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Da técnica ao artesanal, do isolamento ao colaboracionismo: os efeitos da modernidade no mundo contemporâneo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JORNALISMO

DA TÉCNICA AO ARTESANAL,

DO ISOLAMENTO AO COLABORACIONISMO:

OS EFEITOS DA MODERNIDADE NO MUNDO

CONTEMPORÂNEO

ISADORA DE VILHENA BARRETTO

RIO DE JANEIRO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JORNALISMO

DA TÉCNICA AO ARTESANAL,

DO ISOLAMENTO AO COLABORACIONISMO:

OS EFEITOS DA MODERNIDADE NO MUNDO

CONTEMPORÂNEO

Monografia submetida à Banca de

Graduação como requisito para obtenção do diploma de

Comunicação Social/ Jornalismo.

ISADORA DE VILHENA BARRETTO

Orientador: Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral

RIO DE JANEIRO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

TERMO DE APROVAÇÃO

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, avalia a Monografia Da técnica ao artesanal, do isolamento ao colaboracionismo: os efeitos da modernidade no mundo contemporâneo, elaborada por Isadora de Vilhena Barretto.

Monografia examinada:

Rio de Janeiro, no dia .../.../...

Comissão Examinadora:

Orientador: Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral

Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris V Sorbonne Sciences Humaines Profa. Beatriz Jaguaribe de Mattos

Pós-doutorado em Comunicação pela Universidade de Buenos Aires Prof. Paulo Roberto Gibaldi Vaz

Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Illinois, Chicago

RIO DE JANEIRO 2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

BARRETTO, Isadora de Vilhena.

Da técnica ao artesanal, do isolamento ao colaboracionismo: os efeitos da modernidade no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro, 2014.

Monografia (Graduação em Comunicação Social/ Jornalismo) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de Comunicação – ECO.

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BARRETTO, Isadora de Vilhena. Da técnica ao artesanal, do isolamento ao colaboracionismo: os efeitos da modernidade no mundo contemporâneo. Orientador: Marcio Tavares d’Amaral. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO. Monografia em

Jornalismo.

RESUMO

A percepção de que, apesar dos progressos advindos da civilização e do desenvolvimento da técnica, algo ainda falta ao ser humano, é o que se constitui como base desta monografia. Dessa forma, a partir de uma pesquisa de cunho filosófico e sociológico, procuro neste trabalho compreender o mal estar nas sociedades modernas, suas origens, características e conseqüências. A partir dos pensamentos de Sigmund Freud, Michel Foucault, Georg Simmel, Walter Benjamin e Villém Flusser, analiso as bases ontológicas fundadoras das civilizações, abordo os mecanismos de funcionamento do modelo civilizacional moderno dos séculos XIX e XX, suas características e efeitos-colaterais na vida do indivíduo, refletindo, finalmente, sobre as forças reativas de movimentação que vão em direção oposta à modernidade, compreendendo seus anseios e direcionamentos. Exemplos de manifestações sócio-culturais contemporâneas são expostos ao final do trabalho, com foco para o movimento Do it yourself e suas reverberações.

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A todos aqueles que ainda buscam.

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Porque leio este artigo? E esta revista? E qualquer outra coisa escrita? E por que e para que foi escrito este artigo, e todos os artigos nesta revista, e toda coisa jamais escrita? Villém Flusser

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ÍNDICE

1. INTRODUÇÃO...p. 9 2. NATUREZA...p. 13

2.1 O PROBLEMA DA FELICIDADE...p. 13 2.2 A NATUREZA, O CORPO E O HOMEM...p. 16 3. CULTURA...p. 22 3.1 A TÉCNICA DA VIDA...p. 23 3.2 A CIDADE E O ESPÍRITO...p. 28 3.3 A EXPERIÊNCIA...p. 33 3.4 A AURA E O ESPANTO...p. 37 4. CONTRA-CULTURA...p. 41 4.1 O MOVIMENTO DO IT YOURSELF...p. 45 4.2 REVERBERAÇÕES – OS HISTERS E OS MAKERS...p. 48 4.3 TENDÊNCIAS E EXEMPLOS NA ATUALIDADE...p. 51 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...p. 55 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...p. 57

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1. INTRODUÇÃO

“Por que é tão difícil para os homens serem felizes” (FREUD, 2011, p. 30), pergunta-nos Freud, em dado momento de seu livro sobre o mal-estar na civilização, publicado em 1930. É este questionamento o qual tomo como base e guia para o início desta dissertação. Inserido dentro do contexto do pós-Primeira Guerra Mundial, com o anti-semitismo em ascensão e um câncer de mandíbula a não deixá-lo escapar à morte, o pai da psicanálise refere-se ainda aos dilemas da Modernidade. Passado quase um século, contudo, mesmo a crise das Instituições e da Verdade, a emergência de novos sistemas sociais e o surgimento da internet não foram suficientes para solucionar os fantasmas do passado. A pergunta aqui proposta, assim, permanece.

A percepção de que, apesar dos progressos advindos da civilização e do desenvolvimento da técnica, algo ainda falta ao ser humano, é o que se constitui como motivação inicial desta monografia. Sob a suspeita de que a procura pela felicidade seja o motor de grande parte de nossa produção humana – a energia de movimento da subjetividade – procuraremos compreender como ela - e seu oposto, o mal-estar - tanto direciona a produção de padrões sociais quanto propulsiona a aparição de formas alternativas de experiência da realidade. Entender que mecanismos desencadeiam cada um desses caminhos, delimitar o que buscam, como se desempenham e se problematizam, e, finalmente, localizar seus lugares e possibilidades dentro do mundo contemporâneo é o que pretendo nesta monografia. Para isso, farei uso de alguns dos teóricos que pensaram o século XX, em especial, Sigmund Freud, Michel Foucault, Georg Simmel, Walter Benjamin e Villém Flusser.

Embora venhamos a constatar, ao longo do texto, que a falta é um fator constitutivo e constituinte do ser humano, que o estado de felicidade é impossível de ser alcançado em sua completude e que, por isso, a insatisfação é um dado constante na vida do homem, os objetos que desencadeiam o sentimento de mal-estar e suas formas de manifestação variam de acordo com o tempo e direcionam a atitudes específicas distintas seguindo as características de cada momento histórico-cultural. Identificando a contemporaneidade como uma época cujas influências e soluções respondem a construções e apelos de tempos passados, a apreensão da modernidade revela-se como uma das chaves para o mapeamento de tendências futuras no campo da cultura, assim como para a compreensão do que está ocorrendo hoje no campo da comunicação. O

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objetivo, aqui, portanto, é o de reter conteúdo relevante sob a justificativa de entendimento de nosso momento atual.

Percebendo, então, a importância de limitarmos nossa pesquisa a dado contexto espaço-temporal, pensaremos a partir da chamada época Moderna, momento histórico que definiu o que entendemos hoje como sociedades moderna e contemporânea. O corte aqui se dará no estudo das culturas urbanas industriais dos séculos XIX e XX e de suas respectivas forças de contracultura, compreendendo que características, efeitos-colaterais e anseios os mecanismos de funcionamento da modernidade causaram na vida e comportamento dos homens. Tornar-se-á claro que o desenvolvimento da civilização e o progresso da técnica geraram, com eles, a automatização e a dessacralização das coisas, da vida e das relações. Isto posto, destacaremos ao final, a nostalgia e o desejo de resgate de práticas artesanais e da experiência coletiva como posturas conseqüentes, exemplificando-as a partir do estudo de caso da cultura Do it yourself (ou, em português, “Faça você mesmo”) e de suas reverberações na atualidade.

