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De Nabucodonosor a Hadriano: respigaduras midráxias sobre o Livro de Lamentações

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Academic year: 2021

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Claude Valentin René Detienne**

Resumo: este artigo pretende ilustrar como o livro de Lamentações, composto depois da

destruição do primeiro Templo de Jerusalém em 587 a.C. e lido na sinagoga a cada ano na festa do dia 9 de Av, foi relido à luz das sucessivas experiências traumáticas coletivas do povo judeu ao longo da história. Para tanto, apre-senta traduções de trechos extensos do seu comentário rabínico tradicional, o Lamentações Rabbah, que relatam vários episódios da primeira guerra ju-daico-romana que culminou na destruição do segundo Templo em 70 d.C. e da revolta de Simão Bar Kokhba (132-136 d.C.).

Palavras-chave: Livro de Lamentações. Releituras bíblicas. Lamentações Rabbah

É

bem conhecida a prática, dentro da própria Bíblia hebraica, da reinterpretação contínua de textos por meio de releituras/reescrituras que fazem que os textos respondam mais diretamente aos questionamentos de cada época. Como escreve Julio Trebolle Barrera (1995, p. 513):

Desde os começos da tradição bíblica a interpretação é parte integrante do seu texto. Os profetas inspiram-se em tradições antigas para interpretar os aconteci-DE NABUCODONOSOR A HADRIANO:

RESPIGADURAS MIDRÁXIAS SOBRE O LIVRO DE LAMENTAÇÕES*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 26.11.2015. Aprovado em: 08.12.2015.Na ocasião da homenagem feita ao Prof. Haroldo Reimer, queremos, pelo presente artigo, relembrar as prolongadas sessões de leitura e tradução da Bíblia Hebraica nas quais, simples orientando, tivemos a honra prazerosa de aprofundar o sentido literal do Livro de Lamentações, na companhia dele e dos Professores Valmor da Silva e Geraldo Rosania

** Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor na Universidade Estadual de Goiás e no Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás. E-mail: madnho@gmail.com

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mentos de sua época. Seus discípulos não fizeram outra coisa que continuar este processo interpretativo criando e recriando o texto. O processo de interpretação continuará inclusive depois da estabilização do texto.

O fenômeno não se limita à literatura profética e os exemplos abundam, quer nos tex-tos legislativos do Pentateuco (com não raramente três versões de uma mesma norma), nos livros históricos (Crônicas em relação a Samuel e Reis sendo o exemplo mais vistoso) e na literatura sapiencial (com as reescrituras da figura da Sabedoria presente no momento da criação, por exemplo).

A biblioteca de Qumrã continua essa tradição nas suas produções exegéticas, em par-ticular nos assim-chamados pexarim, comentários bíblicos que acompanham o texto comentado versículo após versículo. Convém citar aqui o exemplo do Comentário a Habacuc (1QPesher Habacuc), que aplica a descrição dos caldeus em Hab 1,5-10 aos romanos, chamados de Kittim1 (GARCÍA

MAR-TÍNEZ, 1994, p. 239-40). Tal associação nos leva naturalmente ao tema deste artigo: a associação entre a destruição de Jerusalém pelos babilônios em 587 a.C., a destruição pelos romanos em 70 d.C. e também a revolta de Simão Bar Kokhba em 132-136 d.C.

No campo litúrgico, tal associação de várias desgraças nacionais é simbolizada na festa de Tixá Be-Av (dia 9 do mês de Av2), que, na origem, lembrava a destruição

do primeiro e do segundo Templo, mas passou a incluir a lembrança de outras desgraças acontecidas na mesma data (às vezes, na verdade, em data próxima). Significativamente, a liturgia sinagogal daquela festa prevê a leitura pública integral do livro de Lamentações. A Mixná, redação da Torá oral atribuída a Yehudah Ha-Nasi no início do século 2 d.C., dá uma lista de cinco desgraças acontecidas naquela data: “Cinco coisas aconteceram aos nossos pais no dia 17 do mês de Tammuz e cinco no dia 9 do mês de Av... No 9 de Av, foi decre-tado contra nossos pais que não entrariam na Terra, o Templo foi destruído pela primeira e pela segunda vez, Betar3 foi conquistada e a Cidade4 foi arada”

(DANBY, 1933, p. 200).

Com o passar do tempo foram acrescentadas muitas outras desgraças até a segunda guerra mundial, como indica George Robinson (1985, p. 131): “Não se preci-sou de decreto rabínico para calamidades posteriores que coincidiram com o dia 9 de Av. Em 1190, todos os judeus de York na Inglaterra foram massacrados naquele dia, vítimas do primeiro exemplo do abominoso “libelo de sangue”, a acusação de que os judeus usavam o sangue de crianças cristãs nos seus ritos religiosos. Em 9 de Av de 1290, o rei Eduardo I da Inglaterra assinou a ordem de banimento de todos os judeus da Inglaterra. Embora os últimos judeus dei-xassem a Espanha em 1492 quatro dias antes que entrasse em vigor, a ordem de expulsão do rei Fernando e da rainha Isabel fixou o prazo de 9 de Av para

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sua saída final. E em 9 de Av de 1942 os nazistas começaram as deportações de Varsóvia para o campo da morte de Treblinka (aparentemente de propósito).” Neste artigo, pretendemos apresentar alguns textos midráxicos5 que ilustram a

propen-são mostrada acima de reinterpretar os textos à luz das sucessivas experiências históricas do povo judeu. São textos de um comentário do livro de Lamenta-ções chamado LamentaLamenta-ções Rabbah (Eikha Rabbati ou Midrash Eikha

Rab-bah em hebraico), que é um dos mais antigos midraxim exegéticos rabínicos. Segundo Hermann Leberecht Strack e Günter Stemberger (1992, p. 286), a sua forma mais antiga deve remontar ao século 5 d.C.; contudo, sendo um texto muito popular, sofreu várias modificações ao longo dos séculos.

