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The Absurd Man in camusiana philosophy and poetry drummondiana: language as a source of (trans)formation

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Academic year: 2020

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O HOMEM ABSURDO NA FILOSOFIA

CAMUSIANA E NA POESIA

DRUMMONDIANA: A LINGUAGEM COMO

FONTE DA (TRANS)FORMAÇÃO*

SARA DE CASTRO CANDIDO**

NAVIA REGINA RIBEIRO DA COSTA*** RUZILEIDE EPIFÂNIO NOGUEIRA****

Resumo: este artigo busca aproximações entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, em Sentimento do Mundo (1940), e a filosofia de Albert Camus, em O mito de Sísifo – a obra de arte como aventura de um destino espiritual (2012), para, por meio da linguagem praticada por Drummond em dois poemas – Poema da necessidade e Mãos dadas –, pensar o estar no mundo e a passagem do homem da condição de ser ôntico para ser ontológico, valendo-se, também, de Durand (2012) e de outros teóricos. Utiliza, como metodologia, a pesquisa bibliográfica e expressa teorias do texto poético, conceitos e análises com base na crítica fenomenológica. Ainda, numa atitude interdisciplinar, para refletir sobre o sujeito e sua constituição como discurso, baseia-se nas teorias da Análise de Discurso de linha francesa (AD) e de linha anglo-saxã (ADC), cujos principais expoentes são, respectivamente, Michel Pêcheux e Norman Fairclough, apoiando-se na concepção do materialismo dialético. Palavras-chave: Literatura. Ontologia. Mito de Sísifo. Sentimento do mundo. Análise de Discurso.

E

studar Drummond é um desafio, pois sua obra revela o próprio Homem. E, diante da vastidão de sua poesia, surge a dificuldade de se inovar, uma vez que muitos pes-quisadores já se dispuseram a estudá-lo, e vários deles o fizeram com brilhantismo. Portanto, não há, neste trabalho, nenhuma pretensão dessa natureza, mas, certamente,

* Recebido em: 30.09.2016. Aprovado em: 29.09.2017.

** Mestra em Letras (PUC Goiás). Especialista em Docência Universitária (UEG). Graduada em Direito (PUC Goiás) e em Letras (UFG). Docente na PUC Goiás. Bolsista da FAPEG. E-mail: naviacr@gmail.com *** Mestra em Educação, Linguagem e Tecnologias (UEG). Especialista em Formação de Professores (PUC

Goiás). Licenciada em Língua Portuguesa (UEG). Bacharel em Administração de Empresas (PUC Goiás). Docente na PUC Goiás e na Escola Superior de Goiânia/FGV. E-mail: naviacr@gmail.com

**** Mestra em Letras (PUC Goiás). Graduada em Letras-Português e em Direito (PUC Goiás). Docente na PUC Goiás. E-mail: naviacr@gmail.com

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muito cuidado e zelo – em especial com relação ao embasamento teórico das afirmações feitas aqui – sem deixar de lado a admiração pessoal por este artista das palavras.

Foi exatamente o gosto pela poética de Drummond que nos motivou a esta pro-dução. A convivência com o poeta permitiu-nos, certamente, um processo de escrita traba-lhoso, mas que, sobretudo, nos gerou encantamento a cada leitura, a cada despertar, a cada descoberta. Afinal, a pesquisa realizada apenas com a rigidez e o método, desprovida do prazer, mais afasta que aproxima a Literatura como objeto de apreciação. Assim, há aqui não só o compromisso com o respeito à obra, mas aos pesquisadores e aos críticos literários, além da vontade de vivermos o privilégio que é ler, de forma mais profunda, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, apresentando este texto, que é apenas o marco zero de um longo e aspirado caminhar.

E, como começo, o trabalho teve o objetivo de desenvolver estudos sobre o livro

Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940, observando

o ser ôntico a partir das imagens presentes na poesia. De forma específica, pretendemos per-ceber o sentimento do estar no mundo e o papel do poeta como intérprete de seu tempo, quando assume a “vida presente” como matéria de sua produção.

Por meio da pesquisa bibliográfica, valendo-nos também de teóricos, como Fer-nandes (1986; 1987; 2005; 2007; 2012), Durand (2012), Paz (2012), mas especialmente de Camus (2012), buscamos uma aproximação entre a filosofia camusiana expressa em O mito de

Sísifo – a obra de arte como aventura de um destino espiritual e o fazer poético drummondiano

como experiência com a linguagem. Desse modo, expressamos as teorias do texto poético, conceitos e análises, baseados na fenomenologia, haja vista que ela nos auxilia no resgate da experiência do homem, na busca da apreensão da realidade em toda a sua constituição plural, além de se preocupar com o rigor na análise. Ainda, para pensarmos o homem contempo-râneo – que não é mais o mesmo do tempo de Drummond, mas que, ainda, se apresenta como tal –, bem como os processos de linguagem que aquele constitui e também o mito, que é discurso, valer-nos-emos das teorias da Análise de Discurso de linha francesa (AD) e de linha anglo-saxã (ADC), cujos principais expoentes são, respectivamente, Michel Pêcheux e Norman Fairclough, apoiando-nos na concepção do materialismo dialético. Isso porque as concepções de sujeito e de discurso para uma e outra linha são diferentes, o que nos dá pos-sibilidades de refletir sobre o ser ôntico e o ser ontológico.

