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CAPÍTULO 4: SERTÕES-PROSA, SERTÕES-POESIA E PROSA E

4.2 Sertão-prosa

Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2001) são filmes que possuem mais

características de um cinema de prosa. Definem-se assim por seus elementos e procedimentos estéticos que os inserem em um cinema narrativo clássico, isto é, um regime constituído por imagens-movimento, que produzem vinculações sensório-motoras. De forma geral, são representantes das duas formas de imagem-ação pensadas por Deleuze (1985). Central do

Brasil (1998) é um exemplo da primeira forma, ou seja, uma situação que leva a uma ação e

que resulta uma nova situação (S!A!S’). Abril Despedaçado (2001), ao contrário, representa a segunda forma: começa com uma ação, cria uma situação por causa dela, o que empreende uma outra ação (A!S!A’). No primeiro filme, Dora vive sua rotina de escrever cartas na Estação Central do Rio de Janeiro e de engavetá-las depois de lê-las para Irene, vizinha em seu condomínio. Depois de um encontro com uma de suas clientes, Ana, que anseia descobrir onde está seu marido Jesus, assiste à morte dela em um acidente. Ana é atropelada e seu filho, sem lugar para ir, vaga na estação de trem. Dentro das muitas possibilidades de ação do que fazer com ele, Dora organiza com Pedrão, policial do local, a venda do menino para um casal que intermedia “adoções” estrangeiras. Essa forma de agir da escrevedora é, ainda, o seu lugar de equilíbrio, desmoralizado. Até que, por meio dessa ação de vender Josué, o conflito moral é estabelecido interiormente na personagem. Como efeito, uma ação é potencializada e ela decide levar Josué ao encontro do seu pai, digo “seu” pela ambiguidade entre o pai de Josué e o de Dora (rememoração). Depois de uma trajetória, encontram a família do menino e a escrevedora retorna ao Rio de Janeiro ressensibilizada.

Já em Abril Despedaçado (2001), é a cobrança de sangue entre as famílias Breves e Ferreira que leva à morte do irmão mais velho de Tonho. Devido a isso, ele deve seguir a tradição, ir até a outra fazenda e matar o assassino de Inácio. Assim o faz e tal ação estabelece uma nova situação de conflito. O seu pouco tempo de vida, o desconforto do irmão mais novo, o encontro com Clara e Salustiano, o cansaço da sua família são causas para a ação do Menino em ocupar o lugar do irmão Tonho e ser morto na hora da cobrança. O efeito ativo de Tonho é romper com o ciclo de vendeta ao qual estava submetido e ir embora de Riacho das Almas.

Nos dois filmes, seus agentes produzem uma espacialização que acompanha as suas características narrativas prosaicas, a saber:

1 - ambos possuem uma enunciação centrada em seus personagens e uma câmera que as acompanha durante suas sagas, sendo quase totalmente focada, objetivamente, nas ações ou de Dora e Josué, ou de Tonho e Pacu;

2 - a câmera é um dispositivo pouco evidenciado, mais transparente na maioria das cenas, seus procedimentos são a favor de um realismo, favorecendo mais a visibilidade do que a legibilidade da imagem;

3 - o equilíbrio da imagem, com poucas zonas de tensão no quadro, é sempre alcançado. A saturação ou rarefação dos elementos são pensadas para dar destaque aos personagens;

4 - o uso de procedimentos estéticos tradicionais é uma prática constante, como o campo e o contracampo ou a subjetiva e sua correspondente objetiva, etc., o que não causa nenhuma opacidade;

5 - as narrativas são bem resolvidas, com um reequilíbrio ao final, apesar de não terem exatamente um happy end;

6 - a montagem (orgânica) é linear e consecutiva, ou seja, o jogo de expectativas entre um quadro e outro respeita a lógica da ação e reação ou causa e efeito;

7 - os elementos da direção de arte definem bem os personagens, são colocados de modo a demarcar um realismo, que também é seguido pela direção de fotografia. Esse real encenado tende a fazer crer e criar elementos que não possuem conflito para a imagem, liberando a livre fluidez do enredo.

