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NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS: NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE

LINGUAGEM

ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:

NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS

SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

CUIABÁ-MT 2019

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2 2019 A NA P A OLA D E S OZA LI MA NOSS O S C O R P OS NÃO SÃO MA IS O S ME SMOS: NAR RAT IVA S D E MU LHER ES TRA NS E T R AVE ST IS SOBRE O PROCESSO DE EN VE LHEC IME N TO UFMT

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE

LINGUAGEM

ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:

NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS

SOBRE O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO

CUIABÁ-MT 2019

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ANA PAOLA DE SOUZA LIMA

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS: NARRATIVAS

DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS SOBRE O PROCESSO DE

ENVELHECIMENTO

-

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Doutora em Estudos de Linguagem na Área de Concentração de Estudos Linguísticos.

Orientador: Prof. Dr. Dánie Marcelo de Jesus

Cuiabá-MT 2019

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5 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte. S729n SOUZA LIMA, ANA PAOLA DE.

NOSSOS CORPOS NÃO SÃO MAIS OS MESMOS:

NARRATIVAS DE MULHERES TRANS E TRAVESTIS SOBRE O SEU PROCESSO DE ENVELHECIMENTO / ANA PAOLA DE SOUZA LIMA. -- 2019

145 f. ; 30 cm.

Orientador: DANIE MARCELO DE JESUS.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, Cuiabá, 2019.

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Dedico este trabalho a todas as mulheres trans e travestis que lutam diariamente pela construção de seus corpos e suas vidas em uma sociedade excludente, que se nega a entender que anormal é a falta de respeito ao próximo.

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AGRADECIMENTOS

É humanamente impossível escrever um trabalho acadêmico desta natureza sozinha. Portanto, nada mais justo que tentar expressar nestas páginas o quanto as pessoas abaixo listadas foram (e ainda são) importantes para o andamento da minha tese, e para a minha vida.

Primeiramente, agradeço enormemente ao meu orientador, prof. Dr. Dánie Marcelo de Jesus, pela sugestão de perscrutar o caminho dos estudos de gênero e linguagem, pela firme orientação, pelas exigências, cobranças e, acima de tudo, pelo respeito e afeto. Declaro firmemente que, sem você, Dánie, as presentes páginas não seriam possíveis. Minha eterna gratidão pela sua atenção, generosidade, preocupação com a tese e com meus problemas particulares, dicas, leituras críticas e amizade.

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem-PPGEL, da Universidade Federal do Mato Grosso, especialmente à profa. Dra. Divanize Carbonieri e ao prof. Dr. Fernando Zolin Vesz, com os quais tive mais aulas e/ou mais contato.

À minha amiga e irmã, Perla Haydee da Silva, que fez o meu trilhar mais leve, mais divertido e suave, sempre com dicas, comentários, risadas, conselhos e comida, muita comida!

A todos os meus colegas do PPGEL pelas conversas e momentos de construção de conhecimento.

Às Profas. Dra. Amara Moira e Dra. Rubra Araujo, aos Profs. Dr. Renilson Ribeiro e Dr. Luís Mendes pelas importantes e essenciais contribuições em meus exames de qualificação. Agradeço a vocês também pela disponibilidade em atender às minhas necessidades e por terem aceito o convite. Vocês foram de uma delicadeza, atenção, minúcia que só fizeram de mim uma pessoa melhor.

À Maria Aparecida dos Santos, minha coordenadora geral no Centro de Línguas-CELIG, que, além de me ouvir nos momentos mais difíceis da tese, foi amiga, parceira, companheira, paciente e uma chefa maravilhosa. Obrigada pela honestidade, sinceridade, companheirismo e motivação.

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9 Ao Centro de Línguas-CELIG e a todos os seus professores que me apoiaram e entenderam a minha correria em diversos momentos. A todos os meus alunos do CELIG pela paciência com uma professora que finalizava a sua tese.

A Ricardo Hakme Romano, meu amigo, meu amante, meu parceiro, meu amor. Minha gratidão pelo seu apoio incondicional, sua compreensão, seu suporte sem questionamentos, por me ouvir falar de coisas que são totalmente diferentes da sua atuação profissional, por participar comigo de coisas que estavam além da sua compreensão e, principalmente, por ser tão pronto para ouvir, aprender e questionar. Você está se tornando um doutor junto comigo. Obrigada pelo seu amor, companheirismo e por ter constituído uma família ao meu lado.

À minha borboleta Eloísa, por me ensinar que nada melhor que um sorriso, um abraço apertado e um beijo estalado para recomeçar.

Aos meus pais, Regina e José, pelo suporte financeiro. Agradeço também por terem desaprovado o tema e por me descredibilizarem enquanto sujeita que pensa e toma decisões. Vocês foram a força mecânica que fez minha máquina trabalhar para chegar até aqui.

À minha tia Sandra Regina de Araujo, a vó Oca, minha segunda mãe, que foi tão querida com minha filha nos momentos em que precisei me ausentar e não tinha quem cuidasse dela. Que sempre nos encheu de pipoca com guaraná, fez todas as minhas vontades e não mediu esforços para me apresentar todas as travestis que encontrava na rua e falar da minha pesquisa.

Agradeço também à minha avó Letícia Gonzaga de Araujo (in memorian), falecida durante a escrita da minha tese, e que tanto me motivou para que eu alcançasse os meus objetivos.

À minha amada avó Wandi de Lira Lima (in memorian) que também me deixou nos últimos meses da tese. Obrigada pelo seu amor incondicional e pela fé que tinha em mim. À minha irmã de alma, Alessandra Calçada Aguiar, e à sua companheira Tatiany Aguiar Calçada, que tanto me apoiaram, incentivaram, ouviram, sugeriram e me divertiram no decorrer deste árduo processo. Amo vocês para sempre.

