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O sertão e a montanha: imagens de Minas Gerais entre os séculos XVIII e XX

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Academic year: 2023

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Universidade do Minho

Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas

Talles Luiz de Faria e Sales O sertão e a montanha:

Imagens de Minas Gerais entre os séculos XVIII e XX

outubro de 2022 UMinho | 2022Talles Luiz de Faria e SalesO sertão e a montanha:

Imagens de Minas Gerais entr

e os séculos XVIII e XX

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Talles Luiz de Faria e Sales O sertão e a montanha:

Imagens de Minas Gerais entre os séculos XVIII e XX

Tese de Doutoramento

Programa Doutoral em Modernidades Comparadas:

Literaturas, Artes e Culturas

Trabalho efetuado sob a orientação do

Professor Doutor Carlos Mendes de Sousa Universidade do Minho

Escola de Letras, Artes e Ciências Humanas

outubro de 2022

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DIREITOS DE AUTOR E CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DO TRABALHO POR TERCEIROS

Este é um trabalho académico que pode ser utilizado por terceiros desde que respeitadas as regras e boas práticas internacionalmente aceites, no que concerne aos direitos de autor e direitos conexos. Assim, o presente trabalho pode ser utilizado nos termos previstos na licença abaixo indicada.

Caso o utilizador necessite de permissão para poder fazer um uso do trabalho em condições não previstas no licenciamento indicado, deverá contactar o autor, através do RepositóriUM da Universidade do Minho.

Licença concedida aos utilizadores deste trabalho

Atribuição CC BY

https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

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iii AGRADECIMENTOS

Ao professor Carlos Mendes de Sousa, pela recepção cordial desde a nossa primeira conversa, pela orientação sempre atenta e criteriosa, por me ter auxiliado a ver e a rever o Brasil por novas lentes, pelo reiterado estímulo para a realização desta tese e, não menos importante, pelo interesse e preocupação genuínos pela literatura e pela cultura brasileiras em sentido amplo.

À professora Ana Gabriela Macedo, pelo acolhimento e dedicação em dirimir as dificuldades nos caminhos da academia e da vida, pela disposição alegremente positiva ao colocar-se para ajudar em quaisquer dificuldades, pelo tratamento sempre embasado pela dignidade do respeito mútuo.

A todos os docentes do Programa Doutoral em Modernidades Comparadas, pelo muito que me ensinaram e me estimularam a reelaborar minhas ideias iniciais. Afinal, acredito que esta tese tem um pouco de cada um deles e seria outra coisa completamente diferente, se não fosse uma espécie de afinidade secreta que fez cruzarem minhas primeiras formulações aos conteúdos programáticos e aos debates em sala de aula junto aos colegas, aos quais também agradeço.

À Adelina Gomes, pela cordialidade, pelo zelo, pela paciência em atender a todas as minhas solicitações junto à biblioteca do Centro de Estudos Humanísticos, por vezes ajudando-me a encontrar o que eu mesmo não encontrava.

Aos funcionários da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, pelas inúmeras solicitações atendidas e pela manutenção do espaço que foi para mim dos mais importantes para estudo e redação da tese e de artigos.

Ao professor Jacyntho Lins Brandão, tanto pelas aulas maravilhosas, quanto por ter sido o responsável por minha transição para os estudos literários.

À professora Myriam Ávila, por me ter recebido há mais de dez anos, abrindo-me as portas para a pesquisa acadêmica na área da literatura e ensinando-me a pensar melhor.

Ao professor Emílio Maciel, pelas observações feitas em minha defesa de mestrado, as quais me permitiram desenvolver parte da perspectiva teórica que procurei elaborar aqui, bem como pela disponibilidade e pelas palavras de estímulo.

À professora Graciela Ravetti, in memoriam, por me ter acompanhado e apoiado num momento difícil, pelo muito que me ensinou sobre “nuestra América” e por me ter generosamente desculpado a dívida insanável que lhe terei doutra tese.

Ao amigo Cleison Daniel Costa, por me haver indicado as veredas literárias de Minas. Ao Gleydson Ferreira, pela amizade, conversas e ensinamentos desde os tempos do mestrado. Ao Lucca

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iv

Tartaglia, pelo diálogo infindável e pela camaradagem inquebrantável mesmo nos momentos de maiores atribulações. À Fabrícia Ravacini, por me ter cedido as belíssimas fotografias de Ouro Preto.

À minha avó, D. Maria José, por me ter ensinado a força da história e as forças das estórias.

À Fabíola Helena Ferreira, pelos anos de companheirismo, pelas compreensões das muitas falhas, desvios e ausências que, por vezes, e em muitas delas equivocadamente, a vida acadêmica sobrepõe à pessoal; pelo ensinamento contínuo de enxergar os longes e os depois das montanhas;

pelo esforço em conjunto sem o qual eu jamais teria realizado esta tese. Deixo aqui, não apenas meus agradecimentos, mas também minhas desculpas, as quais posso ao menos almejar materializá-las na dedicatória que lhe faço deste trabalho.

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v

DECLARAÇÃO DE INTEGRIDADE

Declaro ter atuado com integridade na elaboração do presente trabalho académico e confirmo que não recorri à prática de plágio nem a qualquer forma de utilização indevida ou falsificação de informações ou resultados em nenhuma das etapas conducente à sua elaboração.

Mais declaro que conheço e que respeitei o Código de Conduta Ética da Universidade do Minho.

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vi RESUMO

Esta tese analisa a genealogia e o funcionamento poético de imagens recorrentes na literatura brasileira, tendo em vista que as primeiras imagens do Brasil são apresentadas por viajantes estrangeiros que têm como referente a comparação com os espaços europeus, do que decorre uma clivagem ambígua a ser enfrentada pelos escritores brasileiros que procuram descrever a natureza, os sujeitos e a sociedade brasileira formados a partir da feitura do Brasil como empreendimento colonial, do que deriva uma discrepância, em termos hegelianos, modulada reiteradamente ao longo da história cultural e intelectual brasileira, nas perspectivas pelas quais se procura perceber o país e o povo novo que se forma a partir dele. Desse modo, procede-se especialmente a um diálogo com a obra de Sérgio Buarque de Holanda, naquilo que enfatiza acerca das imagens do Brasil e do tema do desterro na própria terra com relação à experiência brasileira, bem como com a obra de Darcy Ribeiro, por sua teoria original sobre o caso brasileiro e pela resposta que oferece a tais impasses através do realce que confere à mestiçagem na formação do brasileiro como um povo novo. De modo a circunscrever o corpus de análise, optou-se pela abordagem da literatura produzida a partir do estado de Minas Gerais entre os séculos XVIII e XX, delineando um arco de longa duração que conforma uma geopoética do território mineiro ao partir dos mitos e lendas configuradores da geografia imaginativa dos “sertões ocidentais”, passando pelas primeiras obras escritas no século XVIII, pela poesia de Cláudio Manuel da Costa, pelos relatos dos viajantes científicos europeus que visitaram e pesquisaram o território de Minas Gerais nas primeiras décadas do século XIX, até a independência política brasileira e as produções literárias que se lhe seguem, como as de Bernardo Guimarães, Helena Morley, Cornélio Penna, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, João Guimarães Rosa, dentre outros que, e evidentemente não de forma exaustiva, entretêm um diálogo literário acerca da configuração geopoética mineira. Dada a imersão a um só tempo geopoética e imagética da proposta, as formulações de Didi-Huberman acerca da forma do atlas em Aby Warburg possuem também função de destaque, bem como são operatórios conceitos mobilizados das obras de Walter Benjamin, Ernst Bloch, György Lukács, dentre outros, de modo a se observar em que medida as visões do Brasil por seus próprios escritores nacionais são consonantes e/ou dissonantes das visões estrangeiras a respeito deste mesmo país, aproximando-se e/ou desassociando-se de um teor imagológico, ao mesmo tempo em que formulam estratégias e mecanismos linguísticos e literários para tal.