Tomamos o mito, de forma usual, como uma maneira de traduzir aquilo que per-tence à opinião, ao sentimento, e não à certeza científica. Esse conceito foi elaborado por Platão e explica o porquê de poder associá-lo a termos como “símbolo” e “imaginação”, pois não pretende transmitir a verdade na ciência, mas expressar a verdade de certas percepções. Independentemente dos sistemas de interpretação, “eles (os mitos) ajudam a perceber uma di-mensão da realidade humana e trazem à tona a função simbolizadora da imaginação” (CHE-VALIER e GHEERBRANT, 2012, p. 612). Sendo esta última ontológica, é possível sugerir-mos que o estudo dos mitos permite conhecer o próprio Homem. Aranha e Martins (2000) afirmam que as principais características do mito são o relato sobre a curiosidade, o ato de desobediência e a existência de um castigo. Adiante, dizem que o mito, como processo vivo de compreensão da realidade, surge como uma verdade “intuída”. Ou seja, é percebido de maneira espontânea, sem a necessidade de comprovação. É uma forma de o homem situar--se no mundo. E concluem dizendo que, ao entrar em contato com o mundo, o homem não é apenas uma cabeça que pensa inserido num mundo como tal, mas que, entre eles, existe

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um elemento chamado imaginação; logo, antes de interpretar o mundo, o homem o teme e, assim, volta-se para o mundo ou dele se esconde. No campo do imaginário, Durand (2012, p. 356) alerta que o que importa no mito

não é exclusivamente o encadeamento da narrativa, mas também o sentido simbólico dos termos. Porque o mito, sendo discurso, reintegra uma certa linearidade do significante, esse significante subsiste enquanto símbolo, não enquanto signo linguístico arbitrário. Mesmo com o advento de teorias, durante o século XIX, na tentativa de opor radi-calmente o mito à razão, ele é um ponto de partida para a compreensão do ser, já que tudo o que pensamos se situa, primeiramente, no campo da imaginação. Assim, verificamos a possibilidade de sugerir que a relação entre razão e mito é complementar e não de oposição. Interessa-nos, agora, observar o Mito de Sísifo.

Em 1942, dois anos após a publicação de Sentimento do Mundo, de Carlos Drum-mond de Andrade, Albert Camus lança O mito de Sísifo. O contexto era de Guerra e o mundo parecia, de fato, absurdo. O livro se abre com reflexões acerca do suicídio e da validade da vida, postos como questão principal. Este ensaio, denso em sua linguagem, apresenta Sísifo como o herói do absurdo – tanto por causa de suas paixões quanto por seu tormento – e, em certa medida, uma expressão mítica do homem contemporâneo, o que aproxima as imagens presentes em Sentimento do Mundo dos pensamentos desenvolvidos em O mito de Sísifo.

Castigado por Zeus, Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que, toda vez que ele estava quase alcan-çando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo, até o ponto de partida, conduzida por uma força irresistível. Isso porque o filho do vento e fundador da cidade de Corinto des-pertou a raiva do deus dos deuses ao alertar o velho Asopo sobre o rapto e o destino de sua filha, além de ter enganado a Morte duas vezes, com bastante astúcia, acorrentando-a e dela fugindo. O mito é tido como um arquétipo da condição humano11. Assim, o ofício de Sísifo

é um ofício de condenado, e de condenado perpétuo.

Há duas questões que precisam ser consideradas antes que os estudos avancem: Ca-mus afirma que os mitos existem para que a imaginação os anime e que a história de Sísifo só é trágica porque seu herói é consciente. Isso é o que aproxima Sísifo do homem absurdo, que trabalha todos os dias de sua vida na mesma tarefa, portanto, não possui um destino menos absurdo, mas que só se torna trágico nos momentos em que se torna consciente. A condição humana, assim como a de Sísifo, é uma aventura absurda, já que vivemos em vão e cami-nhamos em direção à morte; temos os dias contados. Repetimos, todos os dias, as mesmas tarefas, de forma mecânica, sendo ameaçados constantemente pela morte. Como na filosofia camusiana a presença de Deus não existe, não existe também a possibilidade de outra vida; logo, resta-nos apenas a revolta. Já que temos de viver, que seja em postura de revolta contra os absurdos. Tais questões nos conduzem a observar os poemas presentes em Sentimento do

mundo como transfigurações desse pensamento.

A poética drummondiana e a filosofia (como tal) são inseparáveis. Essa premissa torna-se verdadeira, porém, quando se compreende que não é tarefa do poeta formular sis-tema original de pensamento algum. Estudos diversos sobre a obra de Drummond apontam para uma possibilidade de análise baseada na filosofia da existência, uma vez que esta se centra na perspectiva de que o homem existe antes de qualquer definição preestabelecida sobre o

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seu ser. Pensar acerca da filosofia da existência é pensar no homem como ser consciente, já que existir significa relacionar-se com o mundo, logo, com os outros homens. E pensar esse homem absurdo, consciente, leva-nos a refletir sobre sua condição de sujeito, que, como ser social, se constitui de e nos discursos. Desse modo, é necessário que entendamos, antes, as concepções de ‘discurso’ e de ‘sujeito’, mesmo que esta esteja subjacente àquela, haja vista que não existe evento discursivo sem a figura do sujeito, porém, como já dito, se diferem para a AD e a ADC.

Convém-nos aqui frisar que diferentes compreensões sobre essas duas categorias de análise existem, levando-se em consideração desde o olhar dos estruturalistas até o dos funcio-nalistas. Todavia, ancoramo-nos na AD e na ADC pelo fato de que nem uma corrente, nem outra se ocupam apenas do estudo do funcionamento da língua, mas da relação estabelecida entre o sujeito e esse funcionamento, de forma recíproca, mesmo que considerem discurso e sujeito de formas diferentes.

