O RADICALISMO ISLAMISTA NA PENÍNSULA IBÉRICA
A RECONQUISTA DO AL ANDALUS
JOÃO MANUEL NUNES HENRIQUES
Setembro, 2011
Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais,
realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Esteves Pereira e do Professor Doutor José Manuel Anes
À memória de meus pais.
À minha esposa Ana,
pelo muito alento transmitido, e em
reconhecimento pelas longas horas de ausência
dedicadas à realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor José Esteves Pereira, meu orientador, por, desde o primeiro
momento, se ter disponibilizado para me acompanhar nesta pequena aventura e pela
sua douta contribuição na elaboração deste trabalho.
Ao Professor Doutor José Manuel Anes, meu co‐orientador, pelo seu pronto
aconselhamento e permanente disponibilidade, factores que muito contribuíram para
o resultado final.
Aos Professores Doutores António de Castro Caeiro e Alan David Stoleroff, meus
particulares amigos, pelos seus generosos conselhos.
Ao Mestre António Nunes pela sua pronta ajuda e partilha de textos.
Ao Dr. Manuel Augusto Pechirra, Presidente do Instituto Luso‐Árabe para a
Cooperação, pelo seu permanente incentivo e genuína preocupação pela boa
condução deste trabalho.
Ao Sheik David Munir, da Mesquita Central de Lisboa, pela disponibilidade e
informação dispensada.
Ao Sheik Zabir, da Mesquita de Odivelas, pela sempre pronta ajuda, acompanhamento e patrocínio nas várias visitas a entidades islâmicas. E, também, pelas suas lições.
Ao Sheik Rachid Ismael, do Colégio Islâmico de Palmela, pela sua simpatia e
hospitalidade.
Ao Sheik Feisal, da Mesquita do Laranjeiro, pelo entusiasmo partilhado.
Ao Dr. Mário Matos pela partilha de informação.
E, ainda, a alguns amigos que de modo directo e generoso contribuíram para o
presente trabalho.
Bem‐hajam.
O RADICALISMO ISLAMISTA NA PENÍNSULA IBÉRICA
A RECONQUISTA DO AL ANDALUS
JOÃO MANUEL NUNES HENRIQUES
RESUMO
PALAVRAS‐CHAVE: Terrorismo, islamismo, jihad, Al Andalus, Al Qaeda, Informações.
Em plena Alta Idade Média, os territórios da Hispânia (Península Ibérica) foram alvo da
cobiça árabe‐muçulmana, aos quais dariam o nome de Al Andalus. Após décadas de
profundas transformações, a vida das populações peninsulares sofreu enormes
mudanças, vindo a beneficiar de um assinalável progresso em diferentes domínios. No entanto, a luta pela reconquista dos territórios ocupados manter‐se‐ia acesa até finais do século XV, altura em que, definitivamente, estes territórios regressam às mãos dos cristãos.
Volvidos cinco séculos, eis que surge uma nova ameaça islamista. Desta vez com o
firme propósito de reconquistar o Al Andalus e devolver‐lhe os gloriosos tempos
vividos sob a bandeira do Islão. Todavia, os mentores radicais que apontam para tal
objectivo vão mais longe nos seus desígnios: para eles, a reconquista dos territórios
outrora islamizados é tão‐somente o caminho para a reimplantação do Califado. Para o
efeito, recorrem ao que reclamam como legítimo: a Jihad Universal, através da qual
todos os infiéis serão submetidos.
ABSTRACT
KEYWORDS: Terrorism, Islamism, jihad, Al Andalus, Al Qaeda, Intelligence.
In the Early Middle Ages, the territories of Hispania (Iberian Peninsula) were the quest
of Arab‐Muslim pursuit, to which they attributed the name of Al Andalus. Following
decades of dramatic transformation, the life of the Iberian peoples suffered major
changes and benefited from significant progress in various fields. Nevertheless, the
struggle to regain these occupied territories would remain alive until the late fifteenth century, when these territories returned finally to Christians hands.
After five centuries, a new Islamist threat reemerged, this time with the firm intention of reconquering Al Andalus and bringing back the glorious days experienced under the banner of Islam. However, the radical advocates of this goal go further in their designs:
for them, the reconquest of the Muslim territories is merely a means the re‐
establishment of the Caliphate. To this end, they resort to what they consider
legitimate methods, namely: Universal Jihad, to wich all infidels will be submitted.
ÍNDICE
RESUMO ...v
ABSTRACT... vi
Metodologia e definição de objectivo...x
Pergunta inicial e formulação de hipóteses ...xi
Introdução...1
Capítulo 1 – O Al Andalus ...3
1.1. O período pré‐islâmico na Península Ibérica: O Reino Visigodo... 3
1.2. A invasão muçulmana da Península Ibérica e o nascimento do Al Andalus .. 4
1.3. A civilização do Al Andalus ... 6
Capítulo 2 – A Reconquista Cristã ...10
2.1. O início da revolta ... 10
2.2. As acções militares cristãs e o fim do domínio árabe... 11
Capítulo 3 – A comunidade islâmica na Península Ibérica ...15
3.1. A situação actual em Portugal ... 15
3.2. A situação actual em Espanha ... 17
Capítulo 4 – O terrorismo...20
4.1. Sobre os conceitos de terrorismo ... 22
4.1.1. Terrorismo religioso ... 22
4.1.2. Jihadismo ... 22
4.2. Possíveis razões sociopolíticas para o jihadismo ... 25
4.3. Bases conceptuais e princípios ideológicos do jihadismo ... 26
Capítulo 5 – As organizações jihadistas na Península Ibérica ...30
5.1. Antecedentes históricos do radicalismo islamista na Península Ibérica ... 30
5.1.1. Os Almorávidas e os Almóadas... 30
5.2. As origens contemporâneas do jihadismo na Península Ibérica ... 32
5.3. A actividade jihadista em Portugal ... 35
5.4. A actividade jihadista em Espanha ... 40
5.5. Características estruturais e organização ... 43
5.6. Recrutamento e liderança... 47
5.7. Financiamento ... 49
5.8. A interacção entre o terrorismo jihadista e o crime organizado... 49
5.9. As ligações ao terrorismo global... 54
Capítulo 6 – Al Qaeda ...56
6.1. Origens ... 56
6.2. Estratégia ... 59
6.3. Financiamento ... 62
6.4. Estrutura antes do 11 de Setembro... 65
6.5. Estrutura depois do 11 de Setembro... 67
6.6. Al Qaeda em Espanha ... 70
6.7. Objectivos globais da Al Qaeda... 73
6.7.1. A Reconquista do Al Andalus... 78
6.7.2. O Restabelecimento do Califado ... 81
Capítulo 7 – Evolução das organizações jihadistas...56
7.1. O novo terrorismo jihadista e as novas ameaças ... 82
7.1.1. O terrorismo suicida... 82
7.1.2. O terrorismo alimentar... 86
7.1.3. O terrorismo espontâneo e sem liderança... 88
7.1.4. A ameaça do ciberterrorismo... 88
7.1.5. As armas de destruição massiva... 90
7.2. As redes jihadistas e a Internet... 93
Capítulo 8 – Os atentados terroristas de 11 de Março de 2004, em Madrid...96
8.1. Introdução... 96
8.2. A origem... 98
8.3. A rede de Abu Dahdah ... 99
8.4. O Grupo Islâmico Combatente Marroquino ... 101
Capítulo 9 – Radicalismo islamista na Península Ibérica: As respostas ao jihadismo ...96
9.1. A evolução do jihadismo em Espanha depois de 11 de Março de 2004 ... 103
9.2. Tendências e lições aprendidas face à ameaça jihadista na Península Ibérica..107
9.3. A luta contra o financiamento do terrorismo... 110
9.4. Antiterrorismo e Contraterrorismo – Medidas adoptadas... 112
9.5. A cooperação internacional ... 117
9.6. Os Serviços de Informações e a luta contra o jihadismo em Portugal e
Espanha ... 123 Conclusões ...128 Referências Bibliográficas...146
O Radicalismo Islamista na Península Ibérica – A Reconquista do Al Andalus
Metodologia e definição de objectivo
Neste trabalho a pesquisa é essencialmente bibliográfica, com a utilização de livros e
artigos sobre o tema. O método será o de estudo de caso contextualizado, tentando
compreender o fenómeno do jihadismo na Peninsula Ibérica. Procurar‐se‐á localizar as suas raízes e identificar os grupos que representam este modo de intervenção junto da sociedade ibérica. Na expectativa de se obter informações adicionais sobre o modo de
funcionamento destes grupos recorrer‐se‐á necessariamente a diversas fontes
especializadas. Pretende‐se que esta recolha abra espaço a uma adequada
identificação das características estruturais, organização e modo de funcionamento
deste tipo de organizações para, finalmente, se passar ao estudo da sua evolução e
tendências.
