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Imagens-sertões : imagens-espaço de sertões-prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

Diogo Cavalcanti Velasco

IMAGENS-SERTÕES: imagens-espaço de sertões-prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo

CAMPINAS 2015

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 140716/2011-4

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Artes

Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Velasco, Diogo Cavalcanti,

V541i VelImagens-sertões : imagens-espaço de sertões-prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo / Diogo Cavalcanti Velasco. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.

VelOrientador: Francisco Elinaldo Teixeira.

VelTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Vel1. Espaço e tempo. 2. Sertão - Brasil. 3. Cinema. I. Teixeira, Francisco Elinaldo,1954-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Imagens-sertões : space-images of prosa and

sertões-poesia in the Brazilian contemporarian movies

Palavras-chave em inglês:

Space and time Sertão - Brazil Movies

Área de concentração: Multimeios Titulação: Doutor em Multimeios Banca examinadora:

Francisco Elinaldo Teixeira [Orientador] Pedro Maciel Guimarães Júnior Wenceslao Machado de Oliveira Júnior Samuel José Holanda de Paiva Karla Holanda de Araújo

Data de defesa: 20-08-2015

Programa de Pós-Graduação: Multimeios

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Agradecimentos Depois'do'esforço'e'energia'despendidos'nesta'pesquisa,'nada'mais'justo'do' que'agradecer'aos'principais'responsáveis'por'ela.'Sendo'assim,'agradeço:' ' Ao'meu'orientador'e'amigo'Prof.'Dr.'Francisco'Elinaldo'Teixeira,'que'soube' me'conduzir,'habilmente,'de'uma'pergunta'a'várias.''

A' dois' outros' inspiradores,' Prof.' Dr.' Gonzalo' Abril' Curto' e' Prof.' Dr.' Wenceslao'Machado'de'Oliveira'Júnior.''

Às' pessoas' mais' importantes' da' minha' vida:' Lana,' Libâneo,' Lucas,' André,' Rodrigo,'Nilva,'Matheus,'Zilda,'Sergio,'tios,'primos'e'amigos.''

À' Unicamp,' Instituto' de' Artes,' professores' e' funcionários' do' programa' de' PósVGraduação.'

Ao' suporte' do' CNPQ,' necessário' para' uma' verdadeira' dedicação,' e' da' CAPES,'responsável'pelo'profícuo'exílio'acadêmico'na'Espanha.'

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RESUMO

VELASCO, Diogo Cavalcanti. Imagens-sertões: imagens-espaço de prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo. 2015. 224 f. Tese (Doutorado em Multimeios) - Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2015.

O espaço cinematográfico foi tratado pela maioria dos teóricos do cinema como algo concreto. As buscas pelos mecanismos estéticos (espacializações) que o transpõem para a tela de duas dimensões o encerravam em sua extensão e imobilidade. No entanto, o espaço deve ser pensado como algo multidimensional e dinâmico. Em conjunto com o tempo, ele é o produto de interrelações entre suas multiplicidades discretas simultâneas e suas dimensões (física, social, plástica e simbólica), em um contínuo processo de produção de imagens-espaço diretas e indiretas no cinema. Nesse sentido, pretendemos, nesta tese, demonstrar como é possível enxergar essa forma alternativa de pensar o espaço, também cinematográfico, especificamente em nossos objetos de análise que perscrutam o sertão nordestino a partir de sete filmes singulares, quais sejam: O Céu de Suely (2006, Karim Ainouz), Cinema, Aspirinas

e Urubus (2005, Marcelo Gomes), Árido Movie (2005, Lírio Ferreira), Central do Brasil

(1998, Walter Salles), Abril Despedaçado (2001, Walter Salles), Viajo Porque Preciso, Volto

Porque Te Amo (2009, Karim Ainouz e Marcelo Gomes) e Uma Encruzilhada Aprazível

(2006, Ruy Vasconcelos). Tendo em vista suas espacializações e suas imagens-espaço, veremos como se configuram sertões-prosa, sertões-poesia e prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo. Estruturamos, assim, nosso texto, em quatro capítulos que delimitam seu conteúdo temático e norteiam nossas discussões. No capítulo 1, apresentamos os filmes, lançamos questões iniciais sobre nossos problemas; o capítulo 2 aborda as relações entre a teoria do cinema e a produção espacial cinematográfica; o capítulo 3 introduz o termo imagem-espaço e seus fundamentos, além de apresentar uma metodologia de análise espacial fílmica e, por fim, no capítulo 4, analisamos os objetos da pesquisa, tendo em vista três blocos: sertões-prosa, sertões-poesia e prosa e sertões-poesia.

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ABSTRACT

VELASCO, Diogo Cavalcanti. Imagens-sertões: space-images of prosa and sertões-poesia in the Brazilizan contemporarian movies. 2015. 224 f. Tese (PHD in Multimedia) - Institute of Arts of the Campinas State University (Unicamp). Campinas, 2015.

The movie theorists, in major part, have always treated the space in the movies as something concrete. The searches for aesthetic mechanisms (spacializations), that transpose from three to two dimensions on the screen, closing it in its extension and immobility. However, the space must be thought as something multidimensional and dynamic. Along with the time, it is the product of interrelationships among its simultaneous discrete multiplicities and its dimensions (physical, symbolic, social and plastic), in a continuous production process of movies direct and indirect space-images. In this way, we intend, in this thesis, show how it is possible to demonstrate this in an alternative way of cinematographic space, specifically in our objects that handle with sertão nordestino, that are: O Céu de Suely (2006, Karim Ainouz), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, Marcelo Gomes), Árido Movie (2005, Lírio Ferreira), Central do Brasil (1998, Walter Salles), Abril Despedaçado (2001, Walter Salles),

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, Karim Ainouz e Marcelo Gomes) e Uma Encruzilhada Aprazível (2006, Ruy Vasconcelos). Taking for granted their spacelizations and

their space-images, we’ll see how prose and poetry sertões are configured in the Brazilian contemporary movies. In Chapter 1, we show the movies, opening initial questions about our problems; the chapter 2 approaches the relationship between the movie theory ande cinematographic space production; the chapter 3 introduces the term space-image and its fundaments, besides presenting a methodology of filmic space analysis and, finally, in chapter 4, we analyse the objects of the research, taking for granted three groups: sertões-prosa,

sertões-poesia and prosa and sertões-poesia.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1: Paraíso... 12

Imagem 2: Devaneio... 12

Imagem 3: Desejo aberto... 13

Imagem 4: Afeto... 14

Imagem 5: Luzes da cidade... 16

Imagem 6: Borboleta do sertão... 17

Imagem 7: Uma busca... 19

Imagem 8: Admiração... 20

Imagem 9: Um anúncio publicitário... 22

Imagem 10: Em cartaz... 23

Imagem 11: Subjetiva de um carro... 24

Imagem 12: Depoimento... 26

Imagem 13: Troca... 27

Imagem 14: Água potável... 28

Imagem 15: Tietê... 28

Imagem 16: Águas... 30

Imagem 17: Encenação... 30

Imagem 18: Falta d’água... 31

Imagem 19: Percebendo o sertão... 33

Imagem 20: Dança da maconha... 33

Imagem 21: Entre tempos... 34

Imagem 22: Passageiros... 37

Imagem 23: Entre cartas e destinos... 37

Imagem 24: Uma viagem... 38

Imagem 25: Um horizonte... 38

Imagem 26: Bebida... 39

Imagem 27: Procissão... 40

Imagem 28: Pietá invertida... 40

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Imagem 30: Notícias... 41

Imagem 31: A bolandeira... 43

Imagem 32: Tocaia... 44

Imagem 33: Vingança... 44

Imagem 34: O circo... 45

Imagem 35: Céu e sertão... 47

Imagem 36: O balanço... 47 Imagem 37: Chuva... 48 Imagem 38: O mar... 48 Imagem 39: Salto... 49 Imagem 40: Estudo... 51 Imagem 41: Casal... 52

Imagem 42: Uma estrada... 53

Imagem 43: Padre Cícero... 54

Imagem 44: Romaria... 54 Imagem 45: Romeiros... 54 Imagem 46: Pati... 55 Imagem 47: Miragem... 57 Imagem 48: Um pasto... 58 Imagem 49: Inércia... 59 Imagem 50: Estátua... 59 Imagem 51: Calmaria... 59 Imagem 52: Cotidiano... 60 Imagem 53: João... 61

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO 1: EXPLORANDO SERTÕES... 11

