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CAPÍTULO 4: SERTÕES-PROSA, SERTÕES-POESIA E PROSA E

4.4 Sertão-poesia

As séries de imagens de Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo (2009) e Uma

Encruzilhada Aprazível (2006) produzem cinemas e sertões-poesia. Ambos são filmes

híbridos, estão nas fronteiras entre o documentário e o experimental, com o acréscimo do gênero ficcional no primeiro filme. São preenchidos por imagens-tempo e imagens-espaço diretas, que incitam a legibilidade da imagem por meio da produção constante de situações ópticas e sonoras puras, disjunções entre a imagem e o som, construções de espaços quaisquer (desconectados, fragmentados, vazios e naturezas mortas), afrouxamento dos vínculos sensório-motores e valorização do estilo. Somos partícipes e presenciamos a duração do tempo e do espaço, abertos em seus devires, nos seus processos contínuos de coconstituição.

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) faz ver o processo de criação de

um sertão nordestino por meio dos olhos de José Renato, sua busca perceptiva. Vai da ciência ao sertão-pensamento, da análise do relevo e do solo à imersão temporal e espacial descoordenada. Falseia um caminho do rio, mas encontra uma subjetividade de imagens inundadas. Já Uma Encruzilhada Aprazível faz um ensaio sobre um espaço qualquer, homônimo ao título do filme, entrecruzando as impressões sobre ele e seus agentes. Em um cubismo serial, fragmenta a vida, a morte e a cruz, faz cruzar tempos e espaços.

Seus agentes (multiplicidades discretas contínuas) que espacializam na imagem os sertões poéticos se constituem de: 1 - imagens captadas em primeira mão ou reutilizadas a partir de um curta-metragem anterior (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009)); 2 - diferentes tipos de câmera, inclusive para produção de imagens still; 3 - subjetiva indireta livre (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009)) e rimas visuais (Uma

brega) e instrumental; 7 - diversas formas de utilização do ponto de vista, de decupagem e de experimentações (slow motions, imagens still, fantasmagorias, sobreposições, granulações, etc.); 8 - montagens que buscam a serialidade, colagens, cubismos; 9 - materiais de composição (rádio, estátua, cartaz, escritos, fotografias, etc.).

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) faz com que a câmera produza

espaços poéticos por meio da indiscernibilidade existente entre o personagem José Renato e os próprios diretores. Eles estão mesclados no dispositivo por meio de uma subjetiva indireta livre ao longo de todo o filme, escondidos atrás dos olhos do protagonista. Assim, constituem justamente a tomada do ponto de vista sugerida por Pasolini, isto é, a incorporação da sua “língua” (seu modo de olhar), de sua classe (os cineastas Karim Ainouz e Marcelo Gomes pertencem à classe burguesa) e até a cidade onde viveram é a mesma de um deles (Fortaleza). São também acompanhantes da sua viagem, pois as imagens montadas foram cotejadas a partir de um filme anterior a esse, o curta Sertão de Acrílico Azul Piscina (2004). Neste sentido, apesar de ter uma narrativa ficcional, a história da separação amorosa pontuada pela

voz off do geólogo, ela funciona como um pano de fundo para que um outro filme aconteça,

levando ao limite o que já tinha sido feito anteriormente com o curta-metragem. As séries de imagens são produzidas ou remontadas, tendo em vista não a dependência dos acontecimentos (ação), mas a busca pelo encontro, pela eventualidade que o espaço promove. O resultado aparece em um conjunto de impressões rememoradas de um viajante e sua agência na produção de um sertão que acaba de ser experienciado.

O filme, também como consequência da sua construção poética, desqualifica e requalifica os espaços sertanejos em um movimento contínuo. São espaços que se tornam plurais, heterogêneos, indivisíveis, fugidios de qualquer determinação. Essa não homogeneidade espacial é enfatizada pelos múltiplos formatos de gravação, que produzem uma materialidade da imagem ruidosa e fazem perder o contorno, o traçado. Tais formatos dão protagonismo ao estilo (língua técnica do cinema de poesia) e às imagens-espaços que buscam quebrar as barreiras de um conjunto regulado, euclidiano, suscitando espaços cristalizados. Temos restos de película ligeiramente velados, o que produz uma granulação que lhe é característica, baixa resolução de gravações digitais, imagens fotográficas, etc... A opacidade da câmera a desvela como agente efetivo na produção desse novo espaço sertanejo onírico e mental.

