree in Performing Arts, major area of study in Theatre, Dance and Performance.

ORIENTADORA: ISA ETEL KOPELMAN

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

ALUNA ISABELLA AMARAL SOARES E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

CAMPINAS 2019

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

ISABELLA AMARAL SOARES

ORIENTADORA: PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

MEMBROS:

1. PROFA. DRA. ISA ETEL KOPELMAN

2. PROF. DR. ADILSON NASCIMENTO DE JESUS

3. PROFA. DRA. VERONICA FABRINI MACHADO DE ALMEIDA

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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Aos desmemoriados, Àqueles que sabem demais através da escola tempo,

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Joelma, minha avó-mãe Eurides, meu avô Zé e meu irmão Leonardo, minha família única e prestativa nos momentos mais difíceis da feitura desta pesquisa.

Ao Profs. Drs. Marcio L.F. Balthazar e Benito Pereira Damasceno por terem possibilitado esclarecimentos acerca da Doença de Alzheimer, em especial ao professor Balthazar por ter me permitido estar entre os pacientes.

Aos amigos Elisa Abrão, Gabriel “Danny” Perez, Gyl Giffony, Igor Nascimento, Isabel Thaler, Júnior Romanini, Lis Nasser, José Nosé, Luciana Mitkiewicz, Maria Furlanetti, Raíssa Guimarães e Ysmaille Ferreira, nosso tão belo clube de alegrias e encontros intelectuais dançantes!

À Larissa Santana, ora Rita, ora Maria, ora Inácia, por sua amizade, disponibilidade e generosidade artística.

Ao Juliano Jacopini pela escuta, sua visão de cena, paciência e sensibilidade ao lidar com esse material humano e artístico.

Aos amigos e criadores da casa: Ana Flávia Felice, Diego Leal, Felipe Braccialli e Isabela Moreira, tão próximos do caos que é conviver com alguém tão cambaleante em seus humores.

Agradeço ao Rafael Gaona pelo auxílio nas traduções em inglês e pelas referências do universo Beckett.

A todos os professores que compartilharam seus saberes sobre esta pesquisa, em especial a banca Verônica Fabrini e Adilson Nascimento por terem aceitado fazer parte desse processo acadêmico, além das apuradas contribuições de Silvia Geraldi.

Às contribuições musicais de Matheus Crippa e André Oliveira.

À Valmir Perez e Anderson Bonato pela composição e montagem de luz e disposição alegre da labuta.

À Isa Etel Kopelman, orientadora e artista atenta no perspicaz trabalho da sensibilidade que nos torna humanos.

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“- Vô, você está vivo? - Não sei.”

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RESUMO

O presente trabalho investiga o tema memória como evidente na obra Cadeira de

Balanço, de Samuel Beckett, e traça um paralelo com as narrativas de desmemorias,

presentes nos discursos dos pacientes diagnosticados com a doença de Alzheimer, em especial, da figura íntima de meu avô. Busca-se a construção de uma dramaturgia cênica que aproxime ficção e a realidade através do distanciamento do discurso afásico como meio explicativo e expressivo do esquecimento.

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ABSTRACT

The present work investigates the topic memory that stands out in Samuel Beckett’s work

Rockaby, as far as draws a parallel with the narratives of forgetfulness present in the

discourses of patients diagnosed with Alzheimer's disease especially the intimate figure of my grandfather. The aim is to build a scenic drama that approach fiction and reality through departure from the aphasic speech as explanatory and expressive medium of oblivion.

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Sumário

INTRODUÇÃO AO ESQUECIMENTO... 11

PARTE I: CADEIRA DE BALANÇO 1. PRELÚDIO: UMA MEMÓRIA ANTES DA MEMÓRIA... ... 18

1.1 Memória e Imagem ... 24

1.2 O início está no meio . ... 34

1.3 As memórias de Beckett - "o meu assunto é o fracasso"...37

1.4 Cadeira de Balanço ou Canção de Ninar ... 40

1.5 A memória do corpo nas obras de Samuel Beckett... ...49

PARTE II: CANÇÃO DE NINAR 2. A DEMÊNCIACOMO NARRATIVA POSSÍVEL ... 59

2.1. O lugar íntimo da memória - os sítios inventados por Zé...62

2.2. Narrativas improváveis: a escuta de outros Alzheimers...69

2.3 A doença de Alzheimer: aproximações narrativas ...77

3. DA MEMÓRIA À AÇÃO...82

3.1 O santuário dos velhos...85

3.2 As memórias com Raquel...86

3.3 Os depoimentos indizíveis...100 3.4 A criação de casa...110 4. AS MEMÓRIAS FINAIS...114 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ...118 6. VIDEOGRAFIA...121 7. ANEXOS...122

Anexo I - Cadeira de Balanço...122

Anexo II - Registros...132

Anexo III - Imagens inspiração...134

Anexo IV - Depoimentos...139

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INTRODUÇÃO AO ESQUECIMENTO

O trabalho do ator sobre sua memória individual pode tanto andar na direção de uma retificação do indivíduo, do sujeito, como servir de ponte para um ‘fora’ ou um ‘neutro’ (no sentido dado por Blanchot), servir de ponte para algo que seria impessoal. E isso vai depender de como pensamos e praticamos a subjetividade. Optaremos por uma memória que nos narra – que nos faz sempre idênticos a nós mesmos, ou, o que parece muito mais interessante, nos abriremos para uma memória que nos chama – que chama aquilo que é outro em nós? (MOTTA LIMA, 2016, p.6).

Numa perspectiva de prática psicofísica, o ator encontra meios de acessos criativos e poéticos tornando-se, desse modo, um agente de reconhecimento de imagens, conteúdos e readaptações nas quais a experiência atravessa seu corpo. Como um caminho já percorrido, mas que é revisitado, o artista experimenta o rastrear de situações referentes às suas sensações que podem ser mais uma vez vividas, recontadas de acordo com o próprio momento que, por sua vez se abre a novas abordagens, imagens e percepções. Readaptações poéticas são feitas de acordo com o que se vive no momento atual, destacando contextos e ambientações, agregando as relações do indivíduo com o mundo – o ambiente familiar, social, político e certamente tudo o que concerne enquanto natureza humana.

Busco, assim, na memória viva impressa no meu corpo, a matéria para a construção da minha arte. Considero meu corpo como um espaço condensado, uma experiência viva em fluxo constante de atualização consigo e com o meio poroso, permeável. Ele sou eu e eu sou ele, não como meu receptáculo, por onde pairo ou me aprisiono ou me liberto, não como forças distintas em parceria, mas como unicidade múltipla. Ele é, eu sou, ‘eu somos’ essa pluralidade de experiências impressas na carne, ligados intrinsecamente ao tempo, ao passado acumulado no presente que é o meu corpo, que é presente e passado, ou só passado presente, já que o presente é fugaz e se torna assim que se imprime. (COLLA, 2013, p. 51).

Como um despertador de imagens e ações, as percepções das memórias dançam através do corpo e exprimem todo o contexto social, ambiental, político e cultural que estão inseridos nas vivências do ator, o qual cria conexões em fluxo contínuo entre o passado e o presente para gerar relações entre as memórias que de fato aconteceram, além de possibilitar recriações e possíveis desdobramentos imagéticos a partir de uma sensação, lembrança ou contexto do passado. Como campo de experimentação, é no corpo que se dá a criação de conhecimentos obtidos de suas percepções e de movimentos correspondentes a tudo que foi vivenciado pela artista.

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Partindo deste pressuposto, busca-se nessa imersão artística e acadêmica investigar a memória, a qual parte das minhas observações sobre a peça Cadeira de

Balanço, de Samuel Beckett em relação às memórias compartilhadas pelos portadores da

demência de Alzheimer, suas narratividades surgidas pela observação, em especial relatadas mais intimamente pelo meu avô materno, o qual também sofre da mesma doença e que desencadeou meu interesse em concatenar e perceber as semelhanças entre a peça de Beckett e o estado que a doença provoca. Opta-se nesta pesquisa ir do

micro, da doença familiar ao macro, da doença relatada por pessoas desconhecidas, num

contexto mais abrangente e social, como nos pacientes observados no Ambulatório de Neuropsicologia e Demência do Hospital de Clínicas da UNICAMP.