Exposta a revisão de alguma literatura sobre o problema lançado, importa agora referir os moldes segundo os quais se deverá processar a investigação proposta. Deste modo, procederemos à análise de títulos de imprensa escrita portuguesa e espanhola.
Pergunta inicial e formulação de hipóteses
Face aos objectivos revelados pelo movimento islamista1 global, é intenção desta
investigação dar resposta à seguinte questão:
Espanha tem sido ao longo de décadas duramente castigada pelo terrorismo
separatista, ao qual se juntou, anos mais tarde o de natureza islamista. Para além
de uma história em comum, Portugal e Espanha partilham, igualmente, desde há
séculos, o mesmo espaço – a Península Ibérica –. Poderão estas realidades
desencadear um efeito de contágio que faça alastrar para o território português
os indesejados efeitos da radicalização existente no país vizinho? O que explica o
facto de Portugal ter sido, pelo menos até aos nossos dias, poupado ao
movimento islamista radical?
Como resposta são apresentadas as seguintes hipóteses:
A. Portugal está exposto ao efeito de contágio da radicalização islamista
existente em Espanha
B. Portugal não está exposto ao efeito de contágio da radicalização islamista
existente em Espanha
1
Neste trabalho serão referidos os termos “islamita” e “islamista”. O primeiro identifica o crente que professa o islamismo. Esta associado à fé. Trata-se, pois, de um crente no Islão. Já o segundo termo alude a um partidário de uma aplicação integrista do Islão, tanto no domínio político como social, sendo, neste caso, de matriz ideológica.
Introdução
Com o passar dos tempos, o esplendor da civilização do Al Andalus2 viria a converter‐
se numa verdadeira referência para o resto do mundo islâmico. A sua cultura atingiria
um elevado nível. O próprio árabe passaria a ser um idioma de culto. A cidade de
Córdoba tornar‐se‐ia num dos centros culturais mais importantes do mundo islâmico e
de toda a Europa. A Filosofia foi largamente difundida. Por seu turno, os diferentes
domínios da ciência conheceram momentos de grande desenvolvimento. O comércio
prosperou largamente.
A reconquista do território e da civilização do Al Andalus é, declaradamente, um dos
principais objectivos da Al Qaeda. Para os jihadistas3, a perda do Al Andalus é
considerada como a dramática viragem histórica a partir da qual se inicia a decadência
do Islão. É por isso que a sua recuperação se torna numa das suas prioridades. A
própria Umma4 divulga mapas nos quais grande parte da Península Ibérica – Portugal e
Espanha – continua a ser considerada Dar al‐Islam5. O objectivo final do movimento é
o de expandir o território islâmico por todo o globo, através da criação de um califado
mundial baseado na Sharia6. Para concretizar esta ameaça são já muitos os grupos
jihadistas ligados àquele movimento instalados em território europeu e,
particularmente, em Espanha. Na verdade, para os sectores muçulmanos mais radicais a reconquista de todos os territórios que alguma vez estiveram sob o domínio do Islão constitui um dos seus eixos ideológicos centrais. O Al Andalus é mesmo considerado o mais emblemático de todos os territórios perdidos.
2 Nome dado à Península Ibérica pelos invasores muçulmanos no século VIII.
3 Combatente da Jihad. O termo Jihad significa, literalmente, luta ou esforço. Quer dizer, igualmente,
Guerra Legal ou Guerra Santa contra os infiéis, de acordo a Sharia. Esta segunda acepção é a mais
correntemente empregue pelos islamistas radicais ou jihadistas.
4 Comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo.
5 Terra do Islão.
6 Lei Islâmica; a Lei de Deus.
Não se afiguram como viáveis os planos para a tão propalada recuperação do Al Andalus. Tal, todavia, não evitará profundas incertezas e generalizados sentimentos de insegurança, o que deverá merecer absoluta preocupação por parte daqueles que têm a seu cargo a prevenção e o combate ao tipo de ameaça que nos nossos dias constitui o terrorismo jihadista.
Neste contexto, e à luz dos acontecimentos, ocorridos em particular ao longo da
última década, é propósito deste trabalho localizar as raízes do radicalismo islâmico na
Península Ibérica, identificar os grupos instalados e actuantes neste espaço, as suas
características estruturais, organização, modo de funcionamento e motivações, a par
das suas ligações ao terrorismo global para, finalmente, analisar a sua evolução e
tendências.
Sendo reconhecido que este tipo de terrorismo no espaço europeu apanhou de
surpresa as instituições dedicadas à sua luta, tal não significa que as mesmas não
tenham obtido êxito na neutralização de acções terroristas já muito perto da sua
execução. Por tal motivo, outro dos objectivos deste trabalho é o de estabelecer uma
aproximação conceptual que proporcione uma melhor compreensão do terrorismo
jihadista a ponto de permitir alcançar‐se a sua efectiva erradicação. Torna‐se, assim,
claro que o conhecimento profundo dos processos internos das organizações que
difundem o terror passou a ser fundamental para um diagnóstico seguro das suas
forças e debilidades, o que permitirá adequar os mecanismos que conduzam à sua
efectiva erradicação do mundo civilizado.