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10 Aos melhores amigos que alguém pode ter: Thiago Itacaramby e Alessandra Moreira Itacaramby, minha gratidão e meu afeto eternos por todos os momentos em que me acolheram, me serviram “pão seco”, uma cama confortável e me ensinaram tanto sobre a vida. Não há palavras para expressar o quanto amo vocês.

Minha gratidão à minha grande amiga Jordana Lenhardt por ser sempre tão presente e espirituosa, com resposta para tudo, olhos nas costas e ouvidos sempre a postos. Penso que Deus foi muito generoso comigo. Obrigada, amiga.

Meu agradecimento especial a George Santana, a Twigue Vogue, a minha drag favorita que me acompanhou pela estrada BR 163, sempre me atualizou do mundo trans, com dicas de vocabulário, sugestões de livros e, acima de tudo, me apresentou algumas das interlocutoras que fazem parte desta pesquisa.

Várias pessoas contribuíram para que minha ida ao doutorado acontecesse. Meu agradecimento especial à profa. Ma. Paula Sampaio, do departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso, Câmpus de Rondonópolis, que me convidou para participar de seu grupo de estudos Gênero e Cidadania, grupo este que me abriu os olhos para inúmeras questões sociais e de gênero existentes em Rondonópolis. Agradeço também ao prof. Dr. Aguinaldo Rodrigues Gomes, do departamento de História, hoje na Universidade de Uberlândia, que prontamente aceitou ler o meu pré-projeto e tão carinhosamente ofereceu sugestões de leituras e redação.

Ao atencioso Prof. Dr. Neil Franco pelas valiosas sugestões e por intermediar algumas entrevistas, sempre muito disposto a me ajudar.

À minha querida colega Profa. Dra. Julma Vilarinho Borelli pelo acolhimento, carinho, paciência e sorriso estampado no rosto, nos momentos finais e mais difíceis desta tese. Ao meu querido amigo Jaelyton Campos. Você é indescritível. Meu agradecimento por todas as sugestões, todos os prints de conversas de grupos do Whatsapp dos quais eu não podia participar. Muito obrigada por me mostrar caminhos, me indicar pessoas, sugerir reflexões. Não há como me esquecer de todos os vídeos que você me encaminhava e das risadas que demos juntos. Você está para sempre no meu coração. Para sempre.

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11 A Adriana Liário que desde o início me acolheu e me colocou “dentro da sua casa”. Meu agradecimento pelo carinho, atenção, respeito e por ter aberto portas para que eu realizasse minha pesquisa dentro da sua comunidade.

Às travestis Dê Silva e Bruno do Prado Alexandre. Vocês são demais. Não há palavras para descrever a admiração que tenho por vocês na luta por uma sociedade mais igualitária.

Uma pesquisa qualitativa acontece a partir do momento em que pessoas estão dispostas a partilhar. Sendo assim, esta pesquisa não existiria sem aquelas que me cederam suas histórias, sua atenção e seu tempo no intuito de me auxiliar a entender suas vivências. Meu eterno agradecimento a todas as mulheres trans e travestis que colaboraram tão grandemente com o trabalho.

À grande amiga que ganhei de presente no decorrer da pesquisa, Sara Wagner York. Muito obrigada pelos abraços virtuais, histórias, vivências, carinho.

À Profa. Dra. Simone Ávila pelos insights, relatos, pelas dicas preciosas advindas de conversas inocentes regadas de muito carinho, respeito e pitadas de cigarro.

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12 Bordando a vida

A agulha é o tempo; Que costurou esta história, Tão rápida como o vento; Remendando as memórias.

O passado já não volta; Só me resta a saudade; Então toque logo a valsa; Desta tal realidade.

No bailado desta vida; Eu dancei em verso e prosa; Com o moço ou a dama mais bonita; Sob pétalas de rosas.

As linhas da minha pele; Fizeram a trama mais bela; A lembrança que remete; O florescer das primaveras.

Que as rendas da felicidade; Bordem este lindo sonho;

Tecendo a colcha das amizades Me afastando do abandono.

Eu ainda tenho medo; De sofrer injustamente; Não retirem meus direitos; De viver dignamente.

Nos meus cabelos a brancura; Como fios de algodão; No meu rosto a ternura; Nos meus braços a paixão.

Meu silêncio, às vezes, é grito Contra seu preconceito pobre; Só não julgue meu espírito; Eternamente jovem.

Da lágrima ao sorriso; Da dor à esperança; vou escrevendo o meu livro; de amor e de lembranças.

Eu sou o reflexo do espelho; Eu sou o brilho da aurora; Eu sou quem precisa de respeito; Eu sou a pessoa idosa