Uma primeira série de relatos diz respeito a Vespasiano e Tito, que dirigiram sucessi-vamente o exército romano na primeira guerra judaico-romana em 66-73 d.C., e é apresentada no comentário sobre a primeira parte de Lm 1,5, cuja tradução literal seria a seguinte: ‘Seus adversários tornaram-se cabeça, seus inimigos estão felizes”6. Na lógica da hermenêutica rabínica, segunda a qual não

exis-te redundância por simples motivos estilísticos, as duas parexis-tes são atribuídas respetivamente a um e outro general romano: “Outra interpretação de ‘Seus adversários tornaram-se cabeça’: diz respeito a Vespasiano. ‘Seus inimigos estão à vontade’: diz respeito a Tito” (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 100). O texto continua com histórias envolvendo a figura de Yohanan Ben Zakai, que teve

papel importante em negociações com os romanos e na reorganização do juda-ísmo depois da destruição do segundo Templo:

Durante três anos e meio, Vespasiano cercou Jerusalém com quatro generais, o general da Arábia, o da África, o de Alexandria, e o da Palestina. A respeito do general da Arábia, dois mestres discordam sobre o nome dele, um dizendo que era Killus e o outro Pangar.

Em Jerusalém havia quatro conselheiros, Ben Zizit, Ben Gorion, Ben Nakdimon, e Ben Kalba Xabua. Cada um podia abastecer a cidade com comida para dez anos. Havia também Ben Battiah, sobrinho de Rabi Yohanan ben Zakkai, que era responsável pelos armazéns, que ele queimou todos. Quando Rabi Yohanan ben Zakkai ouviu isso, exclamou “Ai!”. Disseram a Ben Battiah: “Seu tio exclamou: ‘Ai!’”. Convocou-o e perguntou: “Por que exclamou ‘Ai!’?” Respondeu: “Não exclamei ‘Ai!’, mas ‘Uau!’” Disse-lhe: “‘Você exclamou ‘Uau!’? Por que essa exclamação?” Respondeu: “Porque queimaram todos os armazéns, e eu pensa-va que enquanto os armazéns ficariam intactos, o povo não se exporia aos peri-gos da batalha.” Pela diferença entre ai e uau Rabi Yohanan ben Zakkai escapou à morte; e este versículo lhe foi aplicado: A vantagem do conhecimento é que a sabedoria faz viver (Ecl 7,13).

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e viu pessoas fervendo palha e bebendo sua água; disse [para si mesmo]: “Ho-mens que fervem palha e bebem sua água podem resistir aos exércitos de Vespa-siano?” Acrescentou: “Cheguei à conclusão de que preciso sair daqui.” Mandou uma mensagem para Ben Battiah: “Tira-me daqui.” Respondeu: “Combinamos que ninguém sairia da cidade vivo.” Disse: “Carrega-me como um cadáver.” Rabi Eliezer o carregou pela cabeça, Rabi Yoshua pelos pés, e Ben Battiah an-dava na frente. Quando chegaram aos [portões da cidade, os guardas] quiseram apunhalá-lo. Ben Battiah disse-lhes: “Querem que se diga que quando nosso mestre morreu seu corpo foi apunhalado?” Ouvindo isso, o deixaram passar. Depois de passar pelos portões, o carregaram até um cemitério onde o deixaram e voltaram para a cidade.

Rabi Yohanan ben Zakkai saiu e foi até os soldados de Vespasiano. Disse-lhes “Onde está o imperador?” Foram dizer a Vespasiano: “Um judeu está per-guntando por você” Disse-lhes: “Tragam-no.” Quando chegou, disse: “Vive domine Imperator!” Vespasiano observou: “Saudou-me como imperador, mas não sou imperador; se o imperador ouvir isso, me executará.” Disse-lhe: “Se você não é imperador, acabará sendo, porque o Templo só será destruído pela mão de um imperador, como está dito: O Líbano virá abaixo sob a mão de um forte” (Is 10,34).

Puseram-no no mais recôndito de sete quartos e perguntaram que hora da noite era e ele lhes disse. Depois perguntaram que hora do dia era e ele lhes disse. Como Rabi Yohanan ben Zakkai soube isso? Pelo seu estudo.