Capítulo 1 – O Al Andalus
1.1. O período pré‐islâmico na Península Ibérica: O Reino Visigodo
Oriundos do norte da Europa, da Germânia, os Visigodos chegaram à Península Ibérica,
no princípio do século V (ano 416) com o firme propósito de estabelecer uma nova
ordem na Península, ocupada por Vândalos, Suevos e Alanos, numa altura em que o
Império Romano lutava, ainda, “para sobreviver à avalanche das invasões e um dos
meios de defesa que utilizava era o de lançar grupos de bárbaros contra outros grupos
de bárbaros” (Saraiva, 2007: 29). Somente no ano de 585, e após prolongada luta, o
reino visigótico conseguiria fazer desaparecer o reino suevo, estabelecendo a sua
capital em Toledo, cidade a partir da qual administrariam todo o reino.
O facto de os visigodos não serem católicos iria dificultar por largo tempo a sua fusão
com os hispano‐romanos. É, no entanto, com a sua presença “que se estabelecem na
Península os traços fundamentais do que viria a ser a sociedade medieval portuguesa: uma sociedade tripartida, formada por clero, nobreza e povo” (Saraiva, idem, p. 30).
“Pouco a pouco, os visigodos foram‐se romanizando, adoptando a língua, cultura e
costumes locais até que o rei Recaredo se converteu ao cristianismo trinitário no III
Concílio de Toledo, no ano 589”7 (Aristeguí, 2005: 25).
Os sucessivos confrontos no seio da monarquia visigoda, motivados por razões
eleitorais, resultam no seu profundo enfraquecimento. Por outro lado, o
descontentamento dos camponeses hispano‐romanos relativamente ao tratamento
considerado discriminatório dos visigodos junta‐se ao seu brutal anti‐semitismo.
Cristãos e judeus são levados a acreditar que com a chegada dos muçulmanos a sua
situação melhorará. Tal, todavia, não viria a confirmar‐se (idem).
Com a morte do rei Vitisa, no ano de 710, colocaram‐se sérios problemas relativos à
7 “Poco a poço los visigodos se fueron romanizando, adoptando la lengua, cultura y costumbres locales hasta que el rey Recaredo se convirtió al cristianismo trinitário en el III Concilio de Toledo, en el año 589”.
sua sucessão, o que deu lugar a uma guerra civil. Uma das partes em confronto, liderada por Ágila II, filho do monarca falecido, recorreria ao apoio de Tariq ibn Ziyad,
chefe militar muçulmano, instalado no Norte de África, que, a partir de Ceuta, deu
início à invasão dos territórios peninsulares, derrotando Rodrigo e pondo termo ao seu reinado. “A época dos visigodos acabou, pois, como havia começado: entre o sangue e
o medo”8 (Bonnassie, Gerbet e Guichard, 2008: 47). Nascia o Al Andalus, nome pelo
qual passaria a ser identificada a quase totalidade do território peninsular.
1.2. A invasão muçulmana da Península Ibérica e o nascimento do Al
Andalus
O estado de crescente debilidade do Império Visigótico relacionado, sobretudo, com a sucessão dinástica no território peninsular leva os muçulmanos a acreditar no sucesso duma invasão. Esta iniciativa surge após um apelo de um dos grupos em contenda por essa sucessão. Assim, no ano de 711, tropas muçulmanas, compostas, essencialmente, por soldados berberes, vindas do Norte de África, comandadas por Tariq ibn Ziyad, dão
início a conquista da Hispânia9. Com a derrota e capitulação do rei visigodo Rodrigo, na
batalha de Guadalete, todos os territórios passam a ser progressivamente
conquistados, à excepção de um pequeno reduto a norte da Península. “A rapidez com
que os Muçulmanos conquistaram o Império Visigótico mostra a sua espantosa
fragilidade” (Mattoso, 1992: 321).
No ano de 756, o Al Andalus, nome dado ao novo estado islâmico na Península, tornar‐
se‐ia num emirado independente do califado de Damasco, sob a autoridade de
Abderramão I, um príncipe da dinastia omíada, que estabeleceria a sua capital em
Córdoba, cidade que viria a tornar‐se numa das mais importantes e prósperas da
Europa ocidental, a par da sua grande riqueza cultural.
Para além de Córdoba, a aristocracia árabe vai‐se instalando, progressivamente, em
cidades como Sevilha e Niebla. “Sob os califas omíadas de Damasco este território foi
8 “La época de los visigodos acabo, pués, tal como había comenzado: entre la sangre y el miedo”
9 Do latim Hispania, foi o nome dado pelos antigos romanos a toda a Península Ibérica.
conquistado, e sob os seus descendentes, convertidos em emires desta longínqua
província do seu antigo império, a sociedade andaluza adquiriu o seu indelével
carácter árabe e islâmico” (Moreno, 2006: 10).
Com o decorrer dos anos os conflitos e as tensões entre a sociedade e o poder central
vão‐se acentuando, até que, no ano de 929, Abderramão III estabelece o califado
omíada de Córdoba, tornando‐se no primeiro califa do Al Andalus. Foi considerado
como um dos líderes muçulmanos com maior prestígio em toda a Europa. Foi com ele
que a civilização do Al Andalus em diferentes domínios conheceu o seu apogeu.
Todavia, dadas as inúmeras crises internas e a progressiva pressão cristã, o Califado
acabaria por se desintegrar, já no século XI, dando lugar ao aparecimento dos
primeiros reinos de taifas10.
Devido à crescente rivalidade entre estes reinos a debilidade de alguns foi‐se
acentuando, vindo mesmo a perder os seus territórios. Paralelamente, a ameaça cristã
dava os seus frutos, desde logo com a conquista da taifa de Toledo, por parte de
Afonso VI, no ano de 1085. Foi nesta altura que os reis das taifas de Sevilha, Badajoz e
Granada decidiram pedir o apoio dos almorávidas, instalados no Magrebe. A
intervenção dos almorávidas, comandados pelo emir Yusuf ibn Tashufin, viria a resultar
numa pesada derrota para Afonso VI, no ano de 1086, na batalha de Zalaca, pondo,
assim, termo ao avanço das tropas cristãs.
Aproveitando os conflitos existentes entre os diferentes reinos, os almorávidas
acabariam por alargar o seu domínio a todo o Al Andalus. Sob esta nova autoridade,
diferentes cidades conheceram um significativo desenvolvimento. Sevilha transformar‐ se‐ia na principal metrópole do Al Andalus.
Entretanto, mais a ocidente, levantam‐se focos de oposição ao domínio almorávida,
conduzidos pelos almóadas, uma potência religiosa berbere instalada em Marrocos,
que, deste modo, reagiram ao alegado insucesso dos almorávidas no combate às
10 Pequenos reinos islâmicos do Al Andalus.
investidas cristãs. Este seria, pois, “o último esforço muçulmano importante para expulsar os Cristãos” (Oliveira Marques, 1995: 60).
Agora, sob o domínio almóada, o Al Andalus conheceria um novo impulso no seu
desenvolvimento com destaque para uma importante melhoria nas vias de
comunicação. Mais a norte, os reis cristãos mantinham‐se firmes no seu propósito de
reconquistar os territórios perdidos.