A monografia será dividida em três capítulos: Natureza, Cultura e Contra-cultura, sendo o primeiro uma abordagem psicanalítica e sociológica a respeito do surgimento das civilizações; o segundo, um estudo sobre a época Moderna feita a partir de um recorte de temas específicos tratados por teóricos da filosofia, da sociologia e da literatura do final do século XIX e início do século XX; e o terceiro, uma reflexão pessoal sobre os efeitos da modernidade à luz dos teóricos tratados no segundo capítulo, seguida de uma análise prática e expositiva do movimento Do it yourself, e suas influências na cultura contemporânea. O tema, assim, será abordado a partir de uma lógica em que sua disposição seguirá uma ordem decrescente tanto em relação à delimitação quanto em relação à densidade teórica. Começando com uma visão ampla, abstrata e estritamente conceitual, entenderemos a modernidade a partir de uma junção entre teoria e prática para, enfim, num momento final, centraremo-nos em um estudo de caso.

No primeiro capítulo, o surgimento das civilizações e seus mecanismos de funcionamento serão abordados tomando a busca pela felicidade como motivador central. Na tentativa humana para seu alcance, serão apresentados dois tipos de comportamentos distintos: um positivo, que a procura na vivência de prazeres; e outro negativo, que se direciona a ações que evitem o desprazer. Este último será constatado como a base de construção da modernidade, que se apoiou nas técnicas de exclusão e

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controle de ameaças de desprazer para sua solidificação. Localizando a natureza, o corpo e o homem como fontes principais de sofrimento humano, a relação entre indivíduo e sociedade será posta em análise, assim como a dicotomia entre os sentimentos de segurança e liberdade e o movimento pendular da civilização feito a seu respeito. Ao final, definiremos a segurança como o sentimento principal que caracteriza a época Moderna, usando como embasamento teórico os escritos do psicanalista Sigmund Freud e do sociólogo Zygmunt Bauman.

No Segundo capítulo, delimitando o tema, estudaremos alguns dos aspectos que caracterizaram a modernidade em seu processo de estruturação como sociedade, e o que, nela, falhou. A análise das conseqüências da Revolução Industrial e do processo de urbanização e desenvolvimento das cidades são, aqui, fatores-chave para nossa compreensão, e evidenciarão os fatores geradores mal-estar. Para isso, primeiro abordaremos, a partir da obra de Michel Foucault, o aparecimento das estruturas sociais disciplinares padronizantes, a biopolítica e os mecanismos que possibilitaram a gestão calculista da vida. Em seguida, sob o olhar de Georg Simmel, falaremos sobre o funcionamento da vida na cidade grande, o fenômeno da multidão, o excesso de estímulos, o isolamento dos indivíduos, a fragmentação das relações e o surgimento da figura do “sujeito blasé”, cujo modelo comportamental é retratado pela impessoalidade, insensibilidade, individualismo e por uma espécie de “espírito contábil”. Nos dois tópicos restantes, finalmente, utilizando o pensamentos de Walter Benjamin e Villém Flusser, constataremos o depauperamento da experiência coletiva, a perda da aura e a incapacidade para o espanto como efeitos-colaterais da modernidade.

Compilando o conhecimento adquirido na pesquisa realizada nos dois primeiros capítulos, refletiremos enfim sobre as forças reativas de movimentação que vão em direção oposta à modernidade, compreendendo seus anseios e direcionamentos na contemporaneidade. Um sentimento de nostalgia e de volta ao passado, e uma filosofia de resgate às práticas artesanais e colaboracionistas serão evidenciados. Por tal razão, tomaremos como estudo de caso o Do it yourself, movimento que tem como princípio básico a idéia de que qualquer pessoa pode fazer ou produzir qualquer coisa sem a necessidade de recorrer às estruturas industriais ou dominantes. Começaremos por localizar seus princípios ético-filosóficos, apresentaremos sua trajetória histórica e associaremos suas bases a movimentos culturais contemporâneos e à cultura da internet, incitando tendências contemporâneas que tenham ligação – direta ou indireta – com sua

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filosofia.

Apesar do Do it yourself não ser o objeto fundamental de estudo desta monografia, e funcionar mais como um exemplo que ilustra uma tendência social maior de reação às bases da modernidade, percebo que a escolha na análise desse movimento específico é o que promove certa singularidade ao meu trabalho. Alguns, assim, podem me perguntam por que decidi-me por ele. Digo que a motivação foi de viés puramente pessoal e afetivo. Quatro anos atrás, quando ainda era estudante de Design na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ (ESDI/UERJ), participei da coordenação de um workshop de pinhole cuja metodologia se baseava na lógica DIY1, no Festival

Pavão, evento cultural que ocorre anualmente dentro da faculdade. Na oficina, os alunos teriam que produzir manualmente algumas câmeras analógicas primitivas, e, posteriormente, daria a eles tempo para sair e fotografar ao redor. O objetivo inicial era o de ensinar os mecanismos de funcionamento de uma câmera fotográfica, utilizando para isso um método bastante simples: fazer com que as pessoas produzissem seu próprio equipamento, percebendo através de sua montagem as atribuições de cada elemento dentro do todo.

Apesar de ter concebido o workshop como uma aula voltada para o ensinamento técnico da fotografia, surpreendi-me com o maravilhamento dos alunos no processo. Ao terem eles próprios manufaturado suas câmeras, lançaram imediatamente outro olhar sobre um produto que já possuíam e usavam, embora, de maneira absolutamente automática. Havia naquela experiência do fazer algo além do mero conhecimento pela prática. Mais do que aprender, as pessoas criaram verdadeiros laços afetivos com os objetos que produziram, gerando outra significação e relação tanto com a câmera quanto com as fotos que tiraram pelo bairro da Lapa. Ali, acabei percebendo que as coisas, elas não eram somente coisas... Tal experiência na minha vida, experiência baseada numa prática artesanal e colaboracionista – a mesma experiência que apareceu, para mim, na época, como um exercício simples e despretensioso - foi o que acabou se revelando, nesta monografia, o meu grande pote de ouro.

1

O termo “DIY” refere-se às letras iniciais da expressão Do it yourself, funcionando como uma abreviação da mesma.

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2. NATUREZA

natureza (ê). [De natura + - eza.] S.f. 1. Todos os seres que

constituem o Universo. 2. Força ativa que estabeleceu e conserva a ordem natural de tudo quanto existe. 3. Índole do indivíduo; temperamento, caráter. 4. Espécie, qualidade: Vive cheio de toda a

natureza. 5. A condição do homem anteriormente à civilização. 6. As

partes genitais do homem ou da mulher (especialmente as do homem).

7. Filos. Essência (5). 8. Filos. O mundo visível, em oposição Às

idéias, sentimentos, emoções, etc. 9. Filos. Conjunto do que se produz no Universo independentemente de intervenção refletida ou consciente. 10. Bras. S. Pop. Terra natal. Natureza humana. 1.