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13 RESUMO

As vivências de mulheres trans e travestis desencadeiam uma série de análises acerca do binarismo de gênero homem/mulher, uma vez que sua materialização ocorre por meio da construção de uma imagem que destoa da imagem da feminilidade imposta pelo discurso hetero-cis-normativo. Outrossim, a categoria geracional velhice, igualmente, insere-se em um campo minado por discursos orientados por binarismos outros como saudável/prejudicial; digno/indigno; certo/errado; belo/feio. Essa pesquisa de doutorado, portanto, visa analisar narrativas acerca do processo de envelhecimento de mulheres trans e travestis, com os objetivos de a) compreender como as travestis/mulheres trans constroem sentidos acerca de si, sejam elas idosas ou não; b) entender como as mulheres trans/travestis percebem/significam o seu processo de envelhecimento; c) assimilar como as mulheres trans/travestis articulam as noções de gênero e envelhecimento na sua construção identitária. As perguntas que nortearam esse estudo foram: 1. Como as travestis/mulheres trans significam o seu processo de envelhecimento?; e, 2. De que maneira as violências sofridas pelas travestis/mulheres trans em suas trajetórias são determinantes/marcadores do início do seu processo de envelhecimento? Para tanto, lancei mão da pesquisa qualitativa-interpretativista (FLICK, 2009; KING; HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006), uma vez que ela não constitui-se em outro binarismo – certo/errado, mas apoia-se na leitura de um determinado contexto a partir das lentes de um dado investigador. A entrevista narrativa foi a principal ferramenta constituída por meio de perguntas abertas. Os resultados indicam que o processo de envelhecimento das sujeitas em referência não se fixa em uma idade cronológica, de igual modo, sofre influências das inúmeras formas de violência enfrentadas pelas mulheres trans e travestis nas ruas.

Palavras-chave: Mulheres trans e travestis; transgêneras; envelhecimento; velhice; discurso.

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14 ABSTRACT

The experiences of trans women and transvestites trigger a series of analysis about the gender binarism male/female, since their materialization occurs through the construction of an image which distorts the image of femininity imposed by the hetero-cis-normative discourse. Moreover, the age-old generational category, likewise inserts itself in a field undermined by discourses guided by other binarisms as healthy/harmful; worthy/unworthy; right/wrong; beautiful/ugly, youth/elderly. This doctoral research, therefore, aims to analyze narratives about the aging process of trans women and transvestites, with the objectives of: a) understand how travestites/trans women construct meanings about themselves, whether they are elderly or not; b) understand how travestites/trans women perceive/signify their aging process; c) assimilate how travestites/trans women articulate the notions of gender and aging in their identity construction. The questions that guided this study were: 1. How do travestites/trans women mean their aging process? and, 2. In what ways do the violence suffered by travestites/trans women, in their trajectories, determine the markers of the onset of their aging process? For that, I used qualitative-interpretative research (FLICK, 2009, KING; HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006) since it does not constitute another binarism - right / wrong, but it supports in a given context from the lens of a given researcher. The narrative interview was the main tool, organized as open questions. The results show the aging process of trans women and travestities is not based on a chronological age, and also, it suffers influence of a variety of manners of violence faced by them.

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15 RESUMEN

Las vivencias de mujeres trans y travestis desencadenan una serie de análisis acerca del binarismo de género hombre / mujer, una vez que su materialización ocurre por medio de la construcción de una imagen que desentona de la imagen de la feminidad impuesta por el discurso hetero-cis-normativo. Asimismo, la categoría generacional vejez, igualmente, se inserta en un campo minado por discursos orientados por binarismos otros como sano / perjudicial; digno / indigno; correcto / incorrecto; bonito / feo. Esta investigación de doctorado, por lo tanto, busca analizar narrativas acerca del proceso de envejecimiento de mujeres trans y travestis, con los objetivos de a) comprender cómo las travestis / mujeres trans construyen sentidos acerca de sí, sean ancianas o no; b) entender cómo las mujeres trans / travestis perciben / significan su proceso de envejecimiento; c) asimilarse como las mujeres trans /travestis articulan las nociones de género y envejecimiento en su construcción identitaria. Las preguntas que guiaron este estudio fueron: 1. ¿Cómo las travestis / mujeres trans significan su proceso de envejecimiento?; y 2. ¿De qué manera las violencias sufridas por las travestis / mujeres trans en sus trayectorias son determinantes / marcadores del inicio de su proceso de envejecimiento? Por lo tanto, renuncié la investigación cualitativa-interpretativista (FLICK, 2009; KING; HORROCKS, 2010; DENZIN; LINCOLN, 2006), una vez que no se constituye en otro binarismo, correcto / equivocado, pero se apoya en la lectura de un determinado contexto a partir de las lentes de un investigador. El cuestionario tuvo por delimitador la entrevista narrativa, por medio de preguntas abiertas. Los resultados indican que el proceso de envejecimiento no se fija a una edad cronológica, de igual modo, sufre influencias de las innumerables formas de violencia enfrentadas por las mujeres trans y travestis en las calles.

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SUMÁRIO

Os Primeiros Passos 17

CAPÍTULO 1: Considerações acerca do envelhecimento: o babado e a

confusão encontrados nas pesquisas 40

1.1 O envelhecimento biológico nos seres humanos 41

CAPÍTULO 2: O Corpo: Uma Metamorfose Ambulante 61

2.1 O corpo da Grécia Antiga até os tempos atuais 62

2.2 Corpos indisciplináveis, corpos nada dóceis e o diálogo com

Foucault e a Teoria Queer 71

CAPÍTULO 3: Transitando Pelos Preceitos Metodológicos 77

3.1 O caminho bafônico: da escolha da abordagem metodológica

ao tratamento dos dados 79

3.2 As tias, as vós e as novinhas: elas arrasam! 86

CAPÍTULO 4: Corpos em Transformação: os babados contados por

Travestis/Mulheres Trans 99

4.1 Ai que batifum! 100

4.2 Se joga! 117

(IN) CONCLUSÕES 125

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Os Primeiros Passos

Colorir Faltará tinta No dia que o céu for livre Pra todos serem o que são Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão Faltará nomes Pra descrever o mundo sem as misérias O que sentimos, o que nos tornamos O novo ser sem medo de viver Faltará a falta que nos entristece Que hoje enche o peito de vazio e fumaça Não faltará amor, não faltará sonhos O novo mundo se abrirá para o futuro Onde o presente dominará o passado E nossos corações enfim serão salvos Virgínia Guitzel

esfile de 7 de setembro de 2017: encostei em uma árvore, para me proteger do sol ao lado da “Rita Lee”, ou “a vó”, como é conhecida uma das travestis1 mais velhas da casa da Meire2

pouco mais de 50 anos. Trocamos algumas palavras enquanto aguardávamos o restante do grupo chegar e podermos nos organizar para nossa entrada na avenida. Acendemos um cigarro e fitei as demais meninas3. Corpos besuntados de sexualidade, seios fartos,

glúteos avantajados, maquiagem retocada, cabelos longos e escovados, unhas feitas, saltos altos.

