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Vista do DIREITO À VIDA: A RELATIVIZAÇÃO DO CRIME DE ABORTO E O ENFOQUE CONSTITUCIONAL DE RONALD DWORKIN

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Revista Processus de Estudos de Gestão, Jurídicos e Financeiros ISSN: 2237-2342 (impresso) L-ISSN: 2178-2008 (on-line) Ano XI, Vol. XI, n.40, jan./jun., 2020. Tramitação editorial:

Data de submissão: 30/01/2020. Data de reformulação: 15/02/2020. Data de aceite definitivo: 30/03/2020. Data de publicação: 30/04/2020. Editor-chefe: Jonas Rodrigo Gonçalves

DIREITO À VIDA: A RELATIVIZAÇÃO DO CRIME DE ABORTO E O ENFOQUE

CONSTITUCIONAL DE RONALD DWORKIN1

Right to life: relativizing abortion crime and Ronald Dworkin's constitutional focus

Ingrid de Sousa Andrade1

Jonas Rodrigo Gonçalves2

Caroline Pereira Gurgel3

Resumo

O presente artigo aborda a discussão sobre o direito à vida: a relativização do crime de aborto e o enfoque constitucional de Ronald Dworkin. Considerando as crenças sociais, bem como os valores atribuídos moralmente acerca do tema, levantou-se o seguinte questionamento: como o enfoque constitucional de Dworkin pode justificar a relativização do crime de aborto? Nessa perspectiva, cogitaram-se as seguintes hipóteses: “pensamento derivativo e independente” e “a interpretação constitucional

1 Graduanda em Direito pela Faculdade Processus; Pós-graduada em Gestão Educacional; Pedagoga

Licenciada pela Universidade de Brasília; Servidora pública, ocupante do cargo de Técnica em Assuntos Educacionais da Fundação Universidade de Brasília.

2 Doutorando em Psicologia; Mestre em Ciência Política; Licenciado em Filosofia e Letras (Português

e Inglês); Especialista em Didática do Ensino Superior em EAD, Docência no Ensino Superior, Formação em EAD, Revisão de Texto, Agronegócio e Gestão Ambiental. Professor das faculdades Processus, Unip, Facesa, CNA. Escritor (autor de 61 livros didáticos). Revisor. Editor.

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e as dimensões da adequação e da justiça com base em Dworkin”. A partir dessas questões, este trabalho teve como objetivo geral analisar a relativização do crime de aborto e, como objetivos específicos, compreender juridicamente o conceito do direito fundamental à vida, identificar por meio da jurisprudência e do ordenamento jurídico brasileiro quais as circunstâncias que permitem a prática do aborto e debater as mudanças valorativas na sociedade que determinam as alterações legislativas e jurisprudenciais a respeito do tema. Pode-se dizer que o aborto vem sendo reconhecido como um problema de saúde pública, sendo parte de uma realidade social, uma vez que milhares de mulheres em situações de risco, expostas às mais variáveis consequências físicas e psicológicas, abortam no Brasil. Este trabalho é de suma importância devido a uma perspectiva individual e coletiva, na medida em que aborda a discussão principal da prática do aborto frente o estudo das leis, dos dogmas, das controvérsias de nossa sociedade, do direito fundamental à vida e dos desdobramentos dessa conduta para o direito e os dias atuais. A pesquisa caracteriza-se como qualitativa teórica desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: 1. Aborto 2. Pensamento independente 3. Pensamento derivativo 4. Direitos sexuais e reprodutivos 5. Liberdade.

Abstract

This article discusses the discussion on the right to life: the relativization of abortion crime and the constitutional approach of Ronald Dworkin. Considering the social beliefs, as well as the morally attributed values on the subject, the following question was raised: How can Dworkin's constitutional approach justify the relativization of abortion crime? From this perspective, the following hypotheses were considered: “derivative and independent thinking” and “the constitutional interpretation and dimensions of adequacy and justice based on Dworkin”. Based on these questions, this paper aimed to analyze the relativization of abortion crime and, as specific objectives, to legally understand the concept of the fundamental right to life, to identify, through Brazilian jurisprudence and legal order, the circumstances that allow the practice of abortion. abortion and discuss the value changes in society that determine the legislative and jurisprudential changes on the subject. It can be said that abortion has been recognized as a public health problem and is part of a social reality, since thousands of women at risk, exposed to the most variable physical and psychological consequences, abort in Brazil. This work is extremely important due to an individual and collective perspective, as it addresses the main discussion of the practice of abortion against the study of the laws, dogmas, controversies of our society, the fundamental right to life and the consequences of this. Conduct to the law and the present day. The research is characterized as theoretical qualitative developed through bibliographic research.

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Keywords: 1. Abortion 2. Independent thinking 3. Derivative thinking 4. Sexual and reproductive rights 5. Freedom.

INTRODUÇÃO

A delimitação do ponto a partir do qual a vida tem seu início transcende a esfera jurídica e tem espaço nos campos como o biológico, o sociológico e o religioso, de tal modo a justificar a ideia de relativização. Nesse contexto, a temática do aborto surge como um eventual problema. Assim, passa-se a classificar, sob aspectos jurídicos e sociais, as hipóteses do crime de aborto, a luz da legislação brasileira, bem como as circunstâncias que permitam a sua prática sem constituição de crime, conforme previsto no Código Penal brasileiro e jurisprudência da Suprema Corte.

Ronald Dworkin questiona em Domínio da Vida: aborto, eutanásia e

liberdades individuais a existência ou não de direitos individuais inerentes ao feto.

