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Design Para um Mundo Complexo - Rafael Cardoso.pdf

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Academic year: 2021

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DADOS DE COPYRIG HT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o obj etivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêm icos, bem com o o sim ples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de com pra futura.

É expressam ente proibida e totalm ente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso com ercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dom inio publico e propriedade intelectual de form a totalm ente gratuita, por acreditar que o conhecim ento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar m ais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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RAFAEL CARDOSO DESIGN PARA UM MUNDO COMPLEXO

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Para Anders Michelsen e Victor Margolin.

Thank you both for proving that design is something worth thinking about.

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Our most refined theories, our most elaborate descriptions are but crude and barbarous simplifications of a reality that is, in every smallest sample, infinitely complex.

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AG RADECIMENTOS

Este livro nasceu de um curso m inistrado sucessivam ente no Rio de Janeiro (Polo de Pensam ento Contem porâneo), em São Paulo (Centro Universitário Maria Antonia/ USP), na Cidade do México (Universidad Autonom a Metropolitana-Xochim ilco), no Recife (Centro de Design do Recife) e em São Luís (Universidade Federal do Maranhão) entre 2007 e 2009. Em cada um a dessas ocasiões, seu conteúdo sofreu transform ações, recebeu acréscim os, perdeu excessos e, de m odo geral, foi ganhando em qualidade e fluidez.

Em bora sej a im possível citar todos por nom e, é preciso agradecer em prim eiro lugar aos participantes e alunos, que contribuíram de m odo essencial para o am adurecim ento das reflexões aqui apresentadas. Em especial, devo m uito às pessoas de quem partiram os convites, as quais não m ediram esforços para viabilizar esses cursos, m uitas vezes superando obstáculos consideráveis. Agradeço a Eucanaã Ferraz, Tânia Rivitti, Alej andro Tapia, Renata Gam elo e Raquel Gom es Noronha, assim com o às suas respectivas equipes de trabalho. Graças ao seu incentivo e em penho, as ideias que constituem o presente volum e puderam ser pensadas e discutidas.

Partes deste livro contaram com a leitura perspicaz de André Stolarski e Mauro Pinheiro. Am bos aj udaram na correção de erros e no apuro dos conceitos. Sem sua colaboração, generosa e desinteressada, essas páginas conteriam m ais deficiências do que as que ainda conseguiram resistir aos seus bons conselhos. Agradeço tam bém as ideias trocadas inform alm ente com am igos, m uitas vezes sem que soubessem que estavam sendo explorados para tal finalidade, bem com o as contribuições pontuais de dados ou referências precisas. Entre outros, cabe citar Alfredo Jefferson de Oliveira, Am ador Perez, Barão di Sarno, Beatriz Russo, Fernando Betim Paes Lem e, Heleno Bernardi, João de Souza Leite, Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, Julieta Sobral, Lauro Cavalcanti, Marina Boechat, Otoni Mesquita, Rico Lins, Roberto Conduru, Sérgio Bruno Martins, Vanessa Espínola, Vera Dam ázio.

Nenhum livro se faz sozinho. Desej o agradecer a toda a equipe da Cosac Naify – em especial, Elaine Ram os – por acreditar no proj eto e por aj udar a transform á-lo em realidade editorial. Estendo esse reconhecim ento aos m eus colegas de conselho editorial da área de design, agradecendo a confiança depositada em m im .

Um agradecim ento de todo o coração a Patricia Breves, m inha m ulher, por conversas e confidências, apoio e am or, por tudo e m ais um pouco.

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UM APELO À LEITURA (À G UISA DE PREFÁCIO)

Este livro não tem prefácio. Não que o assunto não m ereça. É m esm o por opção. Vivem os em tem pos apressados. As pessoas correm freneticam ente de um lado para o outro, realizam ao m esm o tem po m últiplas tarefas, m antêm virtualm ente centenas de am izades que não dão conta de cultivar no dia a dia, acabam por se com unicar por contrações m enores do que m onossílabos: blz, rsrs, abs. Nesse contexto, quem tem tem po para ler prefácios? Skip intro é um dos com andos m ais úteis do m undo de hoj e, visto que devia ser desnecessário dizer que não há tem po a perder com firulas. Portanto, vam os logo ao assunto, sem m ais dem ora. Antes, porém , peço a licença do estim ado leitor para m assagear um pouco seu ego.

Só de ter este livro em m ãos, caro leitor, você j á dem onstrou ser um a pessoa fora do com um . Não escrevo isto apenas por oportunism o, para induzi-lo a ler m ais um pouco e, quem sabe, com prar o livro (por isso tam bém , claro), m as antes para constatar um a verdade preocupante.

O fato é que hoj e relativam ente poucas pessoas se dispõem a ler um livro. Em plena era da inform ação, o real conhecim ento com eça a cair em desuso. Por esse sim ples m otivo, o m undo cam inha célere para a ignorância e, daí, para o m edo, o fanatism o e a destruição dos valores culturais m ais im portantes dos últim os séculos. Novos “tem pos de grossura” (no dizer de Lina Bo Bardi) parecem nos aguardar, logo adiante, e lutar contra isso é o dever de toda pessoa que pensa.

O conflito entre inform ação dem ais e conhecim ento de m enos é um a das condições paradoxais dos tem pos em que vivem os. Está longe de ser o único. À m edida que o m undo vai ficando m ais com plexo, parece que as pessoas se dispõem cada vez m enos a tentar fazer sentido das coisas. Resignar-se com a m ediocridade reinante é o prim eiro passo para a m orte da cultura que tem os em com um . Fica aqui um apelo, portanto, à leitura: ilustre-se, caro leitor, e você fará do m undo um lugar m elhor.

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INTRODUÇÃO

OS PROPÓSITOS DO DESIGN NO CENÁRIO ATUAL

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Pode algo ser belo para qualquer outro propósito a não ser aquele para o qual é belo que seja usado? [Sócrates, cerca de 400 anos antes da era cristã.]{1}

DO “MUNDO REAL” AO MUNDO COMPLEXO

O design nasceu com o firm e propósito de pôr ordem na bagunça do m undo industrial. Entre m eados do século XVIII e fins do século XIX – o período que corresponde, grosso m odo, ao surgim ento do sistem a de fábricas em boa parte da Europa e dos Estados Unidos – houve um aum ento estonteante da oferta de bens de consum o, com binado com queda concom itante do seu custo, am bos provocados por m udanças de organização e tecnologia produtivas, sistem as de transporte e distribuição. Nunca antes na história da hum anidade, tantas pessoas haviam tido a oportunidade de com prar tantas coisas. Era a infância da sociedade de consum o. Para m uitos observadores, à época, o processo teria gerado um declínio preocupante da qualidade e da beleza dos produtos. Certa ou errada (o que é bem m ais provável), essa percepção serviu de estím ulo para a ação. Entraram em cam po artistas e arquitetos, reform adores e burocratas, governos, industriais, associações com erciais e profissionais, m useus e instituições de ensino, com o intuito de m elhorar o gosto da população e a configuração das m ercadorias que lhes eram oferecidas. As atividades de proj etar e fabricar artefatos, exercidas há m uito em relativo silêncio, m igraram para o centro dos debates políticos, econôm icos e sociais.

Entre 1850 e 1930, aproxim adam ente, três gerações de novos profissionais – alguns j á apelidados de “designers” – dedicaram seus esforços à im ensa tarefa de conform ar a estrutura e a aparência dos artefatos de m odo que ficassem m ais atraentes e eficientes. Sua m eta era nada m enos do que reconfigurar o m undo, com conforto e bem -estar para todos. Seu lem a era adequação dos obj etos ao seu propósito: fitness for purpose, em inglês, ou Zweckmässigkeit, em alem ão (as prim eiras grandes discussões sobre o tem a foram conduzidas em alem ão e inglês). Mais ou m enos ao final desse período, por volta da década de 1930, popularizou-se o m ote m ais conhecido entre nós: “a form a segue a função”, frase condensada de um enunciado distante do arquiteto am ericano Louis Sullivan.{2} A visão de que “form a” e “função” seriam o cerne das preocupações do designer persistiu por bastante tem po. Em âm bito internacional, ela com eçou a ser questionada na década de 1960, paralelam ente ao surgim ento da contracultura. No Brasil, ela perm aneceu dom inante até a década de 1980, apesar dos esforços de alguns rebeldes. Até hoj e, perdura o vício entre designers e arquitetos brasileiros de falar em “funcionalidade” – term o equivocado em suas prem issas, com o verem os adiante, no segundo capítulo deste livro.