Palavras-chave: Literatura brasileira, Minas Gerais, Atlas, Geopoética, Imagologia.

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vii ABSTRACT

This thesis analyzes the genealogy and poetic functioning of recurrent images in Brazilian literature, considering that the first images of Brazil are presented by foreign travelers who refer to the comparison with European spaces, from what results an ambiguous cleavage to be faced by Brazilian writers who seek to describe nature, the subjects and Brazilian society formed from the making of Brazil as a colonial enterprise, from which derives a discrepancy, in Hegelian terms, repeatedly modulated throughout the Brazilian cultural and intellectual history, in the perspectives by which it seeks to perceive the country and the new people that is formed from it. Thus, a dialogue is made with the work of Sérgio Buarque de Holanda, in what he emphasizes about the images of Brazil and the theme of desterro in his own land in relation to the Brazilian experience, as well as with the work of Darcy Ribeiro, for his original theory on the Brazilian case and for the response he offers to such impasses through the emphasis that confers on the mixed race in the formation of the Brazilian as a new people.

In order to circumscribe the corpus of analysis, we opted for the approach of the literature produced from the state of Minas Gerais between the eighteenth and twentieth centuries, delineating a arc of longue durée that forms a geopoetic of the mineiro territory from the myths and legends that configure the imaginative geography of the "sertões ocidentais", passing through the first works written in the eighteenth century, by the poetry of Cláudio Manuel da Costa, by the accounts of European scientific travelers who visited and researched the territory of Minas Gerais in the first decades of the 19th century, to Brazilian political independence and the literary productions that follow it, such as those of Bernardo Guimarães, Helena Morley, Cornélio Penna, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, João Guimarães Rosa, among others who, and evidently not exhaustively, entertain a literary dialogue about the geopoetic configuration of Minas Gerais. Given the simultaneously geopoetic and imagery immersion of the proposal, Didi-Huberman's formulations about the shape of the atlas in Aby Warburg also have a prominent function, as well as are operative concepts mobilized from the works of Walter Benjamin, Ernst Bloch, György Lukács, among others, in order to observe the extent to which the visions of Brazil by their own national writers are consonant and/or dissonating foreign views about this same country, approaching and/or disassociating themselves from an imagological content, while formulating linguistic and literary strategies and mechanisms to this end.

Keywords: Brazilian literature, Minas Gerais, Atlas, Geopoetics, Imagology.

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viii ÍNDICE

Introdução ... 01

Capítulo 1: Pensamentos encobertos e tesouros descobertos: O imaginário das minas brasileiras e a formação de um povo novo ... 16

1.1. O pensamento encoberto das “Descobertas”: entre traficantes e cruzados ...16

1.2. A articulação dos estereótipos: natureza edênica e humanidades demoníacas ...28

1.3. Da visão do paraíso à cartografia mítica dos sertões ocidentais ...52

Capítulo 2: Do paraíso do ouro aos castigos do purgatório: Entre-lugar e lugar não-comum nas imagens coloniais setecentistas de Minas Gerais no século XVIII ... 79

2.1. Paraíso, purgatório e inferno: Antonil e o áureo castigo do Brasil ... 105

2.2.Ouro, soberba e calundús: Ainda sobre o castigo no Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira ... 116

2.3. Do entre-lugar ao lugar não-comum: Fratura e discrepância em Cláudio Manuel da Costa .. 133

Capítulo 3: Viajantes europeus nas Minas Gerais oitocentistas ... 177

3.1. Caminhos e descaminhos de Minas ... 177

3.2.Viajantes europeus em Minas Gerais (1810-1824) ... 197

3.2.1. Eschwege, o Intendente das Minas de Ouro (1810-1821) ... 197

3.2.2. Saint-Hilaire, o presidente da Academie des sciences de França (1816-1822) ... 209

3.2.3. Martius & Spix (1817-1820), os nobres cavalheiros da corte do rei da Baviera ... 216

3.3.Um atlas imagológico de Minas Gerais ... 227

3.3.1. Heteroimagotipos paisagísticos ... 227

3.3.1.1. A montanha ... 230

3.3.1.2. O sertão ... 245

3.3.2. Heteroimagotipos sociais ... 255

Capítulo 4: Traços de uma geopoética de Minas Gerais no século XIX ... 306

4.1. A dificuldade de Bernardo: projeto literário e projeto político nas representações de Minas Gerais por Bernardo Guimarães ... 311

4.2. Minha vida de menina (1942): ingleses, ex-escravos e a Diamantina sem diamantes de Helena Morley ... 359

4.3.Entre o atlas e o arquivo, a ficção e o documento: o Modernismo ... 393

Capítulo 5: No subsolo da geopoética mineira: Repouso (1948), de Cornélio Penna ... 416

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5.1. O desconcerto da crítica ... 416

5.2. Insolvência, falência e concordatas ... 435

5.3. “Tudo era estrangeiro e hostil”: a “linguagem secreta da família” e a sobrevivência do “jeitão” senhorial entre as ruínas da casa-grande brasileira ... 460

Capítulo 6: Navegação pelas noites do sertão no barco de “Buriti” (1956), de Guimarães Rosa ... 527

6.1. Navegação de cabotagem: os quadros dentro do quadro de Corpo de baile ... 527

6.2. Buriti Bom: o “umbral do sertão” ... 541

6.3. O pater familias sertanejo e seu vassalo burguês: desejo mimético de uma modernidade arcaica ... 550

6.4.A flor do sertão e a camélia verde brilhante: o contraponto urbano de Lalinha ... 561

6.5. Nome de Dona, cor de criada: justaposições contrapontísticas interdividuais na fazenda da Grumixã ... 571

6.6. O sertão e a espuma: o avesso do decorum da ordem patriarcal do latifúndio ... 583

6.7. “Nos portais da noite, sentinela posta”: Chefe Zequiel, Maria Behú e o bode expiatório ... 609

Considerações finais ... 631

Referências bibliográficas ... 634

1. Sítios digitais ... 634

2. Discografia e videoclipe ... 634

3. Filmografia ... 634

4. Dicionários e obras de consulta ... 635

5. Obras de análise e/ou literárias ... 635

6. Outras referências ... 640

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x

Índice de figuras

Figs. 1 e 2: De Bry, T. (1592). Americae Tertia Pars Memorabile Provinciae Brasiliae Historiam ...30

Fig. 3: Post, F. (1638). O Rio São Francisco e o Forte Maurício no Brasil ...35

Fig. 4: Post, F. (1659). Mocambos ...35

Fig. 5: Eckhout, A. (1641). Mameluca ...36

Fig. 6: Eckhout, A. (1640). Natureza-morta com melancias, abacaxi e outras frutas ...36

Fig. 7: Eckhout, A. (1641). Tupinamba/Brazilian Woman and Child ...43

Fig. 8: Eckhout, A. (1641). Tapuya Woman ...43

Fig. 9: Mercator, G. & Hondius, J. (1606). America Meridionalis ...58

Fig. 10: Comarela, C. (s/d). Ruínas do Castelo de Garcia D’Ávila, na Praia do Forte, Bahia ... 101

Fig. 11: Ravacini, F. (2022). “Ouro Preto” ... 103

Fig. 12: Ravacini, F. (2022). “Palácio dos Governadores de Ouro Preto” ... 103

Fig. 13: Almeida, R. C. S. Brasil, Ouro Preto (Patrimônio Mundial da UNESCO). Vista panorâmica .. 139

Fig. 14: Unesp (s/d). Altar-mor da igreja de Santa Ifigênia ... 166

Fig. 15: Unesp (s/d). Detalhe do teto sobre o altar-mor da igreja de Santa Ifigênia ... 167

Fig. 16: Ravacini, F. (2022). “Vista de Ouro Preto com o Itacolomi ao fundo” ... 169

Fig. 17: Rugendas, J. M. (1835). Lavage de mineral d’or près de la montagne Itacolumi ... 234