Para ele, existem dois argumentos básicos que servem como parâmetro de posicionamentos contrários ao aborto. Aqueles que acreditam na existência dos direitos individuais dos nascituros possuem um pensamento que o autor denomina “derivativo”. Por outro lado, aqueles que compreendem o direito à vida como inviolável e de valor intrínseco são os que possuem o pensamento “independente”. (DWORKIN, 2003, p.13).

Nesse sentido, este estudo se propõe a responder ao seguinte questionamento: como o enfoque constitucional de Ronald Dworkin pode justificar a relativização do crime de aborto? Desta maneira, com base nos pensamentos derivativo e independente, são apresentados os argumentos contraditórios da sociedade e a viabilização do debate sobre a interferência estatal ou não diante das escolhas individuais.

A prática do aborto tipificada pelo Código Penal brasileiro entre os artigos 124 e 128 trata-se, especificamente, de um crime contra a vida. No entanto, é discutível, a nível mundial, a questão relativa ao tratamento jurídico que deve ser conferida ao aborto, despertando polêmicas intensas e até passionais, pondo em campos opostos os defensores do direito à escolha da mulher e os que pugnam pelo direito à vida do nascituro. (BRASIL, 1940).

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Dessa forma, as hipóteses que levantam frente ao problema em questão se traduzem em “pensamento derivativo e independente” e “a interpretação constitucional e as dimensões da adequação e da justiça”. (DWORKIN, 2003, p.13).

A constituição deve ser interpretada com base em duas dimensões principais, quais sejam, da adequação e da justiça. Tal análise refere-se em conceber o processo interpretativo do direito e sua aplicação nas decisões judiciais, de maneira que o sistema judiciário possa oferecer uma resposta justa e legítima às lides, utilizando em sua melhor luz as leis e os princípios que permeiam uma comunidade de direito. (DWORKIN, 2003, p. 81.)

Este estudo apresenta como objetivo geral analisar a relativização do crime de aborto e o enfoque constitucional de Ronald Dworkin. Para o referido jurista, a interpretação construtiva acerca de tal análise poderá garantir para um determinado caso uma solução mais justa, na medida em que a centralidade dos direitos fundamentais deve agir como condição possibilitadora da liberdade e democracia.

Os objetivos específicos se traduzem em compreender juridicamente o conceito do direito fundamental à vida, identificar por meio da jurisprudência e do ordenamento jurídico brasileiro, quais as circunstâncias que permitem a prática do aborto e debater sobre as mudanças valorativas na sociedade que determinam as alterações legislativas e jurisprudenciais a respeito do tema.

Dworkin analisa que o direito à vida, como uma garantia constitucional, deverá ser pautado a partir do momento em que o sujeito adquire a consciência de si e de sua existência. No entanto, conforme o ordenamento jurídico brasileiro, o crime de aborto está tipificado nos artigos 124, 125, 127 e 128 do Código Penal, tendo como pressupostos a discussão sobre a violação dos direitos das mulheres, ao cercear a sua liberdade de disposição do próprio corpo, e as mudanças valorativas que precisam ser estabelecidas por parte do Estado que abarca o papel significativo de garantir, primordialmente aos seus cidadãos, o direito a uma vida digna.

Dessa forma, a principal contribuição dessa pesquisa se traduz amplamente em discutir a temática do aborto sob uma perspectiva teórica e reflexiva, de modo a apresentar os caminhos que levam a uma polêmica pauta de debates, sobretudo, a partir da obra o domínio da vida do jurista norte-americano Ronald Dworkin.

A criminalização do aborto tem produzido como principal consequência, ao longo dos anos, a exposição da saúde e da vida das mulheres em idade fértil,

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sobretudo as mais pobres, a riscos gravíssimos, que poderiam ser evitados por meio de uma política pública mais racional. Dessa forma, a legislação em vigor não “salva” a vida potencial de fetos e embriões, mas antes retira a vida e compromete a saúde de milhares de mulheres.

Ademais, atualmente não há como pensar no tema da interrupção da gravidez sem considerar o direito à autonomia reprodutiva da mulher, pois embora essa autonomia não seja absoluta, não pode ser negligenciada na busca da solução mais justa e adequada para a problemática do aborto, seja sob o prisma moral, seja sob a perspectiva estritamente jurídica.

Dessa forma, a revisão da legislação sobre aborto, elaborada sem qualquer atenção em relação aos direitos humanos básicos da mulher, muito mais do que uma mera opção política do legislador, passa a torna-se um verdadeiro imperativo constitucional.

Como método para este trabalho, será utilizado o qualitativo, baseando-se em doutrinadores, jurisprudência e na legislação relevante que abrange os aspectos do tema. Serão feitas pesquisas em diversos livros de distintos autores, em bibliotecas e acervo eletrônico, em especial, artigos científicos e decisões judiciais com relevante repercussão na área jurídica. Como principal fonte desse artigo, serão apontadas a doutrina, jurisprudência e legislação específica que aborde o assunto. (GONÇALVES, 2019, p. 43)

Por fim, este trabalho será fundamentado em uma pesquisa bibliográfica com revisão norteada no tema da relativização do crime de aborto, visando demonstrar os aspectos e fundamentos constitucionais de vários autores, em especial, de Ronald Dworkin, sendo este um expoente acerca da relevância do tema.