Algumas gritavam numa alegria contagiante, outras retocavam o batom, ajeitavam o cabelo, numa sensualidade sem fim. As bichas4 queriam causar. Com toda

1 A Rita Lee é o apelido da vó, uma das travestis mais velhas da casa onde mora. No decorrer da pesquisa,

ela aparece como Jussara, um nome fictício, pois a mesma me pediu que seu nome verdadeiro não aparecesse por já ter trabalhado com pessoas conhecidas na cidade de Rondonópolis-MT.

2 A casa da Meire, nome fictício, é uma casa localizada em Rondonópolis que abriga aproximadamente

trinta mulheres trans e travestis, oriundas de várias regiões do país, que passam pela cidade em busca de emprego, tratamento de saúde, ou como visitantes, e acabam ficando por não terem um local seguro para ir e se fixar. Meire, autodenominada travesti, possui mais de cinquenta anos, porém não aceitou participar da pesquisa.

3 Percebi que na casa da Meire as travestis e mulheres trans, em alguns momentos, se chamam de meninas.

Embora o termo possa soar infantil, optei por utilizá-lo em alguns momentos, de modo a expressar o meu carinho por elas.

4 Bichas é um termo pejorativo para definir pessoas gays. Contudo, é recorrente ouvi-las chamar umas às

outras de bichas, para expressar, intimidade, ou para também expressar desgosto. A entonação define o sentido.

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ousadia já tinham conseguido a atenção dos erês5 da escola que entraria antes de nós na

avenida. Trocavam olhares, sorrisos, flertes. Mas, o que mais me chamava a atenção era a satisfação estampada em seus rostos, afinal, não é habitual que elas andem pelas ruas da cidade em plena luz do dia.

Essas são as sujeitas da minha pesquisa: uma explosão de alegria, atrevimento, autoconfiança, sexualidade à flor da pele, sensualidade, mas também, mulheres extremamente criativas, dinâmicas, perseverantes e que carregam em suas histórias as marcas dos preconceitos, desrespeitos, violências, força, luta e resistência.

Meu interesse acadêmico pelas travestis e mulheres trans despontou em 2014, quando fui professora substituta no Departamento de Letras/Inglês, na Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT, e desenvolvia atividades junto às escolas públicas da cidade de Rondonópolis-MT, ao coordenar o estágio supervisionado dos graduandos do curso. Até então, nunca tinha parado para observá-las ou questionar os discursos6 que as

mantinham à margem da sociedade.

Percebia durante as visitas às escolas que havia um grupo que ficava sempre passeando por entre os corredores, ou em visitas à direção, por não se adequar às normas de conduta exigidas pelas escolas (LOURO, 1999). Esse era o grupo LGBT7, naquelas

escolas representadas pelas travestis, trans, gays e lésbicas.

Ao acompanhar as aulas nestas escolas, sentia que tais alunos eram discriminados, rechaçados, humilhados e excluídos, o que, na maioria das vezes, os levava a não participar efetivamente das atividades escolares. Muitos de seus docentes, em conversas informais, durante o recreio na sala dos professores, admitiam que tais

5 Causar, ousadia e erês também são termos do bajubá, que significam chamar a atenção, destemor, garotos

jovens/adolescentes, respectivamente.

6 Tomando a noção foucaultiana de discurso, temos que este consiste em uma interpretação produzida pela

realidade por meio da cultura (FOUCAULT, 2008), de modo a construir conhecimento, incluir/excluir sujeitos(as), (re)produzir relações de poder e definir sujeitos(as) em uma dada sociedade (FOUCAULT, 2008, 2007, 1996).

7 Antigamente, a sigla comum para se referir à parcela da população não heterossexual era GLS, ou seja,

gays, lésbicas e simpatizantes. Há alguns anos, a sigla passou a ser LGBT, isto é, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com o L maiúsculo no início da sigla de modo a apontar para a desigualdade de gênero que diferencia homossexuais femininos e masculinos. Muitos movimentos sociais e entidades governamentais, em todos os âmbitos da federação, fazem uso da sigla LGBT, por isso minha escolha em adotá-lo neste trabalho. Contudo, vale lembrar que internacionalmente a sigla é LGBTI, para englobar as pessoas intersex. As variações LGBTT, LGBTTI, LGBT+ e LGBTTQI também são encontradas. Disponível em: http://desacato.info/lgbt-lgbti-lgbtq-ou-o-que/. Acesso em: 30 jan. 2018.

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19 alunos só queriam “chamar a atenção dos demais colegas”. Entendi que os professores esperavam destes aprendizes o “corpo escolarizado”, disciplinado pela escola de modo a expressar e se comportar silenciosamente, seguindo um modelo de conduta, de fala e de gesticulação adestrado para as tarefas intelectuais (LOURO, 2000, p. 21-22).

Desta feita, me empenhei para compreender os mecanismos que ainda as mantinham na escola. Essa busca me levou a uma palestra de Luma Nogueira, à época conhecida como a primeira travesti no Brasil a concluir um curso em um programa de doutorado.

