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CAPÍTULO 4: SERTÕES-PROSA, SERTÕES-POESIA E PROSA E

4.3 Sertão-poesia e prosa

Em todo cinema de poesia há prosa e em todo cinema de prosa há poesia. Às vezes, observamos mais um do que outro, visto que os filmes analisados anteriormente faziam prevalecer a prosa, enquanto os que vamos analisar posteriormente são praticamente poesia. Entretanto, às vezes resulta uma mescla, nem prosa, nem poesia, mas um misto. E, para o que nos atém aqui, significaria dizer, que não é apenas determinação espacial, identificação, e não são apenas impressões ou procedimentos estéticos que transformam o espaço em algo a ser legível visualmente. É uma junção, ora se lê a construção espacial, existe o desejo de mostrar sua abertura, ora existe uma tentativa de fazer um fechamento, apesar de isso nunca ser possível. Assim acontece em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), Árido Movie (2005) e O

Céu de Suely (2006).

Devido a essa classificação das obras feita no parágrafo anterior, podemos fazer um paralelo entre elas e a crise da imagem-ação que Deleuze (1985) anuncia. Queremos dizer que já não é possível encontrarmos nesses filmes as imagens-movimento, como nos melodramas

Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2001), nem uma relação natural entre signo e

símbolo (signo e o que o substitui), principalmente, nas relações que dizem respeito às

espacializações de seus sertões e às suas determinações espaciais. O que há é um

afrouxamento dos vínculos sensório-motores, a lógica da causa e efeito atenuada, mesmo que ainda existente em alguns momentos. Podemos perceber que um todo da situação existe, mas ele está disperso e não se encontra fadado à ação. O acaso e o eventual são paradigmas que impulsionam o enredo e o encadeamento das imagens desses filmes. Os maniqueísmos já não

sagas e há uma tentativa de fugir dos clichês a todo instante. Não atingem o paroxismo, por isso são prosaicos também, mas querem seguir a direção rumo a um sertão-poesia.

Sendo assim, Árido Movie (2005), por exemplo, o mais voltado para um modelo de imagem-ação dos filmes (A!S!A’), narra a história do descontrole de Jonas no seu modo de agir, pois ele se encontra envolto a uma armadilha do destino, desacostuma sua previsão certa do tempo, que nunca é realmente precisa. Sua culpa de ser um mocinho-vilão da história é mais uma situação impossível de ser resolvida (filho do dono das terras) e o ato de matar Jurandir (linha de ação definida) se torna uma incógnita quanto ao seu responsável, tanto para os espectadores, quanto para os personagens. A cena em que Zé Elétrico vai mostrar o vale do Catimbau para Jonas, já descrita no capítulo 2, é relevante para demonstrar essa confusão ativa do e no personagem.

Na produção de um espaço-percepção, que demonstra uma espacialidade da histórica luta de terras entre índios e brancos e o papel do protagonista nisso tudo, as linhas de ação se tornam difusas, as espacialidades se dissolvem e as conexões podem sugerir as mais diversas combinações ativas. Sem modificação relevante, o que acontece é uma situação (S) que não se modifica, independentemente da ação de Jonas. A configuração espacial segue a mesma do começo (a lógica de dominação em Rocha não muda). Já em O Céu de Suely (2006), não existe exatamente ação definida no filme. Situação e ação se mesclam, em um mesmo conjunto ativo. A movência de Suely já havia sido iniciada com a mudança para São Paulo e segue com sua ida para Porto Alegre. Somente a proposta da rifa como um meio para a sua fuga é determinada, mas não esquematizada. A partir dela, existe um conjunto de elementos a fim de contribuir com a formação de um espaço-perceptivo (as relações que ela engendra na cidade e em sua família). A expulsão de Suely de Iguatu, sua reretirância, reitera um espaço, quer que o percebamos mais.

Por ultimo, em Cinema Aspirinas e Urubus (2005), não há conflito definido. O que existe é uma situação contínua de promover um espaço-percepção, por meio da relação de Johan com alguns sertanejos em sua perambulação. O filme é o que propõe abertamente uma mudança na configuração espacial, com a venda de aspirinas. No entanto, ele também propõe o ativo com o intuito de gerar um perceptivo, ou seja, fazer ler a modernização sertaneja. Não queremos dizer com isso que não há mudança espacial nos outros dois filmes, apenas que a cartografia do sertão gerada em Cinemas Aspirinas e Urubus (2005) é deslocada, passível de se prever consequências, como a mudança do coronel para o empresário ou de sertanejos para retirantes. Já os outros filmes reestabelecem um espaço hodológico já antes percebido. Mesmo com as ações de Jonas e Suely, a cartografia se manteve resistente.