O foco da pesquisa baseia-se em construir uma dramaturgia corporal e cênica que aborde histórias compartilhadas pelos portadores de tal doença. Assuntos como repetição, imagens, solidão, o esgarçamento do tempo e o esgotamento da linguagem permeiam esta pesquisa, seja como mote, ou como via criativa escrita e também como partitura corporal.

Imagens do passado, da infância e da minha relação com o meu avô materno aparecem nesta pesquisa também como rubrica ou introdução poética do que busco realizar no meu trabalho de atriz. Desta forma, creio que o destaque que parte da experiência e dos relatos narrativos estruturem a pesquisa não só como meio criativo, mas de trazer à tona uma linha de narratividade que se assegurará enquanto escrevo e atuo como pesquisadora. Isso serve como introdução não só a pesquisa teórica, mas como prólogo de uma memória que se evapora pela linguagem, ou seja, na maneira como escrevo e também como isso pode ser expresso enquanto via cênica de criação.

Também estão presentes na pesquisa enlaces culturais que partem do deslocamento de revisitação do passado para se construir uma narrativa que é presente. A identidade de meu avô, objeto a ser narrado, é construída a partir dos fragmentos cotidianos da familiaridade, da escuta de sua doença e da convivência de todos que participam de sua trajetória atual.

O quadro teórico deste estudo se apoia nos estudos de Gaston Bachelard, Ecléa Bosi e Paul Ricoeur; pesquisadores que investigam a obra dramática de Samuel Beckett, além de estudiosos que se debruçam sobre a temática do Alzheimer. A metodologia deste trabalho parte da captura do olhar fenomenológico em interação direta com a criação poética que estabelece relações com imagem, imaginação e lembrança como propostas pelo filósofo Henry Bergson. Sob a perspectiva da cena, alguns investigadores contribuem

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para esta pesquisa, tais como os relatos de Ana Cristina Colla, Jean-Pierre Sarrazac, Juliana Fontes Leite e Juliano Jacopini entre outros postulados.

Destaco que haverá momentos em que as teorias se alinharão às horas de devaneio como via de escritura deste processo e que possuo a pretensão de aprofundá-las futuramente. Assim como o ato de se lembrar, a escrita dessa dissertação funciona da seguinte forma: lembrando, reorganizando e indo e voltando às informações nas páginas, como se somassem uma às outras, espécie de linha de costura que retoma o furo já adentrado. Deste modo, a leitura do texto a seguir forma, aos poucos, um tecido de retalhos, escrito de forma lúcida, porém, deixando-se emaranhar-se pela desestabilização das memórias e a instabilidade comuns da demência de Alzheimer, lançando cada vez mais longe um anzol que tenta fisgar das profundidades do esquecimento alguns fantasmas na memória.

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PARTE I: CADEIRA DE BALANÇO

Segundo a mitologia grega, Cronos, deus do tempo, devorava os próprios filhos para que nenhum deles pudesse um dia roubar-lhe o trono. [...]. Essa lenda destaca o caráter destrutivo do tempo, tão valorizado pelo senso comum. Os objetos queridos, as paixões, as realizações mais grandiosas cedem perante esse ‘senhor’ que parece reger os destinos. [...] O tempo cronológico, conforme é concebido no cotidiano, escorre na passagem da areia pelo orifício da ampulheta, nas badaladas de um velho carrilhão, no tique-taque do despertador ou em qualquer outro instrumento que se queira tomar como referencial de medida. Porém, em vários momentos temos a sensação de que o tempo vivido e o tempo cronológico não estão juntos. As horas e os dias muitas vezes indicam haver descompasso entre o que marcam os relógios e o os nossos sentimentos, o que indica ser o tempo pessoal regido por humores e sensações subjetivas. A alegria e o prazer são geralmente acompanhados pela sensação de passagem rápida do tempo, enquanto a tristeza, o medo, a espera, parecem fazer de cada minuto um século. Neste sentido, o passado não possui apenas a dimensão do já acontecido, da ‘aurora de uma vida que os anos não trazem mais’, como sugeriu Casemiro de Abreu. Ao contrário, pode anunciar-se como possibilidade do vir a ser. (SCHWARTZ, 2008, p. 1-2)

O Tempo, mais uma vez1. Mas o que é o Tempo? Como consta no Dicionário

Aurélio e chega-se às seguintes definições de um assunto que se estende em vinte nove tentativas de comprimi-lo em ideias do Homem:

1 - Série ininterrupta e eterna de instantes. 2 - Medida arbitrária da duração das coisas. 3 - Época determinada.

4 - Prazo, demora.

5 - Estação, quadra própria.

6 - Época (relativamente a certas circunstâncias da vida, ao estado das coisas, aos costumes, às opiniões).

7 - Estado da atmosfera. 8 - Temporal, tormenta.

9 - Duração do serviço militar, judicial, docente, etc.

10 - A época determinada em que se realizou um fato ou existiu uma personagem.

11 - Vagar, ocasião, oportunidade.

1 Frase dita por Mulher, personagem da “Cadeira de Balanço”, de Samuel Beckett. Tal frase é repetida mais

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12 - Inflexões do verbo que designam com relação à atualidade, a época da ação ou do estado.

13 - Cada uma das divisões do compasso.

14 - Diferentes divisões do verso segundo as sílabas e os acentos tônicos.

15 - Instante preciso do movimento em que se deve efetuar uma das suas partes.

16 - Época correspondente à formação de uma determinada camada da crosta terrestre.

17 - Quantidade do movimento de um corpo ou sistema de corpos medida pelo movimento de outro corpo.

18 - a seu tempo: em ocasião oportuna.

19 - com tempo: com vagar, sem precipitação; antes da hora fixada. 20 - matar o tempo: entreter-se.

21 - perder o tempo: não o aproveitar enquanto é ocasião; trabalhar em vão; não ter bom êxito.

22 - perder tempo: demorar-se.

23 - tempo civil: tempo solar médio adiantado de doze horas.

24 - tempo de antena: duração determinada de emissões de rádio ou de televisão difundidas no quadro da programação.

25 - tempo sideral: escala de tempo baseada no ângulo horário do ponto vernal. 26 - tempo solar médio: tempo solar verdadeiro, sem as suas desigualdades seculares e periódicas.

27 - tempo solar verdadeiro: escala de tempo baseada no ângulo horário do centro do Sol.

28 - tempo universal: tempo civil de Greenwich, em Inglaterra (sigla: T.

29 - tempo universal coordenado: escala de tempo difundida pelos sinais horários (sigla internacional: UTC).

Tempo, Cronos ou Saturno para os romanos, é o que sustenta toda possibilidade de nos tornarmos cada vez mais humanos, seja em sua prática, seja em sua maneira de observar e lidar com o mundo. Segundo GONÇALVES e VIEIRA (2010, p.2) “a humanidade não conhece o tempo a partir dos sentidos, mas pode perceber que ele decorre, e por isso consegue compreendê-lo como a segunda dimensão da realidade vivida” Temos, portanto, uma intuição do que seria o Tempo, já que não conseguimos

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senti-lo como coisa palpável, mas apenas denominá-lo pelo o que se é abstrato, tendo sua percepção por outras maneiras...

É no Tempo que somos, independentemente do Lugar. É no e durante o Tempo que o crescimento reside, assim como as perdas. É em Tempo que nos descobrimos quando lidamos diretamente com obstáculos. Tempo é perda de cabelos, aproximação da velhice, é o que nos transforma enquanto seres em contínua experiência. De ir, de continuar, de voltar, de momentos de desistências, de persistir, de obter, de viver, pois. É o Tempo que resiste e é ele também que também agride ferozmente os nossos ossos.