Antrop. O conjunto das características físicas e orgânicas, mentais,

psicológicas, afetivas, etc., que, nos seres humanos, são supostamente comuns a toda a espécie e invariáveis, isto é, independentes da influência das sociedades ou culturas específicas em que os indivíduos nascem e se desenvolvem. 2. Filos. O conjunto das qualidades percebidas como idênticas, imutáveis e comuns a todos os seres humanos, e que seria suficiente para caracteriza-los como tais. [grifos do autor]2 (FERREIRA, 2004, p. 1388)

2.1 O PROBLEMA DA FELICIDADE

“O que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar?” (FREUD, 2011, p. 19). Diante da impossibilidade de resposta para tais perguntas, Sigmund Freud, em seu livro “O mal-estar na civilização”, desloca a questão para algo mais basilar: qual seria o objetivo, para os homens, de uma finalidade para a vida? O que buscam eles, enfim? Aqui, a felicidade aparece. Ele estabelece o princípio de prazer – o desejo de gratificação imediata - como aquilo que domina o aparelho psíquico, e percebe nas tentativas para o alcance da felicidade duas formas de comportamento. Uma, positiva, procura-a na vivência de fortes prazeres, enquanto a outra, negativa, se direciona para ações que tem como meta evitar a dor e o desprazer. Embora somente a primeira possa chegar ao objeto proposto, ela somente ocorre a partir da realização repentina de necessidades represadas e, por natureza, é apenas possível ser vivenciada como situação episódica (FREUD, 2011, p. 19). Consequentemente, nossas possibilidades de felicidade, para o autor, são limitadas à segunda opção.

É possível fugir do desprazer, segundo Freud, a partir de alguns métodos, como por exemplo a auto-intoxicação, a renúncia aos instintos, o deslocamento da libido para

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o trabalho intelectual – a sublimação -, as fantasias e ilusões, até o rompimento total com a realidade. Em todos eles, podemos perceber a intenção de independência em relação a um mundo exterior que nos ameaça em diferentes frentes. Para Freud, essa sensação de fragilidade – o desamparo - se apresenta para ele desde o nascimento, a partir da separação entre o bebê e o ventre materno. Nesse momento, um estado de plenitude advindo de uma relação de fusão e indissociação vivenciado no período de gestação é traumaticamente quebrado, gerando a cisão primeira entre o ser e seu ambiente externo. O bebê, assim, em sua prematuridade, se vê despreparado para lidar com a imensidão de estímulos que o ambiente externo oferece a ele, sentindo suas excitações como avassaladoras. A separação entre o mundo exterior e o interior se desenvolve por meio de um longo período de amadurecimento, em que as sensações de desprazer tendem a serem jogadas para fora de um “Eu”.

O bebê lactante ainda não separa seu Eu de um mundo exterior, como fonte de sensações que lhe sobrevêm. Aprende a fazê-lo aos poucos, em resposta a estímulos diversos. Deve impressioná-lo muito que várias das fontes de excitação, em que depois reconhecerá órgãos de seu corpo, possam enviar-lhe sensações a qualquer momento, enquanto outras – entre elas a mais desejada, o peito materno – furtam-se temporariamente a ele, e são trazidas apenas por um grito requisitando ajuda. É assim que ao Eu se contrapõe inicialmente um “objeto”, como algo que se acha fora e somente através de uma ação particular é obrigado a aparecer. Um outro incentivo para que o Eu se desprenda da massa de sensações, para que reconheça um “fora”, um mundo exterior, é dado pelas freqüentes, variadas, inevitáveis sensações de dor e desprazer que, em sua ilimitada vigência, o principio de prazer busca eliminar e evitar. Surge a tendência a isolar do Eu tudo o que pode se tornar fonte de tal desprazer, a jogar isso para fora, formando um puro Eu-prazer, ao qual se opõe um desconhecido, um ameaçador “fora”. (FREUD, 2011, p. 10)

Diante disso, podemos fazer duas observações importantes. A primeira é que, na visão do pensador, o desamparo traz o desprazer como parte de uma condição humana, dado constituinte e constitutivo do ser humano. Evitar o sofrimento é, portanto, um objetivo estruturalmente inalcançável em sua completude. No entanto, é justamente sua impossibilidade de realização o que faz com que os sentimentos de mal-estar e insaciabilidade resultantes sirvam de combustível para as ações humanas e para o processo de desenvolvimento cultural.

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irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização. Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcançar tudo o que desejamos.

(FREUD, 2011, p. 28)

Embora nos tempos atuais, a chamada contemporaneidade, seja possível perceber – pelo menos, em parte - um direcionamento que aponte para a busca de prazer, o movimento pelo qual a civilização – e, dessa forma, a Modernidade - foi construída baseou-se no conteúdo negativo da meta da felicidade, ou seja, na constante tentativa de se liquidar com as fontes do sofrer. A segunda observação encontra aqui seu contexto. O sofrimento pode até advir de um motivador interno, mas é reconhecido e posicionado psicologicamente – ou, no caso, sociologicamente - como um elemento externo. Isso faz com que compreendamos alguns dos elementos a partir dos quais se desenvolveu a construção da sociedade moderna.

Embora, como já mencionado, o sofrimento seja inevitável, seu desvio é um movimento constante e ininterrupto do ser humano, e se dá, para Freud, na oposição do desprazer a partir dos mecanismos de “compulsão”, “regulação”, “supressão” e “renúncia forçada”, ou seja, a partir da exclusão e do controle. No viés social, como no caso da Modernidade, podemos perceber um movimento correlato com os mecanismos de localização, delimitação, controle e exclusão de fatores que ameacem o campo social. Isso posiciona o sofrimento como um “outro”, como algo externo, fazendo com que a ele aparentemente não se tenha mais acesso, ou, na pior das hipóteses, conseguindo que ele seja apaziguado. Aqui, a limitação se coloca como fundamental, proporcionando uma sensação de segurança e proteção face aos estímulos vindos de um ambiente, agora, exterior. A concepção de uma ordem e de um padrão evita assim a sensação de descontrole e vulnerabilidade quanto ao desconhecido, abolindo a angústia. O ser humano atinge o reconhecimento do mundo e se reconhece pertencente a ele; o mundo passa a ser apreendido como previsível e passível de cálculo, sem possibilidade para sustos inesperados e indesejáveis. Tais mecanismos ocasionam, no entanto, uma perda inevitável do grau de liberdade individual e social, sendo necessária a renúncia ao instinto, às pulsões primitivas, e, portanto, à vivência de fortes prazeres. Eis o primeiro efeito colateral, a ser analisado posteriormente na prática: a tentativa de felicidade pela

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privação do desprazer nos impede, em última instância, à possibilidade de sentir prazer. Antes de nos atermos ao estudo relacionado aos fatores de ameaça de sofrimento a serem evitados, aos mecanismos dos quais a modernidade lançou mão na tentativa de controlá-los e a que conseqüências foram geradas para a vida humana, é importante salientar que o movimento exposto acima pode ser detectado tanto no desenvolvimento da própria subjetividade – na construção do Eu a partir do princípio de realidade -, quanto no processo de formação e de manutenção da civilização, com a construção de instituições, padrões e discursos de Verdade. De tal processo também resultou, em contrapartida, a produção de contracorrentes, ou seja, manifestações que batem de frente aos modelos estabelecidos e aceitos socialmente e que, sob um sentimento de profunda insatisfação, buscam questioná-los e desconstruí-los. Sua intenção é a da criação de novas perspectivas e possibilidades civilizacionais, que geralmente são, pela sua própria natureza reativa, diametralmente opostas ao modelo dominante. Sobre o modelo instituído pela Modernidade e os movimentos que questionam suas características, trataremos nos capítulos subseqüentes.