Fig. 18: Rugendas, J. M. (1835). Catas Altas ... 238

Fig. 19: Spix & Martius. (2017b). Serra de Itambé ... 240

Fig. 20: Rugendas, J. M. (1835). Campos ... 251

Fig. 21: Spix & Martius. (2017b). Lagoa de aves, à margem do rio São Francisco ... 254

Fig. 22: Rugendas, J. M. (1835). Habitants de Minas ... 256

Fig. 23: Rugendas, J. M. (1835). Caravanne de marchands allent à Tejuco ... 259

Fig. 24: Motte, C. É. P. Grav. a partir de Debret, J. -B. (1834). Famille de Botocoudos en marche .. 272

Fig. 25: Rugendas, J. M. (1835). Capitão do matto ... 285

Fig. 26: Rugendas, J. M. (1835). Villa Ricca ... 287

Fig. 27: Rugendas, J. M. (1835). Danse landu ... 295

Fig. 28: Rugendas, J. M. (1835). Danse batuca ... 295

Fig. 29: Debret, J. -B. (1822). Pano de boca executado para a representação dada no Teatro da Corte por ocasião da coroação de Dom Pedro I, Imperador do Brasil ... 302

Fig. 30: Ingres, J. -A. D. (1806). Napoléon ler sur trône impérial ou As majesté l’Empereur des Français sur son trône ... 302

Fig. 31: Schnetz, J. -V. (ca. 1830). Charlemagne, entoure des ses principaux officiers, reçoit Alcuin qui lui présente des manuscrits, ouvrage de ses moines ... 302

Fig. 32: Penna, C. (s/d). Banquete ... 438

Fig. 33: Penna, C. (s/d), Anjos Combatentes ... 441

Fig. 34: Momper, J. (c. 1625). Paisagem de montanha ... 474

Fig. 35: Arquivo Público Mineiro. (1981). Sargento Mór Paulo José de Souza, Primeiro Senhor da Fábrica do Girau ... 524

Fig. 36: Arquivo Público Mineiro (1981). Ruínas da Casa do Jirau, Itabira ... 524

Fig. 37: Kosuth, J. (1965). One and three chairs ... 536

Fig. 38: “Selo (sinete) de Salomão”, a partir de Chevalier & Gheerbrant (2019) ... 619

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xi

“Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê- lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade.

Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor, porque lavada em sangue índio e sangue negro”.

Darcy Ribeiro

“(...) latifundia perdidere italiam”.

Plínio, o Velho

“Iáuê ererê alô gumbê com licença do curiandamba com licença do curiacuca com licença do sinhô moço com licença do dono de terra”.

Canção de vissungo entoada pelos escravos em Minas Gerais no século XVIII

“A literatura brasileira é – muito mais do que para outros países – a História dos brasileiros ajustando contas com eles mesmos. Num país tão vasto, com tão diferentes estágios de desenvolvimento, com tantos grupos nacionais descobrindo sozinhos o Brasil que outros assumem ser o seu, com tão terríveis problemas dividindo inteiras porções da população, com tão obstinadas ideias acerca do que o país tem de ser, podem ter a certeza de que a grande descoberta de um profundo Brasil não foi nunca um processo fácil”.

Jorge de Sena

“A verdadeira gênese não se situa no começo, mas no fim, e ela apenas começará a acontecer quando a sociedade e a existência se tornarem radicais, isto é, quando se apreenderem pela raíz. Porém, a raíz da história é o ser humano trabalhador, produtor, que se remodela e ultrapassa as condições dadas. Quando ele tiver apreendido a si mesmo e ao que é sem alienação, surgirá, no mundo, algo que brilha para todos na infância e onde ninguém ainda esteve: a pátria”.

Ernst Bloch

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Introdução

Na cena na qual se encomenda a morte do beato Sebastião a Antônio das Mortes em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Glauber Rocha faz uso de um plano que desloca o coronel do ângulo da câmera, a qual focaliza a sua sombra projetada à direita, na parede ao fundo, com o Ŗmatador de cangaceirosŗ assentado sob a cruz centralizada e o padre, de pé, à esquerda. O padre e o coronel, a igreja e o poder político, são ali os principais interessados na morte do beato que arrasta as multidões sertanejas e retira fiéis e trabalhadores, isto é, dizimistas e mão de obra barata, dos poderes locais. Ao retirar a figura do coronel da cena e projetar a sua sombra enquanto explica a Antônio das Mortes a necessidade do assassinato do beato, Glauber Rocha acaba por fazer uma sutil sugestão: o poder político e econômico do coronel, associado à lei do estado ou à Ŗlei da balaŗ conforme o próprio manifesta, é um poder de sombra. E de quem o coronel seria uma sombra? Simultaneamente latifundiário e político que legisla a favor de seu próprio latifúndio, o coronel é um elo, ainda que pequeno, de toda uma cadeia produtiva calcada na produção de commodities, especialmente agrícolas, para o mercado estrangeiro, o que responde pela inserção internacional do Brasil desde sua colonização. Assim, quem fala não é apenas o coronel, mas toda uma cadeia produtiva de ramificação nacional e internacional que fala através dele, por isso ele é uma sombra; o padre aparece porque sua retórica moralizante dá a máscara justificadora a esse arranjo que imbrica discrepantemente moral religiosa e interesse econômico, enquanto prepostos de um sistema internacional e invisível. Há, portanto, uma influência nada menos que significativa do interesse estrangeiro na formação do Brasil e essa influência não se manifesta exclusivamente na Ŗlei da balaŗ, mas também se infiltra ao nível da consciência e dos complexos culturais e representacionais relativos ao país e às imagens que os próprios brasileiros, especialmente aqueles mais vinculados à cultura dos centros hegemônicos estrangeiros, fazem de si mesmos e de sua própria terra, pensando-se e pensando-a sempre em paralelo com o modelo civilizacional que impõe obstáculos ao desenvolvimento de seu próprio processo civilizatório, estimulando e dando suporte a conflitos de interesses internos, muitas vezes decorrentes das condições nas quais o país se inseriu na divisão internacional do trabalho. Formas singulares desta discrepância aparecerão recorrentemente nas produções culturais brasileiras, especialmente em sua literatura.

Machado de Assis, em ŖA parasita azulŗ, de Histórias da Meia-Noite, abre o conto com o retorno de Camilo Seabra ao Brasil após oito anos de permanência em Europa, tendo completado seus

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estudos em França. O goiano, entretanto, desembarca no Rio de Janeiro com o semblante Ŗfechado e merencórioŗ, já saudoso de sua experiência europeia:

O espetáculo da cidade, que ele não via há tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a atenção. Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos, e sentia a mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava (Assis, 1985, p. 161).

Filho do comendador, Ŗum rico proprietário de Goiás, que nunca vira outra terra além da sua província natalŗ (Assis, 1985, p. 162), após atender à vontade do pai que se fizera amigo de um naturalista francês que visitara a região em 1828, de que seguisse os passos do francês e fosse estudar em Paris, Camilo, que se torna Ŗparisiense até à medula dos ossos, não compreendia que um homem pudesse sair do cérebro da França para vir internar-se em Goiásŗ (Assis, 1985, p. 163). O Rio o aborrece e ainda mais a lembrança de ter que retornar para a goiana Santa Luzia, ainda menos parisiense; irrita-se, na estrada para Goiás, com Ŗaquela refeição ligeira e toscaŗ num pouso de estrada, distantíssima do requinte dos restaurants e boulevards parisienses, nos quais se lia ainda o Figaro e a Gazette des Tribunaux; prefere a ópera cômica dos teatros franceses à Ŗópera do sertãoŗ formada pelos sons da noite (Assis, 1985, p. 167), até rever a cidade perto da qual estava a fazenda paterna, a Ŗpequena e honesta pátria dos Seabrasŗ (Assis, 1985, p. 170), que é a primeira coisa que o faz esquecer Paris e a russa pela qual se apaixonara na capital francesa. Passado algum tempo, contudo, invade-lhe o que o narrador classifica como Ŗnostalgia do exílioŗ (Assis, 1985, p. 171): é Paris ou o cemitério, pensa Camilo. Ao longo do conto, Camilo Seabra encontrará outros motivos que o façam suspender as saudades parisienses, seja pela admiração com os requintes da tradicional festa do Espírito Santo, seja, especialmente, pela paixão que lhe despertará a bela goiana Isabel. Após um ano de casados, Camilo é visitado por um viajantes francês, o qual traz consigo, além de cartas de recomendação, exemplares do Figaro, dentre os quais Camilo se informará da prisão da Ŗprincesa russaŗ, afinal, ladra e estelionatária. Em suma, muito lhe valeu trocar Paris por Santa Luzia de Goiás, mas, ao fim do conto e às vistas dos exemplares do periódico francês, já velhos, o narrador machadiano, ao explicar a excitação do jovem doutor pela leitura dos jornais, formula uma observação que sintetiza uma clivagem fundamental na autorrepresentação brasileira, pelo menos na da camada dominante e Ŗilustradaŗ da população: para Camilo Seabra, os jornais ŖEram atrasados, mas eram parisiensesŗ (Assis, 1985, p. 191). O jovem doutor em vista recobrar os tempos de mocidade em