DIREITO À VIDA: A RELATIVIZAÇÃO DO CRIME DE ABORTO E O ENFOQUE CONSTITUCIONAL DE RONALD DWORKIN

Ronald Dworkin questiona em Domínio da Vida: Aborto, eutanásia e

liberdades individuais a existência ou não de direitos inerentes ao feto. Para ele,

existem dois argumentos básicos que servem como parâmetro de posicionamentos contrários ao aborto. Aqueles que acreditam na existência dos direitos individuais dos nascituros possuem um pensamento que o autor denomina como “derivativo” e

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aqueles que compreendem o direito à vida como inviolável e de valor intrínseco são os que possuem o pensamento “independente”. (DWORKIN, 2003, p.13)

O autor critica as posições mais conservadoras, pois demonstra que poucos acreditam que o feto seja uma pessoa com direitos e interesses, ou seja, ele deixa claro que a maior parte das pessoas pensa de forma independente. Nessa linha de entendimento, o aborto seria errado por desconsiderar e insultar o valor intrínseco e sagrado de qualquer estágio ou forma de vida humana. Dessa forma, tal objeção é chamada de independente, precisamente por não depender de nenhum interesse ou direito em particular, admitindo que a vida seja inviolável.

Essas duas objeções podem ser problematizadas nos seguintes termos: começando-se com a segunda objeção, a dificuldade inicial em aceitá-la reside no próprio radicalismo do seu argumento, a tal ponto que levantamento estatístico mostrado pelo autor revela que, nos Estados Unidos, apenas 10% dos entrevistados em pesquisa Time/CNN, realizada em agosto de 1992, disseram que o aborto deve ser ilegal em qualquer circunstância. Com efeito, caso se considere o contexto brasileiro, tal argumento é ainda mais restritivo e politicamente conservador que a própria legislação penal sobre o tema, vez que esta ainda permite casos de aborto em algumas situações, tais como risco de vida para a mãe ou gravidez que tenha sido fruto de estupro. (DWORKIN, 2003, p.16).

Ainda nessa linha de raciocínio, se toda vida humana, inclusive aquela de quem virá a se tornar um ser humano, é incondicionalmente intocável, institutos como o da legítima defesa, por exemplo, acarretariam uma contradição lógica na medida em que não se pode tirar a vida de outrem para a promoção da própria defesa, vez que esta é sagrada.

Por essas razões, resulta mais proveitosa a discussão a respeito da primeira objeção, inclusive por ser ela a que, majoritariamente, é levada em consideração ao tratar do aborto e os direitos e interesses envolvidos na sua regulamentação, proibição ou permissão.

Segundo Dworkin, o aspecto fundamental a ser considerado neste caso, deve adentrar ao mérito da existência ou não de alguma forma de consciência, no sentido de algum tipo de vida mental e de vida física, o que prevalece como discussão em sua obra por meio de dados mais concretos.

Para Dworkin, a Constituição está estruturada, fundamentalmente, em princípios e não em regras precisas e textualmente exaustivas, como também é o

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caso da Constituição brasileira (quando trata-se dos direitos individuais, coletivos, difusos, políticos, culturais e econômicos, por exemplo), embora esta também possua regras. Ocorre que, ao se tratar de princípios, a precisão dos termos da lei que informam seu conteúdo deve ceder espaço às concepções valorativas que apontem as razões dos princípios para cada caso específico.

Nos termos de Dworkin, qualquer interpretação da Constituição deve ser procedida e testada com base em duas dimensões principais: a primeira delas é a da adequação, segundo a qual uma dada interpretação constitucional deve ser rejeitada se as práticas jurídicas concretas forem totalmente incompatíveis com os princípios jurídicos que tal interpretação recomenda. Isto equivale dizer que o ponto de apoio da correta interpretação deve estar fundado na prática jurídica real. A segunda dimensão corresponde a da justiça: fato este quando duas concepções diferentes sobre a melhor interpretação de certo dispositivo constitucional passarem no teste de adequação, já mencionado, deve-se dar preferência àqueles cujos princípios parecem refletir melhor os direitos e deveres morais das pessoas, pois a Constituição é uma afirmação de ideais morais abstratos, os quais cada geração deve interpretar por si mesma, independentemente da vontade originária e descontextualizada de cada legislador constituinte. (DWORKIN, 2003, p.11).

Por essa razão, expressões tais como "liberdade", "crueldade", "autodeterminação" ou "igualdade", consideradas em abstrato, tornam-se por demais amplas. Quando estas expressões se consideram no seu sentido literal, segundo Dworkin, assumem o papel de que o governo trate a todos os que se encontram sob o seu domínio, com igual consideração e respeito, o que equivale a não infringir as suas liberdades mais básicas.

Assim, a vida humana deve ser protegida constitucionalmente como direito fundamental, mas, de igual forma, os direitos e garantias constitucionais dentro de uma visão estrutural e pragmática, devem proteger o direito à autonomia procriadora como decorrência mais elementar dos direitos de liberdade.

Direito à vida e à dignidade humana

A legislação brasileira tutela a proteção desde o momento da concepção ao garantir os direitos do nascituro. No Código Civil brasileiro em seu art. 2°: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. (BRASIL, 2002). A tutela a vida

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se estende até a morte do indivíduo, que em regra deverá ocorrer por causas naturais, com a proibição da vingança privada, do aborto, da pena de morte, e da não permissão de realização de eutanásia.

O Supremo Tribunal Federal no ano de 2016 publicou o Informativo 826 que trata do direito à saúde como um direito indissociável ao direito à vida, assegurando por meio de políticas públicas medidas para prevenção de doenças, recuperação da saúde, agravos e redução dos riscos de forma universal e igualitária.

O nascimento com vida também é a marca do início dos direitos das pessoas físicas, entretanto, observa-se que a lei também garante proteção ao nascituro e natimorto. Nascituro é o ser que foi concebido, mas que ainda não nasceu; já o natimorto é aquele que nasceu morto. O nascituro titulariza os direitos da personalidade e disciplina que esta proteção deve alcançar o natimorto, que passa também a ter direitos como nome, imagem e sepultura.