2.2 A NATUREZA, O CORPO E O HOMEM

O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos.

(FREUD, 2011, p. 20)

A natureza, o corpo e o homem. Essas seriam, portanto, as três principais fontes do sofrimento e os fatores de ameaça cujo maior esforço humano se daria na tentativa contínua e progressiva de evitá-los. Para Freud, a natureza nos afetaria em sua tirania e força (ou, como diz ele, em sua prepotência), o corpo, em sua fragilidade, e o homem, em sua insuficiência. Em relação às duas primeiras, reconheceríamos sua inevitabilidade e nossa conseqüente submissão. “Nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso organismo, ele mesmo parte dessa natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho.” (FREUD, 2011, p. 20). Tal constatação não seria, no entanto, paralisadora, mas, pelo contrário, direcionaria nossos atos rumo à supressão, se não total, ao menos parcial de nosso sofrimento. Embora impossíveis de serem anulados, seriam passíveis de relativo grau de controle e

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apreensão intelectual, a partir do uso da técnica. Junto ao homem, foram eles o que formaram, para Freud, a base para a criação da civilização, definida por ele como a “soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos” (FREUD, 2011, p. 20).

Deixamos de fazer compreender, no entanto, as razões pelas quais o ser humano é também gerador de sofrimento. O mal-estar advindo do homem é originário da relação entre um indivíduo e outro – onde este “outro” se materializa na figura daquele que, a princípio, o priva da possibilidade de satisfação de seus prazeres -, e da relação do indivíduo com a própria civilização, sendo esta concebida como uma construção que fracassou em relação à tentativa de ser um local de possibilidade de bem-estar para o homem. Analisemos tais constatações mais a fundo.

Enquanto a natureza e o corpo são concebidos como fatores naturais - e, por isso, aceitos em sua fatalidade -, o desprazer originário do homem – ou seja, de si e de suas inter-relações - coloca-o numa expectativa de responsabilidade, sendo portanto mais complexa sua admissão e compreensão por ele próprio. Enquanto as duas primeiras são consideradas um fator externo, sendo mais facilmente delimitadas e – até onde possível – excluídas, o desprazer advindo do ser humano é um elemento que vem simultaneamente de dentro e de fora, sendo mais problemático seu controle. O homem é insuficiente enquanto objeto solitário, e necessita do grupo para sua própria sobrevivência. Ao mesmo tempo, cada um deles é dotado de pulsões, vontades, desejos absolutamente individuais que, no campo social, entram em dissonância entre si. Para se evitar o embate, é preciso, portanto, renunciar ao instinto e regular as relações inter-pessoais, num movimento denominado por Freud de “castração” e de limitação do princípio do prazer a partir do princípio de realidade. Não nos ocuparemos, no entanto, da compreensão aprofundada de tais conceitos.

[...] a civilização é construída sobre a renúncia instintual, o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação (supressão, repressão, ou o quê mais?) de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens [...]

(FREUD, 2011, p. 43)

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embate entre a liberdade e a segurança, onde nem uma nem outra poderá ser completa ou plena. O ser humano que, ao mesmo tempo, é um animal social – cultural - e necessita do outro para sua sobrevivência, percebe esse mesmo outro como fonte de seu próprio sofrimento. Ele é obrigado a sacrificar-se em detrimento de uma sociedade que, simultaneamente, o protege e o regula; que permite sua preservação, embora constantemente controle-o. Trata-se de uma sensação de dois elementos sempre concorrentes e coexistentes. Necessidade e insatisfação.

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como ‘direito’ em oposição ao poder do indivíduo, condenado como ‘força bruta’. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. (FREUD, 2011, p. 49)

Boa parte da peleja da humanidade de concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino, a questão de se este qeuilíbrio é alcançável mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel. (FREUD, 2011, p. 41)

Podemos induzir que quanto mais se expande o processo de aculturação, de desenvolvimento das sociedades - ou seja, o progresso civilizacional –, mais se intensifica a renúncia aos instintos e a restrição da liberdade individual para que o espaço coletivo seja aprimorado. As relações humanas são ajustadas por regras, normas e regulamentos morais cada vez mais complexos que cristalizam modelos de comportamento e padrões socialmente aceitos, enquanto o indivíduo é posto progressivamente em segundo plano. A contenção instintual impossibilita em grande parte a vivência de fortes prazeres, limitando a busca pela felicidade a um mecanismo negativo de rejeição dos fatores de desprazer. O isolamento do indivíduo face ao mundo exterior, assim, se intensifica. Ao mesmo tempo, mecanismos que promovem a apreensão e o controle da natureza e do corpo são cada vez mais desenvolvidos a partir da técnica, tornando estes objetos passíveis de cálculo e previsíveis, ordenáveis dentro de uma lógica universalmente compreensível. O padrão, novamente, é priorizado face à singularidade, num movimento de proteção contra o que é desconhecido. A sensação de segurança, assim, vigora.

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O contraponto também pode ser pensado, embora o grau de oposição entre os modelos sociais seja questionável quando pensamos em termos absolutos. Em uma sociedade cujas amarras da civilização estão mais afrouxadas, infere-se pela lógica da oposição direta que a possibilidade de manifestação dos instintos permite uma busca pela felicidade de forma positiva. Acredita-se, assim, que, sem as pressões limitadoras e constrangedoras da cultura, o indivíduo poderia, enfim, ser genuinamente feliz e livre, resgatando na natureza sua real potência de vida. O pensamento geralmente se apresenta em momentos de grande insatisfação para com o modelo de civilização vigente em épocas de regulação excessiva. Bauman, sob o pensamento de Freud, diz que “a civilização (leia-se: a modernidade) ‘impõe grandes sacrifícios’ à sexualidade e agressividade do homem. ‘O anseio de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares da civilização ou contra a civilização como um todo’” (BAUMAN, 1998, p. 8). Apesar disso, é falacioso na medida em que, rejeitando um quadro de segurança e ordem excessiva, prevê a solução num ambiente de liberdade total.

[...] deparamos com uma afirmação tão espantosa que é preciso nos determos nela. Ela diz que boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas. A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido – como que se defina o conceito de civilização – que tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização. (FREUD, 2011, p. 31)

No momento histórico específico quando escreve Freud – época pós-Primeira Guerra Mundial -, a civilização é identificada como um mecanismo que fracassa na tentativa de conquista de um bem-estar e, além disso, é apreendida como um fator genuíno de mal-estar. Freud, ainda no início do século XX, percebe muito bem este compartilhamento de um sentimento de hostilidade advindo de uma profunda insatisfação com a civilização nos moldes como ela foi desenvolvida na Modernidade. “Dentro da estrutura de uma civilização concentrada na segurança, mais liberdade significa menos mal-estar” (BAUMAN, 1998, p. 9). Não à toa, é a época em que uma diversidade de movimentos sociais surge à procura de meios alternativos de existência, de novas formas de experiência e transformação da realidade, vindo a se desenvolver em alguns dos movimentos políticos e de contracultura que, mais tarde, dariam nome ao

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movimento hippie, ao punk, ao feminismo, aos movimentos negros. É no período pós-guerra – período de intensa ebulição cultural – quando também surge a cultura Do it yourself.