Todas essas características formam as multiplicidades que interagem entre si para favorecer uma qualificação espacial demarcada. Não existe nada que seja desterritorializado na imagem, o que empreenderia uma desfamiliarização do espectador ou uma abertura espacial nesse sentido. Essas multiplicidades localizam e justificam os elementos e os

imóvel. Suas montagens, na maioria, lineares, com elipses evidentes, agenciam sentidos de uma espacialização que apresenta mais seu caráter extensivo. São planos que se relacionam sucessivamente como posições de um caminho. De vez em quando, eles se tornam intensos regulados, a partir de instantes chaves das trajetórias dos personagens. No entanto, podemos concluir que os procedimentos estéticos usados nos filmes favorecem mais localizar o espectador e os personagens em um mapa fácil de ser percebido.

O espaço geográfico/cinematográfico qualificado de Abril Despedaçado (2001) e

Central do Brasil (1998) é o sertão nordestino. É a partir das espacializações desse espaço,

dos processos que colocam em interação os signos dos conjuntos abertos da imagem, que são produzidos seus cortes móveis. A matéria (dimensão física), em conjunto com a expressiva (dimensão plástica), constitui uma visão unificada de um sertão nordestino do senso comum, traduzido por cenários de caatinga, figurinos realistas, objetos da região, figurantes com traços regionais, maneiras de agir estereotipadas, trilha sonora baseada na cultura local etc. Tudo esmerado com muita produção, primando para que não sejam mais importantes do que os comportamentos das personagens e para que atuem como seus englobantes, trazendo elementos importantes para a narrativa e impulsionando suas ações.

São signos intensamente reiterados e territorializados em diálogos ou pela câmera (frase de Josué: “Minha mãe sempre me disse que meu pai ia me mostrar o sertão”, planos abertos da paisagem, retratos dos romeiros, corrida de Tonho com seu rival pela caatinga, ciclo da rapadura). O efeito é um acúmulo de qualificações “fechadas”, a fim de resultar em uma espacialidade à qual adere um sentido de paisagem “estático” e “fixo”, o que reforça um caráter atemporal. Pobre, arcaico, conservador, religioso, seco, são qualidades correntes, repisadas e que se mantêm inquestionadas nos dois filmes, parecendo retomar esse conjunto fechado de convenções tradicionais.

Podemos citar exemplos desse espaço encurvado, construído para integrar as ações e reações dos personagens: 1. Dora e Josué chegam à cidade dos romeiros sem dinheiro. Como a mesma é escrevedora e está em um lugar onde a maioria é analfabeta (qualificativo sertanejo essencializado), consegue uma grande quantidade de clientes, auxiliada pelo menino, o que os capitaliza para o término da viagem; 2. Pacu percebe que uma chuva se forma. A raridade desse acontecimento no sertão, além de qualificativo, é elemento narrativo de mudança (clímax). Tonho e Clara estão em um galpão perto dormindo. O menino coloca um chapéu e a faixa do irmão (símbolo de quem deve ser cobrado o sangue). O cobrador integrante da família Ferreira não consegue ver muito bem por perder os óculos devido às

consequências da chuva e do terreno enlameado. Em meio aos troncos secos da caatinga atira em Pacu, ao invés de Tonho.

Portanto, a determinação espacial, por meio das espacialidades dos signos e das dimensões sertanejas, que se entrecruzam, produz sertões “fixados”, espaços-prosa delimitados. Mas, como o espaço é processo, essa fixidez é apenas uma imaginação processual regulada, ou seja, sua espacialização é constituída esteticamente para ser fechada, agenciando sentidos mais claros e reproduzindo uma tradição geográfica/cinematográfica, o que confirma também seu caráter mais prosaico. Entretanto, se nas relações entre os seus agentes e dimensões, empreendem um sertão “estático”, é por meio das cartografias que criam com suas imagens-espaços. Em ambos os filmes, o mais importante é essa construção móvel que espacializa o sertão, que o determina como rígido. Suas imagens indiretas do espaço (todo), sobretudo os espaços perceptivos e ativos, são as responsáveis por essa regulação, como parte importante da imagem-movimento (imagem-percepção e imagem-ação), que possibilita a dinamização do sertão. Vejamos, então, como isso acontece.