Nesse sentido, a Constituição Federal destaca o direito à vida, tendo o Estado os papéis de assegurar ao indivíduo o direito de continuar vivo e de se ter vida digna quanto à sua subsistência. (MORAES, 2000, p. 62).

O conceito constitucional de vida abrange tanto a vida das pessoas quanto a vida intrauterina, entretanto, há uma proteção diferente entre uma e outra, principalmente no que se refere a colisão de direitos, como os direitos da progenitora e a proteção dada a vida intrauterina, até porque alguns meios de proteção direcionados a vida humana, quando direcionada a vida intrauterina, podem ser inadequados ou excessivos. Observa-se que a proteção a vida humana intrauterina vai aumentando conforme evolui a gestação, o que pode ser observado, por exemplo, no Código Penal, nas penas previstas para o aborto, conforme poderão ser observadas na sequência deste estudo.

O direito à vida pode sofrer restrições no caso de colisão com outros direitos fundamentais, não se podendo afirmar a prevalência de um ou outro direito quando do conflito juridicamente tutelado. No caso de colisão de direitos fundamentais deve-se buscar a interpretação da norma, como no caso do próprio texto Constitucional em que há a previsão da pena de morte em casos de guerra declarada.

A Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito, o qual visa assegurar a todos os brasileiros o exercício dos direitos sociais e individuais, tendo como valores supremos a liberdade, a segurança, o bem-estar, a igualdade, o desenvolvimento e a justiça, a fim de que se tenha uma sociedade

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fraterna e justa. Estabelece em seu art. 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida. O direito à vida, portanto, torna-se elementar, podendo ser considerado como o mais fundamental dentre os direitos fundamentais, isso porque sem ele não há como usufruir dos outros direitos.

Nesse sentido, ressaltam-se as contradições que podem ocorrer na proteção da mulher e no direito à vida do feto, o que por vezes leva a falta de garantias de tutelas de direitos como a autonomia reprodutiva, privacidade e igualdade de gênero da genitora, sopesando a proteção da vida embrionária. Os que defendem o direito à vida do embrião em todas as circunstâncias acabam por ignorar os aspectos atinentes à vida da mulher.

O direito à vida já é por si só um tema polêmico no mundo contemporâneo, pois qualquer iniciativa que vier a restringi-lo, poderá imediatamente tornar-se uma questão polêmica e controversa em sociedade. Basta analisarmos os temas que tratem sobre pena de morte, aborto e permissão da eutanásia para valorar a afirmação anterior. (BEDIN, 2002, p. 44).

Assim, o direito à vida possui uma íntima ligação com a dignidade, ou poderia dizer ainda, a plenitude da vida. Isto significa que não se trata apenas do direito de sobreviver, mas de viver dignamente. Dessa forma, o direito à vida pode não ter utilidade se o direito à liberdade não for assegurado a todos os cidadãos, visto que uma vida sem liberdade não é uma vida digna.

Como bem leciona Sarlet, o direito à vida abrange amplamente os conceitos de existência corporal, física e biológica, o que pressupõe a utilização de todos os direitos fundamentais. O que se refere aqui, portanto, à vida individual e não apenas à vida humana em geral. (SARLET, 2002, p. 158).

A concepção atual sobre os direitos humanos realça a dignidade como fundamento, tanto dos direitos humanos quanto do próprio sistema jurídico, sendo que todos os órgãos, funções e atividades estatais estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa, atribuindo-lhes um dever de respeito e proteção, o qual se exprime na obrigação estatal de proteção à dignidade humana.

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz em seu preâmbulo ênfase a proteção à dignidade da pessoa humana, considerando o reconhecimento da dignidade como inerente a todos os membros da família e dos direitos iguais e inalienáveis para a promoção da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

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A dignidade da pessoa torna-se o direito fundamental mais fortemente marcado por uma visão ideológica e política, pois os preceitos da dignidade do ser humano perpassam os enraizamentos religiosos, filosóficos e históricos e geram a dependência de uma situação global civilizacional e cultural de uma sociedade. (SARLET, 2002, p. 159).

Por isso, torna-se imprescindível dar tratamento adequado aos instrumentos de efetivação dos direitos que realmente garantem a dignidade da pessoa, cuja preocupação tem a ver com o ser humano no seu valor existencial e não no seu valor patrimonial, pois sem a dignidade o ser humano não vive, não convive e não sobrevive.

Aborto

Um dos crimes contra a vida previstos na legislação brasileira que gera uma quebra de paradigmas é o aborto. A prática do aborto tipificada pelo Código Penal brasileiro, entre os artigos 124 e 128, trata-se especificamente de um crime contra a vida.

Dessa forma, o aborto é conceituado como sendo a interrupção do processo de gravidez, havendo a eliminação da vida humana intrauterina, uma vez que já tendo iniciado o parto, trata-se de infanticídio ou homicídio. (CAPEZ, 2016, p. 236).

O significado de aborto se caracteriza por matar deliberadamente um embrião humano em formação. Nessa perspectiva, promove-se a discussão a partir da reflexão de dois pensamentos principais: o derivativo e o independente. O primeiro retrata as pessoas cujo entendimento é o de que o feto, desde a concepção, é um sujeito com direitos individuais e, dessa forma, ninguém poderia privá-lo do direito à vida. Por outro lado, o segundo trabalha o conceito de que a vida tem um valor sagrado, ou seja, é um direito fundamental que deve ser respeitado e inviolável. Dessa forma, ambos os pensamentos aparecem com o propósito de enfatizar as duas principais justificativas da sociedade para a não legalização da prática do aborto. (DWORKIN, 2003, p. 1).