Com a passar do tempo, o império almóada acabaria, igualmente, por não resistir à
pressão cristã. No ano de 1212, tem lugar a Batalha de Navas de Tolosa que vai pôr
termo ao domínio almóada. As tropas cristãs prosseguem a sua expansão e, neste
período, são reconquistadas mais algumas cidades importantes, ficando, ainda, por
alcançar o reino nazari de Granada.
Enquanto a sudoeste da Península a guerra com os muçulmanos tinha chegado ao fim,
com a conquista de Silves pelas tropas de D. Afonso III, em 1253, mais a oriente, os
castelhanos prosseguiam a sua luta pela reconquista dos territórios ainda na posse do inimigo. Finalmente, no ano de 1492, terminava o domínio árabe na Península Ibérica, com a tomada de Granada pelos Reis Católicos.
1.3. A civilização do Al Andalus
Com a chegada dos árabes à Península a vida das populações esteve sujeita a enormes
mudanças. Estes invasores não se dedicaram unicamente ao comércio e à guerra. A
religião e o idioma serviriam de base a uma nova civilização. Uma nova cultura foi
então instalada, que acabaria por se alargar a todo o império. Todavia, este processo
não significaria um corte com a cultura existente. Ambas acabariam por se interligar,
dando lugar ao aparecimento de uma cultura com características muito particulares.
Esta nova civilização tornar‐se‐ia das mais evoluídas em todo o mundo.
Do ponto de vista religioso, a população do Al Andalus, encontrava‐se dividida entre
muçulmanos e dhimmis11. Estes estavam sujeitos ao pagamento de um imposto e a um
conjunto alargado de proibições e obrigações profundamente humilhantes (Fanjul,
2005). Nos territórios ocupados continuavam a existir comunidades cristãs, que
passaram a ser conhecidas como moçárabes. Apesar de, a princípio, merecerem o
respeito dos ocupantes, os seus direitos eram limitados, comparativamente à
população muçulmana. Ainda que frequentemente referida, a tolerância religiosa por
parte dos dirigentes muçulmanos não terá passado de um mito. As comunidades não‐ muçulmanas estavam sujeitas ao pagamento de impostos especiais, ao mesmo tempo
que se viram impedidas de construir os seus lugares de culto. Cristãos e judeus, para
além de perseguidos, estiveram sujeitos a uma verdadeira marginalização. Em pleno
século XI, muitos dos judeus de Granada foram mortos pelos almorávidas. Mais tarde,
com o afastamento destes, os almóadas mantiveram‐se fiéis a esta linha, forçando os
judeus a converterem‐se sob pena de morte. Com o passar do tempo, e à medida que o cerco cristão crescia, a situação agravar‐se‐ia (Fanjul, idem).
Tanto no domínio artístico como no da ciência os árabes e berberes que ocupavam a
Península Ibérica começariam por recorrer aos conhecimentos deixados pela
civilização visigoda. Só mais tarde, e fruto da ambição de alguns soberanos
muçulmanos, se desenvolveria no Al Andalus uma ciência marcada pela originalidade.
A arte e as ciências, sobretudo as especulativas, como as matemáticas e a astronomia,
conheceram uma apreciável expansão. Entre os séculos IX e X, o território conheceria
uma autêntica revolução intelectual. O pensamento grego, sobretudo o aristotélico,
marcaria profundamente a sua civilização. A ruptura com a tradição visigoda tornou‐se inevitável. O Al Andalus inicia, assim, uma época de grande florescimento. Acentua‐se uma cada vez maior diferença entre a sua civilização e a do resto da Europa, ainda sob influências culturais e económicas de grande complexidade.
Também no domínio do cultivo de terras, novas técnicas de aproveitamento agrícola
11 Nome dado na história do mundo islâmico aos judeus e cristãos que viviam em Estados islâmicos.
trouxeram à economia do território um enorme progresso. A vida económica baseava‐
se na agricultura. O sul do território empenhava‐se numa abundante produção de
cereais. Terão sido mesmo os Árabes a introduzir na Península algumas culturas
cerealíferas. Os olivais proliferavam bem assim como os pomares. Apesar da proibição islâmica do consumo de álcool, a população do território não a respeitava, daí o largo cultivo de vinhedos e a produção de vinho.
Nalgumas zonas do litoral oeste as actividades piscatórias eram largamente
favorecidas. Os lacticínios eram produzidos em larga escala. Minas de ouro, prata,
cobre e estanho proporcionaram importantes explorações. As redes de comunicação
deixadas pelos romanos foram largamente melhoradas (Oliveira Marques, op. cit.).
Fruto da presença islâmica no território peninsular, a economia conheceu, igualmente, uma considerável expansão, passando de uma economia de tipo rural para uma outra
acentuadamente urbana. A economia do Al Andalus estava baseada num regime de
produtividade de cultivos, na indústria, no comércio e numa moeda estável (Rivero,
1982). “Naquela época, o Al Andalus era o mais brilhante e desenvolvido de todos os
estados muçulmanos, e na Europa unicamente o Império Bizantino se lhe podia
comparar”12 (Bonnassie, Guichard, Gerbet, op. cit., p. 85). O Al Andalus foi, na
verdade, uma civilização que projectou para o exterior uma forte personalidade
rópria.
p
Todavia, nem todos os olhares sobre o Al Andalus estão de acordo em relação ao
legado muçulmano e ao propalado esplendor da sua civilização. Muito menos no
tocante ao ambiente inter‐religioso. É, assim, que surgem vozes bem dissonantes
como a de Fanjul (op. cit.), para quem a singularidade do Al Andalus não correspondeu
ao que muitos autores insistem em defender. Para este autor, temas como a liberdade
das mulheres, o cuidado tratamento dispensado aos escravos, a não obrigatoriedade
de conversão ao islamismo e a estreita convivência entre muçulmanos, judeus e
12 “En aquella época, al‐Andalus era el más brillante y desarrollado de los estados musulmanes, y en Europa únicamente el Imperio bizantino se le podía comparar” (tradução nossa).
cristãos, e respectivas culturas, não passam de mitos verdadeiramente absurdos (Fanjul, idem). Também Vidal (2004) recorda que a população visigoda foi conquistada
não de forma pacífica mas sim pela ponta da espada. Finalmente, sobre a questão
cultural existe um amplo sector que defende uma realidade bem diferente da que
muitas vezes é relatada: nos inícios do século VIII, os povos peninsulares viviam à luz
das culturas clássica, cristã e germânica, num ambiente que as situava ao mais alto
nível do mundo ocidental, e que terá sido a invasão islâmica que destruiu por
completo a cultura reinante, tendo até criado uma perturbação social sem
precedentes.
Capítulo 2 – A Reconquista Cristã
2.1. O início da revolta
Com a derrota do último rei visigodo – Rodrigo –, em luta contra os invasores da
Península, os reinos cristãos consideram‐se os herdeiros do reino godo e, como tal,
com o legitimo direito de reconquistar os territórios ocupados pelas forças árabes‐
muçulmanas. A Reconquista Cristã foi, assim, um movimento militar cristão de
oposição a esta invasão e expansão territorial. Este movimento desencadear‐se‐ia logo
após a ocupação. No ano de 718, e sob o comando de Pelágio, entretanto nomeado
rei, seria dado início, a partir do seu Reino das Astúrias, a uma sucessão de acções que
tinham como objectivo próximo os acampamentos militares muçulmanos. Todavia,
esta primeira iniciativa de Pelágio não resultaria, tendo sido feito prisioneiro.