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França, ainda que os não trocasse pelo feliz matrimônio com Isabel, desejo de rememoração logo deixado de lado ao ler sobre as desventuras de sua Ŗprincesa moscovitaŗ.

Interessa menos aqui a análise da diegese do conto machadiano publicado entre junho e setembro de 1872 no Jornal das Famílias, passando a integrar, no ano seguinte, as Histórias da meia- noite, do que reter o elemento nuclear a partir do qual ela se desdobra, mesmo quando suspenso pela inserção da paixão romântica entre Camilo e Isabel, retomado na conclusão do conto, e, portanto, comportando-se como seu elemento estruturante, isto é, a propensão do jovem goiano em Ŗtornar-seŗ parisiense e, a partir daí, perspectivar a realidade brasileira mediante paralelo com a sua experiência europeia, contrastando a terra natal com a francesa, em termos de infraestrutura, como a carência de restaurants e boulevards, como de superestrutura, pela valoração, por contraste, da vida cultural europeia como manifestação da civilização e da brasileira como a barbárie. Ainda que atrasados, simplesmente por serem parisienses, os jornais valem mais do que a atualidade da realidade local. A mesma temática, transposta para o campo da composição artística, comparecerá em ŖUm homem célebreŗ, conto que integra o volume Várias histórias, publicado em 1896. Aqui, o pianista Pestana esforça-se inutilmente para se tornar um reconhecido compositor erudito, quando, na verdade, o seu estro artístico melhor se manifesta na composição popular, na polca, o que se lhe aparece como motivo de grande infelicidade.

O que vai tanto num, quanto noutro conto, separados por um intervalo de mais de duas décadas, é tema que o jovem Machado, contando pouco mais de vinte anos, já havia formulado numa crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 29 de dezembro de 1861, na coluna ŖComentários da semanaŗ: ŖO país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlescoŗ (Assis, 1942, p. 111). Mais que o juízo de valor, assinale-se a duplicidade da imagem pela qual Machado perspectiva o Brasil em sua crônica: há um Brasil Ŗrealŗ, popular, e um Brasil Ŗoficialŗ, que a crônica vinculará à cultura bacharelesca cultivada pela classe dominante. Este é o país daqueles que, como o jovem médico Camilo Seabra ou o músico Pestana, assumem como modelo o ideal civilizacional aprendido a partir de Europa; aquele é o país da maioria analfabeta ou semiletrada, resultado inesperado, surpreendente e indesejado da exploração de sua mão de obra pelo Ŗpaís oficialŗ, formado por uma dialética que perpassa a miscigenação que o engendra quer a nível biológico, quer a nível cultural, frutificando um Ŗpovo novoŗ, na terminologia de Darcy Ribeiro (1970; 1987;

1995), que sai da Ŗninguendadeŗ de sua desindianização, deseuropeização e desafricanização para afirmar-se como uma nova configuração civilizacional, formada pelos elementos culturais subsistentes à sua tríplice matriz nuclear, à qual, ao longo do século XX, acrescem-se novos aportes estimulados por

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diversas ondas migratórias, o que é sugestivo do caráter ainda processual, em devir e em disputa, dessa formação civilizacional.

Tal clivagem não foi intuída apenas por Machado de Assis, mas, bem antes dele, já havia sido formulada de modo claro por Gonçalves de Magalhães em seu estudo sobre A revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840, publicado pela primeira vez em 1848 pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, e republicado dez anos depois pela mesma revista. O texto procura tratar da revolta conhecida como Balaiada, uma das muitas revoltas regenciais que marcaram o período anterior à ascensão ao trono imperial brasileiro por D. Pedro II, feita alcançar sua maioridade, como a Cabanagem, no Pará, a Farroupilha, no Rio Grande do Sul, a Sabinada e a Revolta dos Malês, na Bahia. Em seu ensaio, descontadas avaliações de caráter historiográfico, o autor de Suspiros poéticos e saudades faz observação análoga àquela que seria efetuada por Machado:

Estrangeiras são as nossas instituições, mal e intempestivamente enxertadas, avessas aos nossos costumes e naturaes tendências, e em desaccordo com a vastidão de um terreno sem amanho, e differenças inconciliáveis de classes. O caracter transitório do tempo e a convicção de sua instabilidade de tal modo sobre nós tem operado que, nas nossas duvidas, em continuas expectativas e mallogradas experiências, quasi que perdemos a fé do futuro (Magalhães, 1858, p.

11).

Variações do mesmo tema podem ser encontradas no Ŗ14 de Julho na roçaŗ, publicado em 1883 por Raul Pompeia, conto no qual Salustiano da Cunha, um fazendeiro de Campinas, se descobre republicano pelo seu entusiasmo pela Revolução Francesa, não por nenhuma influência da própria conjuntura em que vive, ou mesmo, com sinal trocado, na insistência exacerbada por tudo o que é nacional por Policarpo Quaresma no romance publicado por Lima Barreto em 1911. A literatura brasileira, talvez o meio pelo qual melhor se expressou o pensamento brasileiro, ao lado da música, colocou e recolocou esta mesma questão que já aparece esboçada nos árcades de Minas Gerais, nalgumas das composições satíricas atribuídas a Gregório de Mattos, remontando ao confronto de perspectivas entre Brandônio e Alviano nos Diálogos das grandezas do Brasil, do século XVII, ao contraste das perspectivas do início da colonização entre a Visão do paraíso e O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Sérgio Buarque de Holanda (2000a) e de Laura de Mello e Souza (1986), respectivamente, que mostram como a imagem do Brasil oscilou enquanto repositório metafórico europeu entre duas antinomias, o paraíso terreal e o inferno bárbaro. Clivagem que, no fundo de sua longa duração histórica, arrasta e atualiza a discrepância observada por Hegel (2000, p. 324) a

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propósito das cruzadas, a saber: a contradição entre a moral religiosa e o interesse econômico como motores da conquista da Terra Santa. A mesma discrepância, como se pode observar na esteira dos estudos de Magalhães Godinho (2008) sobre a expansão quatrocentista portuguesa, manifesta-se, ab initio, na formação inicial do Brasil posta em curso pelo processo de colonização, com a especificidade de que aqui o interesse econômico antes lastreado no roubo, no corso e na pirataria, passa a ser configurado pela produção de matérias-primas, atualmente denominadas por commodities, que une a moral religiosa assente no acrescentamento à fé cristã pela catequese dos indígenas ao interesse econômico da produção realizada pela exploração da mão de obra indígena, quando possível e necessário, e principalmente pela escravização de africanos, tendência que se conservou e, mutatis mutandis, se conserva ainda hoje, após a independência do país à metrópole lusa.