A AD transpõe alguns pressupostos linguísticos, sobretudo os da linguística formal. Segundo Possenti (2003, p. 361), a AD concebe a língua como algo não transparente e o sentido dos discursos não é depreendido das estruturas linguísticas. Para ele, o sentido “[...] é da ordem das formações discursivas, que, por sua vez, materializam formações ideológicas, que, por sua vez, são de ordem da história”. As formações discursivas (termo emprestado de Foucault) e as formações ideológicas citadas, juntamente com as condições de produção, são elementos que compõem a tríade para as formulações teóricas da AD.

Desse modo, para a AD, o discurso é um intrincado em que se relacionam língua e ideologia, é um efeito de sentido entre os interlocutores, “[...] um objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto” (ORLANDI, 2003, p. 16). Dessa forma, a AD busca refletir o discurso como materialidade da ideologia e a língua como materialidade do discurso, trabalhando a relação língua-discurso-ideologia. Ainda, há uma complementa-ção dessa relacomplementa-ção por Pêcheux, na medida em que nela se insere o sujeito, visto que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (ORLANDI, 2003, p. 17). O que podemos compreender é que o todo do discurso é um efeito de sentido produzido pelo sujeito e para ele. E, para Pêcheux (apud BRANDÃO, 2004), o discurso é construído com base em condições de pro-dução, formações discursivas e formações ideológicas.

Embora haja a implicação de um conceito em outro, necessariamente precisamos perpassar pelas significações de sujeito assujeitado e sujeito clivado (dividido), com base nos outros dois campos de conhecimento citados, marxismo e psicanálise, sobretudo consideran-do as concepções de ideologia althusseriana e de sujeito lacaniano. Segunconsideran-do Brandão (2004), Althusser afirma que, por meio dos Aparelhos Repressores de Estado e dos Aparelhos Ideoló-gicos de Estado, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação do poder ou de repro-dução do status quo dominante e intervém na sociedade pela repressão ou pela ideologia, a fim de que a classe dominada se submeta às relações e condições de exploração. Ainda, para Brandão (2004), é a ideologia que transforma indivíduos concretos em sujeito e o sujeito é categoria constitutiva da ideologia. Nesse sentido, vale dizermos que não se trata de um ser individualizado, mas de um sujeito sócio-histórico-ideológico. Já Lacan (apud MUSSALIM, 2003), ao fazer uma releitura de Freud sobre o sujeito clivado em consciente e inconsciente, aponta que este é estruturado como linguagem, e os textos por ele produzidos são produtos de um trabalho ideológico não consciente.

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Dessa forma, como a AD vale-se de uma teoria materialista da discursividade, com-preende que o sujeito, como aquele que ocupa um lugar social e dele enuncia, “[...] não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso, [...] a enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa” (MUSSALIM, 2003, p. 111). Com base nesse pressuposto é que vem a noção de assujeitamento ou interpelação do sujeito. E, a essa ques-tão, Pêcheux, segundo Mussalim (2003, p. 135), relaciona dois esquecimentos que iludem o sujeito: os de “a) [...] ‘esquecer-se’ de que ele mesmo é assujeitado pela formação discursiva em que está inserido; b) [...] crer que tem plena consciência do que diz e por isso pode con-trolar os sentidos de seu discurso”. Desse modo, para a AD, o sujeito é sempre condicionado, dependente de fatores exteriores a ele, posicionando-se como ator social (MELO, 2012).

Já a ADC embasa-se epistemologicamente na Linguística Sistêmica Funcional e nas contribuições dos integrantes da Escola de Frankfurt, em especial de Gramsci, em sua teoria neomarxista de hegemonia (MELO, 2012). É uma abordagem “que se baseia na percepção da linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente interligada a outros elementos sociais” (FAIRCLOUGH apud RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 11). Isto é, busca uma interconexão entre as teorias linguísticas e as das Ciências Sociais. Nesse sentido, é social e linguisticamente orientada, visto que busca o equilíbrio entre a definição de discurso numa visão formalista e numa visão funcionalista, por entender que nem uma, nem outra são sufi-cientemente completas.

A ADC inova em relação à AD, na medida em que focaliza a exterioridade linguís-tica, mas também a orientação para o sistema linguístico, bem como a dialética entre lingua-gem e sociedade, com vistas a mudanças discursiva, cultural e social, e não apenas focalizando os mecanismos de reprodução. Assim, implica, por um lado, mostrar conexões e causas que estão ocultas nos discursos e, por outro lado, intervir socialmente para produzir as mudanças mencionadas (RESENDE; RAMALHO, 2006).

Nesse contexto, Fairclough (2001, p. 90), ao usar o termo discurso, propõe-se a “considerar o uso da linguagem como forma de prática social e não como atividade puramen-te individual ou reflexo de variáveis situacionais”. Segundo o autor, conceber desse modo o discurso acarreta algumas implicações, por exemplo: o discurso é tido tanto como um modo de ação quanto como modo de representação e o discurso implica uma relação dialética entre prática social e estrutura social. Essa relação dialética demonstra que o discurso é moldado pela estrutura social, mas também é constitutivo dela. Diz, ainda, que “a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a socie-dade [...] como é, mas também para transformá-la” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92).

Ainda, Fairclough (2001) concebe o discurso, assim como a sua análise, numa pers-pectiva tridimensional, de acordo com a qual qualquer evento discursivo é tido como simulta-neamente um texto (análise textual e linguística), uma prática discursiva (análise do processo interacional – produção, distribuição e consumo textual) e uma prática social (análise de cir-cunstâncias organizacionais e institucionais da sociedade). Portanto, ao se analisar o discurso numa abordagem crítica, devem-se considerar essas três dimensões.