Para realizar o ideal de adequação ao propósito, é preciso ter de antem ão um a noção m ais ou m enos coerente de qual propósito se quer cum prir. O m undo

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m udou bastante desde a década de 1960, e podem os afirm ar seguram ente que grande parte dos propósitos de hoj e j á não são os de então. Nos anos 1960, o paradigm a de fabricação industrial ainda era a produção em m assa: tudo igual em grandes quantidades para todos. Hoj e, a indústria cam inha a olhos vistos em direção à produção flexível, com cada vez m ais setores buscando segm entar e adaptar seus produtos para atender à dem anda por diferenciação. Nos anos 1960, o m undo estava dividido entre direita e esquerda, com a dem ocracia liberal acuada pelo com unism o soviético. Hoj e, o liberalism o econôm ico dom ina um m undo globalizado, ao ponto paradoxal de poder im por a dem ocracia pela força, quando do seu interesse. Nos anos 1960, quase não existiam com putadores, m uito m enos internet e toda a cultura digital sustentada por ela. Precisa dizer m ais? Talvez falte um últim o exem plo incontornável: nos anos 1960, poucas pessoas pensavam em responsabilidade am biental. Atualm ente…

Quando o designer am ericano Victor Papanek publicou, em 1971, Design for the Real World [Design para o m undo real], o paradigm a j á havia m udado. Esse livro tinha por intenção conclam ar os designers a sair do ar condicionado de seus escritórios envidraçados e olhar à sua volta, proj etando soluções para o m undo real, que se desintegrava em fom e e m iséria, conflitos raciais e protestos políticos, guerras civis e lutas de independência, guerras quentes e Guerra Fria, um a corrida arm am entista nuclear que am eaçava destruir a todos, e um a crise am biental que se anunciava pela prim eira vez por dados oficiais da ONU. O capítulo inicial do livro, intitulado “O que é design?”, ataca de frente o lem a “a form a segue a função”:

Em term os sem ânticos, todas essas afirm ações desde Horatio Greenough [escultor am ericano do século XIX, que escreveu textos precursores sobre as relações entre form a e função dos edifícios] até a Bauhaus alem ã são desprovidas de sentido. A concepção de que aquilo que funciona bem terá necessariam ente um a boa aparência serviu de desculpa débil para todo o m obiliário e os utensílios estéreis, com cara hospitalar, dos anos 1920 e 1930. O polem ista prossegue, apontando um conflito entre a cham ada estética da m áquina e as necessidades hum anas:

Le style international [estilo internacional] e die neue Sachlichkeit [nova obj etividade] deixaram -nos com pletam ente na m ão em m atéria de valores hum anos. A casa com o la machine à habiter [m áquina de m orar], de Le Corbusier, e as casas caixote desenvolvidas pelo m ovim ento holandês De Stij l refletem um a perversão da estética e da utilidade.{3}

Ao acusar a ausência de valores hum anos no dogm a m odernista, o profético Papanek substituía “função social” por “funcionalidade” com o centro do seu pensam ento sobre design. Com o resultado, o livro tornou-se best-seller m undial, e encontra eco até hoj e em qualquer discussão sobre design e sustentabilidade. Os proj etos de produto citados por Papanek (por exem plo, um aparelho de rádio

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construído a partir de lata velha e cera) são facilm ente ridicularizados, por conta da evolução tecnológica desde os anos 1970. O fato de haver quem ataque a obra por esse ângulo, inteiram ente tangencial à discussão proposta, dem onstra o quanto ela ainda incom oda.

O presente livro tem a intenção de retom ar a discussão do ponto em que ela foi deixada por Papanek. O título Design para um mundo complexo é hom enagem e revisão crítica, a um só tem po. O “m undo real” de Papanek j á não é o m esm o: sobretudo, porque a explosão do m eio digital nos últim os 25 anos tem transform ado de m odo profundo a paisagem econôm ica, política, social e cultural. A “era da inform ação” chegou para todos – por m eio de m udanças essenciais em sistem as de fabricação, distribuição e finanças – e não som ente para quem tem com putador pessoal em casa. À m edida que o m undo virtual aum enta em abrangência, a realidade parece desm anchar-se no ar. Em um a palavra, o “im aterial” passou a ser o fator decisivo em quase todos os dom ínios, m orm ente num a área com o o design. Não que o “m undo real” tenha deixado de existir! Os problem as apontados por Papanek, de m iséria e exploração, violência e degradação, são m ais reais do que nunca. Aliás, se exam inarm os os dados estatísticos, m uitos deles estão piores do que quatro décadas atrás. Apenas foi acrescentada à realidade m aterial um a cam ada a m ais, que tudo envolve e tudo perm eia.

A m edicina fornece um a boa analogia para com preender essa situação: conheciam -se as doenças do câncer, desde m uito, e era possível tratá-las até certo ponto. Porém , com os avanços em pesquisas genéticas das últim as décadas, surgiram ferram entas de diagnóstico e tratam ento que m udaram com pletam ente o panoram a do cam po e a com preensão da doença. O m esm o ocorre em outras áreas, de m odo m enos perceptível, m as não m enos im pactante. Atualm ente, por m eio da im ensa dissem inação da inform ação, vem sendo acrescida um a consciência dos m ecanism os invisíveis que regem o velho e m au “m undo real”. Os antigos problem as passam a ser dim ensionados de m odo m ais com plexo; e, m uitas vezes, descobrim os que os adversários m ais tem idos do passado eram apenas m áscaras ou figuras de papelão – falsos m arcadores de um a paisagem cuj a artificialidade se revela de repente, com o num film e em que o enquadram ento da câm era é aberto para m ostrar que tudo não passava de cenário e trucagem .

Hoj e, com eça a ser possível considerar em sua totalidade problem as antes inconcebíveis para a m ente hum ana. Outra analogia edificante vem tam bém do cam po m édico ou, m elhor dizendo, da saúde pública: a incrível virada nas políticas antitabagistas ao longo dos últim os trinta anos. Enquanto os governos acreditavam que a indústria de tabaco lhes rendia dividendos, por m eio dos altos im postos pagos, o antitabagism o ficou restrito a grupos m inoritários da sociedade civil. A partir do m om ento que os cálculos oficiais dem onstraram que se gastava

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m ais com o tratam ento de fum antes em hospitais públicos do que se arrecadava com im postos sobre cigarros, a m aré política virou com pletam ente; hoj e, o antitabagism o é um a causa abraçada pelo setor público em m uitos países. Com a disponibilidade de inform ações cada vez m ais com pletas e a possibilidade de processá-las eficientem ente, descobrim os que questões aparentem ente sim ples são m ais com plexas do que se im aginava.

Do m esm o m odo, cálculos de im pacto am biental ou de logística integrada levam em conta quantidade e variedade estarrecedora de dados. Em term os de im pacto am biental, o que é m elhor: garrafas retornáveis de cervej a e refrigerantes (cascos) ou as descartáveis (one-way)? À prim eira vista, a resposta parece óbvia. Com o os cascos são reutilizados, eles sofrem m enos descarte e geram m enos lixo. Seriam , portanto, m uito m enos poluentes. Porém , ao abordar a m esm a questão, um engenheiro am biental perguntará quanto com bustível é gasto no transporte. Enquanto as garrafas one-way são transportadas em um a única direção, da fábrica para o depósito e de lá para o ponto de venda, os cascos precisam fazer o cam inho de volta, o que im plica o dobro de gasto de com bustível. Será que a econom ia de vidro com pensa o dispêndio de com bustível? Depende de vários fatores, inclusive da distância transportada e do tipo de com bustível usado. O engenheiro perguntará, em seguida, sobre os m étodos em pregados para lavar as garrafas retornáveis. Dependendo da quantidade de água gasta e de detergente vertido no m eio am biente, é concebível que o retornável acabe im prim indo um a “pegada am biental” m ais profunda do que o descartável. Ou não! Quem quiser a resposta exata, que pergunte a um engenheiro am biental.