Ainda assim, Freud reforça a rejeição na idéia de um retorno ao primitivo. Embora a hostilidade à civilização possa aparecer como possível solução para o desprazer advindo do homem, é ela também mecanismo fundamental para a fuga do sofrimento. Vimos há pouco que a balança entre segurança e liberdade é um movimento necessário para a existência humana, em que nenhuma das duas presenças pode ser plena. Um ambiente permissivo às realizações do instinto permite também a liberdade até o ponto em que o ser humano torna-se em demasiado grau suscetível ao ambiente externo. Ultrapassado o limite, cairá no desamparo, perdendo tanto em segurança quanto em liberdade, pois será constrangido não mais pela civilização, mas pela força irremediável do mundo.

Se pensarmos o processo civilizacional como um pêndulo que balança, de um lado encontramos o estado de barbárie, caracterizado por um grau de liberdade total; do outro, onde imaginamos o local da civilização, a segurança em seu absoluto faz com que encontremos, no entanto, o estado de desumanização. Percebemos que em nenhum dos extremos há espaço para o indivíduo. A desordem e o caos tornam-no frágil demais, enquanto a completa ordem regula-o de tal forma a produzir uma figura maquinal, sem abertura para o prazer, o pensamento, ou até mesmo a consciência. Em síntese, aniquila-o em sua humanidade. Os maniquila-ovimentaniquila-os de mudança de maniquila-odelaniquila-os saniquila-ociais aaniquila-o laniquila-onganiquila-o da história se fazem, portanto, não na escolha entre liberdade e segurança, mas em termos de oscilação de níveis entre um e outro, sempre à procura de um equilíbrio: um espaço social regulamentado, onde o ser humano possa, no entanto, ainda pulsar.

O movimento pelo qual a Modernidade se direcionou foi para o lado da civilização, da segurança e, consequentemente, da desumanização. Segundo Bauman, “Freud falou em termos de ‘compulsão’, ‘regulação’, ‘supressão’ ou ‘renúncia forçada’. Esses mal-estares que eram a marca registrada da modernidade resultaram do “excesso de ordem” e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade”. (BAUMAN, 1998, p. 9). Ao longo do século XX e na época contemporânea, todavia, encontramo-nos num momento em que o pêndulo está fazendo seu movimento inverso, com a presença de movimentos que encararam (ou estão ainda encarando) de frente aspectos fundamentais que caracterizaram a modernidade e vão de encontro com alguns dos fatores que

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geraram um coletivo sentimento de desprazer.

Por essas razões, torna-se necessário antes entender o que foi a modernidade para pensar com maior profundidade o que são e o que querem os movimentos contemporâneos. Antes de focarmos em tais movimentos – e nos movimentos relacionados à cultura do Do it yourself, em especial -, é necessário determinar quais os elementos fundamentais que deram origem à insatisfação social por essa época. A partir daqui, portanto, estudaremos alguns dos aspectos que caracterizaram a cultura moderna no processo de sua estruturação como sociedade, e o que, nela, falhou. A análise das conseqüências da Revolução Industrial e do processo de urbanização e desenvolvimento das cidades são, aqui, fatores-chave para nossa compreensão, e evidenciarão os fatores geradores de desprazer e seus respectivos efeitos-colaterais.

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3. CULTURA

Cultura. [Do lat. cultura.] S.f. 1. Ato, efeito ou modo de cultivar;

cultivo. (...) 5. O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. [Nas ciências humanas, opõe-se por vezes à idéia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.] 6. A parte ou o aspecto da vida coletiva, relacionadas à produção e transmissão de conhecimento, à criação intelectual e artística, etc. 7. O processo ou o estado de desenvolvimento social de um grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores, instituições, criações, etc.; civilização, progresso. 8. Atividade e desenvolvimento intelectuais de um indivíduo; saber, ilustração, instrução. 9. Refinamento de hábitos, modos ou gostos. 10. Apuro, esmero, elegância. 11. Antrop. O conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida: modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc. [Como conceito das ciências humanas, esp. da antropolgia, cultura pode ser tomada abstratamente, como manifestação de um atributo geral da humanidade (cf. acepç. 5), ou, mais concretamente, como patrimônio próprio e distintivo de um grupo ou sociedade específica (cf. acepç. 6).] 12. Filos. Categoria dialética de análise do processo pelo qual o homem, por meio de sua atividade concreta (espiritual e material), ao mesmo tempo que modifica a natureza, cria a si mesmo como sujeito social da história. [grifos do autor]

(FERREIRA, 2004, p. 587)

Enquanto política e social, a modernidade está relacionada a processos históricos que tiveram como base uma diversidade de mudanças no pensamento europeu ocorridas desde séculos atrás. O Renascimento, no século XVI, já previa uma transformação cultural que prestigiava uma visão de mundo moderna marcada pelo uso da razão. A crise do feudalismo e a ascensão de uma nova classe social ligada ao lucro e ao mercado fortaleceram, ao longo do tempo, os ideais antropocêntricos e de progresso, em que o empirismo e a técnica mais tarde dariam lugar à ciência como grande paradigma da Verdade. O avanço no plano das ciências naturais no século XVII - conquistados pela Revolução Científica e sua pretensão de conhecer e explicar a natureza - e a influência política e econômica das idéias iluministas no século XVIII seguiram com a tradição racionalista e promoveram o que mais tarde chamaríamos de democracia e capitalismo, onde seu embrião pode ser encontrado nas Revoluções Inglesa e Industrial, com a

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chegada da burguesia no poder e a consolidação da economia industrial.

A fábrica, a produção em massa e a concentração/acúmulo de capital são conseqüências diretas desse período. Junto ao desenvolvimento tecnológico, a Revolução Industrial trouxe consigo o surgimento do operariado, a fragmentação e a alienação do trabalho, a hierarquização das relações trabalhistas, a padronização de produtos e processos, o excedente e a demanda por consumo em larga escala. A migração populacional do campo para as cidades, num processo de intensa urbanização, deu origem aos grandes centros urbanos, espaço onde novas formas de vivência, comportamento e interação social foram comportadas. A lógica industrial, nesse momento, refletiu não só no campo da economia, como também ultrapassou-o e invadiu o social, inserindo na dinâmica urbana elementos intrinsecamente característicos da indústria.

A invasão da técnica nos modos de vida humana trouxe com ela seus efeitos e seqüelas. Tais fenômenos - suas causas e conseqüências – são, portanto, o que analisaremos neste capítulo. Primeiro começaremos com o pensamento de Michel Foucault e a gestão calculista da vida. Posteriormente, falaremos sobre o funcionamento da vida nos grandes centros urbanos a partir da visão do sociólogo Georg Simmel, e nos dois tópicos restantes, finalmente, entenderemos os conceitos de experiência e de aura, de Walter Benjamin, e de espanto, de Villém Flusser.

