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Problemas da condição periférica

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Academic year: 2021

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PROBLEMAS DA CONDIÇÃO PERIFÉRICA

“Oh! Os países coloniais sempre em reflexo, jamais em reflexão”. (Henri Guillemin)

O número 32 de Perspectivas trata da condição periférica e procura chamar a atenção para alguns de seus problemas. Esse é um tema difícil que, pelo menos há dois séculos, atormenta a imaginação sociológica latino-americana e brasileira, forçando seus intelectuais a viverem, como uma espécie de condenação, a estranha sensação – que tanto inquietava Sérgio Buarque de Holanda – de que são desterrados em sua própria terra. Situação incômoda que expressa a dificuldade de se transitar, permanentemente, entre um duplo presente, já que se oscila entre realidades, aparentemente, contrapostas. Ou seja, conforme se dizia na linguagem fortemente engajada na superação da condição colonial típica dos anos 1950, nesses contextos, viver-se-ia sob a “contemporaneidade do não coetâneo”. E, de maneira geral, mesmo nos registros mais críticos, quando se pensava tal condição em sua relação com os centros hegemônicos, havia uma tendência de se vislumbrar o futuro como uma espécie de realização tardia do presente dos países considerados desenvolvidos.

As lições dos últimos anos – com o desfile de mazelas decorrentes da adesão da maioria dos países periféricos à agenda modernizadora imposta pelo fenômeno da globalização – indicam que estamos adentrando numa nova dinâmica, que pode levar à superação definitiva desse modo de pensar. Afinal, para esses países, a cada dia torna-se mais evidente que não se trata mais de seguir passivamente a agenda modernizadora, com a esperança de que um dia eles atingirão o ideal da modernidade ocidental. Hoje, o grande desafio está em refletir sobre os problemas não exatamente como decorrentes de uma condição “atrasada”, que será superada pela modernização, mas sim como expressão de uma modernidade específica, periférica, que em sua crueza e

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radicalidade talvez esteja antecipando questões e dilemas que, em algum momento, eclodirão com toda força no centro dos países considerados modernos e desenvolvidos.

Se se coloca a questão a partir desse ponto de vista, então se faz necessário o exercício de um tipo de “imaginação sociológica” que vê a condição periférica não como um lugar que personifica o passado dos países considerados desenvolvidos, mas como um espaço privilegiado para olhar a realidade contemporânea em seu conjunto. Os textos que compõem este número de Perspectivas, cada a um a seu modo, procuram fazer esse tipo de reflexão, contribuindo assim para aprofundar não apenas o conhecimento de temas, problemas e situações, típicos da “condição periférica”, mas também para lançar luz sobre dimensões importantes da modernidade radicalizada.

O volume se abre com o bloco “Estado e desenvolvimento” e conta com dois textos densos e instigantes na reconsideração de tais temas. O primeiro, do cientista político pernambucano Marcos da Costa Lima, analisa a dinâmica atual e a crise do capitalismo do ponto de vista da periferia latino americana. Insatisfeito com o empobrecimento do debate sobre desenvolvimento verificado durante a vigência da hegemonia do “Consenso de Washington”, Costa Lima faz um interessante resgate das diversas teorias que, desde o período pós-segunda guerra mundial, informaram a reflexão sobre esse importante tema. A partir do estabelecimento de três períodos históricos como referência da análise, se indaga se essas teorias ainda dão conta do processo em curso ou estão a exigir uma profunda superação e o estabelecimento de um novo paradigma explicativo. Para dar conta de sua proposição, Costa Lima recupera, primeiramente, as formulações que foram estabelecidas no contexto posterior à segunda guerra mundial, conhecido como de construção da indústria latino-americana, dando bastante ênfase às contribuições de Raúl Prebish e da Cepal. Em seguida, trata das formulações que informaram o que qualifica como período autoritário-burocrático, também conhecido como de modernização conservadora. Por fim, passa em revista, o período atual sob hegemonia do capital financeiro ou globalização, e vivenciado sob a égide do chamado “Consenso de Washington”. Para concluir o trabalho, faz considerações bastante instigantes acerca das formulações que vem sendo desenvolvidas com vistas a superar tais perspectivas, dando especial destaque às contribuições de Amartya Sen.