Três dias depois, Vespasiano foi banhar-se em Gofna. Depois do banho, ele pôs um calçado e chegou uma mensagem anunciando que Nero tinha morrido e que os romanos o tinham proclamado imperador. Tentou pôr o outro calçado mas não conseguiu. Convocou Rabi Yohanan e perguntou-lhe “Pode me explicar por que nestes dias todos usei dois calçados que me serviam, mas agora um serve e o outro não?” Respondeu: “Você recebeu boas notícias, porque está escrito: Uma boa notícia desnuda os ossos” (Pr 15,307). Perguntou: “O que devo fazer para conseguir pô-lo?” Respondeu: “Tem alguém que você odeia ou que te prejudi-cou? Manda-o passar na sua frente e tua carne se contrairá, porque está escrito: Espírito abatido, ossos secos” (Pr 17,22).

Então começaram a falar com ele em parábolas: “Se uma cobra aninhar-se num barril, o que se deve fazer?” Respondeu: “Traga um encantador e encante a cobra, e deixe o barril intacto.” Pangar disse: “Mate a cobra e quebre o bar-ril’”. [Então perguntou:] “Se uma cobra aninhar-se numa torre, o que fazer?” Respondeu: “Traga um encantador e encante a cobra, e deixe a torre intacta.” Pangar disse: “Mate a cobra e queime a torre.” Rabi Yohanan disse a Pangar: “Vizinhos que fazem mal, o fazem a seus vizinhos; em vez de apelar em favor da defesa, você argumenta a favor da acusação contra nós!” Respondeu: “Procuro

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vosso bem; enquanto o Templo existir, os reinos pagãos vos atacarão, mas se for destruído, não vos atacarão mais.” Rabi Yohanan disse-lhe: “O coração sabe qual é sua intenção verdadeira.”

Vespasiano disse a Rabi Yohanan ben Zakkai, “Faça um pedido e o concederei.” Respondeu: “Peço que abandone a cidade de Jerusalém e vá embora.” Disse-lhe: “Por acaso os romanos me proclamaram imperador, para que eu deva abandonar a cidade? Faça outro pedido e o concederei.” Respondeu: “Peço que deixe o por-tão ocidental que leva para Lida, e quem sair até a quarta hora será poupado.” Depois de conquistar a cidade, Vespasiano lhe perguntou: “Você tem algum ami-go ou parente aí? Faça o sair antes de as tropas entrarem.” Mandou Rabi Eliezer e Rabi Yoxua para fazer sair Rabi Zadok. Foram e o acharam no portão da cidade. Quando ele chegou, Rabi Yohanan se levantou diante dele. Vespasiano pergun-tou: “Você se levanta diante desse velho emaciado?” Respondeu: “Eu juro, se tivesse tido [em Jerusalém] outro como ele, mesmo com um exército duas vezes maior, você não teria conseguido conquistá-la.” Perguntou: “Qual é o poder dele?” Respondeu: “Come um figo e com a força desse figo ensina na academia durante cem sessões.” Perguntou: “Por que é tão magro?” Respondeu: “Por causa de seus muitos jejuns e abstinências.” Vespasiano chamou médicos que o alimentaram com pequenas porções de comida e pequenas doses de bebida até que ele recuperasse suas forças. Seu filho Eleazar lhe disse: “Pai, dá-lhes sua recompense neste mundo para não ter dívida com eles no mundo vindouro.” Deu-lhes um jogo de cálculo nos dedos e balanças.

Depois de submeter a cidade, Vespasiano atribuiu a destruição das quatro mu-ralhas aos quatro generais, e o portão ocidental foi atribuído a Pangar. Mas tinha sido decretado pelo Céu que esse nunca seria destruído porque a Xequiná morava no ocidente. Os outros demoliram sua parte, mas ele não demoliu a dele. Vespasiano o chamou e perguntou: “Por que não destruiu sua parte?” Respondeu: “Eu juro, agi assim para a honra do império; porque, se eu a ti-vesse demolido, ninguém [no futuro] saberia o que você destruiu; mas quando as pessoas olharem para [o muro ocidental], exclamarão: ‘Entenda a força de Vespasiano pelo que ele destruiu!’” ‘Disse-lhe: “Chega, falou bem, mas já que desobedeceu, você subirá no teto e se jogará abaixo. Se sobreviver, viverá; se morrer, morrerá.” Subiu, se jogou abaixo e morreu. Assim a maldição de Rabi Yohanan ben Zakkai pousou sobre ele (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 100-104)

Outras histórias sobre Vespasiano aparecem no comentário sobre a primeira parte de Lm 1,16 “Por isso estou chorando”.

“Por isso estou chorando” (Lm 1,16). Vespasiano encheu três navios com ho-mens eminentes de Jerusalém para colocá-los em prostíbulos romanos.

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Levanta-ram-se e disseram: “Não é suficiente termos provocado sua ira no seu santuário, que façamos o mesmo fora de sua Terra Santa [consentindo em práticas imo-rais]?” Disseram às mulheres [de Jerusalém que estavam nos navios]: “Vocês desejariam tal destino?” Responderam: “Não”. Então disseram: “Se mulheres, naturalmente formadas para o coito, negam, quanto mais devemos [negar ser-mos usados para um propósito antinatural]! Pensam que, se nos jogarser-mos ao mar, entraremos na vida do mundo vindouro?” Imediatamente o Santo, bendito seja, esclareceu os olhos deles com o seguinte versículo: O Senhor disse: De Basã eu faço voltar, faço voltar das profundezas do mar (Sl 68,23). ‘De Basã eu faço voltar, isto é, Eu os farei voltar de entre os dentes (ben xinne) dos leões; ‘faço voltar das profundezas do mar’ deve entender-se literalmente.