Primeiro, Central do Brasil (1998) constrói um sertão-parábola. A princípio, temos a construção da jornada empreendida pelos personagens, que enfaticamente constroem um traçado bíblico. Dora e Josué seguem em uma romaria em direção à busca do Pai, em seu sentido figurado, por meio de provações que se constituem em uma linha reta, mas entrecortada. Tal linha se assemelha aos trilhos do trem, cheio de estações, ou ao destino comprado pelo bilhete de um ônibus, ou a uma carta que chegaria ao seu endereço pelo correio. Entre um ponto e outro, terminaríamos em um destinatário. Contudo, o que parecia ser reto, faz-se de forma tortuosa, sua terra prometida como destino é encontrada, mas perdem-se durante o caminho, a partir do momento que Josué e Dora saem do ônibus na primeira parada.

Queremos dizer com isso que o espaço-percepção e o espaço-ação são análogos às noções de sertão-perda e sertão-busca. Apesar de saberem o destino final, os obstáculos que acontecem durante o filme são devido ao desconhecimento de Josué e Dora em relação ao novo meio onde se encontram. Eles precisam reagir, interagir e produzir novamente a linha de ação que constrói o sertão-busca. O que seria extensão, a partir de um único trajeto definido, se faz imersão, pois experienciam e produzem, progressivamente, o sertão nordestino. Eles vão se tornando parte dele, fincando raízes aos poucos no solo rachado. Como não possuem dinheiro, algo que seria facilmente convertido em passagens de ônibus, veem-se abertos a novas possibilidades, constituindo a eventualidade espacial em um fato e a incorporando

Josué tivessem seguido sua viagem no ônibus. Mas, por ser mais arrazoada no caminho produzido pelo filme, novas conexões vão surgindo e, consequentemente, novas produções de espaço acontecem. Com isso, é importante demarcar que as construções espaciais sempre estão controladas para se alternar entre a perda e a busca.

Podemos traçar esses espaços perceptivos (sertão-perda) e espaços ativos (sertão- busca) em Central do Brasil (1998) por meio de seus momentos sucessivos:

1 - após a primeira parada de ônibus, quando Dora pensava que Josué seguiria viagem, ela o encontra no restaurante. Como ele esqueceu a mochila e ela não pôde mais trocar o bilhete de ônibus que havia comprado, ficam sem dinheiro. Na tentativa de seguir, conhecem um caminhoneiro, César, e a busca é retomada;

2 - depois de abandonados pelo motorista, encontram-se perdidos novamente. De caminhão, conseguem pegar um “pau de arara”, repleto de romeiros;

3. estando na cidade dos romeiros, precisam descobrir o endereço do pai de Josué. Caminham até lá, mas encontram outra família morando;

4 - voltam a se perder. Josué foge de Dora depois de um desabafo. Ela se perde e desmaia na casa dos milagres. O menino a encontra e amanhecem numa rua da cidade;

5 - não sabem o que fazer até que, como já dito anteriormente, começam a escrever cartas; 6 - Voltam a buscar o pai de Josué, mas Jesus vendeu a casa;

7 - Isaías, irmão de Josué, os encontra. Dora decide voltar para o Rio.

Tal sequência nos faz compreender que o processo do sertão-busca e perda muda a cada interação com os agentes que os produzem, demonstrando indiretamente, a abertura do espaço. Isso é evidenciado, por exemplo, com os encontros dos dois personagens com distintos imaginários sertanejos ou espaciais, o caminhoneiro (sertão-trabalho), com uma família dona de uma loja de posto de estrada (sertão-venda), romeiros (sertão-romaria), a família da primeira casa (sertão-tradição), romeiros na procissão (sertão-reza, sertão-comércio e sertão-pregação), outra família no loteamento (sertão-popular) e os irmãos de Josué (sertão- família).

A câmera do filme é um elemento importante na construção dessa noção pendular do sertão, pois acompanha Dora e Josué nessa via sacra modificando o ponto de vista deles. Erraticamente, aos poucos, vão saindo das janelas (ônibus, caminhão de César) para ganharem outra forma de percepção, (“pau de arara” com romeros e a pé). O sertão-tela ou sertão-janela se torna o sertão-chão. Os enquadramentos vão se tornando menos geométricos e fechados. Os planos deixam de produzir, mais enfaticamente na cidade do Rio de Janeiro, uma composição de quadros múltiplos (quadrados ou figuras geométricas dentro do plano),

como nas cenas em que Dora carrega sua TV para casa entre pilastras em forma de “V” ou quando ela chama Irene em sua janela num plano conjunto de várias. Os movimentos de câmera deixam de ser retas (travelling) para adquirir uma liberdade maior. A grua passa a ser utilizada e os pontos de vista passam a ter uma escala maior, com planos conjuntos e gerais.