A todos os ciclos econômicos de produção de commodities aos mercados estrangeiros a literatura brasileira dedicou alguns de seus melhores trabalhos e a própria permanência cíclica desse arranjo econômico sugere a sobredeterminação exógena do ŖBrasil realŗ ao ŖBrasil oficialŗ que faz o primeiro sobreviver à história como alo-história, isto é, em função de determinações externas, sem compromissos com sua realidade interna. A produção canavieira terá em José Lins do Rego o seu principal romancista; a aurífera aparecerá nos poetas associados ao ŖArcadismo mineiroŗ; a diamantífera aparecerá tanto em O garimpeiro, de Bernardo Guimarães, quanto em Cascalho, do baiano Herberto Sales, e em Minha vida de menina, de Helena Morley; a cafeeira aparecerá em A escrava Isaura, do mesmo Bernardo, em Água Funda, de Ruth Guimarães ou em A menina morta, de Cornélio Penna; as plantações de cacau serão palco dos romances de Jorge Amado; a extração de borracha nas primeiras décadas do século XX, quando dezenas de milhares de brasileiros morreram para fornecer o material à indústria bélica dos Aliados contra as tropas do Eixo, é tema de Dalcídio Jurandir, o autor de Chove nos campos de Cachoeira; a mineração de minério de ferro, que recentemente provocou dois gravíssimos crimes ambientais com rompimentos de barragens que arrasaram comunidades inteiras e dizimaram centenas de pessoas em Minas Gerais, é temática tanto dos primeiros romances de Cornélio Penna, quanto de parte significativa da poesia de Carlos Drummond de Andrade; a produção de carne acompanha as comitivas de gado e paramenta a vida e a morte dos personagens de Guimarães Rosa no sertão mineiro. Talvez apareça, ainda, o escritor da monocultura da soja, se, antes, o latifúndio não se mostrar mais uma vez como a ruína dessa romanidade tardia e tropical. Em todos os casos a tensão que se coloca é a da casa-grande rural ou do sobrado urbano que conformam paisagens com a natureza tropical e entretecem uma intricada dialética com o povo novo que se forma às suas raias, explorando-o ao mesmo tempo em que é

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influenciado por ele e por vezes se remói por não conseguir com ele conciliar. Daí a intuição de Jorge de Sena de que a literatura brasileira é um ajuste de contas dos brasileiros com eles mesmos; essa necessidade obsedante de ajuste é um elemento da psicologia social brasileira, que ora decai, ora recrudesce, nas idas e vinda das conquistas e das deformidades de seu processo civilizatório, que apenas encontra na literatura brasileira um veículo privilegiado, pelo esforço de seus escritores, para sua manifestação: é, portanto, menos uma característica da literatura brasileira que do próprio Brasil, motivo pelo qual se pode proceder a várias abordagens de leitura bastante producentes e sofisticadas da produção literária brasileira sem ter um olho posto em suas especificidades históricas, sociais e culturais, o que não é o nosso caso. A questão que se coloca sempre, para qualquer brasileiro que adquira certo grau de consciência crítica a respeito das determinações que pesam sobre o seu país, é aquela repercutida pelo geógrafo Milton Santos (2002, p. 51): Ŗé possível opor uma história do Brasil a uma história europeia do Brasil, um pensamento brasileiro em lugar de um pensamento europeu ou norte-americano do Brasil, ainda que conduzido aqui pelos bravos brazilianists brasileiros?ŗ. Ou como haveria de ser uma história do Brasil do ponto de vista das classes populares, não do estado ou da academia, como conta D. Maria Amélia sobre um desejo que fora acalentado no fim da vida pelo falecido marido, Sérgio Buarque de Holanda, na cinebiografia em duas partes, Raízes do Brasil (2001), dirigida por Nelson Pereira dos Santos? Adiante-se logo que não será nesta tese que se encontrará a resposta à pergunta que assombra a intelectualidade brasileira há séculos.

A discrepância atualizada pela conformação exógena enquanto se vive no e do território põe em curso novas modulações que, no limite, manifestarão a percepção que Buarque de Holanda (2002, p. 945) sintetizou em Raízes do Brasil: Ŗsomos ainda hoje uns desterrados em nossa terraŗ. Sua formulação tem em vista a estranheza, se não a adversidade, da tentativa de implantação da cultura e das instituições europeias num contexto completamente outro e, incluamo-lo, subordinado desde o princípio de sua formação às demandas da velha Europa. Nela reside, evidentemente, o desterro como vivência estrangeira de uma camada culta, letrada na Europa ou a partir dela, que nela tem o que foi educada para considerar como o modelo civilizacional a ser alcançado: camada ínfima que, mesmo quando já mestiça, nunca teve por regra colocar os pés no barro, nas terras de massapê, em sobe montes pós-montes, picadas em brenhas de florestas, contornando socavões, nos lisos dos planaltos centrais, no estalado chão sertanejo, nos alagadiços pantaneiros, nas verdes coxilhas dos pampas.

Esta camada lança o seu olhar para a realidade brasileira do alpendre da casa-grande, da sacada do sobrado, da janela do condomínio residencial luxuoso: naquilo que vê, não encontra a paisagem comportada, nem as instituições europeias, tampouco o predomínio do clima frio em desfiles de

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casacos que se arrastam com dificuldade com a chuva ou a neve fina que se acumula sobre os chapéus, encontra, antes, uma paisagem rasgada e desordenada, ora selvagem ou quase isso, ausência de instituições estatais, ademais, e em paradoxo, combatidas por aqueles mesmos que admiram as instituições europeias ou anglo-americanas, encontra o império do sol sobre o clima e uma população parcialmente descamisada e multicolorida que se lhe figura como uma espécie de grande animal coletivo. Para essa camada intelectual, oriunda das classes dominantes, que se sente estrangeira na própria terra, o seu pequeno núcleo social não se confunde com a maioria da população, não formam um povo nacional: daí certa propensão ao desfiar de genealogias 1, sofrivelmente transmitidas geração após geração na vida íntima das famílias, que aponte um vínculo, por mais remoto que seja, a um ancestral europeu através do qual se derive a identidade cultural familiar e se imponha um ponto de distinção à anomia sem peias da mestiçagem geral, orientada para o amanhã e no mais das vezes incapaz de se remontar a um tempo mais antigo que aquele de seus avós. Instaura-se, assim, nos termos que aqui mais de perto nos interessam, uma modulação da discrepância: esse brasileiro, que na maior parte das vezes será aquele que ocupará os cargos públicos, que dirigirá a política, que administrará as principais empresas, que escreverá sua literatura, vê o seu próprio povo como diferente a si, fazendo com que o seu sentimento de desterro na própria terra tenha como resultado a tendência de estrangeirar também à própria população, da qual não aceita ser Ŗmais umŗ. A realidade local e cultural é alçada, assim, por um próprio integrante dela, a exotismo manifesto em autoexotismo, posto que orientado para um Ŗsi mesmoŗ, e o exotismo é uma domesticação da diferença, permite que não se tenha de lidar com a comparação ombro a ombro, em sentido reflexivo e de potencial transformador, tratando a diferença como algo lúdico sobre o qual não vale a pena debruçar-se. Se é sabido que o exotismo e o estereótipo são elementos centrais ao discurso colonial (Bhabha, 1998), após a sua independência política o Brasil passa a efetuar uma espécie de autocolonização 2: como na letra da música de Aldir Blanc e Maurício Tapajós Gomes em que Ŗo Brazil não conhece o Brasilŗ 3, pode-se dizer que o Brazil coloniza o Brasil.

A crítica literária brasileira reiteradamente atuou nessa fronteira, percebendo a discrepância basilar a Ŗesse estranho caráter de nativismo e estrangeirismoŗ (Candido, 1969a, p. 72), um descompasso entre o que se define como Brasil e o que se vive como tal (Süssekind, 1990, p. 24). É

1 É o que Antonio Candido (1989, p. 173) denominou por Ŗtendência genealógicaŗ, a qual Ŗconsiste em escolher no passado local os elementos adequados a uma visão que de certo modo é nativista, mas procura se aproximar o mais possível dos ideais e normas europeiasŗ.