A primeira companhia [no primeiro navio] levantou-se e disse: “Se tivéssemos esquecido o nome do nosso Deus, estendendo nossas mãos a um deus estran-geiro” (Sl 44,21), e se jogaram ao mar. A segunda companhia levantou-se e disse: É por tua causa que nos matam todo o dia” (Sl 44,23), e se jogaram ao mar. A terceira companhia levantou-se e disse: “Por acaso Deus não o teria percebido, ele que conhece os segredos do coração?” (Sl 44,22), e se jogaram ao mar. Então o Espírito Santo gritou: “Por isso eu estou chorando” (FREED-MAN; SIMON, 1983, p. 123-124)

Ao comentar Lm 4,9 “Mais felizes foram as vítimas da espada do que as da fome, que sucumbam, esgotadas, por falta dos frutos do campo”, o texto traz uma lem-brança da fome durante o cerco:

Mais felizes foram as vítimas da espada do que as da fome (Lm 4,9). Na destrui-ção do primeiro Templo, as pessoas morreram pelo cheiro dos cardos [que fo-ram obrigados a comer durante o cerco]; mas na destruição do segundo Templo, não tinha nem cardos para comer. O que o inimigo lhes fez? Trouxeram cabritos que assaram no oeste da cidade e o cheiro abriu o apetite deles e morreram. Isso foi para cumprir o que está escrito: Que se sucumbem, esgotadas, por falta dos frutos do campo (Lm 4,9) (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 221-222)

A partir do mesmo texto “Por isso estou chorando”, o comentário traz também memó-rias sobre o imperador Adriano, que visitou Jerusalém em 130/131 e tinha pla-nos para “desjudaizar” a cidade, reconstruindo-a como colônia romana com um templo a Júpiter Capitolino sobre as ruínas do segundo Templo. Isso levou a uma nova revolta judaica, liderada por Simão Bar Kokhba em 132, que aca-bou derrotado em 135 na fortaleza de Betar.

Adriano o maldito colocou três guarnições, uma em Emaús, outra em Kefar Lekatia, e a terceira em Betel da Judeia. Ele disse: “Quem tentar escapar de uma será

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capturado por outra e vice versa.” Ele também mandou arautos proclamarem: “Onde houver um judeu, que saia porque o imperador quer lhe dar garantia [de segurança].” Os arautos proclamaram isso para eles e assim capturaram os judeus. É o que está escrito: Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteli-gência (Os 7,11). [Os arautos gozaram com os judeus capturados, dizendo:] “Em vez de tentar ressuscitar os mortos, rezem par que os vivos não sejam capturados.” Os que entenderam [o estratagema] não saíram [de seus escon-derijos], mas todos os que não entenderam se reuniram no vale de Bet Rimon. [Adriano] disse ao capitão do seu exército: “Quando eu tiver comido esta fatia de bolo e esta perna de frango, procurarei e não deverei encontrar um desses [com vida].” Imediatamente, os cercou com suas legiões e os massacrou, e o sangue deles escorreu [até o litoral e manchou o mar] até Chipre. Então o Es-pírito Santo gritou: “Por isso eu estou chorando”.

Os judeus escondidos [nas grutas] devoraram a carne de seus irmãos mortos. Cada dia um deles se aventurava fora e trazia os corpos para serem comidos. Um dia disseram: “Que vá um de nós, e que traga o que encontrar e o comere-mos.” Saiu, encontrou o corpo do seu pai, o pegou, enterrou e marcou o lugar. Voltou e falou que não tinha encontrado nada. Disseram: “Que outro vá, que traga o que encontrar e o comeremos.” Saiu, e seguiu a pista; e, procurando, descobriu o corpo [do homem enterrado]. O trouxe para eles e o comeram. De-pois de comer, lhe perguntaram: “De onde trouxe esse corpo?” Respondeu: “De certo canto.” Perguntaram: “Que marca tinha?” Contou e o filho exclamou: “Ai de mim! Comi da carne do meu pai!” Isso para cumprir o que está dito: Por esta razão os pais devorarão os filhos, no meio de ti, e os filhos devorarão os pais (Ez 5,10) (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 124-126)

Também dentro do comentário do mesmo versículo aparece uma história edificante de resistência familiar às perseguições do imperador, cujo enredo é muito pa-recido com a história dos sete irmãos de 2Mc 7. Se a motivação do martírio dos irmãos é diferente (carne de porco em 2Mc 7 e adoração de imagem em Lamentações Rabbah), a história segue a mesma sequência, cada irmão sendo executado um depois do outro, e o rei/imperador dedicando mais esforços no convencimento do irmão caçula, o qual, nos dois textos, desenvolve uma argu-mentação muito mais longa que os outros. Outra diferença é o uso constante pelos irmãos, no texto de Lamentações Rabbah, de citações bíblicas para justi-ficar sua atitude, o que condiz evidentemente com um texto rabínico:

Conta-se de Miriam, filha de Tanhum, que foi levada para o cativeiro com seus sete filhos. O imperador os colocou dentro de sete salas. Mandou chamar o mais