O prim eiro resultado de tanta inform ação é a ansiedade. Poderia ser o m ote dos nossos tem pos a expressão inglesa, too much information!, em pregada coloquialm ente para protestar quando alguém nos revela algo que não querem os saber. Diante do tam anho do esforço necessário para dim ensionar um problem a em toda sua com plexidade, qualquer um pode se sentir pequeno. É bom que sej a assim , pois os designers precisam se libertar do legado profissional que os estim ula a trabalharem isoladam ente, de m odo autoral, com o se um bom designer fosse capaz de resolver tudo sozinho. No m undo com plexo em que vivem os, as m elhores soluções costum am vir do trabalho em equipe e em redes. Com o verem os adiante, no terceiro capítulo, o m undo atual é um sistem a de redes interligadas; e a m aior rede de todas é a inform ação. Ignorar esse fato, ou posicionar-se contra ele de m odo reativo, serve apenas para m inar qualquer possibilidade de m udar o sistem a. Hoj e em dia, não há com o ser “contra o sistem a”, pois construím os um m undo em que quase nada existe fora do dom ínio do artificial (no sentido daquilo que é oposto ao natural). Poucos anos atrás, um com ercial de banco colocava m uito bem o dilem a da contem poraneidade ao afirm ar: “Nos anos 1960, queriam derrubar o sistem a. Hoj e, o sistem a cai um

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m inutinho, e a gente fica revoltado”.{4}

Um a questão que o excesso de inform ação torna inescapável atende pelo nom e de “globalização”. A toda hora, ouve-se falar em globalização, m uitas vezes para exigir algum posicionam ento a favor ou contra. Do ponto de vista histórico, ser contra a globalização é com o ser contra a m odernidade, ou o capitalism o, ou o “sistem a”. O fato de alguém se opor a essas coisas não quer dizer que elas vão deixar de existir. Globalização não é algo que aconteceu de vinte ou trinta anos para cá; é um a transform ação que vem se processando de m odo gradativo há séculos, m as que só ficou aparente em tem pos recentes, quando os dados com eçaram a ser cruzados.

No fundo, tudo depende do que é entendido pelo term o. Costum am os subsum ir na única palavra “globalização” um im enso e em aranhado processo de unificação e consolidação de sistem as – com ercial, financeiro, j urídico; de norm as técnicas, transportes, com unicações; de costum es, aparências e ideias –, que é o fenôm eno m ais im pactante do m undo m oderno. O resultado é que a palavra quer dizer tudo e nada, ao m esm o tem po. Quando se fala em globalização neste livro, a referência é a esse longo processo histórico, que vem ocorrendo com progressiva aceleração desde a época dos cham ados “descobrim entos” por navegadores europeus em fins do século XV, e não a qualquer um dos agentes ou partidos envolvidos nas lutas políticas atuais. O pano de fundo que reúne as partes m uito diversas do presente livro é essa tão falada globalização, naquilo que ela tange o design, principalm ente no que se refere à unificação de sistem a de fabricação, distribuição e consum o, desde m eados do século XIX. Contudo, não dá para reduzir a questão a um a definição sim ples. Globalização é um assunto com plexo, e com plexidade é o fio da m eada que conduzirá nossa discussão.

A com plexidade vem se tornando tem a cada vez m ais estudado, principalm ente nas áreas de inform ática e com putação, teoria da inform ação e dos sistem as. As definições são m uitas, m as a m aioria concorda que a com plexidade de um sistem a está ligada ao grau de dificuldade de prever as inter-relações potenciais entre suas partes. O presente livro não tem por propósito contribuir para a discussão da com plexidade em nível avançado, pois essa tarefa fica m uito além da capacidade do autor.{5} Por “com plexidade”, entende-se aqui um sistem a com posto de m uitos elem entos, cam adas e estruturas, cuj as inter-relações condicionam e redefinem continuam ente o funcionam ento do todo. Algo com o um a m etrópole, que é constituída por diversos sistem as interligados e incontáveis elem entos, num a relação intrincada de vaivém , sobe e desce, criação e destruição contínuas, sem que se saiba onde ela com eça ou term ina, e sem que ela venha a se extinguir nunca. Em bora toda cidade tenha um caráter, nenhum a é suj eito pensante; e, em bora cada um a tenha um a vida, não necessariam ente terá de enfrentar a m orte. A cidade é entidade, m icrocosm o do

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m undo com plexo que se quer analisar aqui. O verbo “analisar” pressupõe que se aborde o assunto por partes. Voltem os, então, ao com eço da conversa: o propósito de pôr ordem na bagunça do m undo industrial e a adequação do design com o instrum ento para tanto.

ADEQ UAÇÃO E FORMA

Conform e se disse, o pensam ento sobre design que surgiu da prim eira fase da industrialização tinha a “adequação ao propósito” com o regra norteadora para a configuração dos obj etos. É um belo ideal, pelo m enos tão antigo quanto o dito de Sócrates, citado em epígrafe a esta introdução. A pergunta do grande filósofo é m ais m anhosa do que pode parecer à prim eira vista. Lendo-a com cuidado, com eçam os a dim ensionar a profundidade do problem a. Sócrates não diz que algum a coisa é bela porque é adequada ao seu propósito, o que equivaleria a dizer que a boa form a é aquela sugerida pela função do obj eto. (Essa ideia guiou o cham ado pensam ento funcionalista, por m uitas décadas.) Antes, ele diz que nada pode ser belo a não ser para o propósito para o qual é belo que sej a usado – ou sej a, aquele propósito para o qual é bem adaptado. Caso sej a aplicada a outro propósito que não o seu, a coisa deixa de ser bela. Portanto, a ênfase da frase recai sobre o uso, e não sobre a forma. Isso é m uito significativo, pois desloca a discussão dos obj etos para as pessoas. Aliás, a pergunta socrática nem versa necessariam ente sobre artefatos m ateriais. Bastante am bíguo, o “algo” da frase pode m uito bem se referir a um a fala, a um costum e, a um com portam ento ou, até m esm o, a um a condição.

Com o o autor do presente livro não possui conhecim ento suficiente de filosofia, e m uito m enos de grego antigo, para aprofundar a leitura de Sócrates, vam os partir para a evolução m ais recente da ideia de adequação ao propósito. Em alem ão de hoj e, Zweckmässigkeit quer dizer “adequação”, “conveniência”, “funcionalidade”. O term o tem sua origem no livro Crítica da faculdade do juízo (1790), do filósofo Im m anuel Kant. Zweck, em alem ão, significa “propósito”, “fim ”, “finalidade”; e o adj etivo mässig, “m oderado”, “m ódico”, “na m edida”. Literalm ente, portanto, Zweckmässigkeit quer dizer “a condição de estar na m edida do propósito”. Tirando proveito da incrível capacidade da língua alem ã de criar novos sentidos a partir da j unção de palavras, Kant introduziu com o parte de sua discussão do conceito da beleza a ideia de “conform idade a fins” – ou, traduzido de m odo m ais preciso, “adequação ao propósito”.{6} O term o foi retom ado por outros autores contem porâneos que discutiam estética, com o Friedrich Wilhelm Schelling e August Schlegel; e sua aplicação m ais específica à arquitetura foi desenvolvida por Karl Friedrich Schinkel, um dos m aiores arquitetos europeus do início do século XIX. Para Schinkel, adequação ao propósito era o princípio básico de toda construção e o grau de sua expressão m aterial definia o valor artístico de um edifício.{7}

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Vam os pensar m elhor sobre essa últim a ideia. Com o assim , “grau de expressão m aterial”? “Adequação ao propósito” é um conceito abstrato, algo com preendido pela m ente. É possível que os conceitos encontrem expressão m aterial: ou sej a, que possam ser percebidos pelos sentidos físicos, com o visão, audição, tato? Exam inem os alguns exem plos. Tem os o costum e de dizer que um a roupa é elegante, que um carro é luxuoso, que um prédio é im ponente. Nesses exem plos, estam os claram ente atribuindo valores conceituais ao obj eto a partir da associação com seus usos e usuários ou a partir da com paração com outros artefatos da m esm a categoria. Atribuím os um a qualidade ao obj eto que, no fundo, não deriva dele, m as de nosso repertório cultural e pressupostos. A prova dos nove está no fato de que, com a passagem do tem po, a m esm a roupa elegante pode passar a ser percebida com o cafona; o carro luxuoso, com o pobre; o prédio im ponente, com o decadente. De m odo bastante diverso, podem os dizer que o cabo de um m artelo encaixa bem na m ão, que um am biente é aconchegante, que a m ancha de texto de um a página é agradável à vista. Tais atribuições de valor rem etem a experiências corporais e tendem , por conseguinte, a perm anecer estáveis no tem po. Elas derivam não de processos de associação e com paração, m as da sensação física de conforto e bem -estar, que advém do uso e não passa necessariam ente por qualquer tipo de reflexão. Valores desse tipo podem ser m edidos e avaliados, de m odo m ais ou m enos acertado, num laboratório de ergonom ia.{8}