Com isso, pode parecer que a vontade dos autores é propor um fechamento espacial pelos sentidos literais de suas imagens, pois a produção desse espaço-percepção mental (volta à configuração espacial do começo) o estabilizaria. No entanto, é pelo mesmo motivo que a construção do espaço se torna aberta e está em um misto entre prosa e poesia. O enredo determina o espaço sertanejo, por isso prosaico. Contudo, “determina” o espaço por meio da implosão da imagem-movimento, dá a ele novo estatuto e legibilidade, por isso poesia. Suas características giram em torno da perambulação dos personagens, da impossibilidade de ação perante a situação encontrada e da fuga dos clichês. Tais preceitos desfamiliarizam o espectador, incentivam mais a percepção de suas construções espaciais “estáveis” e, consequentemente, fazem o sertão voltar para dentro de si.

Com relação aos seus agentes e multiplicidades discretas, podemos elencar os seguintes elementos que fazem com que a espacialização desses filmes tenha esse caráter construtivo, mesclando características de cinemas de prosa e poesia:

1 - a enunciação se dá por meio de uma câmera que acompanha os personagens (multipontual e fragmentada no filme de Lírio Ferreira e próxima nos outros dois filmes);

2 - a câmera é transparente em sua maioria, mas existem momentos de opacidade (perambulação da câmera no bar do Zé Elétrico em Árido Movie (2005), separação da imagem e da voz em Cinema Aspirinas e Urubus (2005) e granulação no início de O Céu de

Suely (2006), etc.);

3 - os enredos são mais dispersos, mais fragmentados. Os finais são abertos (exposição de Meu Velho em São Paulo, fuga de Suely para Porto Alegre e ida de Johan para a Amazônia); 4 - os signos que compõem a imagem (direção de arte e fotografia), apesar de serem voltados para um realismo, são mais complexos, pois atuam como uma desmarca;

5 - a montagem é, na maioria, linear e orgânica. Mas, nem sempre junta conjuntos que se interligam consecutivamente, às vezes, ela tem um caráter dispersivo;

6 - os planos não estão atentos ao equilíbrio a todo o tempo e não há uma convenção de procedimentos estéticos. Ou seja, existe uma busca por uma experimentação regulada (câmeras coladas a objetos, uso menor de campo e contracampo e outros processos correntes de decupagem, depoimentos para a câmera, uso de atores sociais, desfoques, improvisação, planos longos).

Na intersecção desses agentes, as dimensões espaciais (física, plástica e social), vão produzindo um corte móvel que visa desidentificar o identificado, produzindo novos sertões nordestinos. Apesar deles estarem determinados (Rocha, Iguatu e as cidades por onde passa

dinamização ressencializada. As conexões entre os elementos podem parecer, às vezes, tradicionais, mas elas sempre existem para um agenciamento novo de sentido, para fugir dos clichês ou retrabalhá-los de forma contemporânea. Enquanto Cinema Aspirinas e Urubus (2005) trabalha com eles para tematizar a introdução da modernização do sertão, Árido Movie (2005) ressignifica a política das águas e O Céu de Suely (2006) dá uma nova cor ao movimento, à reretirância.

Os novos sertões produzidos são, assim, internamente multiplicados, resultando em um jogo entre o que era visto como essencial e o que é o novo e aberto, deflagrando suas imagens-espaço, saturando-as de novos signos.

De fato, essa forma de abrir os sertões dos filmes corrobora a característica de que todos eles são filmes para se perder. O espaço não é o “se achar”, mas o “se perder”, o “se descobrir”. Ele é função imprescindível para o autoconhecimento (Road Movies) dos personagens. A dimensão do lugar está perdida no deslocalizado, em um sertão qualquer. Apesar de ser identificado como interior do país e de sempre existir o apontamento de que o “sertão é o fim do mundo” (Cinema, Aspirinas e Urubus, 2005), é “parado no tempo” (Árido

Movie, 2005) e o “quero sair desse lugar” (O Céu de Suely, 2006), esses são qualificativos que

desconstroem o estático. De que modo, então, são distintos de Central do Brasil (1998) e seu sertão-perda e sertão-busca ou do sertão-bolandeira de Abril Despedaçado (2001)? Justamente no afrouxamento da narrativa dos filmes, na busca por procedimentos estéticos que se colam a perdas e buscas mais erráticas.