Com base em tal teoria, leva-se em consideração a sensibilidade que o feto tem em sentir dor e prazer, mas discute-se, também, a contrariedade disposta no entendimento de que o feto teria seus próprios interesses antes de ter vida mental. (DWORKIN, 2003, p. 21)

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Ademais, o feto possui consciência da sensação de dor quando a genitora já se encontra em um avançado estado de gravidez, pois anteriormente a isso o cérebro ainda não possui o desenvolvimento suficientemente completo. Para que haja de fato a sensação de dor, deve haver a conexão entre o tálamo e o neocórtex (em desenvolvimento) do feto, o que deve ocorrer após a metade da gestação. Além do mais, a atividade elétrica do cérebro que se dá no tronco cerebral do feto poderá permiti-lo movimentos reflexos, fato este que só ocorrerá por volta do sétimo mês de gestação. (DWORKIN, 2003, p. 21).

Assim, para que se tenha o direito à vida como uma garantia constitucional, deverá o sujeito ter consciência de si e de sua existência, como sentir prazer, emoções, afeições, ter esperanças e expectativas ou decepcionar-se. Não há uma estimativa precisa do momento em que estas capacidades começariam a se desenvolver no ser humano, mas estima-se que não aconteceria antes da trigésima semana de idade gestacional. (DWORKIN, 2003, p.21).

No entanto, as leis que proíbem o aborto, na maioria dos países ocidentais, inclusive no Brasil, não possuem justificativa satisfatória em nenhuma das formas de pensamento já apresentadas, de modo a se verificar pontos contraditórios a partir do que está previsto na legislação brasileira sobre o tema, por exemplo.

O crime de aborto, no Código Penal atual, está previsto no Título I, Capítulo I, Dos Crimes Contra a Vida, nos artigos 124, 125, 127 e 128 que tratam, respectivamente, do autoaborto, aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante, aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante, forma qualificada do aborto e aborto necessário (consideradas exceções à criminalização do aborto).

O aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento refere-se à prática em que a gestante provoca em si mesma ou consente para que outra pessoa nela provoque. A pena é de detenção de um a três anos e encontra-se disciplinado no art. 124 do Código Penal. (BRASIL, 1940).

O aborto provocado por terceiro se dá quando há a provocação do aborto sem que haja consentimento da gestante. A pena é de reclusão de três a dez anos e encontra-se disciplinado no art. 125 do Código Penal. (BRASIL, 1940).

O art. 126 do Código Penal trata da provação do aborto quando há o consentimento da gestante, sendo a pena de reclusão de um a quatro anos conforme previsto no parágrafo único do referido artigo. Trata-se da possibilidade de

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aplicação da pena de reclusão de três a dez anos, nos casos em que a gestante é menor de quatorze anos, alienada ou débil mental ou se o consentimento dela houver sido obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. (BRASIL, 1940).

O artigo 127 do Código Penal trata-se da forma qualificada, em que há o aumento das penas supracitadas em um terço, nos casos em que por consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave. No caso do resultado morte, a pena é duplicada. (BRASIL, 1940).

O artigo 128 do Código Penal refere-se ao aborto praticado por médico, sendo que o profissional não será punido no caso de aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro, quando o aborto é precedido do consentimento da gestante, sendo ela incapaz do consentimento de seu representante legal. (BRASIL, 1940).

Além das hipóteses legais acima elencadas, existe a possibilidade de interrupção da gravidez quando se tratar de fetos anencéfalos, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF nº 54/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio. Na decisão, o STF entendeu que se trata de conduta atípica. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF, 2002).

A relativização do crime de aborto é também objeto de discussão a nível internacional, conforme menciona Miguel. Em Portugal, um país católico e tradicionalista, teve o aborto autorizado em 2009 nos seguintes casos: a pedido da genitora até 10 semanas de gravidez; em caso de estupro ou crime sexual até 16 semanas; por malformação do feto até 24 semanas, a qualquer tempo em casos em que haja risco de vida ou de saúde para mulher e em havendo fetos inviáveis. (MIGUEL, 2012, p. 669).

Na Cidade do México, em 2008, o aborto foi legalizado até os três meses de gestação. Também em 2008, no Uruguai, o Poder Legislativo aprovou a legalização do aborto sendo vetado pelo presidente Tabaré Vásquez. Na Itália, até 90 dias de gestação o aborto é legalizado desde o ano de 1978. (MIGUEL, 2012. p. 669).

Na Espanha, desde 1985, o aborto até 14 semanas de gravidez é legalizado, sendo que desde o ano de 2018 não é obrigatória a autorização dos pais das adolescentes de 16 a 18 anos que desejam efetuar o procedimento. (MIGUEL, 2012, p. 669).

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Ressalta-se, que todos os países mencionados são católicos, demonstrando uma coexistência entre uma população católica e o reconhecimento do direito ao aborto. Dessa forma, cai por terra o peso da Igreja Católica ser uma das principais motivações pela não autorização do aborto no Brasil. (MIGUEL, 2012, p. 669).

Conforme Dworkin, a Igreja Católica em seus ensinamentos condena o aborto, o uso de contraceptivos e do dispositivo Intrauterino (DIU), não havendo casos de exceção, como no caso de aborto decorrente de estupro, já que o feto é considerado como uma pessoa desde a concepção, o que justifica não se admitir exceções. (DWORKIN, 2003, p. 6).