2 Situação paradoxal derivada da peculiar separação entre Brasil e Portugal, intuída por Eduardo Lourenço (2018, p. 158) em comentário a Os sertões, de Euclides da Cunha: ŖCom Os Sertões não começou a vera história do povo brasileiro, mas revelou-se a insignificância e o termo da sua pseudo-história, a qual nem fora capaz de assumir realmente a continuidade de um viver de mais de três séculos num mundo novo, nem de romper com ele integrando com originalidade o seu novo destino de continente obcecado pelo futuroŗ.

3 Trata-se da música ŖQuerelas do Brasilŗ, interpretada e gravada por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo (1978): ŖO Brazil não merece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil. / Jereba, saci, / Caandrades, cunhãs, ariranha, aranha, / Sertões, Guimarães, bachianas, águas, / Imarionaíma, Ariraribóia / Na aura das mãos de Jobim-açu. / Uô, uô, uô / Jererê, sarará, cururu, olerê, / Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará. / Do Brasil, SOS ao Brasilŗ.

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esta discrepância constitutiva, enraizada desde a pré-história da história de longa duração brasileira, herança lusa fortemente presente na composição cultural brasileira a despeito do antilusitanismo que se procurou e se procura nela incrustar 4, que comparecerá a alguns dos mais producentes conceitos da crítica literária brasileira, como as Ŗideias fora do lugarŗ 5 de Roberto Schwarz, a Ŗliteratura de dois gumesŗ 6 de Antonio Candido, o Ŗentre-lugarŗ 7 e a Ŗliteratura anfíbiaŗ 8 de Silviano Santiago.

Ambiguidades as quais, não apenas no Brasil, mas no conjunto das letras latino-americanas, resultarão em discrepâncias constitutivas de seus pontos de vista, manifestos nas variadas produções literárias, entre Ariel e Caliban, de José Enrique Rodó a Roberto Fernández Retamar, a partir da polarização dos modelos de Shakespeare instaurada nos servos da ilha de Próspero. O embate entre a forma europeia e o conteúdo americano Ŕ o problema também diz respeito à América do Norte e já aparece com clareza em Edgar Allan Poe, repetindo ocorrências brasileiras, como a dificuldade de elaboração da epopeia que, nos Estados Unidos, como no Brasil, imiscuir-se-á no romance, em Moby Dick, de 1851, e em O Guarani, de 1857 Ŕ acaba por resultar em peculiaridades conteudístico-formais que procurarão responder, em consonância ou dissonância, a esta clivagem inscrita na autorrepresentação do discurso literário modulado a partir de uma escrita palimpséstica, uma vez que elaborada a partir do discurso europeu, portanto exógeno, que possui precedência histórica à representação da América desde a nomeação inaugural das coisas americanas por Cristóvão Colombo, conforme assinalado por Todorov (1998). Nesse sentido, as Ŗfraturasŗ, os Ŗdesconcertosŗ, conscientes ou não, manifestam os descaminhos que a forma europeia encontra nos escritores americanos na tentativa de encontrar

4 Sendo a literatura escrita uma forma de expressão cultural que chega ao Brasil pela via europeia, dado que, de uma forma ou de outra a língua portuguesa, bastante modificada em sua gramática, sintaxe, semântica, na própria cosmovisão que de uma língua resulta, substituiu a Ŗlíngua geralŗ, o nheengatu, o tupi predominante nos dois primeiros séculos de colonização, é inegável o predomínio europeu na norma Ŗcultaŗ, no sentido de erudita e livresca, da cultura brasileira, como o reconhece Ŕ e se deveria tratar de uma obviedade, não fossem contemporâneas tentativas de fantásticas reescritas da história Ŕ o próprio Candido (1989, p. 165): Ŗ[...] a nossa crítica naturalista, prolongando sugestões românticas, transmitiu por vezes a ideia enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de três tradições culturais: a do português, a do índio e a do africano. Ora, as influências dos dois últimos grupos só se exerceram (e aí intensamente) no plano folclórico; na literatura escrita atuaram de maneira remota, na medida em que influíram na transformação da sensibilidade portuguesa, favorecendo um modo de ser que, por sua vez, foi influir na criação literária. Portanto, o que houve não foi fusão prévia para formar uma literatura, mas modificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento do Novo Mundoŗ.

5 É o que Schwarz considera como a Ŗcomédia ideológicaŗ brasileira, diferente da europeia: ŖAo longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa para usá-las. Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre Ŕ ou evite Ŕ o descentramento e a desafinaçãoŗ (Schwarz, 2012, p. 29). Quando não se conseguia sintonizar-se como princípio formal de composição, esse deslocamento, por desconcertar a forma modelar europeia, se tornava, em suas Ŗfrestasŗ, um defeito: ŖEm suma, a mesma dependência global que nos obriga a pensar em categorias impróprias, nos induzia a uma literatura em que essa impropriedade não tinha como aflorar. Ou por outra, antecipando: em vez de princípio construtivo, a diferença apareceria involuntária e indesejadamente, pelas frestas, como defeitoŗ (Schwarz, 2012, p. 36).

6 O termo Ŗdistingue o papel duplo da literatura na formação da sociedade brasileira: de um lado como instrumento do sistema de dominação colonial; de outro, como elaboração de uma linguagem culta própria ao Paísŗ (Candido, 1989, p. 08).

7 Trata-se de a Ŗsituação e o papel do escritor latino-americano, vivendo entre a assimilação do modelo original [europeu], isto é, entre o amor e o respeito pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negueŗ (Santiago, 2000, p. 23), afronta vinculada tanto ao caráter predominantemente mestiço da cultura latino-americana, quanto à imposição de conteúdos peculiares que naturalmente escapam à prefiguração da forma europeia.

8 Segundo Santiago (2000, p. 66; grifo do A.), Ŗnossa literatura tanto configura a carência socioeconômica e educacional da maioria da população do país, quanto define, pelo exercício impiedoso da autocrítica, o grupo reduzido e singular que tem exercido de uma forma ou de outra as formas clássicas de mando e governabilidade nas nações da América Latinaŗ. E conclui: ŖDessa dupla e antípoda tônica ideológica Ŕ de que os escritores não conseguem desvencilhar-se em virtude do papel que eles, como vimos, ainda ocupam na esfera pública da sociedade brasileira Ŕ advém o caráter anfíbio da nossa produção artísticaŗ.

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caminhos que coloquem na forma literária as especificidades locais que a forma europeia não poderia prever, fazendo emergir, no limite e em suas iterações melhor acabadas, as singularidades que se observam na tensão entre civilização e barbárie, como em Sarmiento e em Euclides da Cunha, na antropofagia da primeira fase do Modernismo brasileiro, na consciência do subdesenvolvimento na segunda fase na década de 1930, a cidade ficcional e a vivência psicológica da história pela técnica do fluxo de consciência em William Faulkner, a reelaboração do mito que atravessa a história na Comala espectral de Juan Rulfo, no trabalho linguístico que plasma a cosmivisão sertaneja em Guimarães Rosa por meio de uma metafísica imbricada ao local, no chamado Ŗrealismo mágicoŗ ou Ŗmaravilhosoŗ sob a égide do qual se colocarão autores a um mesmo tempo tão similares e díspares como Miguel Ángel Astúrias, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Jorge Luís Borges, Júlio Cortázar ou Gabriel García Márquez, para dar apenas alguns dos exemplos mais conhecidos.