1.1 Em busca do céu... 11

1.2 Yes, nós temos aspirinas!... 20

1.3 Cinema árido... 27

1.4 Sertão etéreo... 35

1.5 Sertão despedaçado... 42

1.6 Eu quero uma vida lazer... 49

1.7 A Cruz do sertão... 56

CAPÍTULO 2: ESPAÇOS E ESPACIALIZAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS: SERTÕES E TEORIAS... 62

2.1 Sertão: espaço riscado e rabiscado... 62

2.2 Percebendo e montando espaço... 65

2.3 Encenando espaços ... 79

2.4 Criando os espaços no cinema... 87

CAPÍTULO 3: IMAGEM-ESPAÇO... 92

3.1 Abrindo os espaços... 93

3.2 Abrindo os espaços cinematográficos... 103

3.3 As multiplicidades discretas contínuas ou a simultaneidade dinâmica... 117

3.4 A variação das imagens-espaço (espaço-percepção, espaço-afecção e espaço-ação) e a imagem-espaço direta... 122

3.5 Buscando as imagens-espaço... 132

CAPÍTULO 4: SERTÕES-PROSA, SERTÕES-POESIA E PROSA E SERTÕES-POESIA... 135

4.1 Dos cinemas de prosa e poesia aos sertões prosa e poesia... 138

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4.3 Sertão-poesia e prosa... 155

4.4 Sertão-poesia... 165

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 177

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INTRODUÇÃO

A presente tese não foi fruto de uma vontade ingênua de escrever sobre cinema e o espaço sertanejo nordestino. Talvez apenas no quesito do afeto, que não se sabe de onde vem, que entrecruzou o sertão com sua cinematografia e nos fez buscar informações, livros, estudos, filmes, músicas, viagens, peças, conversas, mudanças etc. No entanto, não sei se podemos qualificar isso de ingenuidade. Somente sabemos que começou com algum intercessor. Esse lugar ermo, precário, cheio de mazelas, nos impulsionou a pensar o cinema, suas formas de representação, seus símbolos iniciais, para depois desconstruir todos esses seus qualificativos e dar-lhe outra vida. Sua aridez era, positivamente, uma ingenuidade.

A pergunta inicial era: por que se filma tanto esse espaço? O que existe de tão interessante para que, desde o início do cinema, o sertão do Nordeste voltasse a aparecer nas telas? O que existe de especial no sertão nordestino? As hipóteses foram surgindo. A primeira foi a sua condição territorial. Certamente, para quem é do Centro-Oeste, como nós, por exemplo, conhecer esse espaço é algo novo, diferente e desconhecido. No sentido patriótico, poderia ser o ideal de agrupamento, de ver o “exótico” também pertencer ao Brasil ou, por outro lado, no sentido de esculacho e senso comum de querer expurgá-lo das terras canarinhas. A segunda voltou-se à questão cultural. Êta cabras da peste que sabem fazer

coisa boa!!! É dança, música, literatura, São João, Padre Cícero, cangaceiro, pífano, etc. A

terceira condizia com a questão política, visto que, se o lugar demandava ajuda, então ele deveria se tornar visível, fazer parte das bolsas-imagens cinematográficas, para exigir que o governo tomasse suas providências.

Tudo isso se tornou, de fato, motivos para colocar o sertão nordestino na tela. O resultado dessa comprovação foi um processo que durou mais de dez anos de pesquisa e cem anos de cinema. A partir dos nossos primeiros estudos1, vimos que o espaço sertanejo era importante para a identidade nacional, avançamos para a sua incorporação ao país como um celeiro cultural e notamos que não havia como não lançar o Brasil em imagens se não fosse também por meio dessa região árida. Falar dela era dar voz ao nosso subdesenvolvimento. Por !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1!A recuperação nacionalista no cinema de Walter Salles (VELASCO, 2004) e O poder do local: sertões nordestinos no cinema brasileiro contemporâneo (VELASCO, 2009).

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conseguinte, o sertão do Nordeste sempre pediu uma chuva de cinemas que o relacionasse ao seu estado de terceiro mundo, ao seu esplendor cultural e ao reconhecimento de ser um lugar genuinamente brasileiro. Ele era metonímia, na medida em que podia chamar atenção dos brasileiros e dos cineastas e, por que não, do mundo.

No entanto, parece-nos que, em sua historiografia, cada uma das razões da presença do sertão do Nordeste no cinema nacional teria uma época ou um conjunto de características que encerraram diferentes épocas. O processo de historicização, às vezes, realiza tais equívocos. Os primeiros cinemas se encarregariam da necessidade territorial. Os nosdesterns e as primeiras ficções seriam representantes de sua relevância cultural e o cinema novo se encarregaria de transformar o sertão em ato político. Tudo parece sincrônico. Porém, os sertões nordestinos pertencem à história por meio de uma modulação. As necessidades de colocá-los nas telas sempre coexistiram nos três “períodos”: cultura, política e conhecimento (“nacionalização”). Não acreditamos que exista uma maneira de descolar essas três instâncias, principalmente no cinema, apesar de uma delas sobressair em cada obra ou grupo de filmes.

De qualquer forma, o espaço que o sertão ocupa é legítimo e relevante na cinematografia nacional. Resumiremos, então, seus ciclos históricos para atestar sua importância. Depois, por meio da contemporaneidade, vamos ressaltar um modo de pensar que projeta o sertão nordestino no cinema em nossos questionamentos atuais.

Quando o cinema surgiu no Brasil em 1896, ele acompanhou a tendência de circular câmeras pelos lugares desconhecidos. Era normal que, em um comércio de entretenimento, espaços que não se pareciam às cidades ou que estavam longínquos chamassem à atenção. Sabemos, na realidade, que isso era uma continuação da fotografia e das distintas traquitanas que existiam na época, e que ambas as formas de se invocar o sertão pelas imagens tinham a finalidade de construí-lo como pitoresco, primeiramente, e depois como uma estratégia política do Sul de nacionalizar o espaço. Promovia-se, com isso, a separação entre o desenvolvimento da cidade e a precarização do interior. Citadinos se envolviam com as fotografias da Campanha de Canudos (ARAÚJO, 1976, p. 40), com as vistas dos bandos de precatório para a seca do Ceará (idem, 1976, p. 126) e com a seca retratada nas expedições de Luiz Thomas Reis (SOUZA, 1981, p. 33). Os documentários de viagens se alternavam entre títulos, como “O Brasil Maravilhoso”, “O Brasil Pitoresco” ou “O Brasil Grandioso”. Por conta disso, os símbolos da região começavam a formar um imaginário coletivo e eram pulverizados para os habitantes, principalmente, da parte mais baixa do mapa brasileiro.

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caatinga, reforçavam um motivo de integração do Estado-Nação, e era isso que também queriam os políticos da região, que forjaram o Nordeste, denominação obtida em 1919. Suas estratégias giravam em torno de buscar subsídios do Centro-Sul do país, e essas características do sertão vinham como um trunfo para seus objetivos. Mas, antes de tudo, foi por meio dessas imagens, em conjunto com outras artes (literatura principalmente), que o nordeste foi conhecido pelo restante do país.

Inventavam-se tradições para o sertão nordestino. De símbolos, passaram a práticas culturais que reforçavam a criação da região. E elas se faziam por meio de uma folclorização que o transformava em um lugar do passado, intocado pelo processo de urbanização progressiva, resistente ao que vinha de fora. O Nordeste tinha suas próprias leis, danças, comidas, música. Era visto como o único celeiro de cultura realmente brasileiro. Se a literatura o cotejava com o seu movimento memorialista dos anos de 1930, por meio de autores como José Lins do Rego, José Américo e Raquel de Queiroz, até mesmo com o culturalismo de Gilberto Freyre, foi com Lima Barreto que o sertão se atualizou da mesma forma no cinema. O Cangaceiro (1953) inaugura o ciclo do cangaço na história da cinematografia nacional. Foi ele quem levou um “suposto” sertão nordestino às telas, visto que sua locação foi o interior de São Paulo. No entanto, o cangaceiro estava ali presente. Seu grupo regido por estatuto próprio, formados por homens e mulheres praticantes do banditismo, fazia atrocidades, mas cantava e dançava ao som de cantigas tradicionais. O grupo de mulheres rendeiras entoavam cantos próprios, ao levar o tacho de água em cima da cabeça. Com isso, a projeção do filme resultou no primeiro prêmio internacional do cinema brasileiro, melhor filme de aventura no festival de Cannes. Era a primeira vez que a

hinterlândia conquistava o mundo.