Resumidamente, então, pensamos que existe uma espacialidade modificada do enclausuramento da Estação Central de trens do Rio de Janeiro, rotina de Dora, ir e vir de uma linha entre estações, para uma forma mais aberta de construção espacial, de maneiras de agir mais dispersas. Mas, se o sertão-busca e o sertão-perda parecem dar um qualificativo mais eventual para o espaço sertanejo, mesmo que extremamente controlado em sua alternância, parece ser o espaço-perceptivo e ativo do sertão-sagrado e profano, a sua construção mais regulada. O sertão-profano da Estação Central, povoada pelos imigrantes de todos os sertões (maioria nordestinos), explorados e domesticados por tudo o que os cerca e pelo trabalho, encontra uma espacialidade bastante demarcada. Ela se resume na percepção da própria mesa de trabalho de Dora, que separa o retirante da professora, estabelecendo o “mínimo” de poder da escrevedora. Também, é o lugar dos múltiplos pedidos, da diversidade, dos anseios do sobrevivente da cidade grande. O resultado é uma cartografia da dominância, sempre da decisão unicentrada do que fazer com a mensagem. Porém, com Josué, a narrativa se dirige ao sertão-sagrado, com seus valores genuínos, de gente decente, que criam espaços de honestidade e de devoção. O caminho de Dora com Josué pelo sertão e suas provações (sertão-purgatório), além de ser análogo à trajetória bíblica de Jesus pelo deserto, vai deixando que signos religiosos se entrecruzem em seus caminhos de forma mais enfática a partir da procura pelo Pai.

O espaço sagrado vai sendo cada vez mais percebido, saturando a imagem. Se antes, aparecia de forma tímida por meio dos signos da capela atrás da mesa de Dora na Estação, pelo pregador que também ali se encontrava, ou pela virgem na casa da escrevedora, ele tem seu ápice na cena dos romeiros e a consequente imagem da Pietá invertida (Dora deitada no colo de Josué). Se antes era rarefeito, os signos se unem em uma única linha de ação, é o caminho para a ressensibilização moral de Dora e sua incorporação ao sertão-sagrado, que ocorre progressivamente na narrativa, na sua trajetória cristã da culpa. O espaço do encontro do Pai, dos “bons” valores e do que Dora almeja, algo que ela havia esquecido, inicia-se justamente na mirada de Josué na fotografia velha de uma turma em que Dora fora professora, em uma pintura de uma casa no campo e da virgem Maria, e termina no retratinho dela e de Josué tirado com o Santo, visualizado no caminho de volta de Dora. Em outras palavras, o

filme encontra nessa terra prometida brasileira do sertão a sua proposição de espacialização, por isso a retirada de Dora e sua volta para um novo encontro com a cidade do Rio de Janeiro.

Além disso, o espaço-percepção do sertão-profano, ao começo bastante estimulado na Estação, alterna-se com esse menos perceptivo do sertão-sagrado (a igreja, o pregador, a imagem da virgem) de forma modular. O primeiro é dominante na primeira parte do filme, determina os modos de ação, as figuras do poder (Dora e Pedrão), constituindo a espacialidade determinada dos maus valores cristãos. O espaço produzido é o do maniqueísmo, do agente ingênuo, que não modifica nada, aceita o poder e se espreme dentro dos vagões. No entanto, um vetor de agentes fílmicos é construído para dar visibilidade ao sertão-sagrado e para cristalizá-lo como essência do espaço sertanejo que vai sendo construído. Profano e sagrado ainda se opõem, ora perceptivos e ora ativos, na viagem (road

movie). Do embate entre os dois espaços, vai ser definida a mudança de Dora.