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velho e lhe disse: “Prosterna-te em frente da imagem.” Ele respondeu: “Deus não permita que eu me prosterne em frente de uma imagem.” “Por quê?” per-guntou o rei. “Porque está escrito em nossa Torá: Eu sou YHWH teu Deus” (Ex. 20,2). Mandou imediatamente que o levassem para fora e executassem. Mandou chamar o segundo e lhe disse: “Prosterna-te em frente da imagem.” Respondeu: “Deus não permita! Meu irmão não se prosternou e eu também não vou.” “Por quê?” perguntou o rei. Respondeu: “Porque está escrito em nossa Torá: Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,3). Mandou executá-lo imediatamen-te. Mandou chamar o terceiro e lhe disse: “Prosterna-te em frente da imagem.” Respondeu: “Não me prosternarei.” “Por quê?” perguntou o rei. “Porque está escrito na Torá: Não adorarás outro deus” (Ex 34,14). Mandou executá-lo ime-diatamente. Mandou chamar o quarto, que disse: “Quem sacrificar a outros deuses, fora YHWH, será entregue ao anátema” (Ex 22,19), e o rei ordenou que fosse executado. Mandou chamar o quinto, que disse também: “Ouve, ó Israel, YHHWH nosso Deus é o único YHWH” (Dt 6,4), e o rei mandou que fosse exe-cutado imediatamente. Mandou chamar o sexto, que disse da mesma maneira: “YHWH teu Deus, que habita em teu meio, é Deus grande e terrível” (Dt 7,21), e o rei ordenou que fosse executado.

O rei mandou chamar o sétimo, o mais jovem, e lhe disse: “Meu filho, pros-terna-te em frente da imagem”. Respondeu: “Deus não permita!” “Por quê?” perguntou o rei. “Porque está escrito em nossa Torá: Reconhece hoje e medita em teu coração: YHWH é o único Deus, tanto no alto do céu, como cá embaixo, na terra. Não existe outro (Dt 4,39). E mais, juramos ao nosso Deus que não o trocaríamos por nenhum outro; como está escrito: Fizeste YHWH declarar que ele seria teu Deus (Dt 26,17). E juramos a ele, e nos jurou que não nos trocaria por nenhum outro povo; como está escrito: E hoje YHWH te fez declarar que tu serias o seu povo próprio” (Dt 26,18). O imperador lhe disse “Teus irmãos tiveram uma vida cheia de anos e de felicidade; mas você é jovem, você ainda não teve uma vida cheia de anos e de felicidade. Prosterna-te em frente da ima-gem e te concederei favores.” Respondeu: “Está escrito em nossa Torá: YHWH reinará para sempre e eternamente (Ex 15,18), e está escrito: YHWH é rei para sempre e eternamente, as nações desapareceram de sua terra (Sl 10,16). Você e seus inimigos não valem nada. Um ser humano vive hoje e more amanhã, rico hoje e pobre amanhã; mas o Santo, bendito seja, vive e permanece para toda a eternidade.”

O imperador lhe disse: “Veja, teus irmãos executados na tua frente. Olha, vou jogar meu anel no chão em frente da imagem; pega-o para todo mundo saber que você obedeceu à minha ordem.” Respondeu: “Ai de você, ó imperador! Se você tem medo de seres humanos iguais a você, eu não devo ter medo do supremo Rei dos Reis, o Santo, bendito seja, o Deus do universo?” O rei lhe perguntou:

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“En-tão o universo tem um Deus?” Respondeu: “Devia ter vergonha, ó imperador! Então você contempla um mundo sem Mestre?” O rei perguntou: “Teu Deus tem boca?” Respondeu: “A respeito de teus deuses está escrito: Têm boca, mas não falam (Sl 115,5); a respeito de nosso Deus está escrito: O céu foi feito com a pa-lavra de YHWH” (Sl 33,6). “Teu Deus tem olhos?” Respondeu: “A respeito de teus deuses está escrito: Têm olhos, mas não veem (Sl 115,5); a respeito do nos-so Deus está escrito: Os olhos de YHWH, que percorrem toda a terra” (Zc 4,10). “Teu Deus tem ouvidos?” Respondeu: “A respeito dos teus deuses está escrito: Têm ouvidos, mas não ouvem (Sl 115,6); a respeito do nosso Deus está escrito: YHWH prestou atenção e ouviu” (Ml 3,16). “Teu Deus tem nariz?” Respondeu: “A respeito de teus deuses está escrito: Têm nariz, mas não cheiram (Sl 115,6); a respeito do nosso Deus está escrito: YHWH respirou o agradável odor” (Gn 8,21). “Teu Deus tem mãos?” Respondeu “A respeito de teus deuses está escri-to: Têm mãos, mas não tocam (Sl 115,7); a respeito do nosso Deus está escriescri-to: Minha mão fundou a terra” (Is 48,13). “Teu Deus tem pés?” Respondeu: “A respeito de teus deuses está escrito: Têm pés, mas não andam (Sl 115,7); a res-peito do nosso Deus está escrito: Naquele dia, estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras” (Zc 14,4). “Teu Deus tem garganta?” Respondeu: “A respeito de teus deuses está escrito: Não há um murmúrio em sua garganta (Sl 115,7); a respeito do nosso Deus está escrito: O estrondo que sai de sua boca” (Jó 37,2). O rei perguntou: “Se teu Deus tem todos esses atributos, por que não te livra de minha mão da mesma maneira que resgatou Ananias, Misael e Azarias das mãos de Nabucodonosor?” Respondeu: “Ananias, Misael e Azarias eram homens de valor, e o rei Nabucodonosor merecia que um milagre fosse realizado por meio dele. Você não merece; e quanto a nós, nossas vidas são confiscadas para o céu. Se você não nos executar, o Todo-Poderoso tem muitos carrascos. Há muitos ursos, lobos, cobras, leopardos e escorpiões para nos atacar e matar; mas no final o Santo, bendito seja, vingará nosso sangue sobre você.” O rei o mandou imediatamente executar.