É através do Tempo que corroemos fatos históricos, guardados pelos segredos da morte. O Tempo sempre lança olhos ao passado e de como encaramos o ato de escavar nossa própria história para nos redescobrimos. Revemos os ossos antepassados, a história encoberta, as cidades que se perpetuam abaixo do real que é o Tempo hoje. O Tempo também nos cobra responsabilidade e maturidade. Os ossos também se baseiam horas de preocupação, labuta, atenção. O osso é o Tempo que sustenta.

Deste modo, apoio-me na primeira parte desta pesquisa sobre o que foi resgatado, mas também aquilo que impulsionou teoricamente este trabalho. Olharemos para trás num percurso que busca se embasar no passado para se fazer presente. Neste caminho, descobriremos a Memória, outra divindade, musa da recordação, do talhar o que se está subjacente, do que ainda é convencional, do começo. É no estudo sobre memória que veremos as conexões dos tempos passado e presente, por ora desconexos propositalmente. O passado, portanto, a memória, e inevitavelmente o Tempo servem este trabalho como armazenamentos de futuro, mas resgatando laços que os unam antes de um possível esquecimento acometer essa estória.

Aproximaremos-nos, desta vez, de aspectos teóricos e também de indícios da velhice e desencadeamentos ou princípios do esquecimento acometidos pela doença de Alzheimer. Veremos também o estudo acerca da obra Cadeira de Balanço/Canção de

Ninar, de Samuel Beckett, o passado histórico e criativo deste dramaturgo e, finalmente, o

início se dá pelo fim de uma longa jornada2, do retrato senil do Avô acometido pela

doença e suas restrições através dos avanços que o faz voltar ao passado, mais uma vez, retribuindo aos presentes fluxos de inventividades que são quase impossíveis se não fosse através da Arte. Os limites impostos pelo Tempo representam não só o esforço, a dor e a rigidez de um corpo, mas abrem caminhos para enxergar além da frustração, do

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cansaço, do cuidado e do reconhecimento de que não somos duráveis. Time may change

me/ But I can't trace time3

Francisco de Goya - “Saturno devorando um filho” - 1819 - 1823

3 Letra da música Changes, de David Bowie. Tradução nossa para “O tempo pode me mudar, mas eu não

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1 PRELÚDIO: UMA MEMÓRIA ANTES DA MEMÓRIA

Só ao me reviver é que vou viver. Mas como me reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se

fosse criar o que aconteceu? (Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H)

Foi perto da água e da serra que vim. Minha terra salgada de suores outros, lá de longe e de cima. Falo de forma turva, imagem nebulosa, como se as brumas do passado me fizessem clarear, aos poucos a uma história que tento imaginar numa folha em branco. Desenho nesta folha os nordestinos que pousaram no pé da montanha4 e fizeram

sua morada. Mas foi embaixo, no sudeste paulista que compreendi a urgência de emancipação e de ser água fugidia. Mas para isso, preciso devolver à terra ontológica uma invenção de um passado que precisa ser criativo de alguma forma. Se tenho o desejo de falar sobre memória, é por que dessas águas sou e me retomo, como mulher, artista e pensadora no fazer artístico deste nosso Brasil atual.

Águas de memória. Encontro nessa matéria lúbrica correlações com as memórias que escorrem. A memória é a própria substância das águas. Forma e matéria. Água sempre foi presente, hoje, saudade. Água do mar que percorre pela maresia que inundava as casas. Cheiro de peixe. Voltar da escola era isso: passar pelo mercado municipal e sentir a fome me estuprar as tripas. Duas quadras do mar. Casa dos avós maternos. O mar foi minha nutrição e me é saudade. Há, para quem mora próximo das águas marítimas um cheiro específico, como se a areia fosse capaz de se transformar em louça e em todos os lugares tocáveis tivessem resquícios de pó salgado. Há de se fechar as janelas ou colocar lençóis grossos quando se sai de casa nas férias, caso contrário os aparelhos eletrônicos começam a ser inúteis antes da hora. Umidade, frescor sempre. Hoje, passado. Mas a viço existe e me toca quando revejo através da pele essa sensação que o vento do mar me traz. Às vezes lembro-me do mar em Campinas, mas isso depende muito do vento. Um vento do interior nunca é um vento de praia, mas às vezes me engano. Foi um vento que pareceu de mar e não foi...

Apresento dois lugares5 que vou e volto pela lembrança compartilhada de meu avô

e também de minha avó, senhores esses que farão parte de minha trajetória escrita e

4 Cubatão significa sopé da montanha. É nessa cidade que ainda habitam meus avós e grande parte da

família. Local que cresci e permaneci até os dezessete anos de idade.

5 A esse respeito, o geógrafo Milton Santos descreve:A territorialidade é, igualmente, transindividualidade,

e a compartimentação da interação humana no espaço (Sanguin, 1977, p. 53; C. Raffestin,1980, p. 146; Soja, 1971) é tanto um aspecto da territorialidade como da transindividualidade.” (2006, p.215).

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também prática. De cima vieram e se hospedam na terra sudeste, São Paulo, Cubatão. Mas antes houve:

Nordeste: O pó da estrada, as crianças que pediam moedas na beira do seco. Imagino como era seu caminhão. Meu avô era caminhoneiro e segue nordestino em todos os lugares que passa. Foi nordestino em Brasília quando serviu o exército. Foi nordestino quando decidiu morar em Cubatão e ainda permanece sendo nordestino nesse lugar. Foi nordestino quando foi a Alagoas e descobriu o amor por Vó, vestida com uma gola vermelha, diz ele6.

Os nomes de meu avô são de fora para dentro: caminhoneiro, Cordeiro etc.

Os nomes de Vó são de dentro para fora. Mulher, Mãe, Vó. Ela quem dá de tudo, até demais. Vô sempre esteve fora e por fora, viajando o Brasil de norte a sul, foi ao Paraguai várias vezes. Lembro que havia na sala uma coleção de moedas estrangeiras e antigas, com desenhos diferentes dos quais já havia visto. Tinha também um pote com cruzeiros ou cruzados, não lembro bem. Lembro-me das cores e dos tamanhos. Dentro da carteira de minha avó havia um dólar. Deixava lá para nada, só por deixar. Meus avós nunca saíram do Brasil, são permanentes na Baixada Santista, movem-se apenas pelas proximidades. Vó teve dezenove irmãos, hoje quase todos mortos. Alguns vieram para o Sudeste. Vó os visitava frequentemente. Morreu um tio-avô há dois anos. Sobram por aqui uma tia-avó caduca e outra quase bem. Mas por que lhes digo isso?

Lembrei. Disse isso por que meu avô, nordestino, sempre foi um estrangeiro dentro de casa. Primeiro por que não era paulista e conserva o sotaque característico de um pernambucano brejeiro. Vô é branco branquíssimo, mais branco que minha Vó. Um segredo: Vó tem por apelido Nega, dona Nega. Ninguém sabe seu nome e eu só aprendi o nome do RG quando finalmente aprendi a ler. O segredo maior era o seu nome. Mas voltemos. Vô foi nordestino por onde passou. Em Brasília, quando Brasília nem era Brasília meu avô estava lá, com um monte de nordestino construindo a futura capital do país. Lá ele foi cadete por um tempo antes de cairmos na ditadura. Assim ele me disse:

Eu gosto de missa. Me deixa informado por um par de coisa. Graças a Deus (tira o boné) eu estudei um pouquinho. Eu comecei da matina, da matina, do começo até o fim. Eu estudei num

6 Com referência ao que foi colocado, o sociólogo Stuart Hall diz: “A identidade é realmente algo formado,

ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada” (HALL,1999, p.38)

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bocado de lugar. Em Minas, Brasília. A gente tinha um quartel católico. Era tudo intermédio de militar. Quando eles olhavam para nós a gente entendia e já ia.