Não é por qualquer motivo que o filme gira como um pião e volta à mesma configuração da mesa da escrevedora de cartas na cidade dos romeiros. O pião volta para o mesmo ponto, simetria fílmica, mas nunca é o mesmo. Com a segunda fase das mensagens que escreve na cidade dos romeiros, retirante e retirada se juntam, se mesclam. É o encontro de todos que enxergam o espaço como o lugar de pagar uma promessa. A configuração não determina mais dominante e dominado, mas diferença. É o que o filme faz justamente ao colocar na imagem a distinção entre sertão-multidão e sertão-sujeito na Central do Brasil (Estação do Rio de Janeiro) e no Central do Brasil (1998) (sertão nordestino), do diferente- oposto para o diferente-igual.

O sertão-sagrado vence como espacialidade perceptiva e ativa depois do sertão- purgatório que confunde o espaço do sagrado com o do profano. Todas as possíveis formas de oposição geradas no intermeio da trajetória ressensibilizadora de Dora (homem e a mulher, a idosa e a criança, o imigrante e o residente), vão sendo descontruídas para atingir o espaço moralizado do sertão. Afinal, existe um conjunto de provações lançadas, pelas quais Dora é tentada e se deixa levar (sertão-profano reacendido). São provocações que traduzem o castigo da má feitora. Isso acontece em três momentos: 1 - depois de tentar vender Josué, Dora se sente culpada e é perseguida; 2 - depois de abandonar o menino no ônibus, eles ficam sem dinheiro para prosseguir a viagem; 3 - depois de roubar e influenciar César a beber, a escrevedora é abandonada. É somente a partir do transe da multidão dos romeiros que ela implode o sertão-profano e aceita o sertão-sagrado como linha ativa de produção. A partir daí, seu movimento se completa com a entrega das mensagens do santo e das cartas no correio. E,

entre as muitas casas de loteamento, novamente se encontra com o Pai (na casa de Moisés e Izaías).

Já em Abril Despedaçado (2001), o traçado acontece de maneira distinta. Sua forma circular, diferente dos emaranhados dos trilhos dos trens ou da linha tracejada de Central do

Brasil (1998), contribui para dar sentido ao enclausuramento do sertão-vendeta criado. A

bolandeira se torna o signo principal da produção das configurações rotineiras fechadas, determinadas de um ciclo e, com ela, compartilhamos o ponto de vista no começo do filme, que deflagra o movimento do giro dos bois. É a mesma engrenagem que faz girar a vendeta. O sangue do irmão mais velho de Tonho (Inácio) engraxa seus rolamentos e reinicia o processo da honra, encerrando uma tradição regulada. Somente a partir de quando os bois empacam na bolandeira, ou quando eles começam a girar sozinhos, é que a liberdade começa a dar movimento a Tonho e a máquina bloqueia o funcionamento. A linha dura circular se quebra justamente pela “falsa consciência” (percepção) desconstruída do jovem e por sua busca por uma aventura errática pelo sertão com os andarilhos circenses, a qual garante a construção de novos traços. Se antes as origens e os destinos eram definidos (sertão- engrenagem), como os caminhos família Breves-família Ferreira e vice-versa, ou casa- comércio, agora eles são ampliados. A libertação termina com o fim do ciclo da vendeta, com a morte de Pacu e a tomada de outro caminho por Tonho, proposto no filme com a imagem de uma bifurcação. Ao invés de ir para a direita, o que sempre fazia com seu pai para vender rapadura na cidade, agora toma a esquerda e acaba sua trajetória, por meio de uma elipse metafórica, num signo central que é o mar. O sertão virou mar.

Podemos dizer, então, que o espaço-ativo está forjado nessa organização dos elementos que configuram o círculo sem fim do começo do filme. A linha de ação está bem definida pela espacialidade criada com o vai e vem das famílias ou com a própria mesa de jantar dos Ferreira e dos Breves. Temos a impressão de um fechamento posicionado, configurado para colocar no poder o sertão-tradição e mantê-lo vivo, estático e imóvel. Há um controle da ação, do que se deve fazer e de como se deve agir. Esse sertão-honra deve ser mantido a todo custo pelas posições do pai, da mãe e dos filhos, que obedecem a esse sertão- máquina.

Neste sentido, vemos o seu funcionamento por meio de três espacializações: 1 – a camisa com o sangue amarelado que enuncia os irmãos por detrás dela no início do filme; 2 – a bolandeira e o trabalho familiar, com lugares definidos para cada um e; 3 – a mesa posta, com o pai na cabeceira, a mãe de um lado e os filhos de outro. O poder está configurado,

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