Os conceitos são passíveis de expressão m aterial, m as em graus variáveis. Quanto m ais sim ples e direto o conceito – ou sej a, quanto m ais enraizado estiver num a experiência em ocional clara – m aior será a facilidade de com preendê-lo. Diferentem ente de “bom ”, “gostoso” ou “aconchegante”, todavia, “adequação ao propósito” é um conceito bem com plexo. De que m aneira é possível olhar para um artefato e afirm ar que ele é adequado ao propósito? Isso não seria um j uízo que depende, necessariam ente, de usar o obj eto, de testá-lo em diversas situações ao longo do tem po? No entanto, quase toda a discussão sobre a funcionalidade no século XX partiu da prem issa oculta de que se pode j ulgar a adequação do obj eto apenas ao exam iná-lo com o olhar. Para os designers ligados ao m ovim ento funcionalista, bastava um rápido olhar (m uito rápido m esm o, no caso dos seguidores da teoria da Gestalt) para determ inar se um obj eto era ou não funcional. Tal qual a m ulher de Júlio César na célebre m áxim a, ao obj eto funcionalista não bastava ser funcional, devia parecer funcional. Muitos artefatos do século XIX que funcionavam bem eram rej eitados pelos funcionalistas por serem ornam entados. Ao longo do período m odernista, prevaleceu a ideia, inteiram ente desprovida de fundam ento, de que ornam ento se contrapõe a funcionalidade.{9}

A ideia de que a aparência, ou a configuração visual, de um artefato sej a capaz de expressar conceitos com plexos com o, por exem plo, sua adequação a

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um determ inado propósito é um a das grandes questões perm anentes do design, da arquitetura e da arte. Olham os para um a m esa e asseveram os que ela é sólida ou, com intenção quase idêntica, que ela tem solidez. Que ela é sólida, e não líquida ou gasosa, é evidente. Não é disso que estam os falando. Em um nível, trata-se de um a suposição de que ela sej a bem construída: sólida, no sentido de não ser frágil. Em outro nível, contudo, quando nos referim os à solidez da m esa, expom os tam bém um j uízo de valor. É tam bém a um a solidez m oral que fazem os referência, do m esm o m odo m etafórico que falam os da solidez de um a em presa ou do caráter de um a pessoa. A pergunta é: com o se opera esse processo de transpor qualidades perceptíveis visualm ente para j uízos conceituais de valor? Form ulada de m aneira m ais sim ples, porém m ais passível de gerar interpretações confusas: de que m odo as form as expressam significados? Não é por ser questão de difícil resposta que devem os descartá-la, pois seu dim ensionam ento é m uito im portante para com preenderm os o papel do design no m undo. Insistam os, m esm o que a resposta sej a parcial, m esm o que não exista resposta, m esm o que sej a apenas para form ularm os m elhor as perguntas.{10}

A não ser que se tenha um a definição m uito precisa daquilo que se entende por form a, um enunciado com o “a form a segue a função” não quer dizer nada. Nas discussões desse tem a em Língua Portuguesa, é grande o perigo de tropeçar na m ultiplicidade de significados contidos na palavra “form a”. É um term o escorregadio em m uitos idiom as, e com boa razão; porém , nas línguas latinas, ele possui um a falta de especificidade especialm ente problem ática. Entre nós, não há o costum e de distinguir o aspecto da “form a” – referente à aparência e à superfície – daquele que se refere à volum etria e ao contorno (o qual, em inglês, corresponderia à palavra shape). Os equivalentes m ais próxim os em português seriam “configuração”, palavra tam bém am bígua, e “vulto”, raram ente em pregada com esse sentido. Para avançar na discussão da form a, é preciso desm em brar o term o e considerar seus significados um a um . Claram ente, “form a” abrange pelo m enos três aspectos interligados, que possuem diferenças im portantes entre si: 1) aparência: o aspecto perceptível por um a visada ou olhar; 2) configuração: no sentido com posicional, de arranj o das partes; 3) estrutura: referente à dim ensão construtiva ou constitutiva. Os três aspectos se entrelaçam e form am um conj unto inseparável, m as que não pode ser apreciado plenam ente de um único ponto de vista. Para com preender a form a, precisam os dar algum as voltas.

Façam os o exercício de im aginar um artefato qualquer. Agora, com o se faz para transm itir a com preensão perfeita de sua form a apenas pela visão? Em se tratando de um obj eto com o qual o espectador j á tenha fam iliaridade – digam os, por exem plo, um a caneca – basta um a fotografia. O resto, ele com pleta a partir da experiência prévia com outros obj etos da m esm a categoria. Mas, e se o obj eto é desconhecido e peculiar? E se, para aum entar o desafio, é um obj eto

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grande ou com plexo dem ais para caber num a única fotografia? Digam os, por exem plo, que um arquiteto estej a diante do Taj Mahal, na Índia, e queira explicar a form a do edifício para seu sócio no Brasil. Pelo sistem a m ais consagrado de representação técnica pelo desenho – a proj eção ortográfica – serão necessárias pelo m enos três im agens para traduzir plenam ente aquilo que resum im os na palavra “form a”. A elevação (vista de frente) é suficiente para dar ao observador um a ideia da aparência do obj eto em questão. Com o acréscim o da planta (vista de cim a), ele passa a dim ensionar o arranj o interno do obj eto arquitetônico. Juntando a essas duas o corte (vista lateral), o observador terá um a noção total do obj eto. Na verdade, m ais ou m enos com pleta, porque existem ainda outros aspectos da form a, tais quais cor e textura, escala e tam anho, posição e contexto, sentido espacial e de m ovim ento, que só podem ser com preendidos por experiência direta, ou então pelo adendo de outros m eios de representação.

Essa com preensão com plexa de “form a”, com o algo de dim ensões m últiplas e interdependentes, torna possível um a discussão m ais precisa de com o um a form a poderia traduzir o conceito de “adequação ao propósito”. Voltem os ao arquiteto Schinkel, e seu entendim ento de Zweckmässigkeit. Para alguém interessado em investigar os princípios da arquitetura grega antiga, com o ele, fazia total sentido pensar na expressão m aterial da adequação ao propósito. A geração de arquitetos de que ele fez parte, os cham ados neoclássicos, buscava inspiração na Antiguidade greco-rom ana e enxergava nas form as de suas construções qualidades de força, harm onia e beleza. Atribuíam essas qualidades aos princípios construtivos que podiam ser depreendidos da aparência e da estrutura dos edifícios, tais quais: proporções regulares, repetição de volum es geom étricos, sim etria, subordinação do detalhe ao todo, e assim por diante. Para eles, era evidente que a questão girava em torno da relação da aparência externa com a estrutura interna. “Form a” seria o resultado de um a tensão entre interno e externo, construção e expressão. A boa form a seria aquela que conseguisse externar, de m odo feliz e harm ônico, o significado interior, o qual derivava de prem issas que podiam ser concebidas, m as não vistas. Schinkel caracterizou com o “tectônica” a dinâm ica dessa inter-relação.{11}

O term o “tectônica” foi m ais elaborado, em seguida, por Karl Bötticher, um discípulo de Schinkel, que desenvolveu o conceito com o teoria. Segundo sua concepção, expressa inicialm ente em 1844, a noção de tectônica seria útil para explicar a relação entre a form a essencial do edifício (Kernform, ou literalm ente, “form a-grão”) e sua form a artística (Kunstform). O prim eiro term o, “Kernform”, referia-se a algo invisível, à form a interior e oculta do obj eto. O segundo term o, “Kunstform”, rem etia à sua aparência externa. A palavra “tectônica” exprim iria a tensão dialética entre esses dois aspectos da form a, referindo-se ao m odo com o a aparência traduz a essência.{12} Para Bötticher, as form as deviam obedecer

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ao m aterial e à estrutura e, ao m esm o tem po, dem onstrar seu sistem a e sua operação. Poucos anos depois, outro arquiteto alem ão, Gottfried Sem per, refinou ainda m ais a noção de tectônica, em purrando-a para o centro dos debates sobre arquitetura em seu livro Der Stil in den technischen und tektonischen Kunsten [O estilo nas artes técnicas e tectônicas], de 1860. Para Sem per, cada tipo de m aterial dem andava técnicas específicas (por exem plo, m odelagem para a cerâm ica, carpintaria para a m adeira, tecelagem para as fibras); e as form as finais seriam a expressão de com o a técnica incide sobre o m aterial. Em bora Sem per tenha partido de term os ligeiram ente diferentes dos de Bötticher – Werkform (form a operacional) e Kunstform (form a artística) –, a palavra “tectônica” continuava a ser em pregada para explicar a dinâm ica dialética do processo de significação form al.{13}

A im portância do conceito de tectônica reside exatam ente naquilo em que ele desloca a discussão da form a em si, estática, para sua capacidade de expressar qualidades dinâm icas, enraizadas em processos. Form a não é um quantum estável, eterno e inalterável desde sem pre, m as o fruto de um a transform ação. Quando se com preende a lógica segundo a qual as form as são constituídas, com preende-se tam bém que elas são passíveis de m udança e de adquirirem novos significados. No caso dos edifícios, por exem plo, a tensão entre estrutura e aparência é constante. Quando se preserva a fachada de um prédio antigo, m as altera-se com pletam ente sua planta e sua disposição interior, a form a continua a m esm a? Por m eio do uso e do envelhecim ento, os obj etos arquitetônicos sofrem frequentem ente transform ações im portantes. O que ontem era banco, hoj e virou centro cultural; o cinem a vira igrej a, e assim por diante. É claro que a m udança de uso não altera a form a, forçosam ente. Mas, será que a form a do edifício continua a expressar os m esm os significados,

independentem ente de seu uso? Em alguns casos, o edifício que sim bolizava m odernidade, m eio século atrás, hoj e é um a velharia em ruínas; enquanto um a m odesta casa de fam ília de cem anos atrás hoj e é valorizada com o patrim ônio histórico. Deixem os para aprofundar essa questão m ais adiante, no prim eiro capítulo.