Percebi, então, que inconscientemente reproduzia discursos discriminatórios e que a partir daquele momento clamavam por problematizações. Além disso, não apenas notava que as travestis são sujeitas comumente vistas a partir de uma dimensão desumana, como também observei que eu não as compreendia como variações de gênero e sexualidade normais nem era capaz de incluí-las na lógica binária que eu acreditava ser a natural.

Luma foi extremamente atenciosa comigo neste sentido. Respondeu a todas as minhas perguntas e mencionou aspectos acerca da travestilidade que poderiam ser observados e estudados na academia. Nasceu ali o meu primeiro projeto de pesquisa para participação no processo seletivo para o doutorado.

(In)felizmente não fui aprovada naquela seleção, certamente por apresentar um conhecimento muito raso acerca das teorias essenciais para, pelo menos, iniciar uma pesquisa deste porte. Passado o período de frustração, me empenhei na elaboração de outro projeto, bem como me lancei na busca por travestis que pudessem me conceder uma entrevista que funcionasse como “piloto” para o projeto que almejava apresentar.

Para a entrevista piloto, recebi a ajuda de um colega de trabalho na UFMT, professor substituto como eu, e Drag Queen8, que comentou ter uma travesti na

universidade que estudava em um curso noturno na área de Ciências Exatas, e que era sua

8 Para Anna Paula Vencato (2002), Drag Queens são homens – não necessariamente homossexuais – que

se transvestem de mulheres, não com o intuito de se parecerem com elas, mas como uma reinvenção caricata delas, contudo sem o tom de deboche. São feitas de maquiagem, texto, modos de ser e de estar, performances, dublagens, sonhos, fantasias e desejos.

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20 amiga. Ele iria intermediar o primeiro contato. Assim conheci Amanda9, mesmo não

tendo tido o tempo hábil de realizar a entrevista piloto.

Quando Amanda e eu nos encontramos pela primeira vez na universidade, não conseguia esconder o meu entusiasmo e admiração por aquela mulher tão deslumbrante. À época, Amanda me disse que estava de mudança para Primavera do Leste, uma cidade localizada a aproximadamente 150 quilômetros de Rondonópolis. Amanda tinha conseguido um emprego temporário e ficaria longe por alguns meses.

Porém, antes de partir, intermediou uma conversa com sua amiga Patrícia10,

a qual seria a primeira informante dessa pesquisa em maio de 2016, após a aprovação de meu projeto de pesquisa para o doutorado.

Patrícia foi fundamental para que eu atentasse para as dificuldades que as mulheres trans/travestis enfrentam na sociedade como um todo, desde a sua “saída do armário11”, perpassando pela formação escolar, empregabilidade, utilização de serviços

públicos, em especial serviços de saúde, uso de banheiros em locais públicos, usufruto de direitos, até a rotulação de que são perigosas, ameaçadoras, abjetas. Do mesmo modo, Patrícia inconscientemente expôs detalhes acerca da sua identidade de gênero, detalhes para os quais eu não tinha atentado até aquele momento. Ela autointitula-se transgênera. No tocante à identidade, Silva (2005) assevera que a identidade é tudo aquilo que somos, de maneira a expressar positivamente o que pensamos a nosso respeito; é a materialização do que pensamos que somos diante do outro. Neste tecido, ser transgênera para Patrícia, além de ser algo positivo, é ao mesmo tempo posicionar-se de maneira a negar a identidade cisgênera.

9 Nome fictício. Muitos nomes mencionados neste texto não são os nomes reais das participantes que

colaboraram tanto com os meus primeiros passos quanto na construção das narrativas que apresento no decorrer da pesquisa. Em alguns casos, não obtive a autorização escrita para a divulgação de seus nomes reais, ou elas mesmas pediram que seus nomes não fossem evidenciados.

10 Nome fictício.

11 O termo “saída do armário” faz referência ao início da transição, da construção da corporeidade, da

identidade que se encontrava aprisionada, escondida. O termo também é utilizado por homossexuais femininos e masculinos para expressar o momento em que suas orientações são “assumidas” perante a família, amigos, e/ou sociedade. Vale acrescentar que o termo, por vezes, é reprovado por algumas pessoas LGBTs.

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21 A princípio, isso me fez refletir profundamente acerca da minha própria identidade, principalmente considerando-se minha impressão inicial de que ser cisgênera não era uma coisa muito boa, quando expresso por Patrícia.

Essa reflexão foi muito interessante e brilhantemente incitada em outro momento por Amara Moira. Sempre posicionei-me enquanto mulher cisgênera, contudo, quando Amara me perguntou o qual a significação que eu atribuía para tal termo, não soube defini-lo de imediato.

Inúmeras são as definições e conceituações em textos acadêmicos que discutem a cisgeneridade, sempre em oposição à transgeneridade, mas raríssimos são os textos que a definem da mesma maneira que fazem ao discutir esta última. Passei a perceber que a categoria cisgeneridade abarca sujeitos e sujeitas que pressupõem não precisarem ser categorizados e/ou definidos, por enquadrarem-se em uma classe de pessoas “normais”, “não-abjetas”.

A esse respeito, a própria Amara Moira argumenta que ser cis é algo tão naturalizado que sequer pensamos em categorizar (RODOVALHO, 2017). Em adendo, a autora nos revela que a identidade cisgênera parece estar tão normalizada discursivamente, que não pensamos sobre a existência concreta do(a) sujeito(a) trans, de modo a não nos preocuparmos com a categorização do termo cisgênero.

Olhando para os dados deste trabalho e para as notas de campo, ouso discorrer acerca dessa distinção identitária, que também considero política, visto que a pessoa cis/cisgênera não precisa legitimar o seu gênero e/ou sua identidade, ao contrário do(a) sujeito(a) transgênero(a). Apreendi que pessoas cisgêneras já usufruem plenamente de privilégios na sociedade em que vivemos.