Cubatão: Chuva dentro de casa que escorria pela parede, bolor. Uma imagem de Nossa Senhora Não Sei O Quê. Cd’s do Pe. Marcelo Rossi. Uma vitrola antiga, disco para crianças. Mesa cumprida cheia de papéis, contas a pagar. Retrato dos netos. Um terço. Noite. O velho cambaleia. Erra o buraco da fechadura. Desiste. Olha para os lados na calçada. Vejo tudo por detrás da cortina, dentro de casa. A porta era inteira de vidro, daquelas portas que viram duas, como se fossem janelas adultas, do chão ao teto.

Acho que ele não entra, não sei. Me esqueci desta parte. Ele fede a álcool, conversa com o cachorro. Fala sobre Sebastiana.

- Vó, quem é Sebastiana? - A mãe dele.

O cachorro tem a língua suada para fora. Pinga, pinga. O velho abraça o cachorro e em seguida puxa sua orelha.

- O Zé, para com isso.

Invento: vou ao quarto, dos fundos. Lá me escondo. Milhões de livros antigos, daqueles que se compravam na rua. Eram dos meus tios e de minha mãe. Leio. Releio. Não entendo nada. Prefiro as imagens, como sempre. Gosto das cores. Não faço barulho, mas também não posso apagar a luz. Tenho medo de escuro. Percebo que o Velho se aproxima. Senti pelo cheiro. Será que me escondo debaixo da cama? Não consigo. A cama é muito baixa para isso. Vou fingir que não é comigo. Meu Deus, o que eu faço? Fico bem quietinha. Percebo que ele para na porta, tenta enxergar algo, não consegue, passa adiante. Ufa! Descontraio a barriga. Dessa vez ele não veio falar comigo. Que horror, que bafo. Odeio esse bafo. Por que ele bebe tanto?

A chuva corre em mim Esta que era, fui brasa evaporada sob as gotas do medo7

7 Laís Corrêa de Araújo,Autorretrato.

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Eu e Seu Zé somos finalmente neta e avô. Mas hoje serei adulta por um tempo enquanto esse menino grande descobre pela primeira vez o banheiro de sua própria casa. Vou cuidar desse memória que pela metade inventa e enquanto a outra se apaga. Meu tipo de afeto será pela palavra que escrevo e pela dança que almejo. Vou ser um tipo de menina, ‘mais grande’, mais menina ainda, com os doze ou treze, ele não se lembra, mesmo eu passando atualmente na casa dos vinte. Quem se aproxima agora sabe de sua mansidão, de olhar gratuitamente ao horizonte. Onde ele está?

-Vô, tá tudo bem?

-Eu tô bem, é você que tá me olhando.

Ou como diz Nietzche “É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem.” O que lhes digo hoje é minha imagem sobre meu avô, não o que meu avô é. São as minhas memórias sobre ele. Recordância de mim. De mim mesma. Da imagem que tenho hoje do meu avô. Tirar da memória o meu avô do passado, do que ele era antes. Julgava ser antes. Nunca mais. Nunca mais no presente, outro Zé do futuro. Zé Porvir. Seu Zé. Essa é a imagem que construí a partir do que me foi refletido a vida inteira. Lá no fundo da minha recordação mora um ancião e com ele tento rastrear suas pegadas, as memórias dos outros também confluem, pessoas que participaram dos passados com ele, acompanharam sua trajetória filhos, avó, tios, primos. Escuto a todos e com todos os pincéis vamos desenhando uma imagem, mesmo que borrada, do passado. Vamos ao que ele me diz. Começar de novo. Ele me conta sua história encantada pelo delírio. Recomeçar a criar outras memórias do passado.

Quase me esqueço:

Zé Cordeiro de Deus, acompanhado às vezes de – Aquele que tira o pecado do mundo, Vô ou Velho.

Vem o nobre pernambucano. Nobre das índias, das caboclas, dos reminiscentes do Sertão. Me esqueci o nome. Sertânia8. Sertânia, a memória me diz. Me lembrei agora.

Sabia que era um nome seco. Sertânia9. Infância. Lembra da infância, da secura, dos

8 Cidade localizada microrregião do Sertão do Moxotó, interior de Pernambuco.

9 Segundo Lowenthal (1975), o passado é um outro país... Digamos que o passado é um outro lugar, ou,

ainda melhor, num outro lugar. No lugar novo, o passado não está; é mister encarar o futuro: perplexidade primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação. Para os migrantes, a memória é inútil. Trazem consigo todo um cabedal de lembranças e experiências criado em função de outro meio, e que de pouco lhes serve para a luta cotidiana. Precisam criar uma terceira via de entendimento da cidade. Suas experiências vividas ficaram para trás e nova residência obriga a novas experiências. Trata-se de um embate entre o tempo da ação e o tempo da memória. Obrigados a esquecer, seu discurso é menos

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trabalhos em Brasília, das viagens, das putas, do amor macabro da posse. Fala pouco da minha avó. Às vezes a desconhece.

Ela, vó, por sua vez será chamada apenas de Vó. Mas dentro da Vó existe mãe e mulher, daquela que se excede na educação e doação ao homem da casa. Algumas coisas mudaram desde então. Seu homem é um menino. Há hoje em dia um controle sorrateiro em comparação ao que era antes. Vó não é mais companheira, é também babá. O nome que dou a minha vó de Vó é um nome mais leve, brando, mera tentativa de criar um nome Xamã, curto, de compreensão instantânea. Vó é a grande representante da mãe em silêncio, menina fica quieta sou avô tá falando. Vó é uma mulher em experiência. Vó já passou por tudo: Oxum, Yemanjá, Nanã. Outra reminiscente do Sertão, outro estado: Alagoas, mais feio e pobre, mais atrasado – minha vó disse uma vez que Alagoas era mais atrasado que Pernambuco, essa é a minha referência. Ela disse que não tinha certidão de nascimento porque ninguém anotava as horas. Jamais saberei seu ascendente. E além disso, a data de aniversário no RG consta a data errada, de um ano antes. Sendo assim temos: Sol em Leão, Lua em Peixes. Plutão em quase conjunção com Sol. Não sei, não posso dizer, não tenho a hora, só tenho a data. Vó do RG, portanto:

Leonina com Lua em Peixes.

Quase um caminho de artista, reluzente. Tonto, fosco como a visão de um peixe. Com certeza e fé absoluta de um artista. Quase a promessa ou herança de desembocar, lá na frente, uma tentativa de artista, nascida no ano de 1992, essa que transcreve essa história. Mas o mapa da vó verdadeiro, vamos a esse mapa. Relembre. “Ela disse que não tinha certidão de nascimento por que ninguém anotava as horas. Jamais saberei seu ascendente. E, além disso, a data de aniversário no RG consta a data errada, um ano antes [...]”. (Página acima). Assim temos:

Vó verdadeira. Aquela que me criou de casa. Eu fugia do castigo da mãe para o conforto da Vó ou a minha Salvação. Sempre doce, sempre bolinho de chuva. Sempre

contaminado pelo passado e pela rotina. Cabe-lhes o privilégio de não utilizar de maneira pragmática e passiva o prático-inerte (vindo de outros lugares) de que são portadores. (SANTOS, 2006, p. 223)

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Vó. Sempre aquela que me deixava mexer no cabelo, mexer nos cremes. A vaidade começou dai. Leonina. Jamais saberei o ascendente. Eu sou leonina. Vó: leonina com lua em Câncer.

Minha vó, portanto, é a rainha do drama e da memória. Mnemósine, a mãe das Musas. Deusa da invocação da memória e de inspiração. Ela se lembra de tudo, corrige o velho, relembra junto com ele. Vó é um corretor automático. “Não, não foi bem assim. Não. Era fulano não sicrano. Ele já morreu, você não se lembra? Meu nome é..., Bella, seu avô se esqueceu de mim outra vez.” Vó é uma Xamã10 de Memória11.”