Quanto à concepção de sujeito, a ADC considera a compreensão de hegemonia de Gramsci. Fairclough (2001, p. 122) preconiza que o conceito de hegemonia gramsciano, para além do de ideologia de Althusser, harmoniza-se com sua concepção de discurso, na medida em que “fornece um modo de teorização da mudança em relação à evolução das relações de poder [...]”. Assim, esse conceito admite um enfoque sobre a mudança discursiva, ao mesmo

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tempo em que considera que essa mudança contribui para os processos mais amplos de trans-formação, quais sejam, cultural e social.

O poder dominante, de acordo com a ideologia althusseriana, é estável, ao passo que o poder hegemônico concebido por Gramsci é de equilíbrio instável. É nesse sentido que emerge o conceito de luta hegemônica, que é a luta sobre os pontos de instabilidade em relações hegemônicas, visto que o domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais é baseado mais no consenso que no uso da força (RESENDE; RAMALHO, 2006).

De acordo com esse entendimento, Fairclough (2001, p. 123) aponta que, diversa-mente à interpelação do sujeito althusseriana, ao mesmo tempo em que o sujeito sofre uma determinação da estrutura social, agindo inconscientemente, ele trabalha sobre a estrutu-ra, com o intuito de modificá-la, de forma consciente (MELO, 2012). Dessa forma, o que compreendemos é que o discurso é um instrumento de transformação social e o sujeito não é mais tido como ator social, que simplesmente reproduz as relações de poder, mas como sujeito-agente, que, mediante a prática discursiva, pode contestar e reestruturar as bases de dominação e as formações discursivas.

Para a AD, o discurso é instrumento de materialização de ideologias e produção de sentidos entre os interlocutores, mediante o uso da língua, e o sujeito é assujeitado, agindo como ator social, reproduzindo as relações de poder das estruturas dominantes. Já para a ADC, o discurso, ao mesmo tempo em que é instrumento de reprodução da realidade social, é também ferramenta de mudança discursiva, que, por sua vez, acarreta mudança cultural e social. E o sujeito atua como agente, no sentido de contrapor-se e reestruturar a realidade social, por meio de formações discursivas, ainda que seja também constituído por ideologias. Ante isso, o ser ôntico, cuja figura pode ser identificada na poesia drummondiana e na filosofia camusiana, retrata o sujeito assujeitado e clivado analisado pela AD, que, frente às relações de poder, é superficial, fundamenta o senso comum, não se coloca, apenas se mostra e com isso encobre suas reais ideologias, intenções etc. ou nem tem consciência delas, ante o massacre ideológico perpetrado socialmente. Já o ser ontológico, pensado pela filosofia da existência como ser consciente e, portanto, social, reflete-se no sujeito entendido pela ADC, que é aquele que sai do lugar comum, utilizando-se dos discursos em seu favor, à medida que toma consciência de que o poder dominante é manifesto no discurso, mas, também, que o discurso é arma desse sujeito contra o poder dominante, na luta pela mudança social e cultu-ral. É a revolta contra os absurdos, ideia advinda da filosofia camusiana.

Regressando a Drummond, ao inaugura22 sua obra poética, ele apresenta-nos um

poema sem pontos nem vírgulas na maioria dos versos, e este fato, do ponto de vista da norma padrão, faz com que a leitura seja realizada em apenas um fôlego, sem pausas:

No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse aconte-cimento Na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra33.

Na simbologia, é possível interpretar essa ausência de pontuação uniforme como a condição do trabalho exaustivo de Sísifo, o qual se associa à imagem do castigo. Aqui, percebemos uma linguagem metafórica para dar vazão à frustração, a repetição diária das

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obrigações rotineiras, tarefa que nunca acaba – habitual de Sísifo – ou, quem sabe, do homem absurdo. Ainda, o ciclo não se encerra; o eu lírico está condenado à mesma repetição, como num círculo. A pedra pode ser uma metáfora do caminho difícil da própria existência. E o mito, o castigo da humanidade condenada a carregar “pedras” incessantemente, um verda-deiro suplício, pois, se o ser humano, ignorando outras necessidades de realização individual, coletiva e espiritual pode ficar reduzido ao vazio da repetição infinita, viver se compara, por-tanto, ao esforço contínuo de rolar pedra.

A pedra e o homem apresentam um movimento duplo de subida e descida. A pedra bruta, aquela que Sísifo exaustivamente rolava, sugerimos que seja o símbolo da liberdade: destino impossível de ser vivido por ele; isso nos permite tratar da verticalização. Os símbolos ascensionais, conforme Durand (2012), aparecem marcados pela preocupação da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado pela queda. A simbolização verticalizante gera a imaginação de eternidade: escada levantada contra o tempo e a morte. Nesse diapasão, afirma que abismo, túmulo e labirinto representam o heroísmo da ascensão. O segundo en-cerra um dos mais célebres poemas do livro: “depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”. Na visão apresentada, ascender para a eterni-dade, apenas é possível com a criação de outro mundo: são, e não doente; um mundo em que o amanhecer exista. Cada túmulo representa uma imitação modesta dos montes sagrados e simboliza a perenidade da vida, por meio de suas transformações. Por isso, os egípcios se de-dicavam tanto à construção da morada da eternidade. De acordo com Jung (2000), o túmulo se associa ao arquétipo feminino como tudo aquilo que envolve ou enlaça. Seria o lugar da segurança, da metamorfose do corpo em espírito ou do renascimento iminente. Entretanto, é também o abismo, o lugar onde o ser será devorado pelas trevas passageiras e fatais.