O Nordestern, cunhado por Salvyano Cavalcanti de Paiva e liderado pelo filme de Lima Barreto, traduzia em seu próprio nome as suas semelhanças com o gênero de bang bang americano. A representação de um espaço onde a lei não foi institucionalizada, a força inócua do xerife (ou volante), a aridez local e ampla, entre outras similaridades, faziam nascer um filão, o blockbuster para o mercado cinematográfico nacional. O banditismo social virou espetáculo, imobilizou o espaço como um lugar de fábula, voltado para o passado. A associação com o interior do Nordeste brasileiro era direta, um interior atrasado, rústico e perigoso. Mas, o cinema ganhava dinheiro e o ciclo durou até o fim da Embrafilme. Alguns de seus representantes são O primo do cangaceiro (Mário Brasini,1955), A morte comanda o

cangaço (Carlos Coimbra, 1960), Lampião, rei do cangaço (Carlos Coimbra, 1963), Três cabras de Lampião (Aurélio Teixeira, 1962), Nordeste Sangrento (Wilson Silva, 1962), Entre

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o amor e o cangaço (Aurélio Teixeira, 1965), Quelé do Pajeú (Anselmo Duarte, 1969). Sua

contribuição para a bilheteria não traduzia uma mobilidade espacial, que ficou marcada como esses espaços das vendetas.

Nos anos 1960, o cinema adotou a outra diretiva da literatura de 1930 (João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado), ou seja, sua predicação social. O espaço sertanejo virou o lugar da revolta, enraizamento da cultura nordestina, metonímia de um país danado por suas condições sociais. Na querela entre universalistas (Flávio Tambellini, Walter Hugo Khoury) e nacionalistas (Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues), eram os nacionalistas que colocavam em pauta o brasileiro nas telas, e uma das formas era evidenciar esses espaços nacionais alegoricamente. Deixava-se o repertório folclórico, compilação da cultura prosaica, para o seu questionamento nos sentidos humanistas, da práxis humana e da urgência política.

Influenciados por uma postura de esquerda típica do nacionalismo da classe média da época, os cineastas queriam provocar um maremoto social. Com isso, queriam que o “povo” se rebelasse, que criasse revolta. Era o cinema como expressão cultural, mas também de mudança, de desalienação popular. Seguindo essa prerrogativa, além de Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), foi a trindade seca quem lançou novamente o cinema para além-mar.

Se, de modo geral, as “coisas nossas” foram entendidas na época do mudo, com seus prolongamentos atuais, como um olhar para a majestosa natureza ou a vida interiorana, a partir dos anos 50, com os filmes de Nelson Pereira dos Santos e outros, e mais radicalmente com o Cinema Novo, voltar-se para o Brasil não quer mais dizer descrever costumes locais, mas sim ter da sociedade brasileira uma visão crítica, analisar suas contradições numa perspectiva sociológica. Filmes como Vidas Secas, Os fuzis e Deus e o Diabo na terra do Sol (1963- 1964) não procuram mostrar como vive “o nosso sertanejo”, “o nosso caboclo”. Mas cada filme, através do assunto particular que focaliza, procura fornecer uma análise globalizante da sociedade brasileira, ou do “Terceiro Mundo”. (BERNARDET, 1978, p. 75).

Era a tentativa de transformar o espaço em outro, pautá-lo como necessidade de ser lugar do olhar crítico e não de compêndio da cultura. Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1963), Os Fuzis (Ruy Guerra, 1963) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) são representantes dessa vontade política, embebidos do que se tornaria o manifesto da Estética da Fome (Rocha, 1965), que já englobava preceitos da I Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica (1960).

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1) Um novo tipo de produção, sem escrúpulos técnicos. 2) O homem como tema, isto é, a tentativa de encontrar o homem brasileiro, o homem da rua, o homem da praia e do sertão, a busca deste homem, de sua maneira de falar, de andar, de se vestir, de existir, seu trabalho, sua estrutura mental etc. 3) Uma nova linguagem, que se esboçava naqueles filmes (os documentários). (CAPOVILLA, 1960 citado por GALVÃO; BERNARDET, 1983, p. 196).

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), as tentações alienantes estão dispersas na aridez sertaneja. Sua síntese está na figura de Manuel, que possui três devires ao longo do filme: Manuel-vaqueiro (explorado pelo coronel), Manuel-beato (integração no grupo religioso) e Manuel-cangaceiro (arrebanhado por Corisco). Em cada fase, a desalienação vai sendo construída em benefício da libertação humana, da crença no homem. Resume-se nos versos de cordel destacados por Xavier (2007, p. 89): Tá contada a minha história / Verdade,

imaginação / Espero que o Sinhô / Tenha tirado uma lição / Que assim mal dividido / Esse mundo anda errado / Que a terra é do homem / Não é de Deus nem do Diabo!

Já Vidas Secas (1963), baseada na obra homônima de Graciliano Ramos, conta as desventuras de Fabiano e sua familia. Parecem uma matilha que se muda de posto de acordo com a escassez de comida, sempre coordenados pela estação chuvosa e seca. Essa visão determinista do homem sertanejo, o alça a um estado animalesco, mas gera um paradoxo, por seus anseios de melhoria de vida, condição que não alcançam pela exploração do coronel. Por último, Os Fuzis (1963) apresenta a temática da revolta que não se sucede, assim como em

Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), tendo como foco principal a incitação

da indignação popular por um caminhoneiro, que é morto, ao final, por um grupo de soldados. Essas tentativas de alegorização, de se colocar o espaço como elemento-meio para se falar de uma cartografia de poder fixa do sertão e brasileira (cinema novo), assim como a volta a um passado “histórico-cultural” (Nordestern) e a busca por colocá-lo no mapa nacional (Primeiro cinema), impediam a dinamização sertaneja no que diz respeito a suas dimensões simbólicas. Em qualquer uma das vertentes, os estereótipos eram reproduzidos, mesmo quando usados em prol de um ideário desalienante. Contribuíam para uma composição historiográfica compartimentada de suas imagens e de modos de espacialização sertanejas. Feito isso, procedeu-se à criação de referências, convenções, que estabilizavam e se reproduziam em novos filmes sobre esse espaço. Contudo, a era contemporânea de se fazer cinema no Brasil, a partir do que é considerado como retomada com Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995), introduziu novos elementos para se pensar a simbologia sertaneja cinematográfica. Nessa época, o sertão já havia se tornado sertão-mundo, ultrapassou fronteiras nacionais e se configurou como uma possibilidade de identificação mais imediata

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com o característico nacional. Cinemas alocados no sertão, assim como nas favelas, eram recebidos nos mais diferentes festivais. Em sua diáspora, até o último filme que se seguirá como objeto dessa pesquisa, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Marcelo Gomes e Karim Ainouz, 2009), sua diversificação era fomentada por títulos como Central do Brasil,

Abril Despedaçado (Walter Salles, 1998), O auto da Compadecida, Lisbela e o Prisioneiro

(Guel Arraes, 2000 e 2003), Eu, tu eles (Andrucha Waddington, 2000), O caminho das

Nuvens (Vicente Amorim, 2003), O homem que desafiou o diabo (Moacyr Góes, 2007) e A Máquina (João Falcão, 2006), Narradores de Javé (Eliana Caffé, 2003), Baile Perfumado

(Lírio Ferreira, 1997), Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2007), Cinemas Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005), Deserto Feliz (Paulo Caldas, 2007) e O Céu de Suely (Karim ainouz, 2006), 2000 Nordestes (Vicente Amorim e David França Mendes, 2000), Sertão de Memórias (José Araújo, 1997) e O Fim e o Princípio (Eduardo Coutinho, 2005) etc. Esses filmes, de uma forma distinta da história das imagens que identificavam o sertão, o diversificavam e o ressignificavam ao mesmo tempo.

Colocaram as dimensões políticas, culturais e de identidade nacional de cabeça para baixo. Às vezes repisando a convenção, às vezes a ultrapassando. Ás vezes faziam homenagem ao cinema novo, outras buscando um novo cinema nordestino, principalmente os filmes que foram realizados na própria região, algo que se tornou mais intenso a partir da produção constante pernambucana (“movimento” Árido Movie). Tal postura começou a se perguntar que sertão filmado era esse. Surgiram, então, preocupações, de acordo com a contemporaneidade, como a modernidade, a entrada do capitalismo, o crescimento das cidades, a mercantilização da cultura nordestina, os novos pólos industriais verdes, o turismo sexual, o tráfico de animais, a volta dos retirantes e o deslocamento facilitado. Isso gerou inúmeras produções que construíam sertões-trânsito, sertões-muderno, sertões-sujeito, sertões-líquidos, etc. (VELASCO, 2009).