Logo, sujeitos(as) cisgêneros(as) leem seus corpos como corpos normais, naturais, legítimos, os quais não precisam ser interpretados. Acreditam, então, ser soberanos e, por isso, acabam impondo seus ideais, discursos, saberes e verdades, sem consultar as pessoas trans ou transgêneras se o que dizem sobre elas é realmente o que ocorre com seus corpos, ou seja, suprimem o direito de autodeterminação de gênero que as pessoas trans/transgêneras tanto almejam. Pessoas cisgêneras impõem a sua superioridade e acabam objetificando pessoas que não se enquadram em conceitos e valores que creem ser os únicos possíveis.

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22 De maneira extremamente reducionista, pessoas cisgêneras são aquelas que se encontram em condições de aceitabilidade com o seu sexo biológico e com o gênero com o qual foram designadas em seus nascimentos. Para as cisgêneras, a biologia é responsável pela atribuição dos gêneros, fator que é legitimado pelos discursos psico-bio-médico, jurídico e social.

Creio que o xis da questão encontra-se no fato que pessoas cisgêneras, que se dizem totalmente confortáveis com seus sexos biológicos e denominações de gênero, submetem pessoas autodenominadas transgêneras a uma colonização no que diz respeito aos seus papéis de gênero, como se os corpos transgêneros fossem uma cópia, uma releitura de corpos cisgêneros, conforme pontuam os discursos médicos, psiquiátricos, jurídicos e sociais. Ainda para pessoas cisgêneras, os corpos trans precisam encontrar-se dentro de certa passabilidade12 para que sejam aceitos, construídos em conformidade com

os moldes e contornos dos corpos da matriz cisgênera.

Levando o exposto em linha de conta, confesso que as versões anteriores deste trabalho de pesquisa traziam uma extensa lista de definições acerca do significado da palavra transgênera apresentada por Patrícia, o que me incluía em uma lista de pessoas que também se acreditava enquanto sujeita de uma identidade de gênero que não precisava de uma definição, problematização, categorização e/ou discussão; e pior, que se acreditava em uma condição de superioridade (mesmo que inconscientemente).

Além disso, todas as definições que havia trazido foram construídas por pessoas cisgêneras, que, à época, julguei serem pessoas academicamente legitimadas para discorrer acerca do assunto, mas não percebia como elas objetificavam as pessoas transgêneras. Sendo assim, minha alternativa foi utilizar definições encontradas em textos escritos por pessoas transgêneras.

Rodovalho (2017) pontua que as definições acerca da transgeneridade são redutoras, visto haver uma insuficiência do conceito, se considerarmos que há mais no plano do pensamento que no plano das palavras: pessoas não expressam devidamente suas identidades. Com isso, minha intenção é demonstrar que, ao ponderar acerca dos

12 O termo passabilidade é por vezes usado para referir-se ao quanto um homem ou uma mulher trans se

passam por um homem ou mulher cis, ou seja, é quando a pessoa trans é lida socialmente como uma pessoa cis, de maneira a invisibilizar a transgeneridade. Embora o termo passabilidade ainda seja muito utilizado, ele vem sendo trocado pela expressão “leitura social”.

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23 termos cisgeneridade e cisgênero(a), entendo que estes consistem em uma categorização excludente e que faz uso de um pretenso poder legitimado pelos discursos biomédico, jurídico e social. O intuito aqui é discutir a transgeneridade não em oposição à cisgeneridade, mas como uma categoria identitária descrita por pessoas transgêneras. Para tal, utilizo as definições de transgêneros por transgêneros.

Letícia Lanz (2014) afirma, tanto em sua dissertação de Mestrado como em seu blog13, que transgêneros(as) são os(as) sujeitos(as) que transgridem as normas de

gênero. Ainda, a autora não pensa que transgêneros(as) sejam pessoas em corpos inadequados que precisam “se refazer” para atender às exigências binárias; são corpos que representam “a transição entre os gêneros”, conforme a própria Patrícia me ensinou. Para Jaqueline Gomes de Jesus (2012), o sexo é biológico e o gênero é cultural, isto é, o gênero não depende do sexo com o qual os(as) sujeitos(as) nascem, mas da cultura na qual estes estão inseridos. A autopercepção e a maneira com a qual a pessoas socialmente se expressam é que devem ser levados em consideração, tratando-se, portanto, de uma questão de identidade, e não de transtorno (JESUS, 2012).

Ademais, Jesus (2012) adiciona que o termo transgênero ou trans engloba pessoas travestis, transexuais e intersexuais, pessoas que nasceram com um dado sexo lido historicamente como biológico, mas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído. Em suma, a autora complementa que pessoas não cisgêneras são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento, sendo, portanto, autodenominadas transgêneras (JESUS, 2012).

Em contraposição a Jesus (2012), Rodovalho (2017) discorre que a biologia não é determinante do gênero, ou seja, a genitália também é um construto tanto quanto o gênero.

A sucinta discussão acerca dos termos cisgênero e transgênero foi realizada de modo a esclarecer ao leitor as minhas escolhas no tocante ao título deste trabalho de pesquisa, bem como das participantes. No início da pesquisa, tinha estabelecido que entrevistaria sujeitas travestis acerca de suas narrativas sobre a escola e os mecanismos de resistência que ainda as mantinham lá. Porém, percebi que eu, na minha equivocada

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24 condição de mulher cisgênera e que acreditava no seu próprio discurso de legitimidade, denominava as minhas interlocutoras com base nas conceituações de discursos de pesquisadores cisgêneros.