A mãe disse ao rei “Pela tua vida, ó imperador, dê-me meu filho para que eu o possa abraçar e beijar.” Deram seu filho a ela, e desnudou o peito e o amamen-tou. Ela disse ao rei: “Pela tua vida, ó imperador, manda que me matem antes de matá-lo.” Respondeu-lhe: “Não posso concordar porque está escrito na vossa Torá: Quer seja bezerro ou cordeiro, não imolareis no mesmo dia o animal e sua cria” (Lv 22,28). Respondeu: “Louco inveterado! É o único mandamento que você ainda não respeitou?”

Mandou executá-lo imediatamente. A mãe se jogou sobre seu filho, o abraçou e o beijou. Disse-lhe: “Meu filho, vá até o patriarca Abraão e dize-lhe: ‘Assim fala minha mãe: ‘Não fique orgulhoso [de tua justiça], dizendo: Construí um altar e ofereci meu filho Isaac. Veja, nossa mãe construiu sete altares e ofertou

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sete filhos em um dia. Para você foi só um teste, para mim foi de verdade.’” En-quanto ele o abraçava e beijava, o rei mandou matá-lo em seus braços. Depois da execução, os Sábios calcularam a idade da criança e descobriram que ele tinha dois anos, seis meses, e seis horas e meia de idade. Nesse momento, todos os povos da terra gritaram: “O que o Deus deles faz para eles para que sejam executados todo o tempo por causa dele?” A respeito deles está escrito: É por tua causa que nos matam todo o dia (Sl 44,23). Alguns dias depois, a mulher enlouqueceu caiu de um telhado e morreu, para cumprir o que está escrito: Esmorece aquela que gerou sete filhos (Jr 15,9). Uma voz saiu e proclamou: ’Alegre mãe com seus filhos’ (Sl 113,9); Então o Espírito Santo gritou: “Por isso eu estou chorando” (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 128-132).

Na ocasião do comentário do início de Lm 2,2 “O Senhor destruiu sem piedade todas as moradas de Jacó”, o texto traz relatos a respeito da revolta de Simão Bar Kokhba, particularmente sobre a fase final na fortaleza de Betar:

R Yohanan disse: Rabbi costumava explicar Um astro (kokab) procedente de Jacó (Nm 24,17) assim: não leiam kokab, mas kozab (mentira). Quando Rabi Akiba viu Bar Koziba, exclamou “É o rei Messias!” Rabi Yohanan ben Tortha re-trucou: “Akiba, grama crescerá na tua face antes que ele venha!” Rabi Yohanan disse: “A voz é a de Jacó (Gn 27,22)” – a voz [de aflição provocada pelo] im-perador Adriano, que massacrou oito mil miríadas de seres humanos em Betar. Oito mil corneteiros assediaram Betar onde Bar Koziba estava com duzentos mil homens com um dedo amputado. Os Sábios lhe mandaram a seguinte men-sagem: “Por quanto tempo vai continuar a manchar os homens de Israel?” Per-guntou-lhes: “Que outro jeito tem de testá-los?” Responderam: “Que quem não consegue desenraizar um cedro do Líbano não possa se alistar no seu exército.” Assim ele teve duzentos mil homens dos dois tipos; e quando foram para a bata-lha, gritavam: “[Ó Deus,] não nos ajudes e não nos desanimes!” É o que está escrito: ó Deus, que nos rejeitaste, um Deus que já não sai com nossos exércitos (Sl 60,12). E o que Bar Koziba costumava fazer? Ele apanhava os projéteis das catapultas do inimigo em um de seus joelhos e os lançava de volta, matando muitos inimigos. Por isso Rabi Akiba fez sua observação.

Durante três anos e meio, o imperador Adriano cercou Betar. Na cidade, estava Rabi Eleazar de Modim, que andava sempre vestido de burel, jejuava e costuma-va rezar todo dia: “Senhor do universo, no te sentes para julgar hoje!” até que [Adriano] pensou em voltar para casa.