Em alguns trechos dos filmes, as imagens ou são coladas umas sobre as outras, resultando em um efeito de fantasmagoria (cena da igreja), ou as séries são compostas por meio de repetições (caminhões de romeiros), dando a ver um cubismo e seus distintos pontos

de vista. Os próprios artifícios da produção das imagens por meio do slow motion (mulher esculpindo flor de plástico, sorriso de romeira em caminhão), da hiperexposição (retratos com estátua) e do desenquadramento (estradas) também são agentes que favorecem a indeterminação espacial. A montagem desses planos visa a uma composição serial, afrouxada de conexões entre o primeiro e o próximo quadro, voltada para o acontecimento de cada etapa da viagem do geólogo. São blocos sensíveis e se perfazem em um caminho afetivo de José Renato13.

Uma Encruzilhada Aprazível (2006) também desfamiliariza o espectador acostumado

com a prosa e, por conseguinte, com a determinação espacial. Apesar de demarcar bastante o ponto geográfico, a Encruzilhada Aprazível, o filme joga com a sua deslocalização. Com isso, o que seria pontual se transforma em um diverso caleidoscópio com novos pontos de vista. Ora, uma encruzilhada já é um ponto de conexão e de possibilidades interativas múltiplas, além de ser um espaço em constante transformação. Assim, o filme logra uma abertura espacial poética por meio de sua geometria de procedimentos fortemente evidenciada.

O dispositivo, em sua maioria, produz um cubismo de imagens a fim de montar espacialidades. A encruzilhada não tem quatro pontas, mas múltiplas bifurcações que geram distintas imagens-espaços (sertões). Opera por meio de uma decupagem de planos médios, primeiros planos e detalhes, realizando uma colagem que não tem a ver com uma ação e reação, mas um conjunto de elementos que interagem entre si e dão vida ao espaço, também, por blocos14, como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009). Às vezes, por exemplo, realiza isso de forma a criar uma rima visual que favorece uma desterritorialização, como a série de planos que se repete: banco de ferro branco com um homem sentado, urubus !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

131. Toda viagem tem seu início: apresentação do trabalho de José (descrição de um geólogo) na região e o primeiro contato com o local (habitantes e topografia); 2. Romarias: rituais, romeiros e igreja de Juazeiro; 3. Flores do sertão: vegetação; 4. Uma família sertaneja; 5. Caruaru: Feira (montagem e constelação de pessoas e suas mercadorias); 6. Esmola: meninos da estrada que pedem dinheiro; 7. Perdição: Desventuras com a prostituição da região; 8. E no meio do caminho, tinha um colchão: Colchão de chita e sua fabricação; 9. “Eu quero uma vida-lazer”: Depoimento de uma prostituta, Pati, e o cabaré onde trabalha; 10. Lazer lúdico: o circo no interior do Nordeste e seus trabalhadores (montadores e membros); 11.Transposição: Cidade de Piranhas, antes da sua inundação parcial; 12. Saltadores de Acapulco.

!

14!1. Paisagem: imagens do que rodeia a encruzilhada (vegetação, rio, pecuária); 2. Post-mortem: cemitério com suas lápides misturadas a paisagem. O mato cresce em meio aos mausoléus e flores de plásticos, por onde o gado pasta; 3. Encruzilhada situada e riscada: volta à paisagem de rodagem dos ônibus e caminhões, o posto, a cidade sertaneja e suas montanhas; 4. Ônibus: parada para descançar, posto “aprazível”; 5. Posto: colagem do ritmo da rotina do posto entre chegadas e partidas; 6. Carvoeiros: imagens do trabalho da carvoaria e seu ambiente (fumaça, caldeira, pedras, lenha, fogo); 7. Em cada espaço do chão, um canto para dizer que é seu: a feira toda distribuída pelo chão, que se forma a partir de espaços consentidos de comércio. Do índice ao real, ela vira índice novamente em tinta marcada no concreto; 8. Ferro velho: imagens fugidias da pequena aprazível vista

comendo carniça e a estátua do leão, criando uma rede de conexões entre eles. Outras vezes, faz com que um hábito do lugar seja recortado espacialmente, mostrando o seu caráter cíclico, como as pausas dos caminhoneiros no posto da encruzilhada e suas ações que seguem o descanso, o preparo, a comida, a conversa, entre outros. Utiliza também slow motions, como a parte em que evidencia o trabalho de sertanejos, discursos desarticulados de atores do espaço, de gravações de rádio na feira, etc. Todos esses elementos compõem facetas mais fluidas da produção espacial que empreende.