Fazia uso, então, da definição simplicista de que as travestis eram sujeitas nascidas com o sexo biológico masculino, mas que utilizavam nomes, vestimentas, maquiagem, hormônios, silicone (por vezes, silicone industrial), com o objetivo de dar-lhes formas mais femininas (JAYME, 2004; KULICK, 2008).

Patrícia foi de suma importância para que eu atentasse para essa questão. Autodenominar-se transgênera me levou à reflexão de que há inúmeras outras identidades e que não sou eu quem as denomina ou nomeia. Daí o uso de mulheres trans e travestis14

no título deste trabalho: valorizar e respeitar todas as identidades das mulheres que gentilmente concordaram em contribuir com esta investigação.

A priori, o foco deste estudo estava voltado para a permanência/evasão na escola das meninas autointituladas travestis. Ouvi Patrícia narrar inúmeras vezes as dificuldades que as pessoas trans e travestis enfrentam para se manterem na escola. Entretanto, já é possível perceber sinais de resistência. E muitos são os trabalhos na seara acadêmica nacional que tratam da questão das transgêneras/travestis no âmbito escolar.

A pesquisa de Luma Nogueira de Andrade (2012), por exemplo, indica que as travestis, mesmo que rechaçadas pela comunidade escolar como um todo, já demonstram mudanças no que diz respeito a sua permanência na escola, criando mecanismos de sobrevivência, resistência e de luta para se desvencilharem do modelo de prostituição que lhes é imposto socialmente e atingirem a formação escolar.

O estudo de Marina Reidel (2013) traz histórias de vidas de docentes transexuais e travestis atuantes na educação brasileira, mas que, por muito tempo, se mantiveram clandestinas ou à margem, “em silêncio”. Essa autora aponta que as

14 Em conformidade com Jesus (2012), mulheres trans e travestis são identidades incluídas em um leque

maior, isto é, são transgêneras. As minhas interlocutoras definiram mulheres trans ou transexuais como aquelas que não se sentem confortáveis com a sua genitália, embora nem todas sintam o desejo de submeterem-se ao processo de cirurgia de redesignação sexual. Outras afirmaram que travestis são mulheres de peito e “pau”, mulheres mais completas. É claro que qualquer generalização pode ser enquadrada como uma verdade fascista (NEVES, 2015), imposta pelos discursos psicomédicos. Não ousei incluir definições sobre mulheres trans e travestis aqui também por acreditar que as descrições encontradas são, de certo modo, perigosas e tendem à generalização e ao reducionismo e apagamento de suas lutas.

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25 professoras transexuais e as travestis, diferentemente da imagem da convencional professora cisgênera, branca, heterossexual, já trazem a sexualidade15 latente em seus

corpos, de modo a causar desconfortos e questionamentos acerca do “real” papel da escola e do preconceito velado que outros professores insistem em invisibilizar.

As sujeitas colaboradoras da investigação de Reidel (2013) alertam sobre as dificuldades em mesclar as identidades transexuais/travestis e professoras. Ainda declaram que não basta serem professoras, precisam ser as melhores, mais que um corpo diferente que forma alunos. A autora cunhou o termo “Pedagogia do Salto Alto”, de modo a revelar a atuação destas docentes na educação brasileira.

Sobre esse tema, Almeida (2014) realizou pesquisa apresentando dados muito relevantes no tocante à entrada das travestis no mercado de trabalho. O autor fez um levantamento com as travestis que já se encontravam em sala de aula, atuando como docentes, e investigou possíveis indícios de desestabilização que estas docentes travestis e transgêneras provocavam nas escolas em que atuavam, desencadeando, consequentemente, novas formas de ensino e aprendizagem no que diz respeito à discussão sobre gênero e sexualidades em seus ambientes de atuação.

Já a pesquisa de Gabriela da Silva (2015), uma grande colaboradora para este estudo, lidou diretamente com as autoridades escolares, em especial, as diretoras das escolas públicas no município de Tubarão-SC, acerca do preconceito e da discriminação relacionados a sujeitos vistos como ininteligíveis – sexo biológico, identidade de gênero e expressão da sexualidade não correspondentes ao socialmente imposto. Essa pesquisadora confirma que não há um trabalho adequado de combate a discriminações e atos preconceituosos no ambiente escolar, assim como não há formação inicial e/ou continuada propícia para estas profissionais no que diz respeito à temática.

Na mesma direção, Alexandre (2017) intentou, em sua investigação, compreender o modo pelo qual as travestis (re)significam as suas experiências escolares, em especial, as vivências concernentes ao corpo, às relações de gênero e sexualidade, como uma maneira de problematizar, no tempo presente, todos os discursos institucionais

15 Durante o exame de qualificação, fui questionada a respeito do sentido utilizado da palavra sexualidade

neste parágrafo. Acredito que Reidel (2013) referia-se à sensualidade impregnada nos corpos das professoras participantes de sua investigação.

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26 do ambiente escolar, bem como atribuir sentidos às alterações subjetivas vivenciadas em seus corpos. Nesse sentido, observa que os mecanismos de segregação e normatização permanecem no cotidiano escolar, mesmo havendo indícios de vozes de resistência ecoando nas escolas e currículos escolares.

Num outro estudo, Megg Rayara Gomes de Oliveira (2017), em sua tese de doutoramento, averigua as experiências vivenciadas por sujeitos identificados em sua pesquisa como “gays afeminados, viados e bichas pretas16”, no intuito de discernir os

elementos que, positivamente, se refletem nos processos de subjetivação das experimentações pretas alheias às normas expressas pela matriz heterossexual e cisgênera. A autora também observou a agência de tais elementos no interior do âmbito escolar.