3.1 A TÉCNICA DA VIDA

Fala−se, freqüentemente, das invenções técnicas do século XVIII − as tecnologias químicas, metalúrgicas, etc. − mas, erroneamente, nada se diz da invenção técnica dessa nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá−las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá−los. Nas grandes oficinas que começam a se formar, no exército, na escola, quando se observa na Europa um grande progresso da alfabetização, aparecem essas novas técnicas de poder que são uma das grandes invenções do século XVIII.

(FOUCAULT, 1984, p. 105)

O movimento que configura a passagem de períodos históricos também assinala transformações na forma como são estruturadas e regidas as relações de poder. Tendo isso em mente, o processo que deu origem ao modelo de sociedade moderna trouxe consigo novos paradigmas, antes inexistentes nas sociedades medievais e absolutistas.

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Modelo comum aos déspotas e monarcas da Europa entre os séculos XV e XVIII, o poder de soberania – característico da época pré-moderna - previa sua manifestação através de mecanismos de força e de violência preponderantemente física. O poder era, assim, exercido e representado na forma de punições - através de suplícios e condenações - e no ato de “deixar morrer”, de maneira centralizada e delimitada à figura do soberano. Com as novas concepções filosóficas iluministas e as revoluções liberais, Foucault percebeu no século XVIII uma transição de eixos, em que o poder, na figura do Estado e das instituições, passou a se manifestar de forma diferenciada. Menos corpóreo, um poder de ordem imaterial – mais velado e sutil que o anterior – apresentava-se constante e ininterrupto em meio ao cotidiano dos indivíduos, e revelava-se no processo de “garantir, sustentar, reforçar, multiplicar e pôr em ordem a vida” (FOUCAULT, 1988, p. 130). Se antes, ele era evidenciado pelo direito de vida e de morte, Foucault sugere, na modernidade, que a velha potência em que se simbolizava o poder soberano foi, cuidadosamente, recoberta pelo que ele analisa como a administração dos corpos e a gestão calculista da vida (FOUCAULT, 1988, p. 131).

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolve-se [...] em duas formas principais [...]. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:

anátomo-política do corpo humano. O segundo [...] centrou-se no

corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda a série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. [grifo do autor] (FOUCAULT, 1988, p. 131)

É interessante notar que o trecho acima refere-se a dois dos elementos originários de sofrimento tratados no capítulo anterior: o corpo – visto, aqui, como máquina -, e a relação entre os homens – vista como espécie, esta sendo interpretada como grupo de seres vivos semelhantes entre si, em que a noção de “grupo” e de “população” fariam referência ao seu âmbito social. Ora, se a técnica industrial, conquistada graças às revoluções científica e industrial, foi bem sucedida em sua tentativa de controle sobre a natureza, ela também tomará corpo, na época moderna, na

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regulação dos seres humanos – e, consequentemente, em suas formas de vida -, num movimento que Foucault chamará de “bio-poder”. O autor relaciona tal evento a concepções intrinsecamente ligadas ao conceito de “administração”. A visão do corpo como uma máquina e como um suporte de processos biológicos possibilitou a idéia de desenvolvimento de habilidades e de adestramento; concebeu-o, em última análise, como um elemento passível de ser calculado e controlado tecnicamente. O indivíduo, dessa forma, foi objetificado e posto como algo condicionável, capaz de ser submetido a técnicas científicas e industriais, que, interiorizadas, disciplinaram-no (FOUCAULT, 1988).

Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. (FOUCAULT, 1988, p. 132)

Na época moderna, portanto, o homem passa a ser visto como um instrumento, e torna-se um objeto útil dentro de uma estrutura organizada. Em uma sociedade marcada por um poder que disciplina o corpo e os modos de vida humanos, a ordem, a produtividade e a estabilidade são garantidos. Todos esses fatores possibilitaram a manutenção de sistemas complexos – como os industriais e as sociedades de massa - e o funcionamento de instituições e grupos sociais. Corpos úteis e produtivos tornaram-se objetos de enorme eficiência, servindo de mão-de-obra e favorecendo o desenvolvimento econômico. Dóceis e submissos, se comportaram de maneira a não apresentar risco às estruturas de poder, ao mesmo tempo em que colaboraram por sua conservação. Dentro da lógica da produção e do consumo, o controle e a disciplina do corpo fez com que o sistema produtivo continuasse sua atividade de forma eficaz, ininterrupta, e inabalável. Apesar disso, o homem, que antes previu o uso da técnica para o controle e a dominação – mesmo que parcial – da natureza, passou a, ironicamente, ser dominado – e disciplinado – pelo uso da mesma.

A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá−los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá−los durante todo o tempo da atividade e submetê−los a uma perpétua pirâmide de olhares. (FOUCAULT, 1984, p. 106)

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Invadindo o cotidiano e envolvendo-se em fenômenos relacionados à vida e ao seu comportamento, o poder, na sociedade disciplinar, pôde ser aplicado em fatores de ordem simples e cotidiana, como, por exemplo, no controle do tempo e na arquitetura dos espaços. Em relação ao primeiro, todas as horas do dia passaram a ser preenchidas com diversas atividades, em horários bem delimitados e previamente determinados. O controle do tempo a partir de hábitos, horários e rotinas, enquanto dispositivo de poder disciplinar, centralizou o foco da vida na execução de tarefas, evitou a desorganização – ou as organizações sociais não desejadas – e o pensamento rebelde. A concepção do tempo-mercadoria foi fundamental para a manutenção da produtividade e a inserção da duração da vida em um cálculo de base econômica.

A mudança no conceito de tempo operada pela modernidade foi apontada por George Woodcock (1986, p.120) como a diferença mais gritante entre as sociedades ocidentais e orientais. Antes dessa diferenciação, os dias eram medidos pelo amanhecer e o crepúsculo, os anos, em termos de plantar e de colher, das folhas que caem e da intensidade do frio e do calor. O tempo estava ligado aos processos naturais de mudança das coisas e dos homens, e não era necessário medi-lo com exatidão. A ampulheta, o relógio de sol, a vela ou lâmpada, em que o resto de cera e de óleo que permanecia indicava as horas, dava medidas aproximadas de tempo. Na modernidade, o ciclo natural da vida deixa de ser a referência para se medir o tempo, que passa, cada vez mais, a ser calculado com exatidão matemática. O tempo como duração perde sua importância diante do tempo mercadoria, representado de modo exemplar no slogan "tempo é dinheiro". O "perder tempo", sobretudo para os moralistas e protestantes, passa a ser visto como pecado. Com a difusão dos relógios a partir de l850, disseminou-se a idéia de pontualidade como "virtude". A dependência do tempo matemático, no início imposta apenas aos pobres, se estendeu a todas as classes sociais; quem não se ajustava a esse ritmo enfrentava a hostilidade social e a ruína econômica. (D’ANGELO, 2006, p. 244)

No caso da arquitetura de espaços como dispositivo de poder, este foi exercido no processo de observação e vigilância constantes, na criação de ambientes onde os corpos se sentissem sob a presença permanente de um olhar coercitivo que se manifestasse em diferentes frentes, de maneira invisível e indeterminada. Os lugares, fechados e delimitados, foram iluminados, arejados e amplificados, permitindo que os indivíduos se mantivessem sempre visíveis e observados. O conceito se apoiou no modelo arquitetônico de prisões criado por Jeremy Bentham, o Panóptico, que consistia em uma torre central circulada por janelas - onde permanecia um vigia - e em celas que

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a circundavam, com suas aberturas direcionadas para a frente da torre. Sua estrutura fazia com que o prisioneiro nunca soubesse quando estava sendo olhado e se sentisse em constante estado de observação, e foi aplicado, inicialmente, com o intuito de tornar os presídios mais econômicos e eficientes. Apesar disso, sua idéia foi estendida e utilizada nas estruturas modernas de trabalho e sociais, que, além da vigilância, também foram caracterizadas pela técnica do confinamento.