Se o objetivo de ambos os filmes é produzir um corte móvel espacial que seja formado por meio de seus conjuntos abertos, ou seja, não determinantes do espaço, como isso seria possível, visto que o sertão nordestino é altamente qualificado historicamente? Já vimos seus agentes (multiplicidades dinâmicas), que constroem a sua dimensão plástica, formadores de suas imagens-espaço, dentro do regime da imagem-tempo de Deleuze (2009) (espaços- quaisquer), e que fazem com que as imagens se voltem para elas mesmos. No entanto, é em suas outras dimensões (sociais, simbólicas e físicas), mesmo que a própria plástica também esteja nelas entremeada, que garantem suas aberturas espaciais. No conjunto, elas também transformam o sertão em espaços-quaisquer, por meio de uma desessencialização. Viajo

Porque Preciso Volto Porque Te Amo (2009) apresenta uma paisagem tradicional, com

rochas, vegetação (carqueja, ciperácea), clima (“aqui quase nunca chove”, “torrão seco”), algo que é pesquisado por Zé Renato (técnico). Mas, seu sertão é desqualificado de pobre, seco, quente, para se tornar um espaço vazio, fragmentado ao longo da estrada. Ou seja, ele adquire outra qualidade. Possui tons de impressionismo, de simbolismos (ocasos recorrentes), de pinturas realistas. Entre o que figura e o figural, contradiz o que o geólogo pensa como algo parado no tempo. Na imagem, o espaço sempre está em movimento e, quando se acredita ser fixo, um rastro de vida aparece (porquinho na estrada) no canto esquerdo do quadro. Ele permanece vazio não na ideia de ausência de conteúdo, mas dos seres humanos que atuam como objetos, como elementos que quebram suas dimensões essenciais. São também eles, além da imagem que se desfigura, os que provocam um decentramento do sertão. São espaços vazios dinamizados, que atuam em um retrato que desestabiliza José Renato.

As imagens não resultam em uma discussão da pobreza, da miséria, mas em momentos de constatação, de transfiguração e de coetaneidade. São suas cores, seus contornos, que atuam no geólogo, ou a descoberta de uma negociação de imaginários e memórias. Neste sentido, o próprio viajante que cruza a paisagem, que a aponta como sempre igual, estática, aos poucos, vai sendo revelado não ser, dinamizando o espaço. José Renato até tenta forçar uma fixidez a princípio, por exemplo, com a encenação do primeiro casal, que já

negocia o sertão homem-mulher. Por isso, mostra o movimento processual da imagem, seus bastidores. O casal ali entra em contradição com a sua espacialização de casal, o geólogo força os dois a ficar um ao lado do outro, como queria que fosse a sua configuração com a galega. A partir dali, está estabelecido que a cada parada para a análise científica sertaneja, serão produzidos novos encontros, que agenciam nele um novo sentido e tem a ver com um espaço vazio da ausência do próprio José Renato. Isso segue até ele descobrir que está novamente aberto para a vida, pois foi ali, na imposição do vazio, que ele se volta para a vontade de preencher a si mesmo, de mergulhar em Acapulco.

Seguimos, então, com a série de encontros de José Renato com os habitantes da região e suas produções espaciais por conta disso. Primeiro, como já relatamos, o casal que ele filma como um retrato e que os impõe sua posição de marido e mulher. Eles fazem parte do primeiro bloco, em que existe alguma interação. Ademais, quando ela existe, sempre deflagra uma configuração de dominância. Assim acontece também com a conversa com Pati e seu papel de entrevistador e com a menina que encontra na estrada, pedindo esmolas, que a transforma em memória, por ter olhos parecidos com a sua galega. Também estabelece um espaço do consumo do corpo, quando coloca as prostitutas na imagem fotográfica ou na dança para a câmera (olhos de José Renato). De outra forma, temos apenas uma contemplação, sem impor algo ou interagir.