Voltando ao mito, notamos, também, o sentimento de frustração, que é algo intrínse-co à intrínse-condição humana. Comparado aos deuses, somos cientes de nossas limitações, até mesmo da transitoriedade da vida, de nosso trágico destino, que é a morte, ao passo que aos deuses cabe a imortalidade. “A morte designa o fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz, uma época. Não se fala na morte de uma tem-pestade, mas na morte de um dia belo”, assim conceituam Chevalier e Gheerbrant (2012, p. 915). E mais: tratando-se de símbolo, é a morte o aspecto destrutível da existência. Por outro lado, é por meio dela que é possível ter contato com mundos desconhecidos, seja o dos Infernos ou o dos Paraísos. Dessa forma se constrói o seu caráter ambivalente. Para os autores, é possível aproximá-la dos ritos de passagem, já que as iniciações experimentam uma fase de morte, antes de adentrar a uma vida nova (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012). E, por isso, assume valor psicológico, por libertar as “forças de ascensão do espírito”. Ela é, portanto, a própria condição para a mudança e para a vida com a qual coexiste em todos os níveis da existência humana.

Apresentando mais um conceito para que se amplie a observação sobre o tema, em seu dicionário filosófico, sintetizando o pensamento de vários filósofos, Abbagnano (2009) conceitua a questão com mais pormenores. Primeiramente, chama a atenção para a possibi-lidade de compreensão da morte como “falecimento”, fato que ocorre na ordem das coisas – atestável, biológica – e em sua relação específica com a “existência” humana. Interessa-nos, sobretudo, a segunda abordagem. Nela, a morte pode ser entendida: a) como início de um ciclo de vida; b) como fim de um ciclo de vida; c) como possibilidade existencial.

Vale muito, para este trabalho, resgatarmos também o que foi elaborado por Heide-gger (1998a; 1998b) diante daquilo tomado como “situação-limite”. Em Ser e tempo, avaliou

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a morte como o fim do ser-aí, ou Dasein. É a possibilidade da impossibilidade de toda relação, de todo existir. E, considerando esses apontamentos, de que a morte pode ser compreendida apenas como possibilidade, nasce, portanto, a “angústia”, uma vez que não há que se esperá-la nem fugir dela, nem pensar nela, mas antecipá-la emocionalmente. A morte é uma ameaça, pois ela é a nulidade possível de cada uma e de todas as possibilidades existenciais.

Diante dessas questões é que podemos perceber como a filosofia camusiana – em especial as reflexões acerca do mito de Sísifo – pode contribuir para a percepção do ser e estar no mundo em Poema da Necessidade e Mãos dadas, poemas de Drummond, publicados no livro de 1940. Passemos a analisá-los.

POEMA DA NECESSIDADE

O Poema da necessidade é marcado pela anáfora presente em dezesseis de seus dezoi-to versos: “É preciso”. Essa repetição é tão constante quandezoi-to o rolar da pedra de Sísifo, como se o homem tivesse de obedecer às situações postas por uma ordem invisível, mas intencional. E isso gera náusea diante da desumanidade do próprio homem. Em detalhes: necessidade é uma palavra de múltiplos significados, que, não por acaso, aparece no título: no topo da montanha. Estão relacionados a ela vocábulos, como imprescindível, imperioso, es-sencial; mas também penúria, pobreza, indigência, carência, dificuldade; por outro lado, compromisso, obrigação. A necessidade é a ordem de um mundo e de uma sociedade que tragam o homem e, segundo Fernandes (1986, p. 79), geram uma “ruptura entre a ordem on-tológica do ser e a lógica que rege o universo”. Essa ruptura marca o absurdo. A necessidade reflete, também, a forma mecânica e impensada das ações do homem, movido, quem sabe, pelo instinto de sobrevivência. Assim, esse homem, dirigido pelo sistema, passa a ter inclusive os seus sentimentos domados por este: “É preciso casar João, é preciso suportar Antônio, é preciso

odiar Melquíades é preciso substituir nós todos” (ANDRADE, 1940, p. 69).

A primeira estrofe de Poema da necessidade, constituída de quatro versos, mostra os verbos “casar”, “suportar” e “odiar” representando a institucionalização dos desejos em uma sociedade tecnocrata, consumista e, em última análise, capitalista. É o reflexo dos aparelhos ideológicos de poder. O verbo “substituir” amplia o seu sentido, já que quem não passa pelo processo de adequação será excluído. A construção “é preciso substituir todos nós” indica o mo-mento da consciência, responsável pela situação trágica do homem, comparado a Sísifo, quando percebe que a rocha fatalmente rolará montanha abaixo: a reflexão sobre a miséria durante a descida. Não por acaso ela ocorre no último verso da estrofe, que é a base da montanha. Pode-mos entender também, em outra leitura, esse verso como a voz do sistema reproduzido por um eu lírico que não pensa por si só, mas concorda que o mérito exigido pelos detentores do poder deve prevalecer na sociedade e se sobrepor aos próprios indivíduos em competição. “João amava Teresa, que amava Raimundo [...]”. É preciso casar João, enquadrá-lo no sistema. Melquíades é um cigano, traz inventos de todos os cantos e, o pior, prevê o futuro, é preciso odiá-lo. Percebe-mos que essa estrofe trata da relação com o outro. Existe a ilusão de que, estando com o outro ou vivendo com o outro, não se está só. A impressão de sociabilidade aparentemente afasta a solidão. Em outra medida, o homem torna-se vigilante do outro e de si mesmo, instrumento manipulado pelo sistema que nos conduz a partir de nós mesmos. Adiante, na segunda estrofe:

“É preciso salvar o país, é preciso crer em Deus, é preciso pagar as dívidas, é preciso comprar um rádio, é preciso esquecer fulana” (ANDRADE, 1940, p. 69).