Arcano XVIII

10 “O dever da memória consiste essencialmente em dever de não esquecer” (RICOEUR, 2007, p. 48). 11 Sobre este trecho de recordação, há uma passagem extraída do livro A memória, a história, o

esquecimento, de Paul Ricouer, que condiz perfeitamente, citando também o pensamento de Henri

Bergson: “A recordação da lembrança pertence a uma imensa família de fatos psíquicos: ‘Quando rememoramos fatos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos um discurso, quando acompanhamos o pensamento de outrem e quando nos escutamos pensar a nós mesmos, enfim quando um sistema complexo de representações ocupa nossa inteligência, sentimos que podemos tomar duas atitudes diferentes, uma de tensão e a outra de relaxamento, que se distinguem principalmente pelo fato de que o sentimento do esforço está presente numa e ausente na outra’ (op.cit., p. 930).

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Tanto a Lua quanto a casa 4 dentro da astrologia significa a figura da mãe, além de ser nosso arquétipo feminino dentro de um mapa astral. Logo, quando nos perguntam “qual é a sua Lua”, a pessoa quer saber como de fato foi passado o amor maternal e como se enxerga a mãe, ou seja, como se dá primeiro contato feminino. A Lua é, portanto, nossa primeira intimidade, o olhar da criança perplexa pela beleza da mãe, o sorriso e o choro. É a nossa familiaridade. E como tudo muda o tempo todo, nossa intimidade está fadada a constantes mudanças, o que é muito positivo. Novos membros da família chegam, outros se vão. Inicia-se uma fase, termina-se outra. Todas as mudanças e inconstâncias da vida. O ciclo voluptuoso das marés que modificam-se primeiramente pela mudança da lua lá no alto. Da luz indivisível que, aos poucos se transborda em Lua Cheia. Aqui na Terra chove, a maré muda, as plantas crescem, as mulheres ovulam. Tudo num grande círculo lunar. Do escuro à boa fortuna. A Lua é o relógio do mundo.

1.1 Memória e Imagem

A imaginação não é como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassem a realidade, que

cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. Um homem é um

homem na proporção em que é um super-homem. Deve-se definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a ultrapassar a humana condição. (BACHELARD, 1997, p. 17-18).

Por invenção damos vida até a nossa memória. Alimentamo-la com experiência, fluxo depois de fluxo, do conhecimento ao esquecimento. Se a memória existe e pulsa é por que tenta recriar o passado no momento presente. Reorganizamo-nos presentemente como éramos no passado. O corpo é um ato e como matéria de memória, estamos ainda contidos nas matérias orgânicas que desenharam o percurso de uma dada história. Assim como aqueles homens que, ao observarem os animais, conseguiram através da pigmentação, colocar um pedaço da história numa caverna. Esses homens exprimiram não só os relatos cotidianos, mas o envolvimento com ambientes que os circundaram.

Da terra, os homens do passado retiraram as mais diversas matérias-primas do discurso necessário para nos transmitir uma história. Os pólens e a madeira queimada dos troncos. Transformação. Pó que misturado com o leite das plantas ou a gordura vegetal se transformava em tinta. Sangue animal também era cor quando se enfatizava a presença do vermelho. Mas por quê tudo isso, essa descoberta material, orgânica e de

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transformação do ambiente? O que levou o homem a retratar o seu entorno e a sua vivência numa pedra? A necessidade de nos contar o que viram e devido a um desejo ou tentativa de nos contar uma história, as cavernas pré-históricas foram as primeiras narrativas do mundo.

Os bisões pintados na Caverna de Lascaux, por exemplo, são memórias. Não são os bichos, os bisões. Não há a materialidade do bisão bicho em carne e osso. Aquele animal não faz parte enquanto materialidade de outro material que é próprio de uma parede.

“Bisão”. Imagem retirada do site http://archeologie.culture.fr/lascaux/

Tomemos um exemplo, diz Aristóteles: a figura pintada de um animal. Pode-se fazer uma dupla leitura desse quadro: considerá-lo quer em si mesmo, como simples desenho pintado num suporte, quer como uma

eikon (‘uma cópia’, dizem nossos dois tradutores). É possível, porque a

inscrição consiste nas duas coisas ao mesmo tempo: é ela mesma e a representação de outra coisa (allou phantasma); aqui, o vocabulário de Aristóteles é preciso: ele reserva o termo phantasma à inscrição enquanto ela mesma, e o termo eikon para a referência a outra coisa que não a inscrição. (RICOEUR, 2007, p, 36).

O bisão desenhado é memória, uma imagem que crio através do que é experienciado. Para Bergson “a própria imagem, considerada em si, era necessariamente, no início, aquilo que será para sempre” (BERGSON apud RICOEUR, p. 44, 2007). Uma memória que imagina, de modo que ao evocar o passado e pelas imagens que passam pelo caminho da cabeça e os sentidos do corpo, abstraem o tempo presente e se

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colocam, mais uma vez como presentificação ou invenção do passado, o qual será posto em paredes o que foi e o que é sua memória. Logo, o homem se lembra e cria a partir da imagem que se tem do passado. Registra, portanto, um outro tipo de matéria, mais criativa, ao recriar o que se vive e destacar de modo diferenciado a realidade que o circunda e que lhe é habitual.

Num outro registro, evoco as estrelas de um mundo distante de Van Gogh. Ele não desenhou uma estrela, mas a imagem que ele tem da estrela. O artista desenha, dá o nome do quadro de A Noite Estrelada. Van Gogh parte, portanto, do imaginar e desse imaginar nasce a tentativa de trazer a uma realidade mais palpável, mesmo que seja um quadro, de aproximação das estrelas.

Van Gogh – “A Noite Estrelada” - 1889.

A solução é hábil, mas comporta suas próprias dificuldades: a metáfora da impressão, de que a da inscrição pretende ser uma variante, recorre ao ‘movimento’ (kinesis), do qual resulta a impressão; esse movimento remete, por sua vez, a uma causa exterior (alguém, alguma coisa cunhou a impressão), ao passo que a dupla leitura da pintura, da inscrição, implica um desdobramento interno à imagem mental, diríamos hoje uma intencionalidade dupla. Parece-me que essa nova dificuldade resulta da concorrência entre os dois modelos, da impressão e da inscrição. (Ibidem, p, 37).

As imagens ou impressões do passado são, neste caso, o impulso para a concretização em movimento, ou melhor, uma continuidade do que é mental ou até mesmo virtual, para a materialidade atual no momento em que se compõe. Em outras

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palavras, a realidade é a continuidade da imaginação, se apoiando em ferramentas que destacam o passado com a vividez do presente. No entanto, assim como o quadro destaca, alguns pontos – cores, intensidades, nuances - são possibilidades de uma releitura e até mesmo distorções do que foi visto e vivenciado.

Busco imaginar e rever as imagens do passado, relembrar o que se foi - e se me lembro mais uma vez é por que a imagem permanece, quer ser tocada. Enxergo isso como um pedido de liberdade. Quando se exige um processo de construir sentido e nomear as coisas latentes e pujantes, numa tentativa de se fazer consciente a invenção criativa, denominamos imaginação. (LEONARDELLI, 2008, p. 138.)

A memória parte, portanto, como propulsora no processo imaginativo, de natureza ficcional e finalmente como criatividade exposta como um outro tipo de materialidade, uma memória com fins até mesmo distantes do que foi relembrado e desta forma, a criação em si se transforma num objeto que pode ser indireto e subjetivo, assim como um olhar mais voltado a veracidade dos fatos com uma perspectiva mais distanciada, como no caso dos historiadores, que observam a história humana não por um viés individual, mas sim por uma contação de história através do coletivo. Não obstante, o desejo de contar uma história, ou seja, de compartilhar o que foi visto e até mesmo inventado não somente forma o que somos, como seres humanos, mas nos lembra constantemente a importância do que guardamos enquanto experiência a nossa formação de identidade. Saber sobre a importância do passado e como isso nos chega até hoje pode tanto nos impulsionar a recriar nossa maneira de ver o mundo, assim como nos alertar sobre o que não se pode revigorar ou abastecer onde vivemos, vide o escoamento econômico, ecológico, político e das atrocidades mundiais como a maldade e descaso, como visto de maneira ampla pela 2ª Guerra Mundial e a violência contra as minorias que infelizmente ainda presenciamos até hoje, além de descasos sobre a própria condição humana. O que nos falta é história? Um olhar aprofundado do que somos hoje? Das mudanças e atualizações de costumes, adaptações, recriações e uma possível imaginação de um claro futuro.