Nos filmes de Walter Salles, a busca é um vetor mais ativo, tem uma linha de ação mais definida, enquanto nas três obras prosa-poesia, existem dispersão, mais encontros, mais signos. Não podemos dizer que estes sejam uma construção desregulada, mas são compostos de uma vetorização perceptiva mais longa do que ativa. Tal processo da espacialização sertaneja é muito relevante para o filme. Resumindo, o espaço-percepção ocupa basicamente quase todo o filme e suas linhas de ação se resultam em frouxas e mal resolvidas. Não existe nem uma busca de um pai, nem um destino certo a ser rompido. O que existe é um sertão- perda estabelecido e pouco sertão-busca. Jonas, por exemplo, está distante de entender o seu papel no sertão-luta de Rocha, assim como Soledad e os amigos dele. Suely mal chega em Iguatu e não consegue fincar novas raízes. Sua fuga é uma linha de ação transitiva. Seu sertão é pura busca, mas uma busca perdida. Johan também só produz sertões dentro dele, a cada povoado que chega e a cada carona que dá. Isso acontece até a necessidade da sua fuga, decisão que deve ser tomada quase ao final do filme.

Logo, as espacialidades criadas pelos três filmes reiteram esse sertão-perda, indicando principalmente imagens-espaço que produzem sertões-trânsito. O processo de produção espacial de cada obra é reforçado pelos signos que estão ligados a esse aspecto. Cinema,

Aspirinas e Urubus( 2005) começa com um carro cruzando o sertão a esmo. As primeiras

cenas de Johan conduzem ao reconhecimento do que não é reconhecível, ou ao que se perde no longínquo da paisagem da caatinga. Não se utilizam nomes inicialmente, apenas frases para quem pergunta por direções ou pistas de onde está. A resposta sempre é “ali adiante” ou “você vai pra lá ou pra cá?/vou ficar por aqui mesmo”. Seu objetivo está sempre afrouxado ao qual ele quer chegar. O que deseja é ir para onde existe gente, para onde possa vender aspirinas. A construção do espaço, justamente, se faz por essas pessoas com quem cruza, por essa gente que encontra. O desmesurado não traz a localização correta de onde existe um posto de gasolina, ou para onde as caronas se encaminham. Tudo está livre e solto daquilo que se encontra ali ou aqui. Os lugares são achados ou possuem uma lógica que não é a da

matematização. Isso quer dizer que o espaço vai se fazendo à medida que a sua “rota” vai

sendo traçada, nos encontros com Ranulfo, em suas caronas e com seus clientes. Logo, do Rio de Janeiro a Triunfo e, posteriormente, à Amazônia, a trajetória de Johan vai sendo a de se desintegrar, de perder sua identidade, assim como esse espaço, que é desessencializado.

O caminho de Árido Movie (2005) é distinto. Enquanto Johan está em pleno processo de esfarelamento, Jonas está em juntar os grãos. Isso seria sedimentar o filho essencial do sertão, que busca suas raízes para dominar as terras deixadas pra ele e retomar o vínculo geracional. Mas, como habitante da cidade da garoa, São Paulo, vai da mesma forma sair do virtual mundo da previsão temporal, para se encontrar com a realidade que parece ter parado no tempo (bailinho do Renato e seus Bluecaps, transmissão de Xico Sá, carro antigo dos amigos de Jonas). De certa forma, ela é uma espacialidade que se configura de forma cíclica, reproduzindo as mesmas formas de dominância, o sertão-luta, mas os elementos que a

espacializam são outros, modernos, com novos instrumentos de poder e resistência.