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Verificamos que a repetição de discursos externos captados e interiorizados pelo homem serve como controle e aprisionamento. Salvar a pátria é a base das pretensões nazifas-cistas; crer em Deus representa o caminho para que o homem viva, pois este está colocado de frente para a morte; pagar as dívidas e comprar um rádio reduzem o homem à condição de consumidor, aquele que sustenta o capitalismo baseado na lógica do labor de Sísifo; esquecer fulana implica em uma diminuição do “ser”, uma vez que, nas estrofes anteriores, as pessoas receberam nomes próprios e “fulana” demonstra o processo de redução, já que essa está esque-cida, pois nem nome possui mais. Isso ocorre, porque

[...] a hostilidade primitiva do mundo, através dos milênios, remonta até nós. Por um segundo não o entendemos mais, porque durante séculos só entendemos nele as figuras e desenhos que lhe fornecíamos previamente, porque agora já nos faltam forças para usar esse artifício. O mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são. Afastam-se de nós. Assim como há dias em que, sob um rosto familiar, de repente vemos como uma estranha aquela mulher que amamos durante meses ou anos, talvez cheguemos mesmo a desejar aquilo que subita-mente nos deixa tão sós. Mas ainda não é o momento. Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo (CAMUS, 2012, p. 29).

A normalização à qual o homem absurdo está submetido leva-o à obediência, uni-formizando-se para poder estar no mundo, o que dificulta a construção do ser ontológico. Ele deixa de existir como individualidade e passa a compor uma massa, múltiplo e não uno. O Poema da necessidade parece ser o Manifesto do Homem Absurdo, todos, em uma só voz, repetindo e repetindo o discurso e a prática que fazem dele irracionalizado.

De acordo com a teoria materialista da discursividade preconizada pela AD, o sujei-to aqui é aquele que ocupa um lugar na sociedade e dele produz e se sujei-torna discurso, não sendo livre para enunciá-los como quer, mas que é levado, até inconscientemente, a expressá-lo da forma que lhe é possível. Aqui o sujeito é assujeitado, interpelado, quando, pela labuta do viver cotidiano, ou ‘esquece-se’ de que ele mesmo é assujeitado pela formação discursiva em que está inserido, ou crê que tem plena consciência do que diz e, por isso, pode controlar os sentidos de seu discurso, ao passo que, na realidade, é sempre condicionado, dependente de fatores exteriores a ele, posicionando-se apenas como ator social, portanto como ser ôntico.

Dessa análise, vemos que “O indivíduo já não existe. Existem homens que desespe-radamente lutam para sobreviver ou para morrer, em atitudes que nada trazem de humano” (FERNANDES, 1986, p. 87), conforme se pode verificar na última estrofe (p. 69-70):

É preciso estudar volapuque, é preciso estar sempre bêbedo, é preciso ler Baudelaire, é preciso colher as flores de que rezam velhos autores. É preciso viver com os homens é preciso não assassiná-los, é preciso ter mãos pálidas e anunciar O FIM DO MUNDO. Todavia, o último verso da estrofe, em letras garrafais, pode sugerir a utilização do recurso gráfico como representação do grito do eu lírico. Isso demonstra que “o espírito do su-jeito falante é a sede de um fenômeno e que este deve reagir sobre o espírito de um outro ser. O grito tornou-se linguagem quando tomou valor factivo”, de acordo com Durand (2012, p. 31). Tal manifestação, do plano primitivo, expressa o desespero desse eu lírico, representante

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do ser mecanizado, que, mediante a palavra busca a conjunção com o outro, na tentativa de expiar um sentimento reprimido. Esse homem, herói do absurdo, que precisa “estar sempre bêbedo” para não assassinar os homens, subleva-se para poder conquistar a sua liberdade.

Quanto a esta estrofe, utilizando-nos da ADC, que é social e linguisticamente orien-tada, visto que busca o equilíbrio entre a definição de discurso numa visão formalista e numa visão funcionalista, analisamos que o recurso estilístico (o grito manifestado pelas letras em caixa alta) utilizado demonstra bem a exterioridade linguística, mas também a orientação para o sistema linguístico, bem como a dialética entre linguagem e sociedade, com vistas a mudanças discursiva, cultural e social, e não apenas focalizando os mecanismos de reprodução. Assim, podemos, por um lado, vislumbrar a expressão das conexões e causas escondidas no discurso e, por outro lado, a tentativa do sujeito de se libertar do sentimento reprimido, sublevando-se para alcançar a sua liberdade, portanto, intervindo socialmente e buscando produzir mudanças. Nesse aspecto, percebemos o ser ontológico, como o que se utiliza sim do discurso para repre-sentar-se, mas, e como mais importante, para agir socialmente, com a consciência dialética de que o discurso é constituído pela estrutura social, mas também é constitutivo dela. A revolta inferida pela filosofia camusiana pode ser vislumbrada nesse “grito”.

O poema pode sugerir o olhar mítico sobre o homem, bem como propôs Camus (2012). A anáfora como recurso que demonstra a repetição na vida, a redução do eu lírico, cuja subjetividade foi excluída, e o grito como linguagem do desassossego revelam o Mito de Sísifo atravessado no poema, e este, sendo discurso, forma símbolos para a “reconciliação com um tempo eufemizado e com a morte vencida ou transmutada em aventura [...]. E o sentido do mito em particular não faz mais que remeter-nos para a significação do imaginário em geral [...]”, conforme nos adverte Durand (2012, p. 374).