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. [...] Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço, ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. [grifo do autor]

(DELEUZE, 1998, p. 219)

Verificamos assim, nos modelos de organização social modernas, o freqüente controle em todas as etapas da vida e a supremacia do social em detrimento do indivíduo. A segurança, na modernidade, é o fator que prevalece em relação à liberdade, e é adquirido, dentre outros, a partir de uma dinâmica social que tecniciza a vida, constrange a espontaneidade e regula os movimentos de ir e vir. Nas palavras de Deleuze, “os confinamentos são moldes, distintas moldagens” (DELEUZE, 1998, 221). A liberdade, dessa forma, fica condicionada. O indivíduo é direcionado a seguir uma sequência determinada de espaços aonde se adquire conhecimento; espaços estes que, no entanto, reproduzem discursos e comportamentos desejáveis pela estrutura social, cerceando a produção de novos discursos e disciplinando os indivíduos. Cria-se, assim, o que Foucault chamou de “corpos dóceis”: pessoas ao mesmo tempo submissas e funcionais, que não cometem ações contra o sistema e cooperam com as estruturas capitalistas.

Deleuze diz ainda que “a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários” (DELEUZE, 1998, p. 221). Em sua lógica, a prevalência da produção constrangia o trabalhador, assim como, paralelamente, o poder disciplinar constrange o

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indivíduo. “A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa; e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência” (DELEUZE, 1998, p. 221). Surge aqui a ideia de massa. De acordo com Toni Negri, “massas e plebe são palavras que têm sido frequentemente empregadas para nomear uma força social irracional e passiva (...) que, justamente por isto, é facilmente manipulável” (NEGRI, 2004, p. 18). O conceito de massa, portanto, relaciona-se a uma quantidade indefinida de indivíduos, uma agregação de pessoas heterogêneas desprovidas de reconhecimento de seu potencial transformador, que, por isso, é passiva e explorada sem grandes dificuldades.

3.2 A CIDADE E O ESPÍRITO

Os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida — a última reconfiguração da luta com a natureza que o homem primitivo levou a cabo em favor de sua existência corporal. [grifo do autor]

(SIMMEL, 2005, p. 577)

Os modelos da vida privada no século XIX são inseparáveis das circunstâncias econômicas e sociais criadas pela indústria. Industrialização, urbanização e multidão também são fenômenos interligados. Algumas formas de afirmação de identidade nos indivíduos emergiram com o surgimento da multidão.

(D’ANGELO, 2006, p. 241)

Junto às estruturas e relações de poder, a maneira como o sujeito reage e se identifica como indivíduo dentro de uma sociedade também sofre alterações ao longo do processo histórico, conforme a ocorrência de mudanças sócio-espaciais. Elegendo o centro urbano como o espaço onde se realizou a vida moderna, encontramos nele elementos singulares que influenciam o surgimento de novos comportamentos e identidades. A vida no campo, aqui, torna-se o modelo básico de comparação frente ao ambiente da cidade. Opondo-se à vida rural – modo de existência marcado pela regularidade habitual, pela experiência afetiva, pela noção de tempo prolongado e por uma população reduzida em que os entes em sua maioria se relacionam diretamente -, a vida urbana acontece em meio a mudanças constantes, a elementos calculados e a um excesso de recepção de informações que aparecem sem cessar. A migração em massa

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ocorrida pela revolução industrial trouxe consigo – num processo que chamamos de urbanização - a inserção de uma enorme quantidade de pessoas diferentes em um espaço comum. Nesse contexto, há o surgimento das chamadas “multidões”, corpos não identificados que invadem o espaço urbano, antes caracterizado pela condição de vilarejo, onde todos se conheciam.

O desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pela preponderância daquilo que se pode denominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo, isto é, tanto na linguagem como no direito, tanto na técnica de produção como na arte, tanto na ciência como nos objetos do âmbito doméstico encarna-se uma soma de espírito, cujo crescimento diário é acompanhado à distância cada vez maior e de modo muito incompleto pelo desenvolvimento espiritual dos sujeitos. (SIMMEL, 2005, p. 588)

[...] o indivíduo está cada vez mais incapacitado a se sobrepor à cultura objetiva. Ele foi rebaixado a uma quantité négligeable, a um grão de areia em uma organização monstruosa de coisas e potências, que gradualmente lhe subtraiu todos os progressos, espiritualidades e valores e os transladou da forma da vida subjetiva à forma da vida puramente objetiva, talvez de modo menos consciente do que na prática e nos obscuros sentimentos que dela se originam.

(SIMMEL, 2005, p. 588)

Segundo o sociólogo Georg Simmel, “o fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores” (SIMMEL, 2005, p. 577). Para ele, a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social, as mudanças e os intervalos curtos - ou seja, as características típicas de uma vida na cidade -, faz com que o indivíduo moderno reaja ao excesso de estímulos externos de maneira intelectiva, e não mais sentimental. Enquanto a vida no campo, por seu ritmo mais lento e habitual, proporcionava ao homem um comportamento de ordem sensível-espiritual, com relações pautadas pelo sentimento, a vida na cidade pressupõe a necessidade de adaptação constante às mudanças e de consciência alerta face à rapidez e aos estímulos, de forma que a intelectualidade foi a forma achada para suprir tais demandas. “A reação àqueles fenômenos é deslocada para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da personalidade” (SIMMEL, 2005, p. 577). Este, para Simmel, seria um movimento de proteção, um “preservativo da vida subjetiva” contra o bombardeio de informações que

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o homem urbano recebe; em última instância, uma resistência do sujeito moderno em ser consumido pela sociedade e seus mecanismos técnico-sociais.

Segundo Simmel, a intensificação da vida nervosa e a intelectualização do espírito e de suas relações traz para a personalidade do habitante da cidade a marca da distância, da impessoalidade e algo que o autor denomina de “caráter blasé”. Os nervos, por muito tempo excitados, são obrigados a reagir tão fortemente que, ao final, não possuem mais reação alguma; a necessidade de respostas rápidas em um ambiente de antagonismos e mudanças forçam a respostas violentas e a reações brutais, extraindo dos nervos sua última reserva de força; tornam, assim, o indivíduo incapaz de reagir a novos estímulos com uma quantidade de energia adequada (SIMMEL, 2005, p. 581). Um certo embotamento, dessa forma, é percebido no grau de capacidade de distinção das coisas: seu significado e valor são sentidos como nulos, e aparecem ao indivíduo blasé em uma tonalidade acinzentada e baça (SIMMEL, 2005, p. 581), tornando-o um ser aparentemente insensível.