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O segundo texto do volume, de Carlos M. Villas, de certa maneira complementa a abordagem de Costa Lima, já que procura mostrar, através de uma análise bem fundamentada, como, ao longo da década de 1990 em vários países de América Latina, passou-se de uma posição extremamente negativa com relação à atuação do Estado para outra que valoriza o seu papel na regulação da economia e das relações sociais. Tal mudança seria uma decorrência do fracasso das políticas e estratégias usualmente conhecidas como “Consenso de Washington”, especialmente no que se refere ao crescimento sustentado, à estabilidade macroeconômica, ao emprego e ao bem estar social. Villas procura mostrar como em alguns dos países que seguiram essa agenda o fracasso foi tão retumbante que acabou alimentando protestos sociais que levaram a mudanças políticas importantes e de grande magnitude. Desse modo, mostra que, em contraste com o panorama predominante nas últimas décadas do século XX, o Estado passa a ser novamente pensado como ferramenta de desenvolvimento e de bem estar social, através da execução de políticas ativas que incluem o impulso a processos alternativos de integração e coordenação regional. O artigo também analisa o caráter historicamente variável da relação Estado-economia e os fatores que conduziram à adoção do “Consenso de Washington”, bem como as razões que levaram a seu abandono ou a sua reformulação. Discute ainda em que medida essa mudança implica uma inovação, um retorno a velhos estilos “desenvolvimentistas” ou “populistas”, ou apenas a recorrência da oscilação cíclica entre períodos de ênfase no Estado e períodos de ênfase no mercado.

O bloco temático que vem a seguir, intitulado “Emergências”, é composto por três textos e se concentra em temas que, em tese, deveriam estar superados pelo advento da modernidade radicalizada. O primeiro texto do bloco, de Roberto Torres, a partir do reconhecimento de que a fragmentação do conhecimento não tem permitido compreender fenômenos como o neopentecostalismo brasileiro no quadro de uma análise do processo de expansão do capitalismo para a periferia, propõe-se a fazer um esforço nesta direção. Com base em considerações teóricas sobre a expansão e a legitimação do racionalismo moderno para sociedades periféricas como o Brasil, Roberto Torres desenvolve a tese de que a “máquina narrativa” do neopentecostalismo deve ser compreendida como expressiva de um “novo espírito do capitalismo” na modernidade periférica.

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Esta tese, na trilha weberiana seguida por autores como Pierre Bourdieu, procura articular a produção deste “novo espírito do capitalismo” com a dinâmica das classes sociais e a legitimação das clivagens e estilos de vida decorrentes da singularidade da desigualdade social na periferia do ocidente. Para o jovem sociólogo, a experiência de legitimação da descartabilidade dos indivíduos, aparentemente, típica da “modernidade periférica” nos permitiria explicar a dominação e a desigualdade social que a explosão das periferias estaria revelando no centro do capitalismo.

Na seqüência, encontramos o texto da antropóloga Renata M. Paoliello, sobre a criação de redes sociais e processos políticos entre os remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira, em São Paulo. No trabalho, Paoliello discute as tensões emergentes, nos processos em curso nas áreas remanescentes de quilombos do sudeste paulista, entre a ação coletiva mediada por um movimento social e reforçada pelo reconhecimento legal de um direito coletivo ao território, e as múltiplas estratégias dos agentes locais visando contornar a precariedade de sua condição social e econômica. Para isso, utiliza-se de uma abordagem etnográfica de redes sociais, entendendo essas tensões como críticas para as políticas sociais cujo objetivo é o desenvolvimento territorial. Beneficiando-se de uma interessante articulação entre a bibliografia antropológica a respeito da constituição de redes sociais e a literatura política que trata dos dilemas da ação coletiva, a antropóloga procura mostrar a importância de se mapear a constituição dessas redes sociais para se visualizar tendências de ação e escolhas, afastamentos ou aproximações ao movimento social e às políticas públicas. Com isso, procura lançar luz sobre as formas através das quais os moradores das áreas remanescentes de quilombos – de há muito subtraídos de seus direitos civis – estão conseguindo fazer convergir o reconhecimento de seu direito à diferença com a aglutinação de suas demandas na figura legal de um direito coletivo, proposto pelas agências públicas.