Conseguiria, no entanto, escapar. A sua primeira grande campanha, a Batalha de
Covadonga, de fundamental importância simbólica, teria lugar no ano de 722
(Aristeguí, op. cit.). Com ela um longo processo pela retomada dos territórios
ocupados estava em marcha. Terminaria somente no ano de 1492, com o derrube do
reino de Granada. Refira‐se, no entanto, que o movimento não foi linear, conhecendo
frequentes períodos de grande agitação tanto do lado cristão como do lado
muçulmano devidos a lutas internas. Por estranho que pareça, os lados em confronto
chegaram mesmo a aliar‐se no combate ao inimigo comum. Tal foi o caso de El Cid, um
nobre guerreiro espanhol, do século XI, que veio em favor dos muçulmanos de
Saragoça combatendo forças cristãs aragonesas, supostamente com base em acordos
de vassalagem existentes na época. O que se repete por volta de 1191, com a criação
de uma aliança entre Portugal e Leão contra a tomada de alguns castelos junto à
fronteira leonesa por parte dos Castelhanos. Este conflito iria, de resto, ser
aproveitado pelas forças muçulmanas, que conquistam Alcácer do Sal e Silves.
No início da Reconquista eram ainda muitos os territórios pouco ou mesmo nada
povoados. O seu repovoamento era decisivo para a boa implementação de uma
estratégia defensiva coerente e, também, para o bom desenvolvimento da longa e
difícil campanha que as tropas cristãs tinham pela frente.
Os muçulmanos não conseguiram ocupar a totalidade do território peninsular; a região montanhosa das Astúrias, de difícil acesso, tornou‐se o bastião da resistência cristã. De
resto, para os invasores esta região não suscitaria, logo de início, as suas
preocupações. É, justamente a partir deste reduto que, sob o comando de Pelágio, têm
início as acções armadas com vista à reconquista das terras em poder dos invasores
muçulmanos.
2.2. As acções militares cristãs e o fim do domínio árabe
Pouco tempo depois da ocupação da Península pelas forças muçulmanas, e devido,
sobretudo, às rivalidades existentes entre os diferentes grupos detentores do poder,
surgem os primeiros conflitos na organização do novo Estado, o que viria a abrir
caminho à reacção cristã (Barbosa, 2008).
A partir do Reino das Astúrias, que havia sido fundado por Pelágio, em 718, tem lugar,
algum tempo depois, no ano de 722, a Batalha de Covadonga, que ficará para a
História como tendo sido a primeira grande vitória dos cristãos sobre os invasores
muçulmanos e o ponto de partida da Reconquista Cristã. Mais tarde, no ano de 750, as
forças cristãs, comandadas por Afonso I das Astúrias, instalam‐se na Galiza, que havia
sido abandonada pelos berberes.
Entretanto, os objectivos de expansão muçulmana continuavam em direcção ao Norte da Europa. Todavia, foram travados nos seus propósitos logo a partir do sul de França por acção de Carlos Martel, na Batalha de Poitiers, no ano de 732.
A partir do Reino das Astúrias, os cristãos aí acantonados deslocar‐se‐iam
gradualmente para Sul promovendo a formação de novos reinos. Um desses reinos, o
de Leão, daria lugar, mais tarde, à criação do Condado Portucalense (Mattoso, op. cit.).
Uma das regiões que maior resistência ofereceria seria a da Galiza, o que viria a
revelar‐se decisivo na modelação de alguns traços sociais da população aí instalada e
que, mais tarde, estaria na origem da sociedade medieval portuguesa (Saraiva, op.
cit.).
Ainda antes do ano de 750, estalou uma revolta que opôs berberes a árabes, o que
provocaria o abandono dalgumas das zonas ocupadas (Saraiva, idem).
Em 760, o condado de Aragão é conquistado aos muçulmanos, a partir de Jaca.
A partir do ano de 791, Afonso II prossegue a sua marcha vitoriosa para Sul, chegando a comandar uma expedição até Lisboa.
O século X conheceu um período de abrandamento das campanhas militares cristãs e
muçulmanas, muito por culpa da crise instalada entre os líderes cristãos, o que viria a
ser aproveitado por Almançor, Governador do Al Andalus, que submeteria Leão, no
ano de 995, empurrando o reino cristão para posições anteriores.
Entretanto, as fragilidades denunciadas pelos muçulmanos desencadeiam a forte
reacção de Afonso III. Foi assim que “a última metade do século IX assistiu à primeira
grande investida cristã peninsular contra uma região ainda não dominada” (Barbosa,
op. cit. p. 29). Entre os anos de 886 e 910, Afonso III reconquista terras situadas no litoral ocidental, para além de Viseu, Lamego e Leão.
Em 912 é fundado o Califado de Córdoba, da dinastia Omíada, que assim se separa do Califado Abássida de Bagdade.
No ano de 939, tentando travar as investidas dos exércitos cristãos, Abderramão III,
Califa omíada de Córdoba, é derrotado por Ramiro II de Leão.
No século XI, devido à fragmentação do Califado de Córdoba, no ano de 1031, surgem
os primeiros reinos de taifas (Oliveira Marques, op. cit.). Esta circunstância é, de
imediato, aproveitada por Afonso VI que, assim, prossegue a luta pela reconquista com
a tomada de Toledo. “É claro que o fraccionamento do Califado e as lutas, por vezes
violentas, em que se envolveram muitos dos reinos de taifa, favoreceram os Cristãos e o progresso da Reconquista” (Oliveira Marques, ibidem, p. 30).
Em 1085, Afonso VI conquista Toledo, convertendo‐se no rei das três religiões existentes.
Alarmados com as sucessivas vitórias cristãs, os líderes muçulmanos pedem a
intervenção dos Almorávidas que vêm em seu auxílio. Em 1086, tem lugar a Batalha de
Zalaca, em Sagrajas. Desta vez, Afonso VI sai derrotado. A intervenção almorávida
trouxe de novo a unificação do Al Andalus, numa altura em que meia Espanha era
ainda muçulmana (Oliveira Marques, idem). Todavia, esta circunstância não impede
que mais a ocidente, no ano de 1093, as tropas cristãs tomem as cidades de Lisboa e
Santarém. Ainda assim, um pouco mais tarde, em 1110, as tropas muçulmanas
retomam Santarém.