As form as dos artefatos não possuem um significado fixo, m as antes são expressivas de um processo de significação – ou sej a, a troca entre aquilo que está em butido em sua m aterialidade e aquilo que pode ser depreendido delas por nossa experiência. Por um lado, as form as concretizam os conceitos por trás de sua criação. Para em pregar um term o corrente hoj e, os artefatos obedecem a um a “lógica construtiva”, a qual é a som a das ideias contidas em seu proj eto com seus m ateriais e condições de fabricação. Por outro lado, form as e artefatos são passíveis de adaptação pelo uso e suj eitos a m udanças de percepção pelo j uízo. Quando um garfo antigo de prata é entortado e soldado nas pontas para fazer um a pulseira, algo im portante ocorre em term os de significação. Em bora

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ele não deixe de ser reconhecível com o garfo, ele j á não serve para seu uso original e nunca m ais será visto com o apenas um talher. Se o processo envolve algum a distorção m aior de sua configuração (por exem plo, alisam ento da superfície), e não apenas de sua estrutura (a ação de entortá-lo, no caso), a descaracterização form al poderá ser ainda m ais drástica. Tais transform ações e usos híbridos são extrem am ente reveladores da natureza profunda da relação entre form a e significado. Considerarem os isso m ais detidam ente no segundo capítulo.

O que m uitas vezes nos escapa, por conta da relativa brevidade de nossa existência hum ana, é o quanto os artefatos se transform am no tem po e, o que é ainda m ais difícil de dim ensionar, o quanto os tem pos m udam . Quando a pintura m ural da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, term inou de ser restaurada em 1999, após 21 anos de trabalho, surgiu um a controvérsia internacional com relação à intervenção realizada. Segundo alguns especialistas, as cores e as form as teriam sido gravem ente alteradas pelos restauradores, prej udicando a apreensão correta da obra. Os restauradores, por sua vez, contestaram isso, alegando terem devolvido a pintura a algo próxim o ao seu estado original. Considerando que o artista concluiu o trabalho em 1498 e que, nos quinhentos e poucos anos desde então, o local sofreu infiltrações, invasões e até bom bardeio, e que a pintura fora suj eitada a pelo m enos três restaurações anteriores, fica m uito difícil determ inar qual teria sido sua aparência prim itiva. Mesm o que a conhecêssem os, por m eio de algum registro paralelo (no caso, existem cópias contem porâneas), será que teríam os a capacidade de com preender exatam ente o que o artista quis dizer quando a pintou? Será que teríam os olhos para ver o que os espectadores viram à época? A m elhor resposta que tem os, em term os históricos, é não. O olhar é tam bém suj eito a transform ações no tem po, e aquilo que depreendem os do obj eto visto é necessariam ente condicionado pelas prem issas de quem enxerga e de com o se dá a situação do ato de ver. Ou sej a, o olhar é um a construção social e cultural, circunscrito pela especificidade histórica do seu contexto.{14}

Por tudo que se pode observar e deduzir sobre a história do olhar, recuperar o m odo de ver de outra época é tarefa das m ais difíceis. Os tem pos m udam , e m uda com eles o significado das coisas que parecem fixas. No m undo de hoj e, onde o tem po parece andar cada vez m ais depressa, os significados ficam ainda m enos estáveis. Determ inar o significado de um artefato atualm ente é tarefa tão escorregadia quanto atirar num a lebre correndo em zigue-zague a partir de um carro desgovernado que transita por um a ponte m óvel. O tiro certeiro depende do cálculo preciso e instantâneo de todas as forças, velocidades e m ovim entos. Se essa com paração parece rem eter ao m undo dos desenhos anim ados e dos videogam es, não é à toa. A abrangência crescente do m undo virtual e seu im pacto sobre a visualidade – por m eio de processos de m anipulação, sim ulação e em ulação – tende a redefinir todos os parâm etros para a discussão da form a. É

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sobre este adm irável m undo novo, e ainda relativam ente desconhecido, que irá versar o terceiro capítulo deste livro.

COMPRESSÃO E COMPLEXIDADE

Nos últim os cinquenta anos, vêm ocorrendo m udanças im portantes na m aneira com o experim entam os tem po e espaço. Escrevendo em 1989, o geógrafo britânico David Harvey propôs a noção de um a “com pressão do tem po-espaço” que estaria afetando as percepções culturais desde os anos 1960, constituindo a base daquilo que ele batizou de “condição pós-m oderna”.{15} Dentre as características m ais m arcantes dessa com pressão estaria a perturbação de um a série de relações de significado antes consideradas estáveis. Quando Harvey escreveu esse texto, é possível que ele o tenha feito com um a m áquina de escrever. Na m elhor das hipóteses tecnológicas, ele o digitou em com putador pessoal operacionalizado por um a das duas então novas plataform as “am igáveis”, ou sej a, providas de interface gráfica: o sistem a Mac OS, introduzido em 1984, ou seu concorrente Windows, de 1985. É possível que seu com putador ainda não possuísse nem HD, operando a partir da inserção contínua de m uitos disquetes. É certo que ele não dispunha de acesso a internet. No ano em que o livro foi publicado, inventava-se a world wide web (www), face pública da internet, cuj o uso só viria a se tornar corrente cinco ou seis anos depois.

Se em 1989, ano da queda do Muro de Berlim e da introdução da www, a tal com pressão tem po-espaço j á era um fenôm eno identificável, o que se pode dizer dos vinte e poucos anos desde então? As pessoas que nasceram após essa data cresceram acostum adas a fazer m uitas coisas ao m esm o tem po (o cham ado multitasking) e a participar de vários fóruns sim ultaneam ente (por m eio da telepresença). Se eu falo ao celular (a segunda geração de telefonia m óvel, digital, foi introduzida em 1991) com um am igo na m esm a cidade, enquanto digito um a m ensagem eletrônica para outro am igo do outro lado do m undo, é provável que as duas com unicações decorram m ais ou m enos dentro do m esm o parâm etro de instantaneidade. O que não im pede que eu fique im paciente se algo der errado. Posso fotografar um incidente com m eu celular e, usando o m esm o aparelho, postar a im agem na rede quase im ediatam ente. A possibilidade de realizar transições m uito rápidas entre m aterial e im aterial é um dos fenôm enos m ais m arcantes da atualidade. Em alguns casos, a agilidade com que o im aterial pode ser capturado e transm itido torna supérflua sua m aterialização. É o caso das fotografias digitais, que são cada vez m ais clicadas, porém m enos im pressas.