Podemos elencar o encontro com a família de Constantino e com o posto, os romeiros, as pessoas da feira de Caruaru, o sapateiro cantor, os trabalhadores de colchão de chita e as pessoas que dançam no show de forró. No entanto, apesar de haver uma separação entre os que interagem e os que apenas registram, todos são acrescidos de impressões, comentários, que os deslocam do clichê da essência do imaginário coletivo (situação de sobrevivência, pobreza, turismo sexual) para uma subjetivação e uma entronização da situação do geólogo. As impressões vão sendo construídas, mas em extratos tectônicos que devem ser observados por debaixo do relevo da imagem.

Isso faz com que tanto as pessoas, quanto os objetos (dimensão física), permaneçam sempre como elementos descritivos, virem imagens-espaço diretas, justamente pela forma que o filme passa da imagem-movimento (determinação) à imagem-tempo (desterritorialização). A princípio, só existe um desejo do protagonista de determinar o espaço. Mas, aos poucos,

Viajo Porque Preciso Volto Porque Te amo (2009) vai revelando a sua face de registrar o

processo, de deflagrar uma condição para a câmera visionária (personagem-diretores), que mais registra, descreve, do que age. De certa forma, essa constatação é o problema central do

No começo e em algumas partes no decorrer do filme, somos apresentados a uma necessidade do geólogo de mensurar o espaço (instrumentos e informações científicas), de analisá-lo metricamente, fisicamente. Essa matematização tem um propósito que está na construção do canal que será construído, motivo inicial da viagem de José Renato. Mas, como ele mesmo duvida de tal construção, inferimos que é justamente o mensurável que deve ser questionado. Os signos de medição vão deixando de existir para que outra forma de ler o sertão permaneça, a do espaço em construção, eventual, produzido abertamente pelo encontro da câmera-personagem com os seus agentes. Desse modo, a legibilidade provocada pelo que a câmera faz do/com o espaço não tem a ver com suas coordenadas euclidianas, ou sua topologia, em um sentido estrito, mas com as camadas que estão por baixo de sua geografia física. É o encontro entre as camadas além-tectônicas que instiga a conexão entre os elementos e que produz um espaço cada vez mais difícil de ser representado, imobilizado.

A passagem do extensivo para o intensivo se dá, também, pelo caminho (traçado) feito pelo filme, que chega ao limite do sertão-perda. O protagonista, a medida que percorre o caminho da transposição do rio, permite-se criar braços fluviais que alteram seu destino, antes traçado. Não é a própria estrada uma metáfora visual para um caminho certo de um rio? O que ele faz é justamente transbordar e deixar alagar-se no sertão, podendo, assim, sentir o que suas águas tocariam em outros pontos que não compreendem o extenso. A mudança acontece quando José Renato chega a Caruaru, vociferando contra seu trabalho e em busca de se perder na multidão da feira. Daí para frente, os traçados perdem o seu contorno até Acapulco. O espaço vai sendo desmetrificado, e Pati, a prostituta com quem interage, não sabe nem o nome da rua de sua danceteria. Com isso, o espaço vira outra coisa, vira esse conjunto de conexões que ele pode gerar e produzir, de forma aberta, virando um estado gasoso. Se o filme nos leva da terra à água, é porque, acima disso tudo, existe algo que não se determina, que é a vida em seu estado gasoso, que promove encontros e que busca outros caminhos para o sertão, uma eterna busca da vida-lazer.

Essa massa amorfa gasosa está por se fazer a cada movimento do geólogo. As espacialidades vão sendo reconfiguradas pelos encontros do citadino com o sertanejo, do “documentarista” com a prostituta, dos carros com os romeiros, da falta de água com a densidade de gente, da pobreza com a riqueza, dos isolados com a multidão. Tudo traça um movimento relacional entre as séries de imagens que se formam, até que ele perde o seu contorno e perde a vontade de ir embora, enchendo-se de vida. A câmera impressiva, ela mesma, uma narrativa visual demarcada, se enche de vida e se relaciona com o que não pode ser o espaço sertanejo, como Acapulco, sua forma mais intensa de desfragmentação. Pois não

importa se existe água ou não, existe a vida, suas contradições, seus conflitos, suas camadas. Tudo parece perder o contorno porque o conjunto não está fechado. É a copulação de uma nova criação espacial. A imagem emblemática do colchão de chita na caatinga é justamente essa produção de vida que se abre no sertão. Ou seja, uma paisagem monocromática onde a cor ganha destaque quando é pontuada na policromia da chita, na reprodução da vida nova, no encontro que produz o novo espacial.