Não obstante, tanto na história e na arte arqueológica a qual devemos nossa narrativa, sublinho a importância de que o passado ainda nos move de maneira atualizada, com outras materialidades e necessidades. Ao se tratar do que nos é atual, passamos constantemente por fases de novas configurações atualizadas, modernizações compactas, aparentemente efêmeras e de alta propagação instantânea.

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Adentro tantas memórias impermanentes e repletas de uma tentativa de se materializar o presente através de fotografias ou meios de informação das redes sociais virtuais, qual é a história que deixaremos por aqui? Ou, qual é a necessidade de nos deixarmos modificar por esse universo tão distante de construção e obediência aos modelos estabelecidos pelos poucos que interferem na vida da maioria? Enquanto força criacional e de permanência, qual é a nossa bagagem, nossa matéria enquanto construção poética e de existência? Não é uma pergunta que necessariamente contém uma resposta...

Finalmente, tentamos deslocar ou nos adaptarmos ao que o mundo nos sugere, com caminhos para um deslumbramento quando possível. Somos uma caverna de Lascaux, reunindo o deslocamento do que vimos e re-imaginamos, redesenhando o tempo todo o que vimos e falamos, criando novas abordagens do que presenciamos e esse presente já é passado. Numa esfera mais individual, como resgatamos o passado ou o que nos revigora? Como recordar outra vez? Ousa-se realinhar as formas, os tamanhos, o domínio ou não da palavra dita ou não foi assim que foi dito? O que relembramos e destruímos, mudamos a reorganização das palavras ou ocultamos, invenções de uma nova tonalidade da memória? Relembrar pela repetição dessa passagem do passado para olharmos mais uma vez ao que éramos e vemos a nossa percepção do mundo. Ser ao mesmo tempo um trânsito que reúne o passado e o presente numa tentativa de ação ou apenas uma memória passiva, ligeira, de passagem. Desse lugar de transitoriedades opto por trabalhar com a memória que me resta ou que fica, que permanece, seja pela minha história, seja por uma tentativa de estória, de trazer a tona uma materialidade atual do que presenciei no passado. No caso, esta pesquisa parte de um olhar íntimo para dentro de casa e da degradação da memória do meu avô que vê sua própria história por um viés mais ficcional e de releituras constantes e inventivas. No entanto, o fato dele inventar a partir de sua própria bagagem pessoal já não é uma nova criação ou até mesmo uma outra realidade, encarando e permanecendo enquanto outra realidade que vem da própria doença de Alzheimer?

Por imaginar, já não existimos, como quando o homem imaginou uma possível ida a Lua? Talvez seja o primeiro passo. Mas a doença de Alzheimer, não possui uma finalidade criativa de concretizações. É um caminho de retornos sem fim à mesma pergunta - indagação de limbo que é o esquecimento. Como narrativa, não há uma qualidade de ápice ou até mesmo de continuidade. A própria dúvida é a resposta e provavelmente a dúvida que acompanha o depois. Por quantas e quantas vezes será

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necessário repetir para que finalmente meu avô se lembre que o lugar que ele pergunta estar é a sua própria casa? Talvez meu avô se perdeu no caminho ao presente e do próprio lar. Se for assim, sua flor sempre fica na semente12, retornando ao processo inicial

de imaginação. Não se cria mais no atual, mas projeta o passado no que conhecemos hoje, como flutuações temporais entre o que foi e o que é. Assim como o homem da Lua que imaginou pisá-la, meu avô vai de uma estrela a outra, mortas, tias, irmãs, parentes e o que vemos aqui da Terra, do que nos é dado como terreno, nada mais é que um reflexo daquelas estrelas, mortas, tias, irmãs, parentes, lugares desconhecidos. A constelação que meu avô desenha em Terra são como personagens: Eu sou Corrinha, estrela-tia quase morta, minha mãe é uma tia antiga de nome esquisito, minha avó às vezes é chamada de mãe e por aí vai. Os meninos não são mais os meninos, meu avô os desconhece. Já são grandes os meninos e já tiveram outros meninos, mas a imagem de meus tios, filhos do Vô não batem com a descrição que ele entende por meninos. Os

meninos são grandes, logo, não são mais os meninos. Quem são esses aí? Como um

curto-circuito de imagens.

Tempo ___________________________________________>

Linha cronológica dos fatos e acontecimentos da vida

Memórias

<_________________________________________________

Para Bergson, existe uma diferença entre lembrança e percepção. O último é um “resultado de uma interação de ambiente com o sistema nervoso” (BOSI, 2004, p. 46). Ou seja, como o corpo atual lida com o presente, com o meio que pode atravessá-lo e conectá-lo com o que se vive no tempo real. A lembrança, por sua vez, são os momentos que através da percepção, uma memória é resgatada, submergida, momentos de “lembrei de”, gancho que nos leva ao passado, ultrapassando a cronologia progressista das horas.

Sous: baixo Venis: vir

Lembrança: Souvenir.

Lembrança: Vir de baixo.

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O que percebo em mim quando vejo as imagens do presente ou evoco as do passado? Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está

mediada pela imagem, sempre presente, do meu corpo. O sentimento difuso da própria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. Bergson observa, também, que esse presente contínuo se manifesta, na maioria das vezes, por movimentos que definem ações e reações do corpo sobre o seu ambiente. Está estabelecido, desse modo, o nexo entre imagem do corpo e ação. (BOSI, 2004, p. 44)

A “lembrança pura” é, portanto, a percepção e a sensação que se transforma em imagens, onde o passado se mescla no presente. Meu corpo, desse modo, se atualiza no momento vivido, construindo a partir de si todas as trajetórias imagéticas que presenciei. É quando a percepção se torna consciência. Portanto, a memória presente possui uma relação direta com o passado, de modo que pode interferir na atualidade da representação. O passado é capaz de explodir vulcanicamente num corpo de hoje, deslocando o espaço do passado e do presente e, desta forma, tornar-se consciente. As forças tectônicas que eclodem na atualidade, transformam o magma adormecido e profundo, subjetivo, em lava que se extrapola. O corpo necessita disso, desse transformar fogo em ilhas, deixar-se invadir os espaços e tempos alheios, ao aquecer lembranças, cozinha-se a carne. A partir disso, teço o desafio: materializar a memória, mergulhar no passado que sou eu mesma, atual.

É a percepção das imagens que determina os processos da imaginação. Para eles, vemos as coisas primeiro, imaginamo-las depois; combinamos, pela imaginação, fragmentos do real percebido, lembranças do real vivido, mas não poderíamos atingir o domínio de uma imaginação fundamentalmente criadora. Para combinar ricamente, é mister ter visto muito. O conselho de bem ver, que forma o fundo da cultura realista, domina sem dificuldade o nosso paradoxal conselho de bem sonhar, de sonhar permanecendo fiel ao onirismo dos arquétipos que estão enraizados no inconsciente humano. (BACHELARD, 2001, p. 2)

Vou retomar-me, ser a lembrança do que ainda é vivo entre memória-presente. Essa pelo menos é a premissa. O modo como capturo o que me foi atravessado pelo olhar, pelas experiências que me foram contadas e como meu corpo reage, no momento de criação, a esses momentos que atravessam de maneira cada vez mais atual, partindo do pressuposto que o corpo presente está revisitando pela imaginação e pela inventividade uma atualidade em cena. A matéria em lembrança que procuro busca-se pelo movimento contínuo no espaço em cena, presente. Imagem em ação. Vou desenhar este quadro ao vivo e a cores. Vou fazer uma dança com as cordas que tocam meu peito: “Recordar: Do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração” (GALEANO, p. 11, 2015).