Um samaritano foi até ele e disse: “Meu senhor, enquanto esse velho galo cha-furdar em cinzas você não conquistará a cidade. Mas espere por mim, pois vou fazer algo que permitirá sua submissão ainda hoje.” Logo entrou na cidade,

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e encontrou Rabi Eleazar de pé rezando. Fingiu cochichar no ouvido de Rabi Eleazar de Modim. Algumas pessoas foram informar Bar Koziba: “Teu amigo Rabi Eleazar quer entregar a cidade a Adriano.” Mandou buscar o samaritano e perguntou-lhe “O que você disse para ele?” Respondeu: “Se eu te contar, o rei me matará; e se eu não te contar, você me matará. É melhor que eu me suicide e que os segredos do governo não sejam divulgados.” Bar Koziba foi convenci-do de que Rabi Eleazar queria entregar a cidade, então quanconvenci-do este terminou sua oração, mandou chamá-lo e perguntou: “O que o samaritano te disse?” Respondeu: “Não sei o que ele cochichou no meu ouvido, e não escutei nada, porque eu estava rezando e ignoro o que ele disse.” Bar Koziba ficou com raiva, lhe deu pontapés e o matou. Uma voz saiu e proclamou: “Ai do pastor insensato, que abandona as ovelhas! Que a espada esteja sobre o seu braço e sobre o seu olho direito” (Zc 11,17). Declarou-lhe: “Você paralisou o braço de Israel e ce-gou seu olhou direito; por isso teu braço secará e teu olho direito ficará fraco!” Logo os pecados [dos habitantes] fizeram com que Betar fosse conquistada. Bar Koziba foi morto e sua cabeça levada a Adriano. “Quem o matou?” perguntou Adriano. Um godo lhe disse: “Eu o matei.” “Traga seu corpo” ordenou. Foi e encontrou uma cobra em volta do seu pescoço; então [Adriano, ao saber disso] exclamou: “Se o seu Deus não o tivesse matado, quem poderia tê-lo vencido?” E se lhe aplicou o seguinte versículo: Senão porque sua Rocha os vendera (Dt 32,30).

Massacraram os habitantes até que os cavalos andassem com sangue até as narinas, e o sangue carregou pedras do tamanho de 40 sa’ot e as jogou no mar [manchando-o] até uma distância de quatro milhas. Se você disser que [Betar] fica perto do mar, não seria a quatro milhas de distância?

Ora Adriano tinha um grande vinhedo de dezoito milhas quadradas, como a dis-tância de Tiberíades a Séforis, e o cercaram com uma cerca feita com os mortos de Betar. E foi decretado que só poderiam ser sepultados quando certo rei subi-ria ao trono e o ordenasubi-ria. Rabi Huna disse: “No dia em que os mortos de Betar puderam ser sepultados, a bênção ‘Você que é bondoso e age com bondade’ foi instituída.” ‘Que é bondoso’ porque os corpos não apodreceram, ‘e age com bondade’ porque puderam ser sepultados.

Betar teve cinquenta e dois anos [de paz] depois da destruição do Templo; e por que foi destruída? Porque os habitantes acenderam lâmpadas [para manifestar sua alegria] pela destruição do Santuário. E por que as acenderam? Dizem que os conselheiros de Jerusalém costumavam sentar no centro da cidade; e quando um habitante de Betar subia para rezar, lhe perguntavam: “Você quer ser conselheiro?” Quando respondia “Não”, a próxima pergunta seria: “Você quer ser magistrado da cidade?” e ele respondia “Não”. Alguém lhe diria en-tão: “Uma vez que você possui uma propriedade, você a venderá para mim?”

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Quando respondia que não tinha essa intenção, o hierosolimitano mandaria um falso título de propriedade para o intendente do homem de Betar [com a seguin-te mensagem]: “Se fulano chegar, não o deixe entrar na propriedade porque ele ma vendeu.” [Ao descobrir a fraude], o homem exclamaria: “Eu queria que minha perna tivesse sido quebrada e que eu não tivesse subido por aí!” É o que está escrito: Espreitavam (zadu) nossos passos (Lm 4,18). [Os homens de Betar diziam:] “Que a estrada [de Jerusalém] fique desolada (zedi’ah) para que nin-guém ande nessas ruas!” Nosso fim está próximo (Lm 4,18) -- [diziam:] “Que o fim desse Templo [esteja próximo]!” Nossos dias estão terminados (Lm 4,18) -- [diziam:] “Que os dias desse Templo [estejam terminados]!” Com eles tam-bém não correu bem, como está escrito: Quem ri do infeliz não ficará impune (Pr 17,5).

R. Yohanan disse: Os miolos de trezentas crianças [foram atirados] numa pedra, e trezentos cestos de filactérios foram encontrados em Betar, cada cesto tendo uma capacidade de três sa’ot, ou seja, o total foi de novecentos sa’ot. Rabi Ga-maliel disse: “Havia quinhentas escolas em Betar, e a menor não tinha menos que trezentas crianças. Costumavam dizer: ‘Se o inimigo vem contra nós, saire-mos e os feriresaire-mos com estes estiletes!’ Mas quando os pecados [dos habitantes] fizeram vir o inimigo, embrulharam cada aluno em seu livro e o queimaram, e só eu sobrevivi.” Aplicou a si mesmo o versículo: Meus olhos doem-me por causa de todas as filhas [isto é habitantes] de minha cidade (Lm 3,51).