Com a queda de Saraqusta (Saragoça), em 1118, da responsabilidade de Afonso I de
Aragão, é dado um novo sinal de mudança. Em Marrocos, surge um novo partido – os
Almóadas –, cujo fanatismo em breve irá agitar as populações. No Al Andalus, a
repressão cada vez maior dos almorávidas deixa marcas, principalmente junto da
população moçárabe (Oliveira Marques, idem). Esta situação viria a revelar‐se‐lhes
desastrosa. “Tanto os Cristãos como os Almóhadas se aproveitaram da anarquia
política reinante” (Oliveira Marques, idem, p. 59), permitindo a Afonso Henriques
tomar, definitivamente, Santarém e Lisboa, no ano de 1147. “A conquista de Santarém
é importante do ponto de vista estratégico, mas também o é do ponto de vista
psicológico, já que leva a ameaça às praças que se encontram mais a sul, e ‘desfaziam’
o conceito de defesa que representava o fecho da progressão através das colinas da
zona de Tomar” (Barbosa, op. cit. p. 141).
Com o alvorecer do século XIII a Reconquista torna‐se mais activa. Apesar desta
tendência, mais a sul, os Almóadas, em 1203, uniam o território muçulmano, com a
conquista da taifa de Maiorca, prosseguindo a sua expansão com a submissão de
Mértola e Silves, no que era entendido como o derradeiro esforço muçulmano para
expulsar os cristãos.
Já sob a influência do espírito de Cruzada são travadas as batalhas de Navas de Tolosa,
em 1212. Tropas cristãs, vindas dos mais variados pontos da Europa, especialmente de
França, apoderam‐se de alguns domínios almóadas. Assim, entre os anos de 1220 e
1230 é já patente o enfraquecimento do Império Almóada, que, de novo, se fragmenta em diversas taifas, o que vem a permitir um novo e definitivo alento das hostes cristãs.
A faixa ocidental da Península – Gharb Al Andalus – passa para o domínio das tropas
cristãs, comandadas por Afonso III, com a conquista de Silves, em 1253. “Durante cinco
séculos, o espaço do Portugal de hoje esteve dividido entre cristãos e muçulmanos,
com avanços e recuos de parte a parte, mas com uma fronteira gradualmente situada
mais a sul” (Oliveira Marques, op. cit., p. 25). Mais tarde, no ano de 1348, com a
tomada de Algeciras, fica, ainda, por conquistar Granada.
Entre 1482 e 1492 regista‐se um conjunto de campanhas militares levadas a cabo pelos Reis Católicos, que terminaria com a rendição do rei Boabdil, da dinastia Nazari. Posto fim a este último foco de resistência muçulmana, a Reconquista Cristã chegava ao seu termo, a 2 de Janeiro de 1492.
Capítulo 3 – A comunidade islâmica na Península Ibérica
3.1. A situação actual em Portugal
Os primeiros muçulmanos a chegar a Portugal eram estudantes universitários, vindos
de Moçambique, da comunidade de origem indiana. Com o processo de
descolonização em marcha foram chegando ao nosso país importantes parcelas de
muçulmanos vindas, especialmente, de Moçambique, e pouco tempo depois,
igualmente da Guiné‐Bissau. A familiarização com a língua portuguesa foi um factor
decisivo (Tiesler, 2005). Por essa ocasião é já detectada a presença de alguns
muçulmanos oriundos de países árabes, do Senegal, da Índia e do Paquistão. A partir
do início dos anos 90 começam a chegar a Portugal outros grupos de imigrantes,
nomeadamente do Bangladesh. Para o desenvolvimento do movimento associativo
islâmico é, no entanto, a população de origem moçambicana a que mais contributos
oferece. Muitos destes cidadãos, pertencentes a uma classe média instruída,
desempenham um papel determinante nos assuntos da comunidade (Tiesler, 2000).
Ao longo dos últimos anos, Portugal tem recebido um número crescente de imigrantes
das mais diversas nacionalidades. A sua localização geográfica, próxima dos países do
Norte de África, responsáveis pelos fluxos cada vez maiores de emigração em direcção
à Europa e a integração europeia, a par das suas tradições de tolerância fazem de
Portugal um dos destinos mais atractivos. Tal como vem acontecendo com outros
países europeus, Portugal é ponto de chegada de cidadãos vindos do Mundo Árabe.
País relativamente novo em temas de imigração de massas, Portugal adoptou um
quadro legal em matéria de integração composto por políticas favoráveis e de boas
práticas. O reagrupamento familiar e o combate à discriminação colocam‐no na
segunda posição entre todos os países MIPEX13. Políticas algo favoráveis à concessão
de residência de longa duração posicionam o país em quinto lugar na lista da UE‐25.
No tocante às políticas de acesso à nacionalidade, Portugal ocupa o terceiro lugar.
13 É um guia para avaliação e comparação das políticas nacionais de integração de imigrantes dos países aderentes.
Segundo uma estimativa do Sheik14 David Munir, Imã15 da Mesquita Central de Lisboa,
a população muçulmana a viver actualmente no nosso país rondará as 40 mil pessoas,
dos quais uma parte significativa já nascida em Portugal. A grande maioria é sunita,
havendo, contudo, uma importante percentagem de ismaelitas, um ramo xiita do Islão. O perfil desta comunidade é marcadamente lusófono. Na sua maioria são muçulmanos
que têm o português como a sua língua materna. Esta circunstância terá contribuído
para a sua mais fácil integração. A exemplo do que tem acontecido ao longo das
últimas décadas com os muçulmanos da Europa, também os residentes em Portugal
adoptaram alguns dos hábitos e referências culturais das populações de acolhimento,
sem que tenham, todavia, renunciado aos seus próprios padrões (Tiesler, 2005).
Em Portugal, e em contraste com a situação vivida noutras sociedades europeias, uma
das particularidades da comunidade muçulmana na sua relação com crentes doutras
confissões assenta numa base de plena integração e tolerância religiosa mútua. A sua
aparente falta de visibilidade ou de qualquer outro tipo de manifestações será fruto de
em Portugal residir uma relativamente pequena comunidade muçulmana
comparativamente a países como Espanha, França, Alemanha, Áustria ou Reino Unido.
Por outro, o papel desempenhado pela Comunidade Islâmica de Lisboa tem‐se
revelado crucial tanto no estudo das necessidades de natureza religiosa, cultural e
social das populações islâmicas, como na sua plena integração e inserção social na
sociedade portuguesa.
Apesar do actual cenário económico internacional se mostrar desfavorável, os sinais
até hoje revelados pela presença muçulmana em Portugal apontam para motivações
exclusivamente relacionadas com o mercado de trabalho. Ainda assim, alguns analistas
desta comunidade não excluem a possibilidade de algo mudar na imagem que a
sociedade tem de si, caso surjam no nosso país novos integrantes animados por uma
atitude de tipo radical face aos ocidentais. Na verdade, desde os tempos da chegada
dos primeiros muçulmanos a Portugal muita coisa mudou. Actualmente, são muitos os
imigrantes vindos de uma grande diversidade de países não‐lusófonos, aos quais se
14 Autoridade religiosa do Islão.
15 O que dirige a oração na comunidade muçulmana.
colocam problemas de diferente natureza, nomeadamente o idioma e o novo contexto
sociocultural. Esta nova vaga de imigrantes tende, pois, a criar novos espaços de
comunicação e socialização. Acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 (11‐S),
nos Estados Unidos, o 11 de Março de 2004 (11‐M), em Madrid, e o 7 de Julho de 2005 (7‐J), em Londres têm, igualmente, contribuído para uma nova e desfavorável imagem
acerca das comunidades islâmicas. Dependendo das condições de integração destes
novos imigrantes, caberá, pois, às novas gerações muçulmanas a responsabilidade
pelos novos caminhos a percorrer (Tiesler, ibidem).