O filme faz com que Jonas, seus amigos e Soledad se encontrem nessa Rocha

ressencializada. Primeiro, sempre mantendo um paralelo de seus caminhos, para depois se

convergirem em um redemoinho, em um funil do tempo e do espaço. Rocha é justamente esse plano paralelo que concentra interesses de todos os agentes que a constroem (com a família, a religião das águas e a plantação de maconha). Não existe concordância com as heranças que devem ser retomadas, nem da liberdade das drogas reprimidas pelos capatazes e a resolução alienante do misticismo da água na seita paulistana de Meu Velho. Tudo no final se encontra

Rocha, os personagens parecem se perder no espaço porque também estão perdidos no tempo, nos seus próprios tempos e espaços, ou nesse espaço cristalizado que faz tocar passado e presente a todo tempo. Além disso, o desmesurável acontece na própria cidade. Estamos sempre atrás de pistas de onde começa e termina Rocha, se é na pedra do cachorro, no bar do Zé Elétrico ou fincado na casa fúnebre de Dona Carmo. Com tanta água no filme, parece que há um encontro de braços em um só rio turbulento que é a Rocha que dá forma.

O Céu de Suely (2006) parece mais simples, uma vez que se concentra na volta de

Hermila para sua cidade natal, Iguatu. Ali está pontuada, qualificada. A placa de “Bem Vindo” parece dar a forma de seu município e o começo do filme é rodeado de planos gerais que a qualificam. Mas, é justamente em seu interior que ela se dilacera. Criam-se lugares múltiplos que se refazem a cada interação entre os personagens e Iguatu. Uma hora ela se multiplica no posto, do sertão-trabalho, da busca por dinheiro, do lazer, da chegada do ônibus, da espera pela noite no paraíso, da prostituição de beira de estrada; outras vezes se multiplica na cidade, no conservadorismo, na comunidade, no interior das casas, nos afetos das famílias, nas relações íntimas. É dessa conexão tão múltipla, mas tão próxima, que Hermila quer se perder. Sua movência é a sua desintegração, a sua também perda de identidade. Na verdade, a cidade funciona de certo modo, como outras tantas parecidas, quando começam a se modernizar, mas a personagem havia espacializado Iguatu como o lugar do seu céu, pensado em conjunto com Matheus. Por isso quer fugir tanto do lugar, em busca de Porto Alegre. A cidade, afetivamente, se perdeu como seu objetivo, ela foi reconfigurada como o seu oposto. É justamente se utilizando dos elementos que carrega como contraditório e essencial, que Suely aproveita para a estratégia de construir sua saída de emergência.

A relevância do sertão-trânsito como imagem-espaço é trazida por esses filmes por meio de seu caráter disforme, do destraço de suas trajetórias. Eles se transformam em espaços quaisquer, pois estão desterritorializados na desmarca de um sertão. Até Cinema, Aspirinas e

Urubus (2005), que parece ter um contorno mais possível de ser traçado, possui conexões

difusas com o estrangeirismo de seus protagonistas, que se juntam num germanismo-carioca- paulistano, deflagrando um sertão-progresso. A abertura está justamente em mostrar que já em 1940 tudo estava conectado para o processo aberto de produção espacial, que sempre modifica o sertão pelos: impulsos evocativos do êxodo dos retirantes; pelas circunstâncias da guerra e a ingenuidade dos sertanejos; pela introdução de uma lógica capitalista que modernizava o sertão levando os coronéis a se denominarem empresários.

A Alemanha era o centro ofensivo da guerra, mas no sertão, era mais uma novidade subjetiva de seu protagonista. Todos os movimentos em torno de Johan eram mais

antropofágicos que de exclusão. Por isso, a experiência com o lugar era um misto de exotismo e indigestão. O espaço, com sua natureza ríspida e peçonhenta, com a comida forte da carne de bode ou a aridez do companheiro de viagem de Johan, fazia com que o Alemão terrível chocasse sua trajetória com todos os elementos que acompanhavam a jornada. O sexo, a fome, o perigo, intimam o seu novo comportamento perante a criação desse sertão- desconhecido que deve ser dominado. O que no começo gera resistência, com a primeira carona que desce para matar uma cobra, quando arranca o carro, termina com o próprio deslizar da cobra, que não precisa ser morta para coexistir. Johan, apesar da obrigação de fugir, compreende a dinâmica sertaneja.