Logo, chegamos à era da mobilização sertaneja. Menos signos identificadores foram empreendidos ou, pelo menos, se tornaram diversos. As espacializações, no que tange aos procedimentos estéticos, também seguiam o mesmo caminho. Porém, questões ainda restavam, o que nos levou aos principais problemas presentes nesta pesquisa. Antes de pontuar qualquer elemento de significação no sertão, não deveríamos refletir sobre a forma como o cinema pensa o espaço e, por consequência, o espaço sertanejo? As formas de

espacialização no cinema também modificam nossas formas de lidar com ele? O que se

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Isto é, ficamos intrigados com a questão espacial em si primeiramente. A teoria cinematográfica sempre se debruçou sobre o espaço, mas em sua maioria o traduziu como uma dimensão possível de ser representada, isto é, passá-la das três para as duas dimensões. Se pensarmos no sertão nordestino, por exemplo, e escolhermos ele como locação, o que se estudava eram as formas pelas quais teríamos a impressão de realidade de estarmos ali, ou de ser um palco para uma ação, ou como os processos cinematográficos o espacializava por meio dos seus processos perceptivos, de montagem e encenação, de modo a construí-lo fisicamente, imobilizando-o. O que víamos era uma determinação, um quase apagamento espacial em favor da trama ou do tema. O espaço cinematográfico não era pensado nem como imagem, nem como algo que poderia ter constituição própria, dinâmica. Ele estava ali, encerrado, posicionado, e suas questões giravam em torno de como ele era apreendido concretamente e traduzido para o cinema.

Montar ou encenar, por exemplo, eram procedimentos estéticos que construíam espacialidades por meio da contiguidade, continuidade, planificação, etc. Diversos mecanismos dentro dessas duas formas de espacializar transfeririam a locação para a imagem. Eram resultado. No entanto, o espaço é algo maior, e, por isso, devemos mudar a forma de compreendê-lo. Ele, também cinematográfico, não pode ser pensado apenas em sua dimensão física, mesmo que ela exista e seja fator importante para a sua análise. O constructo que parece estável, imóvel, sempre tem a ver com um processo que nunca se acaba. Ele só aparenta uma fixidez, por isso é irrepresentável. Colocar uma câmera em plano geral no Catimbau, depois focar uma casa em sua vastidão e terminar com um plano médio de um sertanejo saindo pela porta, não é inventar e fazer perceber onde estão seus agentes, construir um espaço definitivo. É uma imagem indireta da produção espacial contínua, levando em consideração suas várias dimensões (estética, política, social, física). Devemos pensar o sertão nordestino, por exemplo, como um lugar representante da discussão de como o cinema faz entrever o processo espacial, de como suas dimensões nunca estão esgotadas e são plurais na construção do espaço. Elas são agentes importantes para a visibilidade do processo, para o devir em cada um dos seus cortes produzidos. Com isso, queremos dizer que uma dimensão não exclui a outra, apenas agem de forma simultânea e coetânea, na interrelação.

Assim, pensar o espaço geográfico (MASSEY, 2009) e o espaço cinematográfico dessa forma é construí-lo por meio dos seus agentes, das suas dimensões diversas, na simultaneidade e em suas relações. Em um processo ininterrupto, seus elementos são atuantes e se colocam em relação, a fim de uma produção de espacialidades, que não são um todo, mas suas imagens. Elas são cortes móveis que estão para explodir, como elétrons de um átomo que

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podem se chocar, e produzir inúmeros novos espaços. Estão em direção a espaços-ação, tão bem organizados pelos espaços-perceptivos, proliferando-se nos espaços-afetivos entre um e outro, ou se constroem por meio de espaços-quaisquer (desconectados, vazios, fragmentados, cristalizados e naturezas mortas). É válido, também, pensar que pode haver outras formas a serem vistas e analisadas.

São essas imagens-espaços que dão a dinâmica contínua de expressão de um todo espacial, direta e indiretamente. Sendo assim, se voltarmos aos nossos objetos, é por meio dessas imagens que os sertões deixam de ser focos de construção de mapas para serem um todo que se constrói na imagem, sempre temporalizados. A fuga para a desterritorialização, para a quebra de suas dimensões determinadas, deixa as suas multidimensionalidades se construírem coetaneamente, para entregarem um sertão-bolandeira, em Abril Despedaçado (2001), um sertão-parábola, em Central do Brasil (1998), um sertão-subjetivo em Viajo

Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), ou um sertão-movente, em O Céu de Suely

(2006).

Eles têm a ver com o todo do filme e o todo que está para além dele. São sertões-movimento e sertões-tempo que acompanham as imagens de Deleuze (1985, 2007). Nesses distintos regimes de imagem, imagem-movimento e imagem-tempo, tais espaços se constroem em conjunto com as produções temporais cinematográficas, pois, se existe tempo, existe espaço. São blocos, uma coconstituição, que leva em conta todas as suas dimensões. Alguns expressam o processo de construção espacial indiretamente e outros diretamente, mas o espaço sempre está presente em sua forma genuína. Ou seja, encenação, montagem, elementos estéticos, e as distintas dimensões (físicas, sociais, simbólicas, etc...) são todos agentes (multiplicidades discretas dinâmicas) em busca de produzir e expressar o espaço sertanejo nas telas como processo, são sertões-processo.

Sendo assim, queremos aprofundar, pensar nos blocos espácio-temporais da imagem cinematográfica e analisar de que forma ela produz esses espaços sertanejos. Nosso objetivo é justamente entender se os objetos da presente pesquisa podem nos ajudar a promover uma forma alternativa de pensar o espaço no cinema, de acordo com esse novo pensamento espacial (coetâneo, inter-relacional e eventual). Para isso, vamos fazer uma revisão bibliográfica que esteja cotejando esses pontos. Primeiro retomando as teorias que buscavam a superficialidade espacial à luz dos estudos de Burch (1973), Aumont (2002, 1995), Arnheim (1989), entre outros. Depois, vamos rever como isso também acontece em outras teorias das ciências humanas e propor o pensamento espacial de Doreen Massey (2009). Por fim,

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chegaremos ao encontro entre a autora e as imagens de Deleuze (1985, 2009), que retoma Bergson (1990, 1979), e que contribui para compormos as imagens-espaço.

O sertão virá entremeado nesse caminho da pesquisa. Inicialmente, de uma forma apenas impressiva, deixando que os filmes sejam analisados livremente. Posteriormente, sendo exemplo para as revisões bibliográficas. Por último, quando os objetos estiverem constituídos em alguns blocos de análise não ortodoxos (sertão-prosa, sertão-poesia e prosa e sertão-poesia), vamos fazer nossa introdução à forma alternativa de pensar o espaço e enxergar uma possibilidade de dar abertura a ele por meio de uma análise. Os sertões querem se abrir a todas as dimensões, ganhar seus status de aberto, ser chuva e sol ao mesmo tempo, ser mar e interior, moderno e arcaico, passado e presente. Enfim, ser um território desterritorializado, por se fazer, de múltiplos devires, assim como o espaço o é no cinema.

Para uma melhor compreensão, a tese estrutura-se em quatro capítulos que problematizam a presente temática. O primeiro capítulo se chama Explorando sertões porque busca explorar, entrar em contato com o desconhecido. São as primeiras impressões dos filmes da pesquisa. Eles seguem a seguinte ordem: O Céu de Suely (2006, Karim Ainouz),

Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, Marcelo Gomes), Árido Movie (2005, Lírio Ferreira), Central do Brasil (1998, Walter Salles), Abril Despedaçado (2001, Walter Salles), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, Karim Ainouz e Marcelo Gomes) e Uma Encruzilhada Aprazível (2006, Ruy Vasconcelos). É uma forma de descrição literária, a partir

do que os filmes intercedem, sem muito critério analítico e fugindo um pouco da apresentação da sinopse, ficha técnica, produção, etc. O que visamos com isso foi dar a oportunidade do leitor lançar os olhos sobre os filmes, introduzindo seus elementos, seus agentes e seus sertões.