3.2. A situação actual em Espanha
Situação bem diferente da vivida em Portugal é a de Espanha, tanto pela dimensão da
sua comunidade islâmica, como por um conjunto alargado de factores. Embora só
recentemente Espanha se tenha tornado um país de imigração de massas, tal não
impediu o facto de rapidamente ser um dos destinos mais procurados. Num estudo de
opinião feito pelo Governo à comunidade muçulmana, entre 2008 e 2009, a maioria
dos inquiridos revelou a sua enorme satisfação pelo nível de liberdade e pela
qualidade de vida em Espanha. Já da sua parte, a opinião dos espanhóis em relação à
comunidade muçulmana encontra‐se, actualmente, bastante dividida, sendo mesmo
de alguma rejeição e até de receio. Dados mais recentes apontam para uma
esmagadora maioria de espanhóis que associam a religião muçulmana a fanatismo e a violência.
Nos anos de 2004 e 2005 registaram‐se recordes no registo de fluxo de imigrantes,
tanto legais como irregulares. Um dos maiores grupos de residentes legais nacionais
de países terceiros é proveniente de Marrocos. Nos últimos anos a população
imigrante marroquina aumentou significativamente. Uma segunda vaga chegou
proveniente de outros países muçulmanos, em particular do Norte de África, fazendo
parte de estratos sociais mais baixos, e que procuraram trabalho em sectores mais mal
remunerados. Todavia, à excepção de Ceuta e Melilla, a história da comunidade
muçulmana em Espanha é muito recente, remontando à década de 1970. Os primeiros
imigrantes provinham, essencialmente, de países do Médio Oriente, em particular
palestinianos, jordanos, egípcios, libaneses e, sobretudo, sírios. Na sua maioria eram homens de negócios, estudantes e profissionais liberais da classe média, com um nível
socioeconómico distinto da maioria da imigração muçulmana dos nossos dias. Sob o
ponto de vista religioso, pertenciam, na sua maioria, ao ramo sunita (López García et
al., 2007).
Desde 1990, com a chegada a Espanha de imigrantes provenientes do Magrebe, a
estrutura da comunidade islâmica foi‐se modificando, dando lugar ao aparecimento de
famílias mistas, sobretudo hispano‐marroquinas (López García et al., idem). Mais
tarde, outros chegaram, desta vez com o estatuto de refugiados políticos. A população
muçulmana está, de facto, em crescimento contínuo. Segundo o Webislam16, estima‐
se em mais de milhão e meio o número de muçulmanos a viver, actualmente, em
Espanha, muito dos quais exercem funções de gestão e ocupam cargos elevados,
sendo outros técnicos ou profissionais liberais, perfeitamente integrados na sociedade espanhola. Neste momento, existem em Espanha comunidades relativamente grandes de muçulmanos nativos com uma forte coesão e organização.
Já sobre o que representa o Islão para uma parte da sociedade espanhola, há um dado curioso a destacar relativamente à questão da conversão a esta religião: 70 por cento
dos espanhóis convertidos nos últimos anos têm ligações à esquerda radical ou a
grupos anti‐sistema. De resto, o fascínio desta corrente política pelo Islão não é novo.
Em 2007, o antigo Secretário‐Geral do Partido Comunista Espanhol, Santiago Carrillo,
afirmou num programa televisivo que ”o Islão era um poderosíssimo instrumento
revolucionário” contra os valores ocidentais que os Estados Unidos representam.
Muitos militantes esquerdistas justificam essa simpatia afirmando que sem o
islamismo as massas muçulmanas acomodar‐se‐iam e aceitariam a tirania capitalista.
Antes dos anos 90, Espanha era, basicamente, um país de passagem, nomeadamente
para França, Bélgica e Holanda, devido a razões económicas e idiomáticas. Todavia, à
medida que as condições de vida melhoram, esta situação tende a alterar‐se, dando
16 Portal islâmico, criado em 1997, pela Junta Islâmica de Espanha.
lugar a uma cada vez maior fixação de imigrantes em Espanha, vindos
maioritariamente de Marrocos (López García et al., ibidem).
Neste momento, Espanha ocupa a segunda posição, a par de Portugal, entre os 31
países MIPEX nas condições de acesso ao mercado de trabalho. As áreas do
reagrupamento familiar, assim como as políticas de concessão de residência de longa
duração são um pouco menos favoráveis. Nos domínios do combate à discriminação e de acesso à nacionalidade, Espanha ocupa, respectivamente, o 17º e o 14º lugar.
Capítulo 4 – O terrorismo
4.1. Sobre os conceitos de terrorismo
Até hoje, poucos terão sido os termos geradores de tanta controvérsia como o de
terrorismo. No entanto, é já no decorrer do século XIX que o terrorismo será
entendido, como uma “forma ilegal de acção levada a cabo contra um Estado ou um
regime político” (Benoist, 2009: 80). Na verdade, são vastíssimas as definições de
terrorismo, acentuando a tónica sob pontos de vista bem diversos, como o jurídico, o
social, o político ou até o académico. Há quem afirme tratar‐se de um conceito
profundamente subjectivo, que, no fundo, depende da perspectiva da vítima ou, pelo
contrário, da óptica dos autores do atentado, para os quais as acções terroristas são
simplesmente mais um meio que têm ao seu alcance para se “defenderam dos males
que lhes são causados pelas próprias vítimas”, através de ataques contra as suas
legítimas expectativas de independência ou contra os seus valores religiosos. Para o
terrorista, o recurso a este tipo de solução é o único que está definitivamente ao seu
alcance. Ainda que tenha que se submeter ao martírio (Sanmartín, 2005). De um modo
geral, “a lógica moral do islamismo descansa sobre dois pilares: os muçulmanos têm
uma causa justa e, perante a impossibilidade de a defender mediante armas
convencionais, podem e devem fazê‐lo com armas extraordinárias, incluindo o
martírio”17 (Sanmartín, idem, p. 19).
A imprevisibilidade e a premeditação do acto terrorista são algumas das principais
particularidades deste tipo de violência. Uma outra assenta no destinatário desse acto. Contudo, são só duas as características que distinguem o terrorismo de outras formas de violência. Assim, o terrorismo dirige‐se contra pessoas que não têm a qualidade de
combatentes. Depois, a violência é empregada com o propósito de infundir medo
junto daqueles aos quais são dirigidos os seus ataques. Com efeito, sendo a população
civil a que mais adequadamente reage aos seus propósitos, é, também, a que
principalmente motiva as suas orientações de difusão do terror, já que para os
17 “…la lógica moral del islamismo descansa sobre dos pilares: los musulmanes tienen una causa justa y, ante la imposibilidad de defenderla mediante armas convencionales, pueden y deben hacerlo com armas extraordinárias, incluyendo el martírio” (tradução nossa).
terroristas é a sociedade civil atingida a que em melhores condições está para forçar a
mudança. A população suporta, pois, um efeito instrumental. Assim, quanto mais
aterrorizador for o atentado e maior divulgação o mesmo tiver, mais satisfeitos
estarão os seus objectivos. São, disso, exemplo os atentados de Nova Iorque e de
Madrid (Sanmartín, ibidem).