Qual o im pacto dessas transform ações m últiplas e rápidas sobre um cam po com o o design, tradicionalm ente pautado pela fabricação de artefatos m ateriais? Entra em questão a relação entre m aterialidade e im aterialidade, coisa e não coisa.{16} Não deixa de ser um desdobram ento previsível da velha cisão entre form a e inform ação, dobradinha reconhecida nos m eios de design há m uitas

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décadas. Afinal, um dos prim eiros escritórios de design no Brasil cham ava-se, j ustam ente, forminform (com f m inúsculo, e sem espaço), o que dem onstra o quanto o continuum entre coisa e não coisa sem pre foi questão preponderante para quem pensa o obj eto em sua dim ensão industrial. É curioso observar que, no exato m om ento em que alguns artistas brasileiros teorizavam o “não obj eto”, no final dos anos 1950, em função da arte concreta, os debates sobre design passavam para um a esfera de ação organizada pela sociedade civil. Ainda falta analisar com profundidade esse m om ento histórico, e os m uitos desdobram entos de um radical questionam ento conceitual da form a que redundou,

paradoxalm ente, num form alism o que até hoj e enreda m uitas m anifestações de arte, design e até poesia.{17}

Talvez a principal lição para o design – plenam ente recebida e assim ilada na prática dos designers brasileiros nos últim os vinte anos – sej a a de que não existem receitas form ais capazes de equacionar os desafios da atualidade. Não são determ inados esquem as de cores e fontes, proporções e diagram as, e m uito m enos encantações com o “a form a segue a função”, que resolverão os im ensos desafios do m undo com plexo em que estam os inseridos. Seria côm ico sugerir, ao proj etar um eletrodom éstico, que despoj á-lo de ornam ento é m ais im portante do que m inim izar seu im pacto am biental. Seria cruel, quase obsceno, propor que arej ar a m ancha de texto de um a página é um a boa m aneira de tornar a leitura m ais acessível, num país onde não se lê por opção e falta de opção. Parecem caricaturas m aldosas, exageradas a ponto de se tornarem irrelevantes, m as estas são afirm ações não m uito distantes de um raciocínio que ainda prevalece em m uitas faculdades de design. A conclusão deste livro traz algum as considerações sobre o ensino, fundam entadas em anos de prática pedagógica e passagens por diversas escolas que pretendem form ar designers no Brasil. Precisam os urgentem ente rever nosso ensino de design, para que ele recupere um pouco do atraso considerável que o separa do m eio profissional, do m ercado de trabalho, das indústrias e das reais condições de vida em nosso país. Diferentem ente de m eio século atrás, quando as novas escolas de design se propunham a ser laboratório de inovação e pensam ento, a universidade é hoj e o elo m ais fraco da com plexa cadeia produtiva de design.

Resum indo o cenário atual, pode-se dizer que as perspectivas são boas porque os desafios são enorm es. Há trabalho, e m uito, para quem tiver disposição e im aginação para se lançar a novas em preitadas. Prim eiro passo: abdicar da prem issa de que os problem as são sim ples. Se você tem um a resposta pronta, é provável que não tenha entendido direito a pergunta. Aprofundar a análise do problem a, antes de propor soluções, é um a velha e boa m áxim a das m etodologias de proj eto que ainda retém toda a sua validade. Segundo passo: abdicar da prem issa de que os problem as são insolúveis. Um a das grandes vantagens de reconhecer a com plexidade do m undo é com preender que todas as

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partes são interligadas. Sendo assim , as ações de cada um j untam -se às ações de outros para form ar m ovim entos que estão além da capacidade individual de qualquer um a de suas partes com ponentes. Não é responsabilidade dos designers salvar o m undo, com o clam avam as vozes proféticas dos anos 1960 e 1970, até porque a crescente com plexidade dos problem as dem anda soluções coletivas. De todo m odo, ninguém sabe exatam ente o que quer dizer “salvar o m undo” hoj e em dia. Caso você tenha a resposta pronta, volte para o prim eiro passo, acim a. Reconhecer a com plexidade do sistem a j á é um grande avanço. Se todos adquirirem algum a consciência do tam anho e do intricado das relações que regem o m undo hoj e, será possível cam inhar coletivam ente em direção a um obj etivo, sej a qual for. O grande inim igo é sem pre a ignorância, e as ideias preconcebidas que derivam da falta de exercício do pensam ento. Enquanto uns separam vidros e latinhas para reciclar, outros despej am toneladas de esgoto ao m ar – isto, num a m esm a cidade, quando não no m esm o bairro ou condom ínio. Enquanto uns se recusam a com er carne, por estim a à vida em todas as suas form as, outros despej am toneladas de explosivos sobre populações inteiras – isto, m uitas vezes, com origem num m esm o país ou cultura. Enquanto uns negociam aum entos salariais ou redução da j ornada de trabalho, outros em pregam m ultidões de trabalhadores em regim e de quase escravidão, do outro lado do planeta, para suprir o apetite insaciável por m ercadorias baratas. São com parações inj ustas? Conexões despropositadas? Em term os históricos, o grande trabalho do design tem sido aj ustar conexões entre coisas que antes eram desconexas. Hoj e, cham am os isso de proj etar interfaces. Trata-se, contudo, de um processo bem m aior e m ais abrangente do que im agina o proj etista sentado à sua estação de trabalho. A parte de cada um é entender sua parte no todo.

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CONTEXTO, MEMÓRIA, IDENTIDADE O OBJETO SITUADO NO TEMPO-ESPAÇO

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Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas. [Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, 1913.]{18}

A IMOBILIDADE DAS COISAS

Tem os o costum e de dividir os artefatos em duas categorias: m óveis e im óveis. Essa divisão, aceita a ponto de nem pararm os para pensar nela, está na base da separação que o senso com um faz entre arquitetura e design, entre outras coisas. Mas, será que existem m esm o obj etos im óveis?

(Repare que não estam os falando de obj etos naturais. É bom introduzir logo a distinção entre obj eto e artefato, que será im portante ao longo deste livro. Um a m ontanha, um a pedra ou um a árvore são obj etos, m as não artefatos. Artefato é um obj eto feito pela incidência da ação hum ana sobre a m atéria-prim a: em outras palavras, por m eio da fabricação. Sua raiz etim ológica está no latim arte factus, “feito com arte”; e ela está na origem do term o “artificial”, ou sej a: tudo aquilo que não é natural.)

Feito o parêntese, voltem os à pergunta, devidam ente reform ulada: será que existem m esm o artefatos im óveis?

Pelo senso com um em que se em prega o term o, é claro que existem ! É só abrir o j ornal aos dom ingos e ver os classificados anunciando centenas de im óveis para vender e alugar. Não resta dúvida de que tais im óveis diferem , no sentido econôm ico, de outros bens, cham ados m óveis. É igualm ente evidente que um im óvel é dificilm ente deslocado do seu lugar, fisicam ente. Em bora sej a até possível transportar um a casa ou alguns edifícios de um ponto para outro, isso é tão inesperado que representa aquele tipo célebre de exceção que confirm a a regra. Porém , vam os considerar a questão de m odo m enos literal e m enos restrito. Mesm o que aceitem os que os im óveis são geralm ente fixos no espaço, será que eles detêm a m esm a im obilidade no tem po? Ou sej a, será que existem artefatos que perm anecem estáveis, incólum es, diante da passagem dos anos? De im ediato, vêm à m ente construções m uito antigas, com o as pirâm ides do Egito ou as m uitas ruínas de civilizações passadas. É por aí m esm o que precisam os pensar. Se quiserm os questionar a im obilidade dos artefatos, é bom que com ecem os por aqueles que perm anecem há m ais tem po entre nós.

No caso brasileiro, um im óvel bem antigo é a construção conhecida hoj e com o os Arcos da Lapa. Fam oso cartão-postal do Rio de Janeiro, os Arcos foram construídos por volta de 1740 para levarem água de sua fonte na Mata Atlântica, no bairro conhecido com o Silvestre, até o atual Largo da Carioca, no velho centro da cidade. Lá, a água desem bocava em um a grande estrutura, hoj e destruída: um chafariz com dezesseis bicas para abastecer as necessidades da população.

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Originalm ente, portanto, os Arcos foram concebidos com o aqueduto. Com o sabe qualquer pessoa que j á visitou o Rio, hoj e servem com o viaduto – cam inho para o pitoresco bondinho que conduz seus passageiros para o bairro de Santa Teresa, passando por cim a dos Arcos. De aqueduto para viaduto: é um a m udança e tanto de função! Essa transição ocorreu no ano de 1896, quando a antiga estrutura do aqueduto, caído em desuso, foi aproveitada para colocar os trilhos do então novíssim o bonde elétrico.

Muito bem , argum entarão os recalcitrantes: o artefato foi desviado de sua função original, m as nem por isso deixou de ser o que era. Cham e-se ele de aqueduto ou viaduto, continua a ser a m esm a estrutura de pedra e cal, com as m esm as propriedades físicas e linhas construtivas. Conform e a fam osa frase de Shakespeare, em Romeu e Julieta: “se a rosa tivesse outro nom e, ainda assim teria o m esm o perfum e”. A rosa e o perfum e, talvez. Quanto ao texto de Shakespeare (m al transposto do inglês elisabetano para o português m oderno), os Arcos da Lapa e todos os outros obj etos m ediados por qualquer sistem a sim bólico certam ente que não! No caso, a m udança de nom e é indicativa de um a transform ação m ais profunda, que afeta até m esm o a estrutura de pedra e cal. Tudo aquilo que parece, aos nossos sentidos, sólido e im utável – com o as construções m uito antigas, por exem plo – quase sem pre desm ancha nos ares do tem po. Mostre-m e um edifício novo, diz o historiador, e eu lhe m ostrarei o princípio de um a ruína.