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A imagem que retiro da memória, lembrança, tudo faz parte da imaginação. Casos serão lembrados, mesmo que a memória seja de mentira. O que é memória, afinal? Posso inventar uma mentira e dizer que é verdade? Como descobrirão os véus do ilusionismo da representação? O que meu avô diz é verdade? É mentira? Não sei. Não quero agora saber se é imaginação ou realidade. Sé é mentira ou realidade. Não quero esses nomes, não quero saber. Vou esquecer de novo. Ou tudo o que digo é mentira? É invenção? Fabulação? Prefiro à mentira, o esquecimento, a fantasia, o devaneio. Qual é a legitimidade da representação? O artista reinventa, pois parte sempre de alguma atualidade ou algo que já lhe foi atual. Logo, ao imaginar, o criar dá em cena outra realidade, uma nova reconfiguração do passado.

Paul Ricoeur em seu livro A memória, a história, o esquecimento (Editora UNICAMP, 2007, p. 63) traz à tona uma parte sobre o estudo da fenomenologia tratada pelo matemático Edmund Husserl. Este, levanta que a tentativa de presentificação do passado se dá através de memórias indiretas: fotografias, quadros, estátuas, retratos, os quais representam o passado no tempo presente, como se as imagens designassem algo ausente ou irreal. Os bisões da arte rupestre e as estrelas de “Noite Estrelada” de Van Gogh, portanto, representam.

Eis as imagens exteriores, meu corpo, e finalmente as modificações causadas por meu corpo às imagens que o cercam. Percebo bem de que maneira as imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. E vejo também de que maneira este corpo influi sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe. Mas de que modo meu corpo em geral, meu sistema nervoso em particular engendrariam toda a minha representação do universo ou parte dela? Pode dizer que meu corpo é matéria ou que ele é imagem, pouco importa a palavra. Se é matéria, ele faz parte do mundo material, e o mundo material, consequentemente, existe em torno dele e fora dele. Se é imagem, essa imagem só poderá oferecer o que se tiver posto nela, e já que ela é, por hipótese, a imagem de meu corpo apenas, seria absurdo querer extrair daí a imagem de todo o universo. Meu corpo, objeto destinado a mover objetos, é, portanto, um centro de ação; ele não poderia fazer nascer uma representação. (BERGSON, 1999, p.14).

Parece-me correto apontar que a imaginação é, portanto, uma tentativa de fazer no presente uma memória que se atualiza, mas que mantém ao mesmo tempo uma

ancestralidade no quesito de manter pura uma tradição ou núcleo do que é revisitado,

como se pudéssemos adicionar um zoom no passado, com os objetos, sensações e percepções que atravessam o corpo no momento atual, no hoje, para começar outra vez, relembrar, imaginar o passado, como se brincássemos de Saturno, Senhor do Tempo, e

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pudéssemos imaginar tudo, reinventar a nossa própria memória. “Faça-se a luz” e, como crianças, pudéssemos inventar com os materiais dispostos essa memória inventiva, primeira, mas com coisas que já existem. Isso no leva primordialmente em acreditar no que estamos a construir e nos jogos de representação. Neste caso específico da pesquisa enquanto atriz posso representar as percepções que já são minhas? É necessário que eu revisite, mas tenha no presente um olhar já passado.

No entanto, o que é memória? Não podemos tocá-la porque não tem fisicalidade e, embora nossas experiências estejam armazenadas lá, elas nem sempre são acessíveis. A memória não é um computador com arquivos ou um livro para examinar a vontade; é algo mais complicado, vivo e que muda de forma, já que somos capazes de manipular de acordo com o estado atual da nossa mente. Além disso, algumas lembranças são vagas com o tempo e caem no abismo sem fundo do esquecimento, e outras lembranças deixam vestígios indestrutíveis e por meio dos quais podem ser lembrados enquanto durar a vida (ANTROPOVA, p.15, 2011).

Se existe memória é por que ela se tornou um hábito através da repetição. Pela repetição se memoriza, pelo hábito, você se acostuma. Conforme Antropova (2011), “a memória natural é aquela que se é implantada em nossas mentes, que nasce simultaneamente com o pensamento. A memória artificial é a memória reforçada ou confirmada pelo treinamento”. Para Bergson, existem dois tipos de memória: a memória –

hábito e a imagem-lembrança. A primeira trata sobre mecanismos de memorização. Pela

repetição do que vemos, aprendemos a nos comunicar, a escrever, a nos tornarmos seres sociáveis. Na tentativa de fixar algo que temos que aprender ou como caminho de socialização, temos que nos adaptar a repetições ou continuidades do que nos é imposto: cultura. Se somos brasileiros, temos que basicamente nos comunicarmos através do português, pois é nossa língua imposta, imposição da mãe-nação. Ou seja, quando se nasce, há um adestramento cultural, um direcionamento de socialização que nos molda a partir de elementos já existentes antes mesmo de existirmos. Eu não poderia nascer no Brasil e começar a falar em alemão, salvo se um dos meus pais ou pessoas ao redor se comunicassem desta forma e, pela repetição do ouvir eu adquirisse essa outra língua nos meus padrões. Ou seja, voltamos à repetição, voltamos na construção de hábito, voltamos. Sempre voltamos para nos lembrar, mas voltamos no hoje, presente, na atualidade. Se o passado retorna, ele funciona como um gancho, numa tentativa do cérebro manter a sua sobrevivência. Se somos memória, somos repetição.

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O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade, o para-raios de sua existência. O hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão dos hábitos, posto que o indivíduo é uma sucessão de indivíduos (uma objetivação da vontade do indivíduo, diria Schopenhauer), o pacto deve ser continuamente renovado, a carta de salvo-conduto atualizada. A criação do mundo não foi um evento único e primordial, é um acontecimento que se repete a cada dia. O hábito, então, é um termo genérico para os incontáveis compromissos travados entre incontáveis sujeitos que constituem o indivíduo e seus incontáveis correspondentes (BECKETT apud AUAD, 2010, p. 97).

Já o segundo tipo de memória, denominada imagem-lembrança, é o total oposto de uma memória-hábito. A imagem “traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida” (BOSI, 2004, p. 49). A imagem-lembrança se assemelha ao que passamos num sonho, produto de nossa inconsciência. “O inconsciente não se civiliza: apanha o castiçal para descer ao porão.” (BACHELARD, 1993). Portanto, a imagem-lembrança é o que existe nos recantos da mente e que transbordam via imaginação para, no caso desta pesquisa, se tornar matéria. “A matéria é o inconsciente da forma.” (BACHELARD, 1997). Tenta-se extravasar de alguma FORMA, de algum motivo específico sem que consigamos dar conta de seu significado inconsciente. A imagem-lembrança é quase como um impulso antes de nascerem as primeiras palavras e como norma de educação e socialização. Se a lembrança é inconsciente, estamos num devaneio particular de criação, de tentar poeticamente ter uma forma ativa e de quebra do que já se foi massacrado pela memória-hábito. Quase como uma de retroalimentação de um espaço vazio, porém, com inúmeros nutrientes que precisam ser saboreados, mesmo que no escuro.

A imagem-lembrança é invenção, quebra da normatividade e de certa forma, de levar à tona uma fabulação que é íntima. E contar uma história que faz parte do imaginário, do nosso inconsciente, pode correr o risco de se padronizar pelo hábito. Quando a memória já se torna um ritmo de vida e de padronização ela morre, não há espaço para o delírio da inventividade. Em outras palavras, se a memória-hábito reforça as obrigações cotidianas e sociais, a memória-lembrança relembra os fatos que não podem ser repetidos, tornado-se assim de uma memória singular, como se lembrar que um dia já tivemos e perdemos para sempre os dentes de leite.