Enormes são as implicações de tais constatações, dentre as quais o assinalar, no âmbito literário, uma tendência imagológica, especialmente na literatura brasileira. Os estudos imagológicos, desenvolvidos por Hugo Dyserinck e praticados por Manfred Beller, Joep Leerssen, Daniel Henri- Pageaux, dentre outros, no âmbito da literatura comparada, dedicam-se às relações interculturais nas percepções mútuas entre uma cultura e outra, nas imagens e auto-imagens decorrentes dessas relações e de seus mecanismos discursivos de identificação, aos discursos modulados entre o Ŗnacionalŗ e o Ŗestrangeiroŗ. Tendência que se manifesta na representação do gaúcho e da região dos pampas nas literaturas do Cone Sul da América, das comunidades indígenas amazônicas ou do altiplano andino, nas sobrevivências maias e astecas nas literaturas da América Central e nas representações da dominação inglesa e norte-americana nalgumas destas regiões, nos sertanejos brasileiros. Nesse sentido, a literatura brasileira se mostra um corpus singular, pois, sendo as Ŗoutrasŗ culturas parte viva e integrante de um Ŗsi mesmoŗ nacional (Ventura, 1991), mestiço e em formação, ela elabora discursos imagológicos em seu próprio interior, os quais indiciam o caráter de devir e incompletude do processo civilizatório brasileiro, sempre, às voltas da história, em candente disputa, tensionando e reelaborando a forma em função de seu conteúdo.

Nesta tese, propomo-nos a tratar destes motivos a partir das produções literárias concebidas pela referência ao estado de Minas Gerais. Menos que uma pretensão documental, interessa-nos reter e analisar as elaborações imagéticas, a mítica que mobiliza o imaginário nas primeiras entradas ao sertão em prospecção de pedras e metais preciosos pelo interesse colonial, as primeiras caracterizações do espaço a partir de sua penetração e povoamento entre a última década do século XVII e as primeiras do XVIII, a emergência do sentido de pertencimento local no último quartel deste

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século, a organização da paisagem e das peculiaridades naturais e culturais nas narrativas de alguns dos principais naturalistas europeus que viajaram e pesquisaram a região nas primeiras décadas do século XIX, a correlação entre o discurso de formação da nação e o pertencimento à região interiorana em contraste com o litoral e com a Corte em fins deste século, a reelaboração literária deste espaço na esteira do Modernismo brasileiro e de escritores que o retomam ao longo da primeira metade do século XX, desarticulando e rearticulando suas imagens, seus estereótipos, seus imagotipos. Desse modo, sem descurar de sua história de longa duração e das conjunturas sociais e econômicas da formação do território, antes em estreita vinculação com elas, pelo recorte de uma região geográfica, a tese visa aos modos de sua elaboração geopoética, a qual remonta aos elementos que conformam o imaginário mestiço das matrizes culturais a partir das quais nasce o povo novo brasileiro, aproximando- se da memória cultural e se permitindo influenciar tanto pela ensaística brasileira, quanto, em certa medida, pela ambição de Edward Said (2003) em Orientalism e pela formulação de Homi Bhabha (1998) acerca do estereótipo no discurso colonial. Há aqui, entretanto, distinções a se considerar.

Em sua obra, Said está preocupado com a defasagem que verifica nas imagens do Oriente produzidas pelo orientalismo, isto é, pelo cômputo discursivo dos estudos Ŗorientalistasŗ empreendidos por viajantes, por interessados, por acadêmicos, ditos Ŗocidentaisŗ. Isto é parte das intenções desta tese, aplicado, evidentemente, ao que se poderia considerar como Ŗbrasilianismoŗ: o cômputo discursivo das imagens do Brasil produzidas desde os primórdios de sua colonização no século XVI por uma vasta série de representações europeias, o que se referirá especialmente nos três primeiros capítulos. Contudo, tal incursão de certo modo, e em termos bem mais modestos, análoga à abordagem de Said, não é aqui mobilizada por si, antes tendo em vista um ponto de chegada que diz respeito às relações e aos liames que foram estabelecidos entre o cômputo discursivo Ŗbrasilianistaŗ Ŕ terminologia paradoxal, porque diz respeito a um estado de coisas anterior ao da formação do próprio Brasil enquanto nação Ŕ e a produção literária brasileira. Dada a peculiar e recente formação social, cultural e política do país, ao contrário do que diz respeito ao oriente e estritamente ao mundo árabe, no Brasil, esse discurso exógeno, prévio inclusive à sua própria formação, está intrinsecamente imbricado ao que acabou por transformar-se na própria cultura nacional, uma vez que a sua origem não está na unidade, mas na multiplicidade, na qual participa irresistivelmente a cultura do colonizador, sem a qual o país não poderia ser pensado como o é, mas, no limite de uma história contrafactual, já como outra coisa que ele não é. Desse modo, não apenas o que se pode recuperar da cultura indígena é representativo da nação, mas também o será a de milhões de africanos escravizados e a própria cultura lusa do colonizador, e em extensão a europeia, sem as quais não se pode pensar o

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que se processou e ainda se processa como Ŗcultura brasileiraŗ, só pensável pela multiplicidade de culturas Ŕ o que não descura do predomínio e do alto grau de conformação violenta de uma sobre as outras.

O caráter inacabado da nação (não necessariamente um estado é ou será uma nação), e, nisto embutido, o caráter inacabado do que devém como Ŗpovo nacionalŗ 9, também demanda um ajuste à perspectiva de Said. No ensaio ŖThe Changing Bases of Humanistic Study and Critiqueŗ, Said elabora uma crítica contundente ao nacionalismo, argumentando, por exemplo, como na principal obra de Northrop Frye o especialista passa ao largo de questões como o poder de instituições como a monarquia, o departamento de finanças e impostos, companhias coloniais, o sistema de distribuições de terras, escravidão, minorias, Ŗraçasŗ, tomando como referente para sua crítica a retórica nacionalista modulada pelo país para o qual emigrara, os Estados Unidos:

Nationalism gives rise not only to the affirmative mischief of exceptionalism and the various paranoid doctrines of Ŗun-Americanismŗ by which our modern history is so unfortunately disfigured, but also to narratives of patriotic sovereignty and separateness that are inordinately bellicose about enemies, the clash of civilizations, manifest destiny, Ŗourŗ natural superiority, and, inevitably (as now), to policies of arrogant interventionism in politics the world over, so that, alas, in places like Iraq, the United States today is synonymous with a very harsh inhumanity and with policies whose results are particular and, I would say, even perniciously destructive (Said, 2004, p. 50).

Said publica o texto, junto a outros quatro ensaios, em 2003, tendo-o redigido ainda em 2000. Como ele mesmo o explica no prefácio de Humanism and Democratic Criticism, os mesmos passaram por algum grau de reelaboração e estão atravessados pela conjuntura nos Estados Unidos após os ataques terroristas que demoliram as torres do World Trade Center em 11 de setembro de 2001, o que levou ao recrudescimento não apenas da retórica, mas do belicismo propriamente dito do país norte-americano. Ao contrário do que procuram postular algumas teorias pós-modernas, trata-se, portanto, de um texto atravessado por seu contexto, o qual veicula uma preocupação legítima e salutar

9 Aberto Guerreiro Ramos retoma, em A crise do poder no Brasil, duas observações do escritor e político sergipano Gilberto Amado, a primeira delas datada de 1924: ŖPovo propriamente não o temos. Sem contar a das cidades que não se possa dizer seja uma população culta, a população do Brasil politicamente não tem existênciaŗ (Amado citado por Ramos, 1961, p. 43). E, a segunda, proferida em 1931: ŖNão temos povo eleitoral, não temos massa eleitoral esclarecida, ligada a homens políticos, a correntes políticas, a várias diretrizes de interesses e de ideologias nacionais, isto é, nenhum eleitor vai às urnas votar em Fulano de Tal porque ele é comunista (salvo a exceçãozinha aqui do Rio), socialista, radical-socialista, socialista nacional, liberal, democrata, conservador, monarquista, progressista, católico, personalista, antipersonalista etc. O eleitor vota por motivos diversos Ŕ admitamos que sejam os mais nobres e elevados, mas não por motivos políticos no sentido direito da expressãoŗ (Amado citado por Ramos, 1961, p. 43). Evidentemente, de lá para cá muita água passou por esse Ŗmoinho de moer genteŗ, na expressão de Darcy Ribeiro, e o próprio Guerreiro Ramos já afirmava a existência de um Ŗpovo nacionalŗ; o que reinveste a observação de Gilberto Amado de tormentosa atualidade é antes as idas e vindas do processo civilizatório brasileiro e as dificuldades de manifestação política tanto pelo déficit de soberania resultante da inserção predominantemente agrária do país na divisão internacional do trabalho orientada a partir das potências industriais e financeiras, quanto pelo baixo nível do debate público, dominado por empresas privadas de comunicação, e da baixa participação popular nele, obrigada a despender sua energia à própria sobrevivência e a preencher os pouquíssimo momentos de ócio com entretenimento simples e banal que as alivia das mazelas cotidianas, entregue pelas mesmas empresas de comunicação que constrangem qualquer tentativa de debate público ou político que saia dos esquadros determinados pelo poder exógeno para o qual atuam como prepostos.