Todas as relações de ânimo entre as pessoas fundamentam-se nas suas individualidades, enquanto que as relações de entendimento contam os homens como números, como elementos em si indiferentes, que só possuem um interesse de acordo com suas capacidades consideráveis objetivamente — assim como o habitante da cidade grande conta com seus fornecedores e fregueses, seus criados e mesmo freqüentemente com as pessoas de seu trato de dever social, em contraposição ao caráter do círculo menor, onde o conhecimento inevitável das individualidades cria também inevitavelmente uma coloração plena de ânimo do comportamento, um estar para além da mera consideração das capacidades e compensações. (SIMMEL, 2005, p. 579)

[...] a economia monetária e o domínio do entendimento relacionam-se do modo mais profundo. É-lhes comum a pura objetividade no tratamento de homens e coisas, na qual uma justiça formal freqüentemente se junta com uma dureza brutal. O homem pautado puramente pelo entendimento é indiferente frente a tudo que é propriamente individual, pois do individual originam-se relações e reações que não se deixam esgotar com o entendimento lógico — precisamente como no princípio monetário a individualidade dos fenômenos não tem lugar. (SIMMEL, 2005, p. 578)

Simmel compara, assim, a vida intelectual à economia monetária. Assim como o dinheiro é de caráter universal, impessoal e “indaga apenas por aquilo que é comum a todos” (SIMMEL, 2005, p. 578), os homens da cidade também são seres indiferentes, funcionais e que se relacionam no ambiente público de forma prática e objetiva.

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Reduzem-se os elementos de valor singular com o objetivo de facilitar as trocas, medidas agora pelo entendimento e por critérios econômicos, numéricos, mercadológicos. As relações – como aquelas encontradas entre produtor e freguês - tornam-se cada vez mais indiretas, de forma que perdem seu traço subjetivo. O espírito moderno, aqui, equipara-se a um espírito contábil.

Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade. (SIMMEL, 2005, p. 581)

À primeira vista, portanto, o indivíduo moderno demonstra-se como um ser frio e sem ânimo, indiferente e distante. Sua atitude espiritual frente ao outro poderia ser denominada, do ponto de vista formal, como uma atitude de reserva exterior. A antipatia construída simultaneamente o protege e o afasta, isolando-o de seu entorno. A separação entre o público e o privado, aqui, aparece. Enquanto reage de maneira blasé e indiferente em seu trabalho e em todos os ambientes públicos, estabelece em sua vida privada – em seu florescimento psíquico, em sua residência, em seu pequeno círculo de pessoas íntimas - uma vida interior que o acolhe e o afasta do caótico mundo moderno.

O deliberado isolamento, o afastamento dos demais é a salvaguarda mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas. Compreende-se: a felicidade que se pode alcançar por essa via é a da quietude. Contra o temido mundo externo o indivíduo só pode se defender por algum tipo de distanciamento, querendo realizar sozinho essa tarefa. (FREUD, 2011, p. 21)

Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho. Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado, realista no escritório, quer que o interieur sustente as suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita a estender seus cálculos sociais às suas reflexões sociais. Disso se originam as fantasmagorias do “interior”, da interioridade. Para o homem privado, o interior da residência representa o universo. Nele se reúne o longínquo e o pretérito. O seu salon é um camarote no teatro.

(BENJAMIN, texto digital)3

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<http://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/03/benjamin-w-Submetido à matematização do tempo moderno, o indivíduo se divide entre lazer e trabalho, entre homem e cidadão, entre privado e público, numa cisão perceptível e bem delimitada. A vida privada torna-se um consolo para a experiência moderna, mas, relacionando-a à visão da arte para Freud, sua narcose não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas e à brutalidade da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real (FREUD, 2011), sentidas em sua força no experimento da multidão.

Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica. Essa poesia não é nenhuma arte nacional ou familiar; pelo contrario, o olhar do alegórico a perpassar a cidade é o olhar do estranhamento. É o olhar do flaneur, cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade grande. (BENJAMIN, texto digital)4

O efeito narcotizante que a multidão exerce sobre o flâneur é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão. Só o poeta em sua flânerie consegue penetrar na alma de um outro, em meio aos sobressaltos da rua. Só ele tem acesso à privacidade de alguém, em meio ao espaço público. [...] Baudelaire explicita a sua obsessão de combinar os movimentos da alma e da fantasia ao ritmo da vida moderna; só assim o poeta é capaz de captar, no interior da multidão, sentimentos muito íntimos de indivíduos desconhecidos. (D’ANGELO, 2006, p. 242)

Walter Benjamin analisa a modernidade através de um olhar filosófico, cujo pensamento é formulado através de ensaios e críticas literárias em que seu objeto de estudo centra-se em obras como as de Marcel Proust, Bertolt Brecht ou, no caso acima, Charles Baudelaire, considerado este o “pai da modernidade” na literatura. Em suas poesias, o fenômeno da multidão é elemento freqüente, lugar onde a experiência urbana pode ser sentida em sua substância. Segundo Benjamin, a velocidade, o ritmo da máquina, o excesso de estímulos, a multiplicidade de vivências e individualidades criam para Baudelaire um olhar de “estranhamento”. Para Simmel, a reserva e a indiferença do indivíduo moderno são fortemente sentidas na densa multidão, onde a “estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual”

paris-capital-do-sc3a9culo-xix-trad-kothe.pdf>. Último acesso em novembro de 2014.

4Texto disponível em:

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(SIMMEL, 2005, p. 585). Essa distância é condicionante para um efeito de liberdade em meio à multidão, embora, em contrapartida, gere também uma sensação de solidão e abandono profunda. Enquanto, para o poeta, a multidão é promotora de um “efeito narcotizante” e de um sentimento de reconciliação com o mundo, o mesmo olhar de estranhamento impulsiona no indivíduo moderno uma sensação de mal-estar, de vazio ou, usando as palavras de Benjamin, de uma desconsolação em relação ao seu redor. Pelo distanciamento e desconhecimento do “outro”, pela criação de identidades e estereótipos urbanos próprios como tentativa de entender e lidar como o novo ambiente, a intelectualização do espírito, a insensibilidade frente ao outro, a impessoalidade, o isolamento, e a separação entre a vida pública e a vida privada foram fenômenos crescentes, e promoveram uma descrença profunda em relação ao que entendemos como experiência coletiva.

3.3 A EXPERIÊNCIA

Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, se sobrepondo ao homem. [...] Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? [...] Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. (BENJAMIN, 1985, p. 115)

O conceito de “experiência” é central na filosofia benjaminiana. Segundo J. Francisco de Sousa, “a ideia de que a modernidade produz uma degradação, declínio, pobreza ou perda da experiência aparece muito cedo nos ensaios de Benjamin”. Para o filósofo, o processo de empobrecimento da experiência está ligado estruturalmente ao surgimento da manufatura e da produção capitalista, assumindo sua potência com as indústrias modernas (SOUSA, 2012). Sua idéia apóia-se nos escritos de Karl Marx sobre a diferença entre as formas de produção pré-industriais e capitalista. Para Marx, enquanto no trabalho manual há uma continuidade entre as etapas de produção, na produção fabril a experiência na linha de montagem é autônoma e coisificada. O operário da fábrica não tem controle sobre o que produz, e é somente parte de um processo o qual desconhece em sua completude. O conhecimento fragmentado e altamente especializado, em que atua de maneira passiva ao adequar-se ao ritmo da

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