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Detem o-nos m ais um pouco sobre o exem plo dos Arcos da Lapa, bastante instrutivo. O que podem os descobrir sobre esse artefato, som ente pelo olhar? Quem se posta diante dele, e tom a distância para observá-lo por inteiro, depreende certas conclusões inescapáveis: é grande, é im ponente, é sólido, é regular em suas proporções. Tais qualidades podem parecer perm anentes, im utáveis; contudo, seria tão surpreendente assim descobrir que não o são? Basta investigar um pouquinho a história dos Arcos para saber que todas as qualidades aqui citadas são relativas. É grande? Pois saiba que j á foi m aior. Tanto no sentido concreto – um a pequena parte da estrutura original foi dem olida pelas sucessivas reform as urbanas que levaram ao desm onte do Morro de Santo Antônio e à construção do viaduto rodoviário vizinho – quanto no sentido figurado – a construção de vários prédios m uito altos no entorno do m onum ento acabou por apequenar os Arcos. É im ponente? Já o foi bem m ais, ao longo dos séculos distantes em que reinou absoluto com o m aior edificação da cidade. Já o foi

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m enos, tam bém , durante o período em que se viu engolido, praticam ente, pelo bairro da Lapa que cresceu ao seu redor. Durante a m aior parte dos séculos XIX e XX, nem sequer era possível postar-se diante do m onum ento e observá-lo por inteiro, por conta do grande núm ero de edifícios que se aglom eravam ao seu redor, de am bos os lados.

Até aí, tudo bem , ainda insistirão alguns. “Grande” e “im ponente” são j uízos relativos, que só existem por com paração. E quanto às qualidades físicas do artefato? Não há dúvida de que ele sej a sólido e regular. Será que não? Talvez surpreenda saber que as duas fileiras de arcadas, um a encim ando ordeiram ente a outra, deram lugar a dois im ensos arcos, abertos respectivam ente nos séculos XIX e XX para acom odar a passagem de ruas m ais largas. A existência desses arcos m aiores, durante décadas, põe em questão a percepção que tem os da solidez e da regularidade do m onum ento. No m ínim o, essas intervenções ocorridas relativizam a im pressão de perm anência. O fato de que, hoj e restaurado, ele tenha algum a sem elhança com sua feição original não anula as transform ações sofridas. Mudar de volta é, m esm o assim , m udar. Aliás, este é o dilem a m ais profundo do cam po da conservação-restauração: a plena consciência de que o passado não se recupera.

Quando falam os na feição original dos Arcos, referim o-nos exatam ente a quê? Ninguém que é vivo hoj e pôde observar o local cem ou duzentos ou trezentos anos atrás. Os m ais velhos entre nós talvez se recordem dos Arcos com o eles aparecem na capa do disco O famoso Trio de Ouro, de 1955, onde ainda se vê um dos grandes arcos, posteriorm ente restaurado. Na m em ória dessas pessoas, a feição original dos Arcos era essa, diferente da aparência atual. Será que podem os qualificar com o original aquilo que é apenas um a etapa transitória de um longo processo de existência? Certam ente que não. Precisam os recorrer então aos historiadores, e estes recorrem , por sua vez, às fontes históricas – evidências e vestígios capazes de nos inform ar sobre aquilo que não tivem os ocasião de presenciar. Por m eio da pesquisa, reza o senso com um , podem os chegar a um consenso sobre com o teriam sido os Arcos em seu m om ento de origem . Até certo ponto, isso é verdade. Sobretudo, quando se enfatiza a im portância da palavra “consenso”. O problem a é que as fontes históricas são diversas, dispersas e precisam ser encontradas, com piladas e interpretadas. Não é um processo sim ples ou autoevidente; e só quem entende m uito pouco do assunto acha que a história é algo conclusivo ou irrefutável.

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Vam os às fontes. Sabe-se, a partir dos docum entos escritos, que os Arcos de hoj e nem sequer correspondem à construção inicial. Um prim eiro aqueduto, inaugurado sob o governo de Ay res de Saldanha (1719-25), teria seguido traçado um pouco diferente, m as foi rapidam ente suplantado pela estrutura que ainda sobrevive, inaugurada sob o governo de Gom es Freire de Andrade (1733-63). Em m atéria de fontes visuais, um a das im agens m ais antigas de que tem os conhecim ento é o quadro hoj e nom eado Vista da Lagoa do Boqueirão e do aqueduto de Santa Teresa (à direita), provavelm ente de autoria de Leandro

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Joaquim e pintado por volta de 1790.{19} Considerando-o um docum ento visual produzido por um artista contem porâneo à época da construção original, podem os tom á-lo com o ponto de partida para analisar as m uitas diferenças entre o artefato que conhecem os e as transform ações pelas quais passou. Com parada a um a fotografia atual, a im agem traz duas inform ações surpreendentes relativas às características físicas dos Arcos. A prim eira é a confirm ação de que o traçado, as proporções e a volum etria atuais correspondem , grosso m odo, ao que aparece no quadro antigo. A segunda é que os Arcos não necessariam ente foram sem pre de cor branca. Com eça o j ogo dos sete erros.

Será que os Arcos eram m arrons originalm ente? Será que podem os confiar no quadro com o fonte de inform ação? Afinal, o pintor pode ter optado pela cor m arrom por m otivos outros além da precisão topográfica. Digam os, por exem plo, que seu com prom isso m aior fosse com o equilíbrio crom ático da com posição. Para sanar esse tipo de dúvida, os historiadores costum am recorrer à com paração entre fontes de um a m esm a época. Outra im agem bem antiga dos Arcos é um a aquarela do inglês William Alexander, The Aqueduct at Rio de Janeiro, de 1792, no qual o m onum ento aparece com cor acinzentada. Em seguida, essa aquarela foi usada com o m odelo para um a gravura em que o aqueduto é representado branco, a qual saiu publicada em livro em 1806.{20} Essa gravura, por sua vez, deu origem a um a série de cópias em que os Arcos aparecem ora brancos, ora acinzentados, ora am arronzados. O fato de os gravadores responsáveis por essas reproduções nunca terem visitado o Rio de Janeiro, m as apenas visto representações de sua paisagem , contribuiu para aum entar o nível de discrepância. Num a época em que poucas pessoas viaj avam e não existia fotografia, eram bem diferentes as exigências com relação à verossim ilhança das im agens. Já nas m uitas representações dos Arcos geradas após a década de 1840, o m onum ento costum a aparecer branco ou branco acinzentado.

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Nota-se, de im ediato, que é lim itado o grau de confiabilidade que podem os atribuir a um a fonte qualquer. Mesm o as fotografias m ostram apenas aquilo que está dentro do cam po visual recortado por seu enquadram ento, e são tão suj eitas à m anipulação quanto qualquer desenho ou pintura. Mas, o que isso nos diz sobre a tal im obilidade dos obj etos, questão que deu origem a toda essa discussão? A essa altura, os leitores de índole m ais prática devem achar que estam os fugindo do assunto. Tais escorregadelas de sentido e deslizam entos de significado não seriam problem a restrito ao m undo das representações visuais? Apenas m ais um sintom a daquilo que o pintor René Magritte cham ava de “a traição das im agens”? Se os Arcos um dia foram m arrons ou cinzas, e veio alguém e os pintou de

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branco, que diferença isso faz? Eles não continuam a ser os m esm os, independentem ente da cor?

A m udança de cor – ou pelo m enos de sua representação – reflete outra transform ação bem m ais im portante: a do m odo com o o obj eto é percebido por seus usuários. Em um a palavra, a experiência do artefato. Nas im agens produzidas para um público estrangeiro que provavelm ente nunca veria o lugar, a cor do m onum ento era apenas um detalhe subordinado no todo da com posição. Não tinha m aior im portância, portanto, para a fruição daquela im agem e para a com preensão de seu sentido m aior. Será que isso faz diferença para a apreensão direta do artefato, em prim eira m ão? Form ulada a pergunta de m odo diverso, a im agem que se faz do obj eto afeta a com preensão do seu sentido? No m undo m oderno, regido por m ídias e sistem as de com unicação, a resposta só pode ser sim .

Quantos lugares, coisas, situações, até pessoas, são conhecidos prioritariam ente por m eio de im agens? Vale exem plificar, por questão de clareza. Quantos leitores deste livro j á observaram leões selvagens na natureza, j á cam inharam pelo topo da m uralha da China ou j á pilotaram um carro de Fórm ula 1? Poucos. No entanto, todos certam ente possuem um a im agem m ental dessas experiências. Isso é significativo. Além do m ais, o contexto em que se adquiriu essa im agem m ental (no cinem a, lendo um livro, vendo televisão) não deixa de ser um a experiência tam bém , de outra natureza, bastante distinta da vivência im ediata. No dia em que surgir um a oportunidade de concretizar, ao vivo, qualquer um a dessas aventuras, a experiência direta será colorida – ou sej a, m ediada – pela im agem m ental preexistente. Quando se pensa que a m aioria das pessoas que têm conhecim ento dos Arcos – ou de qualquer outro artefato, por sinal – o têm por vias indiretas, tem -se a dim ensão da devida im portância das im agens.