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a propósito da conjuntura sobre a qual pretende intervir, ainda que nos reduzidos limites nos quais o pode fazer, expressão genuína de compromisso humanista e democrático. Contudo, dada a tônica dominante do ensaio, pode-se perder de vista uma ressalva que o próprio texto encaminha, mas que sua preocupação mais direta pode contribuir para desencaminhar. Derivar da proposição de Said que todo nacionalismo se afigura como aquele sustentado pelos Estados Unidos é incorrer numa categorização a priori digna da metafísica kantiana, pois não há, nem nunca houve, uma só forma de nacionalismo, posto que sua emergência é tão variável quanto são variáveis as populações e suas formas de organização na superfície da Terra, ainda que o atual domínio de corações e mentes pela indústria cultural e informacional reduza sistematicamente a expressão destas variáveis. É preciso colocar a conjuntura norte-americana entre parênteses e retornar ao texto para encontrar a ressalva: os perigos do nacionalismo norte-americano, como a xenofobia e o belicismo, relevam do próprio sucesso anterior de seu projeto nacionalista em obter sua independência nacional, não apenas de direito, mas, também e principalmente, de fato. No caso de países ainda engalfinhados na luta pela obtenção de sua soberania, o risco que se observa no nacionalismo norte-americano se inverte, motivo pelo qual Said argumentará a favor da necessidade, para os palestinianos da atualidade, da consolidação Ŗof a national style in matters of humanistic scholarship and political analysis in fields like history, the study of folklore and oral traditionŗ, estabelecendo museus nacionais, bibliotecas e incorporando a literatura palestina ao currículo escolar, sem o que o risco que se corre é da Ŗnational obliterationŗ (Said, 2004, p. 37). Há, portanto, pelo menos dois nacionalismos no texto de Said: um nacionalismo de ataque e um nacionalismo de resistência, um nacionalismo das nações desenvolvidas que já conquistaram sua soberania nacional e outro nacionalismo das nações impedidas de fazê-lo e que ainda lutam para obtê- la. O que em nada deveria surpreender, não fosse a contemporânea domesticação do pensamento em chave unívoca de expressão maniqueísta: o brasileiro Alberto Guerreiro Ramos (1960, pp. 248-252), já distinguia, em 1960, nada menos que seis tipos de nacionalismo em sua tipologia, distinções que, como se pode supor, as intelectualidades dos países hegemônicos sempre estiveram escusadas de fazer, o que não é o caso de Said. Não é o caso de retomar aqui a tipologia sugerida por Guerreiro Ramos, bastando salientar que a configuração da nacionalidade brasileira, como povo e como nação, e o que consideramos ser o seu inerente processo civilizatório, ambos em constante disputa entre as classes dominantes e as classes populares, na qual se incrusta uma intricada dialética, está muito mais adequado do que observa Said acerca da Palestina do que com relação aos Estados Unidos da América. A formação do povo brasileiro e o sentido da feitura do Brasil são dependentes dos resultados de disputas não apenas internas, mas também externas, como o demonstrou Moniz Bandeira (1978)

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em Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história) e como se verifica na própria história recente do país. Trata-se, portanto, do teor de um nacionalismo defensivo e comprometido com as condições não apenas de sobrevivência, mas de vida plena, de um povo formado inesperadamente da própria empresa colonial da qual é caudatário o desenvolvimento do capitalismo: os brasileiros e outros povos latino-americanos são os principais e imprevistos resultados da modernidade na esteira do capital, e, criados como excedente de mão de obra para fornecimento de matérias-primas para seus marcados, desta estrutura que lhes é anterior e, quando muito, concomitante, precisam naturalmente se defender. Será este, portanto, um Ŗnacionalismo de circunstânciaŗ, posto que subordinado como etapa de um processo civilizatório bem mais amplo, um Ŗmeio provisório de que se servem os povos periféricos, nas presentes condições do mundo, para se libertarem da dependência colonialŗ (Ramos, 1960, p. 253), à qual estão sujeitos, se não formalmente, de fato.

Outro reparo, este mais breve, diz respeito a uma diferença significativa entre o modelo brasileiro e aqueles dos quais resultaram a maior parte das teorias pós-coloniais, incluindo a análise de Bhabha, calcada em Fanon e em Said, acerca do estereótipo. Os três autores derivaram suas abordagens de contextos coloniais no qual há sobrevivência e manutenção dos povos sobreviventes enquanto tais, a partir das quais se contrastam as defasagens do discurso exógeno sobre esses povos para Said, os efeitos psicológicos da dominação colonial nos colonizados para Fanon e a articulação dos estereótipos no discurso colonial e seus modos de subjetivação para Bhabha, que contorna, pelo interesse no mecanismo de subjetivação, a correspondência (ou não) fática das dos estereótipos. Seja como for, o caso brasileiro é singular (há outros semelhantes), uma vez que o ser brasileiro pressupõe a participação tanto do colonizado Ŗautóctoneŗ, o indígena, quanto do colonizado forçadamente transplantado, o africano, quanto do colonizador português, ao qual posteriormente se acrescerá novas levas imigratórias europeias e de outras culturas, influentes, mas bem menos que o luso, uma vez que aportam ao território quando o seu núcleo civilizacional já está constituindo, no mais das vezes abrasileirando-se completamente no decurso de uma única geração. Desse modo, o discurso exógeno, europeu, luso, as imagens e o imaginário que trazem consigo e replanta na América Portuguesa, mesclando-se aos mitos indígenas e africanos, é parte do ser brasileiro 10, parte de sua cosmovisão, de

10 E tanto é parte por apropriação que o reflexo desta se fez notar Ŕ e creio que em casos a cada vez menos gerais ainda se faz Ŕ na própria identidade portuguesa, como ressalta Lourenço (2018, p. 247; grifos do A.): ŖTer perdido o Brasil é ter perdido o direito de nos definirmos pela espécie de alma sem fronteiras que o Brasil nos dava, quer dizer, de sermos menos este ser preciso que somos enquanto portugueses. É nesse sentido, enquanto o Brasil servia não à nossa definição, mas à nossa indefinição que não conhece limites senão os da mesma humanidade, que é sublime haver ainda alguém em nós que chora esse Brasil. A triste verdade (é ela sempre triste!) respondeu e responde pouco a esta indefinição que no fundo da alma nos define e para a qual ter perdido o Brasil é apenas o equivalente de ter perdido o Mundo, quer dizer, de habitar um mundo que não é a medida do homemŗ. Indefinição portuguesa, a se crer em Lourenço, da qual o brasileiro se apropriou, seja em termos de ser, seja em termos de fazer, para o bem e para o mal, o que deixa em aberto o devir de seu processo civilizatório. Fossem consequentes as políticas da CPLP, estivesse Portugal menos afeito à miragem europeia e o Brasil um pouco menos embotado em seu mundo indefinido como uma enorme ilha, esse ser num mundo, senão materialmente, humana e culturalmente compartilhado, poderia adquirir possibilidade de existência, integrando-o ainda os países africanos lusófonos para os quais o Brasil por afinidade e maior

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