Enquanto para a especialista norte‐americana Stern (2001: 33), o terrorismo é
entendido como “o emprego ou ameaça de violência contra não combatentes, como
uma finalidade de vingança ou intimidação, ou para influir de alguma outra forma
sobre um determinado sector da população”18, para Laqueur (1996), o terrorismo é
definido “como o emprego da violência ou ameaça de violência com a finalidade de
semear o pânico na sociedade e enfraquecer ou mesmo derrubar aqueles que detêm o
poder e produzir uma mudança política”19. Da sua parte, Napoleoni (2004) entende
que sendo o terrorismo um fenómeno político, nunca se alcançará uma definição
amplamente consensual do termo enquanto o mesmo prevalecer no âmbito da
política. Finalmente, e de acordo com as Nações Unidas20, terrorismo “é qualquer acto
destinado a causar a morte ou lesões corporais graves a um civil ou a qualquer outra
pessoa que não participe de forma directa nas hostilidades de uma situação de conflito
armado, quando o propósito do dito acto, pela sua natureza ou contexto, seja o de
intimidar uma população ou de obrigar um Governo ou uma organização internacional a realizar um acto ou a abster‐se de o fazer”.
Apesar das múltiplas definições a que o termo tem sido sujeito, Barbosa et al. (2006:
119‐120) adianta que todas elas se resumem às seguintes premissas: “1. O terrorismo
é o uso previsto de uma violência convertida de um crime ou ameaça de violência; 2.
Terrorismo é uma selecção deliberada de uma táctica para efectuar mudanças; 3.
18 “El empleo o amenaza de violencia contra no combatientes, com una finalidad de venganza o intimidación, o para influir de alguna outra forma sobre un determinado sector da población” (tradução nossa).
19 “Application of violence or threatened violence intended to sow panic in a society, to weaken or even overthrow the incumbents, and to bring about political change” (LAQUEUR, Walter. Terrorismo
posmoderno, Foreing Affairs, Vol. 75, Nº 5, 1996) (tradução nossa).
20 Resolução 1269, de 19 de Outubro de 1999, do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Terrorismo é atingir pessoas inocentes, incluindo militares; 4. Terrorismo é o uso de
actos simbólicos para atrair os media e obter larga audiência; 5. Terrorismo é uma
forma ilegítima de combate, mesmo em guerra; 6. O terrorismo nunca é justificado”.
4.1.1. Terrorismo religioso
Como o próprio nome indica, trata‐se, neste caso, de uma forma de violência religiosa.
Também aqui, não existe consenso quanto à sua definição. Entretanto, já no declinar
do século XX, assiste‐se ao ressurgimento de um terrorismo com estas características,
igualmente conhecido como terrorismo islamista ou jihadismo21, impulsionado por
aqueles cujas motivações se encontram plasmadas nas suas interpretações do Islão.
Esta nova expressão do terrorismo arrasta consigo novos e justificados motivos de
profunda preocupação para todo o mundo civilizado, tendo em conta o seu já muito
elevado registo de atrocidades.
Tanto a 11 de Setembro de 2001, como a 11 de Março de 2004, os terroristas
islamistas não somente realizaram atentados massivos como indiscriminados em
relação às suas vítimas. Mais do que vítimas humanas, o que escolhem,
criteriosamente, são os lugares onde irão ocorrer os atentados. Igualmente, mais do
que as vítimas, é o local que simboliza o poder e a cultura que ameaçam a sua forma
de vida. O World Trade Center, local carregado de simbolismo, representava o mal e a
submissão económica de muitas nações. Outros locais, igualmente atingidos, como
algumas embaixadas dos Estados Unidos, possuem uma forte carga simbólica.
Entretanto, o impacto mediático encarregar‐se‐á do resto (Sanmartín, op. cit.). Na
verdade, os objectivos do terrorismo passam pela criação de um verdadeiro clima de
insegurança. “O terrorismo está pensado para aterrorizar” (Juergensmeyer, 2001: 5).
4.1.2. Jihadismo
Os cinco pilares do Islão – a profissão de fé (shahada), a oração (salat), o jejum
(sawm), a caridade (zakat) e a peregrinação (hajj) – constituem‐se como os deveres
21 Termo derivado de Jihad, que identifica a ala mais violenta e radical da visão ideológica do Islão político.
básicos de cada muçulmano. Todavia, para os radicais islamistas, a Jihad é aceite como
sendo a obrigação mais importante logo depois do cumprimento dos cinco pilares do
Islão. Algumas correntes do pensamento islâmico defendem a Jihad como um conceito
particularmente abrangente tendo como inimigos todos aqueles que se opõem aos
mais sagrados princípios do Islão. Entretanto, nos ditos do Profeta Maomé são
descritas duas formas de Jihad: a Maior, como sendo a luta interior de cada um pelo
domínio da sua alma; e a Menor, que se refere ao seu esforço pela divulgação da
mensagem do Islão, que não tem limites espaciais ou temporais e que só terminará
quando todo o mundo tenha aceite ou sido submetido à autoridade do Estado
Islâmico.
No mundo islâmico, o termo Jihad, é assumido prioritariamente como um princípio
ético. Para a larga maioria dos muçulmanos significa o empenhamento por uma boa
causa. Já no Ocidente, o termo jihadismo, derivado da Jihad, é utilizado para identificar
a componente mais radical do islamismo, onde se verifica um recurso sistemático ao
terrorismo. Os próprios grupos terroristas rotulam as suas acções como sendo a jihad
islâmica e que tem como objectivo o castigo e a submissão dos infiéis. Este conceito é, no entanto, rejeitado pela corrente moderada do Islão, para quem o Livro Sagrado dos
muçulmanos não contempla qualquer tipo de alusão a iniciativas violentas. Na
verdade, o termo Islão está associado à fé, ao passo que islamismo identifica uma
ideologia. Será, pois, um equívoco confundir o terrorismo com o Islão ou mesmo com a comunidade islâmica em geral.
Assim como muitas outras, também a palavra Jihad, à luz de um contexto religioso, é
vasta em significados. Alguns até de sinal bem contrário. Talvez por isso, amplos
sectores da vida política, académica e religiosa islâmica contemporâneas sublinhem
reiteradamente que o termo apenas significa, verdadeiramente, esforço, tanto nas
suas vertentes espiritual como pessoal. Todavia, foi justamente num contexto religioso
histórico, à época de Maomé, que tiveram lugar inúmeras perseguições e violência
física em nome da islamização e da expansão territorial de conformidade com as
leituras do Alcorão. Desde o nascimento do Islão, no século VII, muitas outras guerras
receberam o título de Jihad. No entanto, esta jihad global, como, de resto, outras