Em Espaços e espacializações cinematográficas: sertões e teorias, começamos a tatear algumas questões sobre o espaço cinematográfico. Cotejamos algumas das teorias que o abordam, enfatizando que a maioria delas volta-se para um estudo sobre a representação mimética. Por meio de Burch (1973), Munsterberg (2002), Aumont (2002, 1995), Arnheim (1989), Bordwell (2008), entre outros, construímos um caminho de como eles escrevem sobre as formas como percebemos o espaço, como o montamos, o encenamos, e sobre o próprio espaço da tela. Muitas dessas teorias levam-nos a uma maneira de pensá-lo extensivamente, como se o espaço fosse um objeto que está aí para ser apreendido e não para ser dinamizado e construído cinematograficamente. Nossa proposição é de que essa era a maneira como o espaço era entendido, e isso resultaria em implicações e experiências nos filmes.

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No terceiro capítulo, intitulado de Imagem-espaço, acreditamos que esteja nossa maior contribuição com relação a uma forma alternativa de pensamento sobre o espaço no cinema, tendo em vista o que discutimos no capítulo 2. Levando em consideração as três proposições de Massey (2009) sobre o espaço geográfico (inter-relação, coexistência de trajetórias e eventualidade), e buscando a teoria de Deleuze (1985, 2009) em “Imagem-movimento” e “Imagem-tempo”, pretendemos dar abertura espacial também para o cinema. Entendemos que o espaço-tempo é uma coconstituição e que podemos analisar de que forma os espaços vão sendo construídos de modo dinâmico, incessante e sempre em busca de uma eventualidade. Por meio das distintas imagens-movimento e imagens-tempo, procuramos entender como as imagens-espaço também se formam e de que maneira elas poderiam ser analisadas nos filmes.

Por fim, em Sertões-prosa, sertões-poesia e prosa e sertões-poesia, nosso quarto capítulo, por meio dos atributos dados a um cinema de prosa e poesia por Pasolini (1981) e Sklovski (1928 apud ALBERÁ, 1998), colocamos os filmes da pesquisa em uma gradação não ortodoxa, pensada a partir, principalmente, da constituição de suas imagens-espaço. A análise tem como fim apontar de que modo os espaços-percepção, espaços-ação, espaços quaisquer, espaços-cristais, entre outros, vão sendo construídos nos cortes móveis espaciais de cada filme. A taxionomia criada foi pensada de modo a facilitar essas distinções e apresentar mais uma modulação de como isso acontece, visto que existe uma multiplicidade de imagens-espaço presente em todas as obras.

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CAPÍTULO 1

EXPLORANDO SERTÕES

Este capítulo traduz um olhar impressivo sobre as obras analisadas. Buscamos problematizar livremente os agentes que constroem seus sertões heterogêneos e que prenunciam suas imagens-espaço. O céu de Suely (2006), Cinema, Aspirinas e Urubus (2005),

Árido Movie (2005), Central do Brasil (1998), Abril Despedaçado (2001), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), Uma Encruzilhada Aprazível (2006) constituem este

grupo de narrativas espaciais que deflagram cortes móveis sertanejos e seus processos de construção contínua.

1.1 Em busca do céu

Hermila quer novamente alcançar um lugar: seu céu. Não sabe se fugiu dele ou se o persegue, se foge do seu inferno. O prólogo do filme anuncia este lugar celeste subjetivo, visto após o título O Céu de Suely, com suas letras de tons azuis em degradê. Eis que, na primeira imagem, essas cores se prolongam estampadas na blusa de Hermila e no azul do céu. Nesse momento, ela está no céu, no seu céu. Hermila o descreve em voz off: “Eu fiquei grávida num domingo de manhã / Tinha um cobertor AZUL de lã escura / Matheus me pegou pelo braço e disse que iria me fazer a pessoa mais feliz do mundo / Me deu um CD gravado com todas as músicas que eu mais gostava / Ele disse que queria casar comigo ou então morrer afogado”.

O céu de Hermila é de um domingo de lã azul, granulado, composto por imagens que fogem ao movimento, que se desfiguram e não possuem nitidez no contorno de seus elementos. Os pontos pretos, riscos de película antiga, mais essa granulação extrema, indicam um devaneio, ou resquícios de memória, ou uma idealização. Assim, a narrativa se constroi por meio de três artifícios: a voz off de Hermila que se enuncia, o contraste estético com o realismo da próxima sequência de planos e o primeiro plano desta, que foca o rosto de Hermila com o seu olhar disperso. Parecem aqueles momentos em que fazemos grandes

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viagens, sentados nos assentos do ônibus, e nos deixamos perder, sonhamos acordados, embalados pelo ócio forçado.

Imagem 1: Paraíso Imagem 2: Devaneio Fonte: Filme O Céu de Suely (2006) 2

É nesse vago olhar de Hermila que encontramos o que configura seu céu. Ele é composto pela figura solar de Matheus (que em sua única imagem tem como figurino uma bermuda AMARELA), pelo amor, pelo conforto de um calor de um edredon azul de lã escura, pelo carinho de alguém que grave suas músicas, pelo auspício de ser a “pessoa mais feliz do mundo”. Hermila pode ser descrita nesse primeiro momento como uma personagem romântica e sonhadora, que projeta a felicidade no romance pleno entre duas pessoas. Ao sonhar acordada, ela quer se lembrar do dia em que ficou grávida, do que seu companheiro lhe disse, da felicidade que está abandonando momentaneamente ao sair de São Paulo. Esse romantismo é pontuado musicalmente pela canção Tudo que eu tenho, interpretada por Diana, que descreve esse momento de separação e espera pelo reencontro: Que bom seria ter / Seu

amor outra vez / Você me fez sonhar / Trouxe a fé que eu perdi / E nem eu mesma sei por que

/ Eu só quero amar você / Tudo que eu tenho meu bem é você / Sem seu carinho eu não sei

viver / Volte logo / Meu amor. Pela aparência de Hermila, em seu céu, pontuada por um de

seus traços que a caracteriza como personagem, que é a mecha clara no cabelo (feita em São Paulo) e pelo cenário (um campo de areia, dia ensolarado, poucas habitações ao fundo e a vegetação característica do semiárido), a sequência inicial imprime um desejo idealizado da personagem, seu possível futuro, enquanto a voz fala de um passado, de uma memória que é construída no momento da fala, do seu pensamento. O que Hermila almeja é reencontrar Matheus em Iguatu. O céu de Hermila, no início do filme, está próximo. Ele é Iguatu,

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Matheus e seu filho. É a constituição tradicional da família, do casamento. Os papéis que são construídos pelo que deseja Hermila até então são de mãe e esposa.

Há uma imagem emblemática que, em si, representa o tamanho desse céu de felicidade de Hermila ao chegar a Iguatu. Ao descer do ônibus, na estrada, ela fica de pé esperando para atravessar a pista. Dois terços do quadro se preenchem com o céu do sertão, azul, e com poucas nuvens, impondo sua superioridade perante a terra, no terço da imagem em que se encontra Hermila. O horizonte toca seu corpo, mostra a magnitude do seu desejo. Ele é amplo, azul, limpo de nuvens, chuvas e trovoadas.

Imagem 3: Desejo aberto Fonte: Filme O Céu de Suely (2006)

A construção do céu de Hermila é colocada em prática a partir de sua chegada em Iguatu. Existiram outras construções de outros céus pela personagem. Hermila já havia deixado Iguatu para morar em São Paulo, na época em que fugiu com Matheus. Esse foi seu primeiro movimento de translação celestial. Não temos imagens da capital paulistana, nem de como era sua vida com Matheus. Mas, temos sugestões por meio das falas de Hermila quando, por exemplo, sua tia Maria lhe pergunta como era sua vida lá e ela responde: “Era boa, mas lá é tudo caro, não dava mais pra ficar lá não. Aí a gente decidiu voltar”. Também, temos signos indiciáticos de sua vida pregressa, como a mecha de cabelo de Hermila, que em duas vezes tem relevância em diálogos: 1 - Maria pergunta se é moda em São Paulo; 2 - Na primeira carona que João dá a Hermila, afirma que seu cabelo a havia deixado bonita, mesmo que tenha ficado estranho. Na conversa com Matheus ao telephone, ela também afirma que Mateuzinho não se acostumou ainda com o calor e que também não se acostuma. O que

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indica, implicitamente, uma comparação entre os climas das duas cidades. Enfim, são resquícios de seu trânsito e de sua reretirância. Se o filme não mostra São Paulo, é porque é o movimento de volta que interessa à Hermila, mesmo que, como vemos depois, ela se torne um motivo para uma nova busca e um novo movimento.