Um famoso caso emblemático conhecido como Roe v. Wade, foi objeto de discussão nos Estados Unidos em 1973, em que a Suprema Corte norte-americana estabeleceu permitir o direito ao aborto como consequência do direito à privacidade protegido pela Emenda n. 14 à Constituição. A decisão declarou a inconstitucionalidade da lei estadual do Texas e conferiu as mulheres uma total autonomia para interromper a gravidez durante o 1º trimestre de gestação. Admitiu-se ainda, a existência de alguns critérios de limitação aos abortos praticados nos 2º e 3º trimestres de gestação. De uma forma geral, pode-se dizer que a decisão da Suprema Corte afetou quase a totalidade das Leis estaduais que disciplinavam a prática do aborto nos Estados Unidos.

Ainda sobre o famoso caso em questão, nos Estados Unidos houve a descriminalização do aborto no país. A Corte Americana decidiu que não se pode atribuir personalidade ao feto. Frente a isso, o entendimento é o de que a vida possui um valor sagrado e valioso. Assim, a proteção que se busca com a proibição do aborto não se refere ao feto, em específico, mas a sacralidade da vida humana, mesmo quando ela ainda se trata apenas de uma possibilidade. (DWORKIN, 2003, p. 7).

Observa-se que as referidas nações, assim como o Brasil, evoluíram o pensamento jurídico por meio do sistema romano-germânico, no entanto, revelam uma tendência mais liberal quanto à interrupção da gravidez.

Nesse sentido, os conservadores em matéria de aborto permitem exceções que causam uma espécie de contraditoriedade. Para alguns deles, por exemplo, torna-se moralmente permissível a prática do aborto não apenas para salvar a vida da mãe, mas também quando a gravidez é resultado de estupro ou incesto. Desse

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modo, quanto mais são admitidas tais exceções, mais claras as controvérsias de que o feto seja uma pessoa com direito à vida. (DWORKIN, 2003, p. 43).

Assim, a proibição do aborto no Brasil, por exemplo, se tomasse como justificativa o modo de pensamento "derivativo", encontraria óbice significativo na liberação do aborto em casos de gravidez resultante de estupro. Nesse contexto, parece óbvio que nossa lei não se enquadra ao referido tipo de pensamento, até porque, se assim o fosse, admitiria que o direito da mãe de não conceber seu filho, unicamente porque foi gerado por estupro, é maior do que o direito à vida do feto. O direito à vida do feto, no pensamento "derivativo" é supremo, havendo, inclusive, contradição na decisão de aborto nos casos de risco de vida da mãe, visto que não há como valorar se a vida da mãe é tão mais importante que a do filho, pois em alguns casos de risco, poderá o feto sobreviver e a mãe não.

Por outro lado, se a lei brasileira de proibição do aborto fosse justificada pelo modo de pensamento “independente”, contrariaria a garantia constitucional de liberdade religiosa, pois como um Estado, que se diz laico, poderá proibir alguma atitude de seus cidadãos ao considerar uma justificativa baseada em fundamento religioso? Há flagrante conflito nesta pretensão e o Estado, por conclusão óbvia, não poderá influenciar as escolhas de seus cidadãos com base em justificativas de cunho sagrado. Dessa forma, haveria verdadeira queda do direito de liberdade religiosa constitucionalmente assegurado.

A subordinação sexual das mulheres precisa se tornar um atributo central do debate quanto ao aborto, sendo a afirmação feminista mais fundamental. Na democracia, as convicções atreladas às controvérsias sobre o aborto possuem reflexos nas opiniões como indivíduos, nos grupos aos quais pertencem, nas restrições jurídicas sobre o aborto e as proferidas nos governos. (DWORKIN, 2003, p. 130).

Ademais, o autor entende que o feminismo tem uma preocupação com a vida humana ao mesmo tempo em que enaltece o direito à privacidade e a liberdade de escolha, tendo a mulher o direito de reconhecer-se soberana sobre o seu corpo, no que tange a procriação e os aspectos sociais. Esclarece o autor que por meio dos argumentos feministas se tem uma visão unidimensional em que as controvérsias que se referem ao aborto pertencem ao momento em que o feto torna-se pessoa. O feto é compreendido como uma criatura que possui importância moral, enfatizando a responsabilidade da mulher na tomada de decisão. (DWORKIN, 2003, p. 135).

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Para o autor, a vida deve ser vista de acordo com seu valor subjetivo e não como algo sagrado, devendo ser relativizada em situações específicas, como no caso de salvar a vida da gestante. Assim, propõe o seguinte questionamento de cunho filosófico: “a frustração de uma vida biológica, que desperdiça vida humana, será ainda assim justificada em alguns casos para que se evite frustrar uma contribuição humana a essa vida, ou às vidas de outras pessoas, o que seria um tipo diferente de desperdício?”. (DWORKIN, 2003, p. 117).

Pensando no conceito do que seria sagrado, o referido jurista afirma ainda que algo pode ser sagrado em razão de investimentos naturais ou de investimentos humanos, de maneira que os investimentos naturais seriam os produzidos por Deus ou pela natureza, e os humanos, aqueles criados pela ação humana, sendo que a adoção destes diferentes conceitos produz outros resultados no que se refere ao aborto. (DWORKIN, 2003, p. 125).