Mesm o para quem só tem conhecim ento direto de um artefato, sem m ediação (se é que isso ainda é possível), a experiência do obj eto é sem pre delim itada por costum es e convenções. Voltem os às im agens. Existe m ais um fator decisivo, pelo m enos, a ser depreendido da com paração entre aquela atribuída a Leandro Joaquim e aquela feita por William Alexander. Na prim eira, os Arcos aparecem vistos “de frente”, com o Convento de Santa Teresa à esquerda; na segunda, por “de trás”, com o m esm o convento à direita. A definição de frente e fundo, esquerda e direita, é relativa, evidentem ente. Não existe nada na natureza que defina um lado do obj eto com o sendo prioritário em relação aos outros. A noção de posição está no olhar do observador, que, portanto, é definida por sua form ação cultural. Nenhum carioca, se perguntado, hesitará em responder que a frente dos Arcos é aquele aspecto que aparece na figura da página 53. Num a cultura form ada, historicam ente, a partir da chegada à terra pelo m ar, o olhar para a paisagem tende a se dirigir nesse m esm o sentido: do

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litoral para o interior. Assim , a perspectiva frontal dos Arcos é definida por um observador hipotético que se posta de costas para o m ar, olhando para a cidade. O pintor brasileiro do prim eiro quadro sabia disso, m esm o que intuitivam ente, e escolheu o ponto de vista que fundaria a tradição iconográfica de representar os Arcos a partir do atual Largo da Lapa. Foi preciso um olhar forasteiro, não com prom etido com a cultura local, para inaugurar a inversão dessa perspectiva.

FATORES CONDICIONANTES DO SIG NIFICADO

Vam os tentar pôr um pouco de ordem nesta discussão, antes que ela se desdobre irrem ediavelm ente em m uitas outras. Tocam os, até agora, em seis fatores que condicionam o significado do artefato, possuindo a capacidade de m odificar a suposta im obilidade ou fixidez de sua natureza essencial (o que os filósofos cham ariam de sua “ontologia”). Três desses fatores estão ligados à situação m aterial do obj eto, e três outros estão ligados à percepção que se faz dele. Os da prim eira categoria são: “uso”, “entorno” e “duração”. Os da segunda categoria são: “ponto de vista”, “discurso” e “experiência”. A rigor, é arbitrária a divisão desses fatores em duas categorias, pois eles incidem uns sobre os outros de m odo com plexo, gerando o quantum em inentem ente fluido e instável que entendem os com o significado. Contudo, para fins didáticos, há sentido em desm em brá-los e considerar um de cada vez. Antes disso, cabe ressaltar um ponto que deveria ser autoevidente: significado, em últim a instância, reside unicam ente na percepção dos usuários (sendo quem faz, o autor ou criador, considerado usuário tam bém ). Sem um suj eito capaz de atribuir significado, o obj eto não quer dizer nada; ele apenas é. A apreensão de todos os fatores citados deriva da relação entre usuários e artefatos, num a troca de inform ações e atribuições que se processa de m odo contínuo. Em últim a instância, é a com unidade que determ ina o que o artefato quer dizer.

O im pacto do fator “uso” fica m uito claro no exem plo dos Arcos. Quando o artefato deixou de ser aqueduto e passou a ser usado com o viaduto, essa m udança alterou de m odo im portante seu significado, até m esm o em term os form ais. É notável o fascínio que a visão do bonde passando por cim a dos Arcos tem exercido sobre artistas, fotógrafos e cineastas, gerando inúm eras representações desse tem a. Nas im agens geradas por processos m anuais, com o desenho ou pintura, revela-se um a tendência de exagerar o tam anho do bonde, atribuindo-lhe im portância visual m aior do que aquela que corresponderia às proporções físicas exatas. No caso do bonde passando por cim a dos Arcos, equilibrado vertiginosam ente sobre o cam inho alto e estreito, o inusitado do uso surpreende, pesa e acaba por colorir as percepções. “Uso” é um a palavra que abrange as noções interligadas de operacionalidade, funcionam ento e aproveitam ento. Nesse sentido, aproxim a-se da palavra “função”, com um ente em pregada para descrever o papel a ser desem penhado por um artefato nas relações sociais. Contudo, a palavra uso é m ais adequada, porque não pressupõe

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que um artefato qualquer tenha um a única vocação, com o é frequentem ente o caso quando se fala em sua “função”. Conform e verem os m ais adiante, no terceiro capítulo, é quase sem pre m ais correto falar em “funções” do que em “função”.

O im pacto do “entorno” sobre o significado do artefato talvez sej a m enos explícito. No exem plo dos Arcos, m esm o que a estrutura e a aparência do m onum ento tenham perm anecido estáveis por longos períodos, tudo à sua volta m udou. Os registros visuais m ais antigos evidenciam que existe desde m uito o hábito de construir outros edifícios em torno do aqueduto. Já nas prim eiras décadas do século XIX, aglom eravam -se ali, de am bos os lados, bom núm ero de casas, conform e indicam um a série de im agens conhecidas. O bairro da Lapa foi crescendo, crescendo; e, ao final do século XIX, não resta dúvida de que os atuais Arcos se encontravam rodeados de um casario denso e com pacto, o qual se aproxim ava o m áxim o possível do antigo aqueduto e, em alguns casos, chegava a se apoiar nele, tirando proveito estrutural de sua solidez construtiva.

Na década de 1940, esse casario havia atingido tam anha densidade, com o aparecim ento dos prim eiros edifícios altos, que com eçava m esm o a ofuscar o velho viaduto. Os registros fotográficos que possuím os dessa época são invariavelm ente tirados dos m orros vizinhos ou de outro ponto distante, pois não existia m ais a possibilidade de descortinar a construção inteira a partir do nível do chão. O resultado é que o artefato, antes m onum ental e im ponente, com o aparece nas representações antigas, passou a ser percebido por golpes de vista fragm entados, ou sej a, com o m enos do que sua totalidade. Um registro inusitado de sua aparência nessa época, ao nível do chão, é o cenário da peça Feira livre, de 1941, em que a im agem cenográfica dos Arcos aparece com prim ida entre prédios e barracas, m ais fragm ento do que m onum ento.{21}

A partir dos anos 1950, esse processo com eçou a se inverter. A derrubada sucessiva de quarteirões inteiros – prim eiram ente, do lado de trás e, depois, à frente – devolveu os vazios ao espaço em torno dos Arcos, retom ando um pouco a antiga m onum entalidade. Na década de 1970, com a reabertura do Largo da Lapa, com pletou-se o ciclo de bota-abaixo, culm inando em um retorno parcial à situação de duzentos anos antes. Quase por paradoxo, j á que não era essa a intenção, a destruição do tecido urbano resultou na recuperação de um a qualidade originária perdida ao longo dos séculos. Ao com pararm os a im agem atribuída a Leandro Joaquim com a vista que se tem hoj e dos Arcos, é surpreendente constatar que voltou a existir a am pla perspectiva descortinada sobre o m onum ento, e que essa continuidade se fez por m eio de tantas e tão drásticas m udanças na paisagem .

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Todas essas transform ações, ligadas não som ente ao uso e ao entorno, m as tam bém à própria condição física do artefato (estado de conservação), estão relacionadas com o terceiro fator citado: “duração”. Para entender o significado de um artefato com qualquer profundidade é preciso saber o que j á se passou com ele ou, no caso de um artefato m óvel, por onde ele passou.{22} A existência de qualquer obj eto decorre dentro de um ciclo de vida que com porta desde sua criação até sua destruição. Quanto m ais tem po ele consegue resistir – ou sej a, m anter-se íntegro e reconhecível – m aior será a chance de incidirem sobre ele m udanças de uso e de entorno. Alguns artefatos, com o os Arcos, sobrevivem por m uito m ais tem po do que seus criadores e fabricantes e estão suj eitos, portanto, à atribuição de significados por gerações sucessivas de usuários, cuj as opiniões e j uízos podem variar im ensam ente. Quem observa hoj e o velho m onum ento e o aprecia com o patrim ônio histórico não com partilha quase nada com os olhares lançados sobre ele no m om ento de sua inauguração.

Os j uízos dos usuários nos rem etem à segunda categoria de fatores condicionadores do significado. O prim eiro deles é “ponto de vista”. Já se falou

Referências

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