Ademais, a fuga de Iguatu não se deu por motivos econômicos. O que a moveu e deu início a esse movimento pendular foi uma questão passional. Foi São Paulo que a expulsou por seu instinto contemporâneo de não ser mais o paraíso da urbanização, visto que este céu já se encontra demasiadamente povoado. A fuga de São Paulo não é vista como um fracasso por Hermila, uma vez que não existe um peso ou dor nessa volta a Iguatu. Ao contrário, é no interior que, inicialmente, existe a possibilidade da concretização da felicidade para ela. O sertão não parece ser um lugar de sobrevivência, mas de vivência. É uma possibilidade de também ser um paraíso.

É devido a essa questão que percebemos um retorno tranquilo e solar de Hermila para a cidade. No reencontro com sua avó (Zezita) e tia (Maria), seu núcleo familiar, só existem demonstrações celestiais de afeto, mesmo que tenha fugido quando foi embora com Matheus. As paredes de cal batida da casa continuam tangenciando os tons de azul do filme, como vimos na cena da sua primeira ceia, após sua tia buscá-la da rodoviária. Esse retorno à família, que se encontra nas refeições, é um abrigo para Hermila. Logo, Iguatu estava aberta para o seu retorno e se coloca como um espaço afetivo no primeiro momento.

Imagem 4: Afeto

Fonte: Filme O Céu de Suely (2006)

O lugar da casa antiga em que vivia, regido por duas mulheres, agora comporta mais uma, a representante da terceira geração da família. Essa diferença geracional, inicialmente, não existe como um problema. São mulheres que se compreendem e partilham de um estilo de

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vida parecido, apesar das diferenças de idade. Não reproduzem o habitus da mulher dona de casa, embora também o sejam, mas isso é parte do que é ser reponsável pela sua vida sem a necessidade de alguém do sexo masculino, mesmo que com Hermila isso tenha sido motivo para um movimento, como havia feito com Matheus. O que acontece a ela é justamente uma trajetória de desprendimento, da desvinculação do seu gênero oposto. Suas ações se tornam fugas. Ela procura por uma desconstrução de algo a que se submeteu. O que era fator de

movência deixa de sê-lo. Esse é, inclusive, o papel que João representa no filme, além dos

homens da cidade e até de Mateuzinho. Nenhum deles é motivo suficiente para manter Suely em Iguatu.

Em outras palavras, os personagens do gênero masculino do filme estão à margem e são objetos de uso das mulheres para a sua “sobrevivência” ou são dependentes delas. Um deles, como afirmamos, é Mateuzinho que, por ser bebê, necessita de cuidados. Parece-nos o membro da nova geração que talvez ofereça um novo lugar para essa construção do masculino. O outro é João, antigo caso de Hermila em Iguatu. Eterno apaixonado que a espera, mas que não está dentro dos planos de Hermila. Existe uma postura ambígua dela com relação a João, que há todo momento está à mercê dos seus momentos de carência. Matheus que, apesar de ter sido seu grande amor, não é motivo para sua volta a São Paulo. É uma decepção, mas em nenhum momento paralisa Hermila. Enfim, o universo masculino parece sempre estar apartado do feminino. As mulheres estão sós ou preenchem alguns de seus momentos com eles, mas nenhuma delas os coloca como fator de sobrevivência, nem Georgina que, por ser prostituta, necessita deles pra sobreviver. Entretanto, nela não existe um ressentimento por estar sozinha. Nem a mãe de Mateus, que também aparece sem companheiro, ou não há necessidade de mostrá-lo. Inclusive existe uma importância no papel do filho, que é visto como alguém que não tem culpa de ser homem. Mateuzinho é o filho que ainda não fala e Mateus é o filho que, como a mãe diz: “ainda tem vinte anos”. Por fim, os outros homens da cidade são apenas objetos de mediação para o objetivo de Hermila: que é partir para o próximo céu. São consumidores do produto que ela cria (noite no paraíso com Suely) e não existe um contato maior com eles do que a compra da sua rifa.

Além disso, a construção das personagens da família de Hermila contribui para essa expulsão da figura do homem como regente da vida feminina. Maria é homossexual e moto taxista, poderia ser entendida como a “cabra macho” sertaneja. Tem uma sexualidade apaziguada perante a comunidade de Iguatu. Não existem preconceitos diretos abordados pelo filme e Maria está sempre inserida em meios ditos masculinos, como o bar, o lugar em que trabalha, o posto etc. Seu desejo é explorado no filme como algo legítimo, mas não se

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concretiza por falta de correspondência de Georgina, mais uma “cabra macho” que não conquista sua posição de homem no filme. A prostituta do posto tão desejada por Maria não se deixa levar por sua construção masculina. Já Zezita é uma senhora que trabalha como ajudante de cozinha de um restaurante e é a matriarca da família. Não sabemos se houve um marido, se é viúva ou separada. Ela, como chefe da casa e avó, tenta manter os bons costumes e a moralidade dos integrantes. É a representante da tradição. Entretanto, é dentro do lar que tudo se acomoda e que existe lugar para as (con)tradições. Na racionalizada busca pela moral, o afeto empurra a porta para uma filha que é homossexual e uma neta que fugiu de casa e que se rifa para seu novo êxodo.

E este é pensado exatamente quando o céu se apaga para Suely e o horizonte deixa de ser azul. A notícia de que Matheus fugiu, se mudou, é dada por uma funcionária da firma onde ele trabalha, que se chama CELESTE. Esse mundo celeste ficou em São Paulo, e Iguatu, que estava solar, passa a ser negra a partir de então. Na maioria das cenas de locações externas, após esse acontecimento, é a noite que toma conta. E ela vem com o que proporciona: melancolia, superação, decepção, bebida, encontros e diversão. Esse céu noturno, que guarda forças para que o dia nasça, adquire um tom poético, com suas luzes pontuais de postes, luzes de carros, que parecem estrelas, mas que permanecem desfocadas e em movimento, como está Hermila, nesse movimento de luz que aparece e desaparece, à procura de uma estratégia para movê-la.

Imagem 5: Luzes da cidade Fonte: Filme O Céu de Suely (2006)

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E ela a encontra entre o consumo do sexo e do corpo feminino, entre o machismo do sertão e a venda criativa e publicitária da imagem da mulher como moeda de troca. Ser Suely para voltar a ser Hermila. Seu movimento, que começa com o abandono pelo pai de seu filho, o que faz com que ela não concretize a vida que idealizou, agora se encontra em um novo estado, o da mudança. Por isso, sua passagem por Iguatu é apenas a fase do casulo. Hermila, como devir-casulo, precisa nutrir forças para passar a devir-borboleta. Há uma cena que demarca esse ponto de virada: à beira da estrada, no entardecer, ela procura seu brinco no asfalto. Encontra-o, coloca em sua orelha e segue até a moto de João. Já em movimento, Hermila se deita em seu ombro. A trilha extradiegética é minimalista e passa para um eletrônico em um crescente, ganhando mais instrumentos e dando ênfase para esse rompimento da casca do casulo. Ela veste uma blusa com a figura de uma borboleta com o céu estampado em suas asas. Hermila quer voar e ganhar o mundo?

! !

Imagem 6: Borboleta do sertão Fonte: Filme O Céu de Suely (2006)

A passagem de Hermila para essa fase de armazenamento de forças tem dois “combustíveis” importantes: o sexo e o dinheiro. A cena seguinte à da moto é a primeira cena de sexo de Hermila com João, um momento de rompimento do hímen para o seu próximo self, Suely. O sexo, então, figura como concepção, gestação e nascimento da liberdade em direção à mulher que se rifa, mas que se nega como puta. É tendo o sexo como mercadoria que Suely conseguirá seu dinheiro para comprar a passagem para seu destino, o mais distante de Iguatu, o qual carrega o nome de Porto ALEGRE. O nome do destino de Hermila diferencia radicalmente o que significa Iguatu nesse momento para ela. Um Porto é um lugar rodeado

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por água e, além disso, um lugar de onde chegam e vão embora navios com destinos variados, sempre levando sua mercadoria para alhures. Estão sempre procurando um porto para atracar. Alegre indica felicidade, lugar onde se mover é ser feliz. E Hermila/Suely, São Paulo/Iguatu/Porto Alegre marcam esse entre-lugar ou o lugar não definitivo. Não é nem São Paulo, nem Iguatu, nem Porto Alegre, nem Hermila, nem Suely. Está à deriva, atrás do seu Porto Alegre, nem que para isso ela tenha que vender sua noite no Paraíso.