Havia em Kefar Haruba dois irmãos que matavam todo romano que tentava passar. Disseram: “A conclusão disso tudo e que precisamos pegar a coroa de Adriano e colocá-lo em nossa cabeça.” Ficaram sabendo que os romanos esta-vam chegando; quando partiram para atacá-los, um idoso os encontrou e disse: “Que o Criador vos ajude contra eles!” Retrucaram: “Que não nos ajude nem nos desanime!” O pecado deles fez com que fossem massacrados [na batalha]. As cabeças deles foram levadas até Adriano, que perguntou: “Quem os matou?” Um godo respondeu: “Eu os matei”; e o rei mandou que buscassem seus corpos. Foi e encontrou uma cobra em volta de seus pescoços; então [Adriano, ao saber isso,] exclamou: “Se o Deus deles não os tivesse matado, quem poderia tê-los vencido!” E se lhes aplicou o seguinte versículo: Senão porque sua Rocha os vendera (Dt 32,30) (FREEDMAN; SIMON, 1983, p. 156-165).

Para além dos exageros e inverosimilhanças provavelmente misturadas a reminiscên-cias dos dois episódios dolorosos da vida coletiva da nação, o comentário rabínico do livro de Lamentações nos mostra como este passou a representar o lamento dos judeus sobre todas as terríveis desgraças que vivenciaram, víti-mas de potências muito mais fortes do que eles, criando essa imagem do povo eternamente perseguido. Tal povo perseguido precisa de um Deus que esteja

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também sempre atuando para salvá-lo e é isso o sentido da festa da Páscoa judaica, que celebra o Deus que, no livro do Êxodo, se autodefiniu como o “Deus que vos fair de sob as corveias dos egípcios” (Ex 6,7); a própria forma verbal utilizada neste versículo, que é a forma do particípio, escapa a qualquer indicação temporal e permite entender que tal ação libertadora é uma atividade sem restrição temporal, ou seja, permanente. Desde e para sempre persegui-dos, desde e para sempre libertados por Deus, tal é boa parte da identidade judaica tal como o seu calendário litúrgico e os seus textos religiosos de refe-rência o manifesta.

FROM NEBUCHADNEZZAR TO HADRIAN:

MIDRASHIC GLEANINGS ON THE BOOK OF LAMENTATIONS

Abstract: the presents article intends to illustrate how the book of Lamentations,

com-posed after the destruction of the first Jerusalem Temple in 587 B.C. and read in the synagogue each year during the feast of the Ninth of Av, was reread in the light of the successive collective traumatic experiences of the Jewish peo-ple throughout history. For this purpose, it presents translations of extensive passages of its traditional rabbinic commentary, Lamentations Rabah, which tell several episodes of the first Jewish-Roman war, which culminated in the destruction of the second Temple in 70 A.D., and of Simon Bar Kokhba’s revolt (132-136 A.D.).

Keywords: Book of Lamentations. Rereadings of the Bible. Lamentations Rabbah.

Notas

1 A palavra hebraica Kittim, designou sucessivamente os habitantes do sul da ilha de Chi-pre (do nome da cidade de Kition), os habitantes dos habitantes das ilhas do mar Egeu, o império macedônico e os romanos. É esse último sentido que se impõe em Qumrã e nos textos rabínicos.

2 Em 2015, o dia 9 de Av caiu no sábado 25 de julho e o jejum foi adiado para o domingo. 3 Betar foi a última fortaleza de Simão Bar Kokhba em 135.

4 Jerusalém, que foi transformada em colônia romana com o nome de Colonia Aelia Capito-lina.

5 Segundo Moshe David Herr (2007, p. 182, ) o midrax “designa um gênero particular de literatura rabínica que contém antologias e compilações de homilias, incluindo tanto exegese bíblica quanto sermões proferidos em público... formando normalmente um comentário corrido de livros específicos da Bíblia”.

6 Tradução nossa, mais literal do que a Bíblia de Jerusalém no caso da primeiras palavras da citação, que assim se aplica melhor à pessoa de Vespasiano, que se tornou literalmente cabeça, ao ser proclamado imperador em 69 a.C. Quando não há menção contrária, as

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ci-tações seguem o texto da Nova edição revista e ampliada da Bíblia de Jerusalém de 2002. 7 Tradução nossa, mais literal do que a da Bíblia de Jerusalém, para elucidar como a citação

de Rabi Yohanan bem Zakkai pode explicar o que aconteceu a Vespasiano.

Referências

DANBY, HERBERT (ed.). The Mishnah. Oxford: Oxford University Press, 1933.

FREEDMAN, Harry; SIMON, Maurice (ed.). Midrash Rabbah. Vol. 7. Deuteronomy; Lamen-tations. London; New York: Soncino Press, 1983.

GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino (ed.). Textos de Qumran: edição fiel e complete dos docu-mentos do Mar Morto. Tradução Valmor da Silva. Petrópolis: Vozes, 1995.

HERR, Moshe David. Midrash. In: SKOLNIK, Fred (ed.). Encyclopaedia Judaica. 2nd ed. Farmington Hills, MI: Thomson Gale, 2007. V. 14, p. 182-185

ROBINSON, George. Essential Judaism: A Complete Guide to Beliefs, Customs & Rituals. New York: Pocket Books, 1985.

STRACK, Hermann Leberecht; STEMBERGER, Günter. Introduction to Talmud and Midrash. Translated by Markus Bockmuehl. Minneapolis: Fortress Press, 1992.

TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: Introdução à história da bíblia. Tradução de Ramirao Mincato. Petrópolis: Vozes, 1995.

Referências

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