MÃOS DADAS

Mãos dadas é o vigésimo poema de Sentimento do mundo e talvez um dos mais

po-pulares de Carlos Drummond de Andrade, por trazer, em seus últimos versos, a luz para se percorrerem os corredores da sua poética no que diz respeito à questão do tempo: “O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (ANDRADE, 1940, p. 80). Neste estudo, porém, atrevemo-nos a observar outra nuance: o mito como discurso.

O primeiro verso, iniciado pelo advérbio “não”, que se repete sete vezes no poema, manifesta a fala do eu lírico pautada pela negação. Sobre esse recurso, Camus (2012) afirma que o homem revoltado é aquele que diz não, mas na negação ele afirma algo, configurando-se, aí, o lado positivo da revolta, que seria o movimento de alguém que não está disposto a suportar a servidão, e tenta recuperar a dignidade. Por isso é que a revolta se opõe ao sistema ou à ordem que oprime o homem, como se houvesse uma espécie de reivindicação de um direito tido como inalienável: o direito de não ser oprimido além do que ele pode admitir. A revolta é um estado de espírito que revela um eterno vir a ser. Nos dois primeiros versos, o eu lírico retoma o passado – mundo caduco – e projeta o futuro para se colocar como poeta do tempo presen-te, isso porque está preso à vida, preso à existência e não há como dela escapar, pois “a vida é uma ordem”. Ao olhar para seus semelhantes, ou seja, ao realizar o exercício da alteridade como forma de se (re)conhecer, percebe que os homens estão calados, imóveis, mas “nutrem grandes esperanças”. A esperança, para Camus (2012), está relacionada à fé em Deus, que só

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existe, para esse filósofo, quando o homem não consegue se bastar e busca no ser místico a solução para o impossível – os homens taciturnos recorrem a Deus para superar a condição miserável. E é entre os homens que o eu lírico percebe o absurdo, já que considera “a enorme realidade”; longe dos homens, ilhado, não é possível percebê-la. E assim conclui: “O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Podemos sugerir que o afastamento dos homens é posto como certo, a partir da construção do último verso da estrofe, mediado pelo advérbio “muito”: o afastar é inevitável, mas que ao menos os homens se deem as mãos para enfrentar o absurdo.

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas (ANDRADE, 1940, p. 80).

Adiante, a segunda estrofe também é construída com base na negação, a negação do lirismo passional – “Não serei cantor de uma mulher” – e do lirismo épico – “de uma história”. O eu lírico espera ser poeta de seu tempo e não apenas alguém que, pela janela, ob-serva a paisagem. Aqui é possível sugerirmos o desvelar da subjetividade de um eu lírico, que, durante muito tempo, observou os homens em seu canto, e agora apresenta o seu próprio discurso, porém, em negação: podemos insinuar que ainda há o medo de assumir a sua fala, e esse medo revela a identidade ôntica do ser, bem como o sujeito assujeitado, interpelado pelo contexto social e pelo tempo em que vive, mero ator social, como o analisa a AD. Nega também a possibilidade de emanar em sua poesia o discurso entorpecedor do sistema, que reduz o homem à condição de máquina, e também não se lançará precocemente ao destino fatal de todos os homens. No verso seguinte – “não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins” –, há o resgate da imagem nesótica como transfiguração do estrangeiro, o homem ilhado, fora de si mesmo e não somente do mundo, que se recusa a enxergar a realidade, além da fuga pela fé, a partir do arrebatamento proposto no fim do verso.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins (ANDRADE, 1940, p. 80).

Os dois últimos versos, ao contrário dos anteriores, trabalham com a afirmação re-conhecida pela presença do verbo “ser” conjugado na primeira pessoa do modo indicativo, o modo da certeza: “é”. “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente”. E, enfim, ninguém melhor que Camus (2012, p. 80), neste momento, para explicar o tempo presente como matéria do eu lírico:

Meu campo – diz Goethe – “é o tempo”. Eis propriamente o enunciado absurdo. O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e seu raciocínio. A primeira lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem, o segundo lhe ensina seus limites. Seguro de sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue a aventura no tempo de sua vida. Este é seu campo,

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lá está sua ação, que ele subtrai a todo juízo exceto o próprio. Uma vida maior não pode significar para ele uma outra vida. Seria desonesto. Nem mesmo falo aqui dessa eternidade ridícula que se chama posteridade.

O eu lírico encontra-se sereno ao realizar a afirmação de que o tempo presente, os homens presentes e a vida presente são sua matéria: “O tempo fará viver, o tempo e a vida ser-virão à vida” (CAMUS, 2012, p. 80). E assim esse homem, tal qual Sísifo, olha para a pedra, olha para a montanha e encara a própria luta como suficiente para encher o coração de um homem. E aqui a linguagem poética conduz o ser para a sua condição ontológica, uma vez que esta se torna a sua morada, e a tomada de consciência se dá por meio dela. Linguagem que, na sua formalidade, representa o sistema linguístico, mas que também é veículo de exte-riorização “das grandes esperanças nutridas” e de interferência no contexto social, na busca da mudança discursiva, e sobretudo, da mudança da cultura e da sociedade em que se encontra, não apenas focalizando os mecanismos de reprodução, porém os de atuação social.