E é assim que sua movência será sustentada. Hermila rifa Suely. É a venda do seu Éden, da maçã de Hermila no paraíso ou consagração da sua inocência perdida, do desejo de ser Eva-Suely. Em pouco tempo, os bilhetes se esvaem. Viram sucesso na cidade pequena. Algo não muito difícil de acontecer quando se transgride alguma norma, seja pelo desejo ou pela novidade. Mas, ela já tinha hábitos que iam de encontro aos costumes de Iguatu. Pertence a uma família em que as mulheres dominam seus destinos e estão à margem da sociedade tradicional, mas não se importa com isso. É um misto de sobrevivência e arrogância pelos traços da vida que teve em São Paulo. É amiga de Georgina Jéssica, prostituta do posto da cidade. Também não a causa nenhuma estranheza sua amizade com ela, nem o fato de se rifar ou ter que ser uma mulher que lava carros (trabalho típico de homens) para sobreviver.

Quando chegou a Iguatu, Hermila reproduziu os traços da comunidade. Ou seja, o reencontro com quem a conhece, com os amores antigos, os lugares que frequentava. Esses traços de confiança comunitária são tão fortes que Hermila chega a pedir a uma amiga que guarde seu filho, enquanto vai trabalhar vendendo rifas de Uísque. É Suely quem quebra esse vínculo comunitário. E essa quebra com os bons costumes, com a moral dos habitantes da cidade é bastante reforçada no filme. Isso acontece em três cenas, por meio de campos de relações diferentes: com a avó, com o rapaz da estação rodoviária e com a senhora da loja de roupas. A primeira está no campo familiar e resulta em um movimento ambíguo, o da desculpa e respeito pela avó, que não quer ser mal vista pelos vizinhos, mas que tampouco representa um padrão de modelo pra sociedade e o da expulsão, com retorno em pouco tempo. Há uma complexidade tanto na avó quanto na neta, em relação ao que deve ser pensado como moral. E é onde o afeto suporta e promove a quebra de valores. A segunda é a que representa um tipo de conservadorismo ao revés masculino, pois o rapaz da estação, ao contrário de todos os homens da cidade, considera a atitude de Hermila revoltosa e a expulsa do local. Esse acontecimento relativiza o papel do comportamento masculino frente à questão da rifa. O personagem de João Miguel também não aceita, mas isso passa muito mais pelos seus sentimentos do que por sua moral. E a terceira e última, relaciona-se às mulheres de Iguatu,

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Contudo, essa volatilidade no que pensa ser Hermila, se quer ou não ser Suely, se quer ou não ser puta (“sou puta não”), se é ou não Hermila (a menina que pensa em casamento e que foge por amor), se transgride os valores locais ou estabelece novos, é o que quer pensar o filme: na mudança ou na busca. E isso reverbera na cidade de Iguatu. Localizamos os espaços por onde o filme se movimenta como lugares de passagem ou transição. As locações, quando não há espaço privado, são: 1 - o posto onde Hermila passa suas noites nos bailes de

technobrega, onde encontra Georgina Jéssica fazendo programa com os caminhoneiros, lugar

onde marca para que a tia a busque. Enfim, o não-lugar que se torna lugar; 2 - As estradas e ruas que transita para ir à mãe de Mateus, para chegar em Iguatu, para voltar da noite do posto, para encontrar João; 3 - A rodoviária, lugar de espera por Mateus e de busca para o novo destino; 4 - O motel (o entre-lugar do sexo). Por último, queria destacar a presença da ferrovia. A linha de trem tem um caminho certo, objetivado por seus trilhos inflexíveis. O destino está mais traçado do que qualquer outro tipo de transporte, pois não há desvio, só uma linha. O que difere Iguatu e, em certo aspecto, o Brasil, é a decadência ferroviária e a sua falta de utilização como transporte. Essa decadência da ferrovia tem sentido no filme porque o destino de Hermila não está delineado por trilhos, e a única maneira de ter algo mais definitivo seria seu destino com João. Entretanto, a cena em que ela percorre o trilho a pé e João a persegue, mesmo que ela peça para ele parar, demonstra que Hermila não vai seguir esse trajeto, ou que tem outro já definido. O que Hermila quer é deixar de ser Suely e partir. E isso ela faz logo em seguida à noite que tivera com o ganhador da rifa. Em busca do seu porto seguro, do seu Porto Alegre, ela parte mais uma vez.

Imagem 7: Uma busca Fonte: Filme O Céu de Suely (2006)

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1.2 Yes, nós temos aspirinas!"

Em que consiste um título com três nomes sem nenhuma relação, como Cinema,

Aspirinas e Urubus (2005)? O que parece ser um método dadaísta de associação livre entre as

palavras está longe de ser um título que só chama a atenção para um filme, isso para seu uso publicitário ou indexador. Não sabemos do que se trata, a princípio, nem qual seria o seu gênero. Mas, de Cinemas a Urubus, vamos, por partes, buscar onde em cada substantivo reverberam conjuntos de imagens e problemáticas no filme.

Quais são os objetivos de um dispositivo cinematográfico? No filme, ele questiona primeiro seu papel: O que é cinema? Referindo-se à forma como Johan monta a tenda e projeta o filme, Ranulfo pergunta: “Cinema de verdade não é assim não, né?”. Ranulfo tem no imaginário o que seria uma sala de cinema, pois nunca foi a uma. Também tem no imaginário o que seria um filme, porque também nunca o viu. Estamos falando de um espectador que tem o seu primeiro contato com a imagem. O dispositivo vai, então, aparecendo aos poucos no filme: a tenda, a imagem, o projetor. Ranulfo aprende até como é o mecanismo de reprodução dos fotogramas. Brinca com a lanterna, põe a imagem no meio de suas mãos. E vemos, a cada lugar em que o cinema de Johan itinerante é montado, as reações de encanto dos vários Ranulfos. A imagem em movimento chega tardia ao sertão.

Imagem 8: Admiração

Fonte: Filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) 3

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Não somos como eles, mas temos o primeiro contato com a imagem de um Brasil desconhecido no ano de 1942. E nós, também, o fazemos pelo cinema. Chamamos de um Brasil desconhecido esse do sertão brasileiro porque essa era a vontade de alguns primeiros filmes nacionais: mostrar aos espectadores Ranulfos, virgens de imagens em movimento, o que eram as terras intracontinentais do Brasil. É por meio desse dispositivo que também se conhecem os lugares, ainda mais em uma época em que não havia tanta possibilidade de deslocamento.

A sonoridade por meio do rádio era mais representativa nessa época. Ela dava a dimensão de nação, determinando os alcances por onde os sinais eletromagnéticos se propagavam e eram escutados. Era por meio desse meio de comunicação que se forjava uma ideia de que ali também era/é Brasil. O sertão, dos sítios longínquos, fazia/faz parte das terras brasileiras. Entretanto, até isso era novidade, pois o rádio era artigo de luxo por onde Johan passa. Sempre causa espanto: “O senhor tem rádio?”, afirma Jovelina, e Ranulfo diz “Esse rádio é uma potência!”. É dali que se ouviam as notícias da guerra e as nossas canções nacionalistas. Duas delas, como exemplo, são:

1. Serra da boa esperança / esperança que encerta / no coração do Brasil / num

punhado de terra / No coração de quem vem / no coração de quem vai / Serra da boa esperança / meu último trem / Parto levando saudades / saudades deixando / manchas caídas na serra lá perto de Deus / Ó minha serra eis a hora do adeus vou me embora / deixo a luz do olhar no teu luar adeus (Serra da Boa Esperança. LAMARTINE

BABO, 1937)

2. Vem dos confins da nossa serra / do sertão da minha terra / onde canta os juritis /

Trago em meu peito a seiva forte / dos cabocos lá do norte / descendentes de Tupi / Tudo é Brasil / Aonde o céu tem mais luz e fulgor / Tudo é Brasil / Das campinas e flores / Ó meu Brasil (Tudo é Brasil. VICENTE PAIVA E SÁ RÓRIA, 1942)

Se a música seduzia, o cinema poderia seduzir mais. Primeiro, pelo seu ineditismo que desperta os olhos das crianças ao longo das cidadelas sertanejas ou dos adultos que pedem para rever os pequenos anúncios publicitários. Segundo, por sua capacidade de intercessão. Jovelina, ao ver as imagens, comenta: “A gente começa a pensar na vida”. Mas, as pessoas são seduzidas de outra forma, pelo lado enviesado que o cinema chega ao sertão, por meio do seu devir negócio, máquina de propaganda da guerra usada para a venda de produtos. O

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Alemão diz: “Uma pessoa que nunca teve dor de cabeça vai começar a ter”. E terá. Será como Macabeia que, ao ir para a cidade e ter uma desilusão romântica, pede o remédio a Laurinha, sua colega de trabalho e causadora da dor, acreditando que poderia ficar melhor com uma aspirina. A promessa está no slogan no carro de Johan: “Aspirina – A cura para todos os males”. Porém, como bem diz Ranulfo, se fosse um remédio para ajudar a matar a fome desse povo, o alemão ficaria rico. Não é bem esse valor de uso que possibilita a mercadoria.