Há uma ingerência estatal do ponto em que se proíbe que mulheres possam dar continuidade ou interrompam a gestação iniciada em seu ventre. Para Dworkin, as leis que visam a proibição do aborto fazem com que o procedimento se torne mais caro e difícil de ser executado. Resta assim, uma violação dos direitos destas mulheres ao cercear a sua liberdade de disposição do próprio corpo e ao interferir na autonomia de poder decidir sobre a sua vida. Com isso, observa-se uma interferência por parte do estado na tutela à vida do feto ou embrião, em contrariedade aos direitos das gestantes, da sua dignidade humana e primordialmente do direito a uma vida digna. (DWORKIN, 2003, p. 143).

Assim, verifica-se que o valor da vida ganha sentidos distintos conforme se considere ou não a posição das mulheres e suas motivações, principalmente no que diz respeito ao direito de escolha envolvendo seus próprios corpos. O movimento feminista que defende a descriminalização, por exemplo, apresenta diferentes graus, indo desde os que aprovam o aborto em situações específicas, como o risco de morte da gestante, e chegando a um ápice quando o aborto poderia ser realizado a qualquer tempo, como no caso em que a genitora entende o nascimento da criança como não conveniente.

Miguel analisa em Macpherson, que a base para o acesso à cidadania está intimamente relacionada à ideia de propriedade de si mesmo. A partir da criminalização do aborto percebe-se a grave assimetria entre homens e mulheres do

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ponto em que se discute a imposição sofrida por estas quanto à limitação no manejo de seus próprios corpos. (MIGUEL, 2012, p. 662).

A discussão sobre a decisão e a autonomia das mulheres para interromper uma gravidez, não se restringe apenas ao aborto, mas abrange o princípio da laicidade do Estado, os espaços e as formas de sua regulação e o funcionamento da democracia em consonância com o respeito aos direitos individuais. (BIROLI, 2014, p. 42).

É dado um caráter político ao direito de abortar, uma vez que impacta na definição e diferenças dos direitos de cidadania entre homens e mulheres. (BIROLI, 2014, p. 44).

As convicções dos indivíduos sobre as discussões acerca do aborto refletem diretamente nas restrições jurídicas que são promulgadas por seus respectivos governos e não apenas em suas posições enquanto cidadãos e participantes de um grupo social. Dessa forma, a subordinação sexual das mulheres deve se tornar um atributo central do debate sobre o aborto no âmbito de uma afirmação feminista mais fundamental e característica. (DWORKIN, 2003, p. 77).

Ainda nesse entendimento, ressalta-se que há uma garantia desigual sobre o respeito às liberdades e aos direitos de todos, pois os únicos limites que a soberania popular possui de fato são aqueles vinculados à preservação das condições de seu próprio exercício. Para Miguel, não há que se falar em participação política democrática sem as liberdades de pensamento, de associação e de expressão para todos. (MIGUEL, 2012, p. 661).

Miguel propõe ainda uma análise com base em Macpherson, em que a tradição liberal e a propriedade de si mesmo são as bases indispensáveis para o acesso à cidadania. A propriedade de si mesmo dá acesso à propriedade privada, ao ingresso da cidadania política, ao ponto em que se separa o que é individual e o que é de propriedade comum da humanidade. (MIGUEL, 2012, p. 661).

Dessa forma, o dilema entre o princípio da preservação da vida do feto versus a autonomia reprodutiva da mulher deve ultrapassar o ponto de vista da moralidade e adentrar para aspectos de ordem jurídica e política. O que pressupõe viabilizar, de fato, o mesmo acesso às mulheres em espaços de cidadania e democracia.

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Direitos fundamentais das mulheres: direito à liberdade, à privacidade e à autonomia reprodutiva

A construção prática dos direitos reprodutivos surge a partir de um movimento de mulheres que foi incorporando em sua agenda um rol de direitos compreendidos como fundamentais em face das necessidades que emergiam dos novos contextos sociais e culturais. Os direitos reprodutivos só foram reconhecidos na década de 1980, depois de serem desenvolvidos pelo Movimento Internacional Feminista na década de 1970 decorrendo de debates como o aborto, a esterilização e contracepção. (VENTURA, 2009, p. 29).

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 foi um marco na garantia e promoção de direitos sexuais e reprodutivos de homens e mulheres. O referido pacto foi ratificado pelo Brasil em 1992 e com ele estendendo a proteção do direito à vida, igualdade no matrimônio, direitos de cidadania das mulheres, liberdade, entre outros. (VENTURA, 2009, p. 38).

Em 1970 houve um período marcado pela luta para a descriminalização do aborto e pelo acesso à contracepção, havendo reivindicações que envolviam os direitos reprodutivos centrados na autonomia corporal, o controle da própria fecundidade e atenção especial à saúde reprodutiva das mulheres. (CORRÊA, 2003, p. 29).

Os movimentos de direitos humanos não davam atenção às reivindicações de participação política, igualdade no trabalho, educação, aborto e sexualidade das mulheres. Tratavam tais questões, além de outras reivindicações, de forma secundária. No entanto, no ano de 2000, a Organização das Nações Unidas reconheceu a importância da promoção da igualdade entre homens e mulheres por meio do relatório de direitos humanos, compreendendo historicamente, a descriminação de mulheres e os impactos negativos para o crescimento econômico e social do país e do mundo. (CORRÊA, 2003, p. 29).

Com base nisso, percebe-se que a discussão acerca dos direitos reprodutivos, que fazem parte dos direitos humanos básicos e devem orientar as políticas relacionadas à população, tendem a avançar ao longo da história de uma sociedade.

Os pactos e as convenções de direitos humanos, bem como a lei constitucional brasileira, reconhecem a efetivação dos direitos reprodutivos e

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asseguram diretamente os direitos relativos à autonomia e autodeterminação das funções reprodutivas correspondentes às liberdades e aos direitos individuais. (VENTURA, 2009, p. 21).