Por fim, sugerimos que, assim como o Mito de Sísifo atravessa os poemas Poema da

necessidade e Mãos dadas, é possível que, como expressão mítica do homem, também abarque

outros poemas de Sentimento do mundo. O mito, como discurso, compõe a filosofia do ima-ginário, permitindo a observação do ser transfigurado em poesia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conviver com a poesia de Carlos Drummond de Andrade é experimentar a condi-ção de Édipo na presença da Esfinge. Nesse sentido, grande é o desafio de nos aproximarmos da obra de arte, e difícil é a tarefa de tecermos considerações finais acerca daquilo que apenas começa. Propusemo-nos a enfrentar esse perigo com muita sede e, ao mesmo tempo, com muito cuidado, para que essa água não nos colocasse submersos e sem perspectivas de tomar novamente o ar, sabendo das nossas limitações humanas. Caminhar pela noite, percorrer as ruas da cidade drummondiana, localizar sua ilha, experimentar a angústia e os efeitos do tempo provocou-nos o desejo de bebermos cada poema, cada palavra: labor de Sísifo, que fazemos com prazer, já que absurdo e felicidade são dois filhos da mesma terra.

Este artigo concedeu-nos a oportunidade de entrar em contato com a rica e absurda filosofia camusiana e, em sua companhia, de ler a também rica e absurda poesia drummon-diana. Elegemos Poema da necessidade e Mãos dadas para a realização dessa complexa, mas arrebatadora tarefa. Também, neste momento, contemplávamos a montanha e, por diversas vezes, desesperava-nos diante da imagem da pedra que rolava, até compreendermos que é este o movimento da liberdade, experimentada por Sísifo e pelo poeta. E aqui a linguagem poética conduz o ser para a sua condição ontológica, uma vez que esta se torna a sua morada, e a tomada de consciência se dá por meio dela.

Nesta tarefa, propusemo-nos a analisar discursivamente o sujeito que, nos discursos drummondiano e camusiano, se constitui e que os constitui, o que nos levou a bebermos nas fontes da AD e da ADC, para pensarmos o ser ôntico e sua capacidade de passar à condição de ser ontológico na linguagem e pela linguagem. Desse modo, essa viagem nos possibilitou utilizar, sim, os mitos como importante instrumento para entender a condição humana, as-sociados, numa atitude intertextual, à poética, cuja linguagem é capaz de nos suscitar os mais profundos sentimentos e as mais “revoltosas” reflexões. Serviu-nos, sobretudo, para despertar

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em nós o desejo de buscar, mais e mais, como Sísifo, afundar-nos neste universo que é o estu-do da linguagem, com o propósito de transitarmos por este espaço, que é o estu-dos discursos que simbolizam a realidade social, de maneira cada vez menos pueril. Nesse sentido, percebemos o notório avanço da ADC sobre a AD, na medida em que aquela explicita que o poder domi-nante é manifesto no discurso, mas, também, que o discurso é arma do sujeito contra o poder dominante, na luta pela mudança social e cultural, portanto, da passagem do ser ôntico para a condição de ontológico, assim como os estudos nos levaram a perceber o Mito de Sísifo como manifestação da condição do homem em Sentimento do mundo e a revolta manifesta pela lin-guagem na produção dos discursos como um estado de espírito que revela um eterno vir a ser. Entendemos, porém, que muito ainda pode ser realizado sobre a proposta escolhida e que o estudo está aberto para outros que desejem ampliar a pesquisa, no campo da investi-gação da poética drummondiana em Sentimento do mundo. Compreendemos que é possível, ainda, na perspectiva proposta, realizar leituras de J. P. Sartre e de outras obras de A. Camus. Cremos que esta pesquisa, agora, passa a ser de todos aqueles que se entendam desejosos de contribuir com a expansão dos estudos sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade.

O esboço em questão permitiu-nos ampliar a admiração por Carlos Drummond de Andrade, por Albert Camus, por Gilbert Durand, por Octávio Paz, mas também pelos autores analistas de discurso. Com todos eles, pudemos sonhar, sentados ao lado de Drum-mond, muitas vezes, ao lado de nós mesmos, com a humanização do homem a partir da po-esia materializada na e pela linguagem, com essa indecifrável maravilha, signo do constante transcender.

THE ABSURD MAN IN CAMUSIANA PHILOSOPHY AND POETRY

DRUMMONDIANA: LANGUAGE AS A SOURCE OF (TRANS)FORMATION

Abstract: this article seeks to an approach between the poetry of Carlos Drummond de Andrade,

in  Feeling of the world (1940), and the philosophy of Albert Camus, in The Myth of Sisyphus - the work of art as adventure of a spiritual destiny (2012), for, to think through by the language praticed by Drummond in two poems – Poem of necessity and Holding hands –,  the be in the world and  the passing of the man’s condition of the being ontic to the be ontological, using also Durand (2012) and another theorists. Making use, as methodology, by the bibliographical resear-ch, and theory express of poetic text, concepts and analysis based on the phenomenological critique. Still in an interdisciplinary approach, to reflect the subject and its constitution as speech, will use theories of French line of discourse analysis (DA) and the line Anglo-Saxon (ADC), whose leading exponents are respectively, Michel Pêcheux and Norman Fairclough, relying on the concept of dia-lectical materialism.

Keywords: Literature. Ontology. Myth of Sisyphus. World Feeling. Discourse Analysis. Notas:

1 Jung (2000), em Os arquétipos e o Inconsciente coletivo, afirma que, enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Nesse sentido, o inconsciente coletivo não é uma aquisição pessoal, mas sim parte da psique

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que pode diferenciar-se do inconsciente pessoal pelo fato de não dever sua existência a uma experiência individual.

2 Em julho de 1928 é publicado na primeira página da “Revista da Antropofagia”, por Oswald de Andrade, o poema “No meio do caminho”, um dos mais conhecidos e polêmicos de Drummond.

3 Publicado em Revista de Antropofagia (1928). Referências

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Referências

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