Imagem 9: Um anúncio publicitário Fonte: Filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)

Ranulfo pergunta: “Como você vai convencer esse povo a comprar o remédio, se são tão atrasado?”. Os anúncios publicitários, disfarçados de cinema, vendem dois produtos: a Aspirina e o progresso representado metonimicamente por São Paulo. Assim, a propaganda diz: “A cidade de São Paulo se apresenta aos olhos do forasteiro, ainda pouco informado, como produto inequívoco de extraordinárias virtudes humanas. Nelas, se encontram, à primeira vista, os exemplos de disciplina, de energia, e de habilitação. E que caracterizam a vida dos povos chamados a cumprir no mundo uma extraordinária visão civilizatória. Depois do carnaval, tome aspirina”. E Ranulfo, por fim, demonstra o poder da imagem que vende: “Danou-se, isso aqui vai vender pito pra Satanás”. O Satanás comprou a Aspirina e seus tentados compraram a necessidade de mudança para a grande cidade.

É a aspirina que leva a modernidade ao sertão nordestino, como vemos prenunciado no “nome fantasia”, na marca do título da obra. Um carro traça a rota pelo interior do Brasil desconhecido e carrega consigo a lógica capitalista que chega aos poucos a esse lugar, tão

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“incivilizados”. Johan percorre caminhos que se perdem no meio do seu mapa, busca por informações para seu trajeto que parecem confusas e que anunciam um lugar ainda não mapeado, cartografado. Ao se perder, procurando a cidade de Triunfo, representativa em seu nome como conquista do que a aspirina quer realizar, ele encontra um sertanejo que parece estar perdido também. E pergunta: “Você vai praí ou prali?”. Ele responde: “Vou ficar aqui mesmo”. Mais a frente, um outro sertanejo pede-lhe carona, dizendo assim: “Você pode me levar ali adiante?”. Ali, aqui e adiante são advérbios de lugar, mas denotam um destino vago, tão característico desse lugar que se perde.

Imagem 10: Em cartaz

Fonte: Filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)

Como, então, conseguir achar uma demanda para uma procura? A aspirina, que parece ser um artifício para a descoberta de um sertão perdido, perde-se por meio de seus habitantes, ainda acostumados com poucos automóveis, meio de transporte que desperta curiosidade. No primeiro povoado que Johan chega, logo após a carona definitiva de Ranulfo, que será seu guia, somos introduzidos ao lugar por meio de uma câmera presa ao carro. É ele quem está conduzindo o nosso olhar, preso ao seu capô. A entrada é Triunfal, todos se põem na rua para observar e as crianças, com sua capacidade de tocar tudo o que seja diferente, são ligeiramente repreendidas pelo ajudante de Johan.

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Imagem 11: Subjetiva de um carro Fonte: Filme Cinema, Aspirinas e Urubus (2005)

Esse meio de transporte é conduzido por um alemão, representante de uma nação abarrotada de empresas de carro. “Civilizados”, diríamos. Mas, são justamente os que trazem a marca da incivilização por meio da guerra. Johan quer dormir sempre em cima do carro, sob as estrelas, pois diz a Ranulfo: “Pelo menos não há bombas que caem do céu”. A modernização e a lógica do capital trazem o fim de todos os males, as aspirinas, mas também levam consigo a guerra. O alemão quer fugir de uma guerra para instaurar outra no sertão, a dos negócios. Quando, enfim, triunfa em Triunfo, encontra um coronel que se diz empresário e instaura o começo da era da globalização sertaneja. Salustiano diz: “Eu posso comprar todo o seu estoque, anuncio por toda a região. Aí, o senhor vai ver o que é vender. Agora, tem uma coisa: na hora de revender, eu dou o meu preço, que é para compensar os custos”. Diz ele ser o responsável pela prosperidade da cidade e que, com a aspirina, fará imposição à sua marca: “Aspirinas e Salustiano Cia. Ltda”. Em seu comentário, “Triunfo será a capital do sertão”. E propõe um brinde: “Quero brindar a esse alemão que trouxe o futuro para o sertão”.

Qual a diferença entre um coronel, artefato tradicional do Nordeste, e um empresário? Salustiano dá a fórmula a Ranulfo: “Se fosse um coronel, mandava um capanga te matar, mas, como sou empresário, faço eu mesmo”. A troca é um eufemismo, pois de capanga a gerente, nordestinos seguem sendo comandados pelos donos da terra. A diferença é que o capital é o capataz que protege Salustiano agora.

Ao fim do caminho, Johan que está fugindo da guerra se encontra acuado pelo governo brasileiro, tendo possibilidade de ter que voltar à sua nazicivilização. Para ele, pouco importa vender o estoque todo. Vai se desmanchando como pessoa, tendo que se desfazer do seu documento de identidade e seguir para a Amazônia. Mas, primeiro pinta o carro,

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assegura-se que não haja traços e o oferece a Ranulfo, que quer ser “feliz” no Rio de Janeiro. É assim que funciona o agente do capital, instaurador e impessoal. Uma vez implementada a lógica, ele não é necessário mais, e entrega o carro para o sertanejo, que se perderá novamente pelo sertão. A aspirina já foi vendida.

Entretanto, é o caminho, o processo até a dissolução de Johan em borracha que nos importa. Nesse ínterim, nas estradas por onde percorre com seus passageiros, no traçado desse “Brasil não acaba mais”, é onde temos a dimensão dos encontros entre o estrangeiro e os habitantes, do choque entre culturas ou da antropofagia comensal entre Johan e Ranulfo. Ranulfo que quer ser Johan e Johan que quer ser Ranulfo. É nesse entrelace que está o segmento maior da modernização sertaneja, do estrangeirismo, do colonizado. Aqui está o misto de aspirinas e urubus que vemos passar no cinema.

Johan faz urubus nas sombras da luz do projetor. Com suas mãos, remete a quem é livre para voar na luz local que se pode produzir o cinema no sertão. As crianças ficam encantadas com essas sombras, bem como o alemão, que sempre acha tudo muito interessante por onde cruza seu carro. Acusado sempre de exotizar o sertão, Ranulfo o questiona: "O que que o moço acha de tão interessante?". E segue com uma exclamação: "Gosta de viajar para esses lugares tão infames!". Aqui está posta a questão do estrangeirismo no filme: Por esse olhar do outro que chega, uma vez que o desconhecido envolve a curiosidade e por meio do personagem de Ranulfo, que representa o retirante, mas que é mais que isso, é um porta voz daqueles que já não pertencem mais ao lugar. Está sempre a criticar os sertanejos.

O encontro entre os dois se dá como Tarzan e Jane: me Ranulfo, me Johan. Existe uma cena em que estão a se estranhar com seus nomes, como se fossem índios e portugueses, colonizado e colonizador. Na moderna estrutura de dominação pelo trabalho, Ranulfo vira empregado. Entretanto, a troca se estabelece não somente de cima para baixo, mas em um recorrente intercâmbio, que termina no afeto. Os corpos vão se firmando, vão se colocando juntos e as diferenças vão mudando o rumo da relação, que passa a ter cada vez menos barreiras. Existe uma cena que marca essa guinada, quando Johan, ainda sem dominar a fauna local, é picado pela cobra, está contaminado pelo sertão. Não é o remédio que o salva, mas a sucção do sangue realizada por Ranulfo. Seu vampirismo bota o sangue alemão em sua boca e, com a ajuda de locais, salva a sua vida e fortalece o encontro.

Até nesse momento, é a face estereotipada sertaneja de Ranulfo que está em prática. Ressabiado, sempre com um humor azedo, contesta, responde, desafia o alemão. No início, não quer beber do seu sangue, e questiona quando lhe é oferecido fumo: "É importado ou nacional?". Johan responde: "Importado". E, então, asperamente, diz: "Não fumo não". Essa

Referências

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