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O Tempo sob os trilhos respira em silêncio. A noite é gélida, como qualquer. noite europeia de dezembro. Sente-se na atmosfera o prelúdio da neve, a

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Academic year: 2021

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PROGRAMA NASCENTE – Universidade de São Paulo CATEGORIA: Texto - Crônica

Tempo, matéria de malas e trilhos

O Tempo sob os trilhos respira em silêncio. A noite é gélida, como qualquer noite europeia de dezembro. Sente-se na atmosfera o prelúdio da neve, a qual se revela em partes misteriosas da terra, com timidez, nesta estrada vista por poucos. Os viajantes dentro do trem perpassam as terras nuas, com o sono e a fome de humanos que encostam na vidraça, fracos da própria existência que insiste em povoar o mundo. Um deles lê poesia olhando a janela, um olhar que, então, vê mais do que o vidro diz. A estrada é escura e reduzida ao azulado da madrugada que se despede, circundada pelas silhuetas das árvores de soldados noturnos. As árvores também sabem dos excessos da estrada.

É, porém, entre o metálico gélido que sustenta os trens costureiros da Europa, e o chão, onde reside o grande personagem da história dos homens. O Tempo conta seus próprios segundos, a sua matéria, vive enquanto os outros vivem. E concede o fim. O tempo conta, sem interrupção, e nem o percebe mais. Talvez tenha sido um infanto segundo colocado entre os trilhos por um viajante enrolado em panos velhos e luvas esburacadas. Não se sabe se foi o paradoxo que fundou o Tempo, ele mesmo em sua forma trabalhada colocando a si mesmo, vivo e infantil, nos trilhos do trem. Nunca haverá alguém para responder.

Beijado na testa pela figura do andarilho inconstante que vive em todos e em nenhum lugar, o pequeno tempo virou Tempo, observando as cidades se erguendo a sua volta. Ele sabe registrar como ninguém o instante em que a

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fumaça do trem ou da velha indústria no horizonte se junta ao sol que se põe, formando uma fumaça mesclada em branco e laranja pulsantes, erguidas no céu em grandes golfadas. Foi deste instante, repetido todos os dias, que o Tempo se alimentou.

Houve dias em que a neve se vestia diante de seus olhos antigos. Como qualquer criança, o Tempo aguardava a madrugada chegar e ser o primeiro a ver os flocos descendo por invisíveis fios do céu, para repousar nos trilhos. Neste espetáculo oculto na noite, apenas o frio quase denunciava o que o Tempo e os floquinhos estavam formando à surdina, pois o vento batia nas vidraças das casas como que a criança que deseja dedurar o colega que está aprontando. Ao acordar, todos os olhos humanos – principalmente os olhares desnudos das crianças – viam o Tempo em forma de floco. Ele se vestia de branco para encenar a peça invernal formada no metálico, como uma surpresa dada aos inocentes após uma madrugada fria. Ele fazia isso para passar o próprio tempo.

Este senhor sem face também já viu a morte centenas de vezes, mas insiste em tentar esquecê-la. Ele se enfia profundamente nos trilhos para não pensar se ele possuía alguma responsabilidade naquelas despedidas. Para afastar maus pensamentos, ele vive nos trilhos dos trens para ver os gestos mais poéticos, a constante do carinho humano: os abraços que repousam nas plataformas, os beijos e choros, as malas que se arrastam por mãos solitárias prestes a mudar de vidas.

Junto ao Tempo estão os trilhos. E o Trem. Este pensa que em sua certeza de ser metálico, que por caminhar com o tempo aos seus pés, é imune à velhice. Como se os trilhos e a companhia do Tempo fossem garantia de

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imunidade. O Trem já está habituado a se tomar vivo por carnes vivas, de humanos que logo vão morrer. Mas ele, Trem, parece assim, permanecer. É só pura ilusão, talvez tão inocente quanto os jovens. O Trem pensa, na sua superfície rígida, que o invólucro em metal não oxida. E nem que podem aposentá-lo, sendo ao fim, um trem parado, com outros trens, que o governo não quer usar, apesar das verbas cobradas para isso.

Não difere muito este Trem, senhor um tanto rabugento por se prender às suas certezas metálicas, àqueles que passam por toda uma vida sustentando uma mesma crença, negando a incerteza e a dúvida. O Trem passou incólume pelas crises, nunca descarrilou e viu-se atolado no nada.

Se o Trem parece esta constante que circula todo o mundo, o Tempo habita de outra forma. Ele gruda nas fissuras das malas e se mostra ao viajante que para na estrada a fim de respirar. Nesta outra possibilidade de vida, no intervalo onde nada vive e só os carros passam e o café aquece, o Tempo acompanha o viajante para lembrá-lo de que algo foi deixado para trás e que a expectativa é sua matéria mais incontrolável, nervosa, fugidia.