Essa cena inclusive compõe um dos espaços-quaisquer que o filme produz. O quadro que abrange um fato de cabras, uma árvore seca ao fundo e um colchão de chita que seca ao sol, ruidosos pelas marcas da superexposição de luz do filme, nos dá seu contraste entre o rosa e o céu, entre as flores e os galhos cinzas. E coloca a indiscernibilidade entre o que deseja José Renato e a objetividade da câmera. É por meio dessa natureza morta, da plenitude de seus signos, que estão compostas todas as relações do filme, o passado e o presente do geólogo, imagem quase onírica de um ser que perambula pelo sertão. Perante o vazio do lugar, esse quadro figura mais uma das paisagens que vemos nas estradas, que sempre nos remete ao sertão-qualquer, onde vários colchões poderiam estar expostos, cheios de junco. Esses espaços vão sendo costurados ao longo do filme, fragmentados em sua composição.

De bloco em bloco temos essas estradas e suas paisagens ao lado, como um devir do sertão. Estamos na própria indeterminação que configura o espaço vazio, das mais distintas formas de retratá-lo. É um sertão-trânsito que representa esse lugar do não-lugar, compreendido pelos postos quaisquer, pelas rodovias quaisquer. As paisagens, ao invés de identificarem, é a premissa da desidentificação. Em meio a tantas imagens parecidas, não nos encontramos em espaço algum, mas em um sertão-qualquer que fragmenta os possíveis destinos por meio dessa costura do sertão-colchão. Chega ao casal qualquer, ao hotel de beira de estrada qualquer, a um romeiro qualquer, a uma prostituta qualquer, a uma feira qualquer, mas todos eles subjetivados em suas singularidades que coexistem em um diário de um viajante, que remete a essas imagens como imagens-lembrança. Elas formam a indistinção entre o real e o imaginário, entre o físico e a imagem mental do protagonista e, porque não dizer, dos próprios diretores.

Existe um bloco de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009) bastante emblemático nesse sentido, uma constituição desses espaços-lembrança. O geólogo coloca seu olhar sob um conjunto de plantas, árvores, falando que sua galega era botânica. A movimentação de câmera, que perambula por entre os galhos, insinuando a fragmentação do espaço, faz um caleidoscópio, evidencia um estado de letargia, de doença romântica do

a atualização do seu desejo, mas um circuito entre passado e presente que se tocam. Não sabemos se são imagens reais ou imaginárias, elas fazem tocar pólos subjetivos e objetivos.

Na verdade, o filme é todo permeado por essas imagens, que podem ser compreendidas mais que lembranças, são imagens cristais, bifurcadas, sempre mostrando o virtual e o atual ao mesmo tempo. Não com opsignos cristalinos, pois não temos água nem espelhos (só a vontade de um rio), mas por meio do cristalino do olho, da subjetiva-objetiva do geólogo. Seu discurso imagético, sempre referenciando a um estado duplo, faz devir o que a câmera mostra e o que “imagina” José Renato. Constrói um sertão-cristalino, na vontade de descrevê-lo como algo para além de um espaço narrativo hodológico, de campos de forças, buscando o lirismo, um devir do sertão-ausência, do sertão-busca. O sertão aqui também é natureza morta, no sentido simbólico de que configura a morte do protagonista e sua vontade plena de se encher, como o faz ao longo do filme, no curso do rio que vão desviar.

O rio deveria significar vida para os moradores da região. No entanto, a cada quilômetro que percorre, apesar da falta da água, já encontra vida. Crianças brincam com seus pais, meninas sorriem na estrada, famílias se perpetuam, sapateiros cantam, circos vêm com seus palhaços. Seria melhor se tivessem uma vida-lazer. Porém, quem dá o tom mórbido é o

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