Um trajeto similar de associar a memória e o inconsciente dos desdobramentos da mesma é visível no método de composição criativa abordada pelos dançarinos da Cia Wuppertal, os quais eram questionados pela coreógrafa e diretora da companhia, Pina Bausch sobre questões relacionadas ao passado, e de que modo os intérpretes poderiam

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colocar suas lembranças em cena e repeti-las até chegarem ao ponto de um possível desmembramento, uma reinvenção, uma desmontagem daquilo que foi vivenciado. Ao repetirem, a dissociação das primeiras abordagens de uma memória pessoal ocorria para então desdobrarem-se de uma maneira mais ampla ao público e que este, pudesse concatenar suas próprias apreensões sobre o que estava sendo visto e trazer suas memórias e imagens pessoais sobre a cena.

Por que os dançarinos de Pina Bausch repetem suas memórias? Para esquecê-las. Para poderem se adaptar ao novo presente e, a partir disso, nascerem outras memórias.

1.2 O início está no meio

Preciso voltar ao começo. Recomeçar. É ai que mora o impulso para criar, como as coisas se entrelaçaram. Beckett já existia quando o devaneio começou a nascer. O esquecimento fazia-se familiar e de modo nefasto, a memória nasce e destrincha-se com outras, mesclando-se, como um emaranhado de imagens do passado.

Quando me vem a memória as obras dramáticas de Samuel Beckett vêm sempre os velhos ranzinzas, esquecidos de Esperando Godot (1952) e Fim de Partida (1958), perfis esses que se encaixam perfeitamente no contexto vivenciado por meu avô, o qual possui a demência de Alzheimer. Uma mulher que fala sozinha o tempo inteiro, Winnie, monólogo que poderia ser diálogo, mas não é, como presente na peça Dias Felizes (1961).

Tais associações aconteceram em meados de 2013, quando iniciei minha monografia intitulada Não resta nada a dançar, realizada na Universidade Estadual de Londrina e orienta pela Prof. Ma. Laura Franchi. Tal investigação abordava a repetição presente no texto Improviso de Ohio, de Samuel Beckett, e tecia uma comparação com o processo de criação instigado pela coreógrafa Pina Bausch na Cia Wuppertal de Dança- Teatro.

Durante o processo de criação de Não resta nada a dançar, o qual unia a elaboração teórica à prática criativa, conforme o número de repetições da partitura corporal aumentava, surgia aos poucos pelas rachaduras da memória, a imagem de meus avós maternos. Os personagens da peça Improviso de Ohio são o Leitor e o Ouvinte, ambos de características físicas idênticas: dois homens com longa cabeleira branca, uma túnica preta em que só é possível ver em pele, as mãos e o rosto. De aparência senil, o

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Leitor lê um livro ao Ouvinte, enquanto este, em determinadas partes do texto, interrompe a leitura do Leitor através de uma batida na mesa, onde este retoma a última frase lida ao Ouvinte, causando tanto neste quanto no espectador a sensação de pesar e angústia em relação aos atos forçosamente lidos e repetidos. Creio que os dessabores causados por lembranças e a constante repetição de falas remeteram-se aos momentos passados com meus avós maternos, meus Leitor e Ouvinte, onde a avó relembrava fatos, enquanto meu avô insistia em relatos que nunca existiram, pedindo sempre a confirmação pela avó, que, pacientemente, remontava memórias fantasiosas ou afunda-se na realidade cotidiana. Tais como as ações dos personagens dos textos, Leitor e Ouvinte, pude perceber a relação de afeto e de rupturas constantes nos diálogos e ações vivenciados pelos meus avós. Na peça, o personagem Leitor lê um livro para o Ouvinte, enquanto este, em certos momentos da narrativa, interrompe o Leitor com uma batida na mesa, sinal de que se deve reler a última frase lida. Eram assuntos ou lembranças que eles se recordavam com dificuldade. Eram os restos de memórias que desencadearam a minha procura por espaços que conduzissem as recordações sutis e a depreciação do tempo no corpo e na memória dos avós.

A memória de nosso núcleo familiar mais próximo [...] foi capaz de acionar nossa imaginação e possibilitar a recordação de imagens, pessoas, acontecimentos, numa exploração de subconsciente que atravessava nosso corpo e tinha o corpo como cerne do processo criativo, permitindo assim recriá-los e torná-los menos abstratos e mais próximos de uma representação sensível. Temos aqui o que Grotowski e Barba chamam de memória corporal. Grotowski afirma que é a partir da memória [...] que o ator, na fase de ensaios, pode criar a tessitura da interpretação, adicionando ao papel escrito o desdobramento exacerbado de sua personalidade, revestindo-a com as fibras de sua vida passada e presente (ATAÍDE, 2012, p. 217).

Apesar de serem doces souvenirs, as nostalgias de infância na casa dos avós, seus diálogos mesclavam-se com a sensação de amargura em que se ambientam no tempo presente: o início das dores intermináveis, o próprio esquecimento, a revisão do passado, o desprezo, os restos deixados por alguns membros da família. A maneira que encontrei ao eleger Beckett para esse estudo propiciou desenvolver, quando ainda estudava sobre a repetição em Improviso de Ohio, impulsos para iniciar uma investigação mais apurada sobre as questões levantadas pelo dramaturgo, tais como a relação dos personagens, os objetos, a invalidez do discurso, entre outros aspectos. Entretanto, foi o tema memória que atravessou o processo criativo de maneira potente, ao abarcar todos os temas acima citados. Pausas no discurso como uma tentativa de resgatar o passado. Ele se esquece ou chora quando sente saudade. “Por que você está chorando?” “Não sei.

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Estou triste.” Há quase uma infantilidade no meu avô, uma tristeza infinita e sem nome. De repente ele se esquece de novo, volta a ver imagens que se mexem na televisão. Pergunta as horas. Nunca pede nada, mas se você oferecer, ele acata. Percebo uma coisa: quando ele está com fome ele começa a trocar as coisas de lugar. Repete uma palavra qualquer (pode ser café, por exemplo). “Você viu que o café aumentou o preço? Você viu a quantidade de café na cara dele? O café tá ali debaixo do caminhão.” Quando ele começar a repetir a comida, ou água, ou banheiro ou qualquer outra palavra é por que ele deseja a palavra em sua concretude, mas deseja sem pedir. Acho que ele se esqueceu talvez como pedir as coisas ou está reaprendendo a pedir. As crianças choram quando querem algo, meu avô, repete.

Nos primeiros anos de vida da criança, a memória é uma das funções psíquicas centrais, ao redor da qual as demais se organizam. O pensamento da criança pequena é, então, fortemente determinado pela sua memória. Um dos exemplos citados por Vygotsky refere-se ao desenvolvimento do conceito nas crianças. Ao lhe perguntarem ‘o que é um caracol?’ ela responde que ‘é pequeno/escorregadio e pode ser esmagado com o pé’; se pergunta sobre ‘o que é uma avó’, ela responde que ‘tem um colo macio’. O ato de pensar, então, se dá pela recordação de dados concretos e não ainda pela estruturação lógica; o pensamento infantil é sincrético e dependente da memória. ‘Para a criança pequena, pensar é recordar’(VYGOTSKY apud BEILKE, 2009, p.68).

Continua-se a caducidade, o devaneio, o afeto. Seio familiar que despertou o estranhamento da mudança e aproximações pela comparação: o Velho está se esquecendo. O Velho não sabe mais a que veio, onde está. Confunde as horas e os nomes. As localizações de sua vida estão esparsas. Desconhece o lar. “Minha casa não é aqui”, diz ele.

ESTRAGON: Aonde iremos? VLADIMIR: Não muito longe.

ESTRAGON: Não, não, vamos longe daqui! VLADIMIR: Não podemos.

ESTRAGON: Por que?

VLADIMIR: Temos que voltar amanhã. ESTRAGON: Para quê?

VLADIMIR: Para esperar Godot.

ESTRAGON: Ah! [Silêncio] Ele não veio?13

Referências

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