Nesse sentindo, por meio de leis e políticas públicas que, por sua vez possuem o papel de estabelecer a equidade nas relações pessoais e sociais, a atual concepção de direitos reprodutivos não fica limitada à simples procriação humana, como forma de preservação da espécie, mas envolve uma realização conjunta dos direitos individuais e sociais referidos. (VENTURA, 2009, p. 22).

Frente a isso, verifica-se que há uma lesão aos direitos reprodutivos das mulheres em virtude de normas repressivas, uma vez que muitas delas recorrem às clínicas clandestinas para a realização de abortos sem qualquer condição básica de higiene e segurança. A vulnerabilidade social das mulheres diante de tal problemática torna-se comprovadamente um fator determinante para a demonstração da desigualdade social no Brasil, visto que as mulheres de melhor condição econômica têm acesso a abortos mais seguros, mesmo que clandestinos.

No âmbito jurídico, a relevância do tema chegou a ser apreciada no âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro, quando do julgamento do habeas corpus n. 124.306/RJ, na declaração de voto do ministro Luiz Roberto Barroso:

A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.

O ministro enfatizou ainda que:

Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?

No Habeas Corpus n. 84.025-6/RJ apreciado pelo STF, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, discutiu-se a autonomia reprodutiva versando sobre o aborto no caso em que uma gestante desejava interromper a gravidez de feto anencéfalo. O caso não chegou a ser julgado pelo fato do falecimento da criança antes mesmo da sessão de julgamento. Entretanto, o caso foi amplamente divulgado

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e no voto do então Ministro Luiz Roberto Barroso, os direitos reprodutivos foram discutidos na perspectiva dos direitos de liberdade e da autodeterminação pessoal, atrelado à afirmação de que o STF possui como papel a garantia do seu legítimo exercício de representação do estado democrático de direito.

Assim, embora presentes as normas legais, não há, satisfatoriamente, uma efetivação de garantia dos direitos das mulheres. Mesmo diante dos termos da Constituição Federal acerca dos direitos a igualdade, a liberdade e a dignidade humana, são perceptíveis a falta de garantia dos direitos e da liberdade reprodutiva às mulheres.

Nesse sentido, acredita-se que num Estado Democrático de Direito não deve haver espaços para imposições travestidas de lei para criminalizar uma conduta que difere das demais. A base para uma efetiva democracia deve ser pautada pela pluralidade e tolerância ao diferente, de maneira a respeitar os direitos individuais de cada pessoa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aborto como uma realidade social trata-se também de um tema político e não meramente moral baseado em regras dogmáticas de qualquer natureza. Problemas envolvendo o acesso ao aborto seguro e legal estão no âmago do direito fundamental da mulher à igualdade, à privacidade e à saúde mental e física, sendo essas pré-condições para a concretização de outros direitos e liberdades.

O aborto reconhecido como um problema de saúde pública trata-se de uma realidade social alarmante e precária do ponto de vista da falta de respeito aos direitos das mulheres neste país, sobretudo, as mais pobres. Salienta-se que, ao menos no Brasil, os dados referentes aos abortos realizados, bem como às mortes decorrentes de procedimentos clandestinos, são possivelmente subestimados, haja vista que tais pesquisas englobam dados oficiais captados junto à rede pública de saúde, que de forma geral atende pessoas de baixa renda.

O enfoque constitucional de Ronald Dworkin acerca do tema justificou a relativização do crime de aborto na medida em que se trabalhou os conceitos de pensamento derivativo e independente, em que para ele, aqueles que acreditam na existência dos direitos individuais dos nascituros possuem um pensamento

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denominado “derivativo” e aqueles que compreendem o direito à vida como inviolável e de valor intrínseco são os que possuem o pensamento “independente”.

Assim, o objetivo desta pesquisa foi analisar a relativização do crime de aborto e o enfoque constitucional dado por Ronald Dworkin e debater, principalmente, as mudanças valorativas na sociedade que determinam as alterações legislativas e jurisprudenciais a respeito do tema abordado.

A defesa do direito ao aborto no Brasil está ausente nas esferas políticas, pois aqueles que defendem a descriminalização pouco fortalecem o tema e não o colocam como uma prioridade. Dessa forma, espera-se que avanços aconteçam e que movimentos que lutam em prol dos direitos das mulheres estejam atentos ao compromisso com a liberdade.

Baseado nessas considerações, o presente estudo abordou a temática do aborto, especialmente em relação ao direito à escolha no campo das individualidades e a garantia dos direitos fundamentais da mulher, tais como: igualdade, autonomia e integridade física e psíquica da gestante e os seus direitos sexuais e reprodutivos.

Conclui-se assim, que é preciso dar prosseguimento ao processo de liberdade e igualdade, com ações efetivas que venham suprir a lacuna existente entre a teoria e a prática. É imprescindível diminuir o desnível que impera sobre a sociedade feminina nos dias de hoje e, para tanto, será necessária uma ação organizada e articulada que viabilize um amplo e profundo debate a respeito do aborto.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 maio. 2019.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 124306/RJ. Pacte. (s) : Rosemere Aparecida Ferreira e outros. Relator: Ministro Marco Aurélio. 29 de novembro de 2016.

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CAPEZ, Fernando. Código penal comentado / Fernando Capez e Stela Prado. – 7. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.

CORRÊA, S.; ÁVILA, M. B. Direitos sexuais e reprodutivos: pauta global e percursos brasileiros. In: SEXO & Vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Elza Berquó (org.). Unicamp, 2003. p.29.

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