O texto seguinte do bloco, de Ricardo L. Sapia de Campos, retoma tema de grande importância, na medida em que coloca seu foco na questão do desenvolvimento rural. No trabalho, Sapia Campos procura discutir a relação entre conhecimento e cooperação no meio rural, pensando-a nos marcos das transformações produtivas e tecnológicas recentes, mas enfatizando os agentes desta produção como atores de tal

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transformação. Sua preocupação é destacar como o conhecimento considerado tradicional pode ser mobilizado de modo a interagir com a capacidade empreendedora típica da sociedade industrial para constituir-se como a principal força produtiva na construção de “novos mercados”. Para realizar seu intento, Sapia Campos recorre a autores clássicos da sociologia, particularmente a Marx e Weber, resgatando suas contribuições para esse debate. Sua principal preocupação é entender de que forma se pode conceber o desenvolvimento rural a partir de um saber-fazer (ou força produtiva) típico deste chamado “mundo rural”, que interage com as conquistas técnico-científicas identificadas com a precisão e a codificação atribuídas à sociedade industrial.

O bloco seguinte que denominamos “Insurgências” conta com dois textos e aborda situações e movimentos que poderiam ser qualificados como anti-sistêmicos. O primeiro texto, da antropóloga mexicana Gloria Alicia Caudillo Félix, aborda o significado da chegada de Evo Morales à Presidência da Bolívia. Para isso, realiza uma análise do discurso de posse de Evo Morales como Presidente de Bolívia, emitido ante o Congresso, em 22 de janeiro de 2006. Na análise, os principais elementos detectados no documento são a valorização da memória insurrecional do movimento indígena boliviano, o pertencimento de Evo a um “nós” coletivo sem perder seu papel de intermediário desde um espaço de poder, assim como a reprodução de uma visão cíclica de larga duração presente na cultura andina que projeta a utopia descolonizadora de que se vive a emergência de um novo tempo. Nesse novo tempo-espaço, desde a perspectiva de Evo Morales, o país fragmentado se reconstruirá a partir de uma revolução democrática cultural, que logre superar o que se considera ser a atual desordem para se construir uma nova ordem inclusiva e respeitadora da diversidade que compõe o povo boliviano.

O texto seguinte, do cientista político norte americano Harry Vanden, analisa o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) no Brasil, relacionando-o e comparando-o com outros movimentos contestatórios da ordem vigente na América Latina, ainda hegemonizada pela dinâmica neoliberal. Para isso, retoma o secular processo de concentração de terras e de marginalização das massas camponesas pelas elites dominantes para relacioná-lo com o recente processo de desencantamento com as instituições representativas tradicionais, vivenciado por amplas parcelas da população do subcontinente em face das conseqüências da

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globalização. Com esse pano de fundo, vislumbra no MST (e nos demais movimentos sociais que desafiaram os padrões de formulação de políticas) não só um processo de fortalecimento da democracia participativa, mas uma mudança substancial nas formas anteriores de ação política vigentes no Brasil e na América Latina.

Por fim, encerrando o volume, o embaixador Rubens Ricupero, ex-Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, em entrevista concedida a Christina W. Andrews, aborda os dilemas dos países periféricos para sua inserção na dinâmica do comércio internacional. Tomando como referência a atuação da UNCTAD e da Organização Mundial do Comércio – OMC, o embaixador descreve as dificuldades dos países periféricos para fazer do comércio internacional um instrumento do desenvolvimento. Entre outras observações, ele argumenta que não há fundamento para sustentar a crença de que a liberalização do comércio de produtos agrícolas beneficiaria os países “mais pobres entre os pobres”.

Como se poderá notar da leitura dos textos, talvez estejamos, enfim, adentrando numa dinâmica em que a “condição periférica” deixe de ser reflexo e comece a se transformar em posto privilegiado de reflexão. Oxalá tal vaticínio se realize e que o “atraso”, ainda que não possa ser considerado como uma vantagem, não seja mais justificativa para nos sentirmos desterrados em nossa própria terra.

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