Em O Céu de Suely (2006) e Árido Movie (2005) não existe um encontro, como acontece com Johan, mas reencontros. Jonas e Hermila estão revisando os seus passados, um mais recente e outro mais fotográfico, como afirma o personagem de Árido Movie (2005). Cada personagem é elemento importante para a recriação do sertão e é necessariamente por meio de seus sertões-trânsitos que os filmes trazem as interações e o novo ao espaço onde reabitam. Hermila traz no corpo a sua trajetória de vida. A parte descolorida de seu cabelo é sua marca de São Paulo. Ela é a retirada do centro urbano, que volta expulsa pelo custo de vida alto.

Iguatu seguiu sem Hermila, com seu microcosmo de uma cidade que se moderniza paulatinamente (sertão-moderno), modernização talvez ocasionada pelas voltas desses retirantes que desistem de ganhar a vida nas cidades grandes. Mas, o seu reencontro com sua terra natal ainda é o de pertença a uma comunidade, lugar onde tudo está intrinsecamente conectado pelo tamanho que ocupa e pela interação entre as pessoas, pouco anônima como era na capital paulistana. Muitos são os agentes que a levam para a vida regressa, seu núcleo familiar, seu antigo pretendente, João, mas, como encontra-se despedaçada pela fuga de Matheus, começa uma revolução na cidade ao se rifar. É por meio de suas repulsas e aceites que vários espaços perceptivos vão sendo constituídos, o retorno aos valores machistas e conservadores, mas também os mais libertários (sertão-borboleta) e afetivos.

Os elementos de movimento (sertão-trânsito-movência) vão sendo aos poucos introduzidos no filme, como as motos, a rodoviária, a cena da sua camiseta estampada de borboleta, das luzes desfocadas, do trem. Muitas dessas cenas se tornam relacionadas às cenas de rejeição, de demonstração de raiva pela mudança de identidade que provoca em si mesmo. Por isso, a passagem de Hermila à Suely é tão importante. Na verdade, são elas que determinam as duas espacialidades do filme. A primeira, o espaço do afeto, que foi

espacialidade é de conservadorismo e de reação da população da cidade contra a sua rifa, mas também de luta por libertação de Suely (sertão-borboleta). Cria-se um paradoxo entre Suely- São Paulo anônima e liberal e Iguatu-Hermila regulada e conservadora. A sua figura é a mistura e sua passagem pode ser vista como a própria transição da cidade, que não está nem lá nem cá. Rodeada por seus mercados ambulantes, pronta para a chegada de um copiadora de DVD e de CD, a cidade tem que conviver com os resquícios do que contamina a comunidade, rodeada por valores tradicionais e machistas. O pequeno plano que mostra a pipa presa a um traçado de fios elétricos figurativiza a mistura de Hermila-Suely na cidade pequena-grande.

Além disso, podemos fazer outra tomada perceptiva dos espaços que vão sendo constituídos no filme: O sertão de dentro e o sertão de fora. A casa é sempre o lugar do afeto, conturbado pela presença de Suely, mas restaurada pela dimensão da família com Hermila. Até mesmo a presença dos lugares, como o quarto onde vive Georgina, constrói esse bloco do amistoso, do afetivo. Na cidade, é o lugar de Suely. É o lugar onde as barreiras ultrapassadas vão ser pagas, onde terão consequência, gerando brutalidade e maledicência. Essa separação do interior/exterior também negocia uma outra espacialidade: o sertão-macho e o sertão- fêmea. Como vivem em uma família de mulheres, tradicionalmente, o de dentro seria feminino, enquanto o de fora seria masculino. Esse misto se torna cada vez mais confuso.

O espaço de fora é onde os homens seduzem as mulheres, onde compram a rifa de Suely. Porém, ao mesmo tempo é ela que se vende em uma rifa, que determina como vai ganhar a vida exercendo, inclusive, trabalhos masculinos como lavar carros. É onde o machismo tradicional reina, na medida em que o ato livre da compra da rifa é consentido, mas denegrido por suas mulheres, que vão atrás de Hermila. Já o espaço de dentro (sertão-fêmea), a mescla se encontra no cuidado com a criança, com a casa, com a gestão da família pela matriarca Zezita que tenta preservar os bons costumes. Não é por acaso que a tia Maria é o macho-fêmea que não se discute como tema no filme, ela é somente essa miscelânea que atravessa o filme.

Em Árido Movie (2005), Jonas, ao voltar para Rocha, tem um reencontro com a sua

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