Tudo isso o Tempo contempla. Na mala, o Tempo cultiva a simplicidade dos pequenos objetos que viram o restante de mundo que o viajante carrega. São partículas de mundos desconexos que ganham sentido apenas pelo viajante. Não há muito naquela mala, mas há o necessário. A mente posicionada no tempo se esquece das roupas que deixou no outro país, e a impressão dos sorrisos dos familiares se torna urgente, com a vontade de destruir a sensação de que tudo parece um sonho. O rosto é tão fugidio quanto as luzes que perpassam o vagão, e a mente se esforça para, assim, recompor as imagens da família. Pois, no fim, ser viajante é contemplar o Tempo cru em

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suas próprias fissuras: a mente busca recuperar os detalhes dos rostos, a textura do pelo do cachorro, os cheiros, a realidade.

O Tempo é responsável por fazer destas memórias, em estradas, serem grandes peças reavivadas. Pessoas viram personagens nesta tentativa de re-ensaiar o passado. Tudo parece frágil, porque está distante. E, mesmo assim, parece verdadeiro. Porque é o Tempo quem tira seu manto e reveste a memória de veracidade, com o carinho e as sensações do viajante que rememora. Na estrada são feitas grandes peças teatrais em frente ao concreto, em frente às janelas. E o público só tem dois seres assistindo, viajante e Tempo.

Por isso, o Tempo é amorfo. Mora em todos os cantos e em todos os objetos. Porém, depende do segundo em que ocorre o encontro dos olhos humanos, da epifania, do estranhamento. Ele precisa que lhe digam o quão bizarra e incerta é a sua moradia. O Tempo precisa que o homem avance sobre ele, com quase violência, para haver, então, o espanto. O abrir da cortina, a surpresa no espelho. O choque do encanto que revela onde o Tempo mora e que aquele pedacinho de segundo logo se esvai. O Tempo precisa que o homem lance a revolta e o amor ao mesmo tempo, pois é assim que ambos se encaram, como um soldado que visualiza a própria morte no último gesto de batalha.

O Trem, por sua vez, pouco sabe disso. Acostumou-se às rotas, aos humanos que lhe parecem todos iguais. Às vezes, em algum descanso oportuno, ele se deixa olhar para além da sua trilha. E tudo soa estranho, como um mundo ao qual nunca olhou, de fato. Tão ocupado com as vagas, os quilômetros e a ansiedade em chegar e cumprir mais uma rota, alimenta o

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sonho de, no fim, se aposentar como funcionário exemplar que mais deu voltas. Logo o sonho dá lugar a uma pergunta, se há vida além dos trilhos, mas ela se esvai nas paredes de metal.

Nestes raros devaneios que o Trem possui, e dos quais logo se livra, o silêncio do vagão denuncia a presença do Tempo. E este deixa que o sintam. Principalmente quando há música como companheira do viajante que olha pela janela e presencia o espetáculo do mundo, o qual ele, o Tempo, gosta de produzir desde sempre. Em segredo, a música se encaixa misteriosamente ao deslizar do trem e, tais cenas produzidas como slides oriundos de uma lanterna mágica, apontam para o Tempo que dorme nos trilhos.

Se abrirmos bem os olhos, ele reside lá, na transição que se assemelha ao nada da estrada em que tudo é justaposto, cidade e campo, com pássaros que passeiam no azul, cavalos e vacas ressonantes, corvos gritantes. Elementos figurativos que ganham protagonismo em suas cenas isoladas, como um casal de pelicanos que voam ao som de Dream a little dream of me. Isso é possível de acontecer na reunião zombeteira do Tempo. É no tédio da passagem entre um cenário forjado em ferro, a incerteza das nuvens e a cena despertada, que vemos as mãos enrugadas do Tempo, em eterno aceno dos trilhos.

Em determinado segundo da vida, quando nada parece acontecer, é que o Tempo ascende dos trilhos. Aproxima-se, na forma da neblina branca, e envolve o trem, naquele frio espantoso das montanhas, quando os viajantes sentem a morte de perto, e a neblina cega. Nesta golfada de ar, onde morte e vida se suspendem em forma de pintura branca, é que o Tempo se mostra

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nu. Ele se aproxima da vidraça. Viajante atento ou, finalmente o Trem tirado de sua comodidade cinza, contempla a crueza do mestre. Existindo nas fissuras, nos telhados de neve e na casa e no corpo do viajante que retorna, o Tempo sempre se abriga esperando o grande instante em que tocará o nosso rosto com sua mão enrugada. Já sem a mortalha costumeira, é na neblina que ele compõe seu grande espetáculo. Gruda no metal do Trem espantado com a grandiosidade de um mundo que existe sem ele. Gruda na pele de mais um humano que entende a proximidade da morte. E nos reveste, com a semelhança de um ser comum, e vive na nossa carne e em todo o mundo até o fim de seu próprio tempo e o início de seu cansaço.

Referências

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