Oliveira (2017) investigou quatro docentes pretos em escolas públicas no Paraná e no Rio de Janeiro que, mesmo escapando das práticas heterossexuais normativas, foram sujeitos que trouxeram à baila dispositivos de poder presentes no racismo e na homofobia. Trata-se de um trabalho inovador, considerando-se a interseccionalidade dos temas homofobia e racismo, fato que a própria autora explica ser decorrente da quantidade reduzida de pesquisadores pretos homossexuais, gays afeminados, viados e bichas na academia.

Todavia, a escola e a ascensão social para a maioria das travestis ainda consistem em uma fantasia, ao passo que a esquina, com os “fregueses”, conserva o seu local de pertencimento (KULICK, 2008; ANDRADE, 2012).

Contudo, diante da enorme variedade de leituras trazidas acerca do espaço escolar, mulheres trans e travestis, percebi que a violência velada, simbólica, invisibilizada nos corredores escolares não era a única forma de violência que as assustava. De acordo com os relatos de Amanda e Patrícia, a violência física e até atentados contra as suas vidas as preocupavam, em especial, contra aquelas que atuam nas ruas como profissionais do sexo.

16 Escolhi manter o termo “pretas”, em conformidade com Megg Rayara de Oliveira, que discute em seu

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27 E é justamente nesse lócus de atuação profissional que elas sofrem os maiores desafios de sobrevivência. Em conformidade com o site Transgender Europe-TGEU17,

dentre os 2115 casos relatados de violência contra a população LGBTT, em especial contra pessoas trans e travestis, no período de 1º de janeiro de 2008 a 30 de abril de 2016, 1654 destes casos foram relatados na América Central e do Sul, estando o Brasil em primeiro lugar no ranking da violência contra esta população: 845 casos relatados no período supracitado.

Uma pesquisa mais atualizada, publicada em 16 de novembro de 201818,

também conduzida pelo grupo Transgender Europe-TGEU, comprova que o Brasil continua em primeiro lugar no quesito assassinatos de pessoas trans e travestis no mundo, com 167 (cento e sessenta e sete) mortes registradas no período de 01 de outubro de 2017 a 30 de setembro de 2018, estando o México em segundo lugar com 72 vítimas registradas.

Em conformidade com a mesma notícia, o Brasil contabilizou 171 mortes de transexuais e travestis no ano de 2017, e outras 136 no ano de 2016, embora o mesmo site informe a impossibilidade de estimativa real, considerando-se a falta de informações e identificações acerca dos assassinatos. Já segundo o site de notícias on-line O Tempo19,

até o mês de maio/2017, o Brasil posicionava-se, pelo sexto ano consecutivo, como o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, com um registro de 61 assassinatos cometidos contra a população de travestis e transexuais, até a data de publicação da notícia – 23 de maio de 2017. Dentre os casos de assassinato, os mais comuns são por tiros e/ou espancamento, seguidos de asfixia, apedrejamento, facadas ou estrangulamento.

17 O Transgender Europe-TGEU consiste em uma organização não governamental surgida na Europa e que

se estabelece como a voz legítima da população trans europeia. O site traz inúmeras reportagens sobre e para a população trans. Contudo, apresenta um projeto de monitoramento de violências contra a população trans no mundo todo.

18 Pesquisa publicada no site Extra. Disponível em:

https://extra.globo.com/noticias/brasil/brasil-segue-no-primeiro-lugar-em-ranking-de-assassinatos-de-transexuais-23235062.html. Acesso em: 21 nov. 2018.

19 Reportagem: Transfobia: O Brasil já tem 61 transexuais e travestis assassinados em 2017, por Juliana

Baeta. Disponível em: http://www.otempo.com.br/capa/brasil/brasil-j%C3%A1-tem-61-transexuais-e-travestis-assassinados-em-2017-1.1477509. Acesso em: 11 set. 2017.

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28 A mesma reportagem reconhece que a maioria das vítimas travestis e transexuais encontra-se na prostituição, apontando que esta população corre um risco maior de ser violentada que os demais sujeitos da comunidade LGBT.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA – divulga regularmente um mapa de assassinatos de pessoas trans no Brasil. De 1º de janeiro a 05 de novembro de 2018 foi contabilizado um total de 141 assassinatos de travestis, mulheres transexuais e homens trans20. Os dados do Estado de Mato Grosso registram 6 mortes,

sendo duas travestis de Rondonópolis-MT, uma habitante da casa da Meire, a Tábata Brandão21, e a Tyetta Prazer22, funcionária pública encontrada morta em sua casa na

primeira semana de janeiro/2018.

Tais dados também são registrados e informados por Adriana Liário23 em

diversos grupos que discutem o assunto, tanto no Facebook24, como também no

Whatsapp25. Adriana, autointitulada travesti, é profissional do sexo; auxilia a Meire em

uma casa de acolhimento de mulheres trans e travestis em Rondonópolis-MT, auxilia na organização de documentos, apoio psicológico e de saúde, bem como oferecem um local para morar26. Adriana também foi uma entre as 53 (cinquenta e três) candidaturas27 de

20Em conformidade com o site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/. Acesso em: 07 nov.

2018.

21 Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em:

https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/travesti-e-assassinada-a-tiros-por-motociclista-em-rondonopolis-mt.ghtml. Acesso em: 30 jan. 2018.

22 Conforme página do G1/MATO GROSSO. Disponível em:

https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/funcionario-publico-e-encontrado-morto-com-maos-e-pes-amarrados-em-mt.ghtml. Acesso em: 30 jan. 2018.

23 Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome. 24 Nome de uma rede social lançada em 2004, por estudantes de Harvard, entre eles, Mark Zukerberg, ainda

dono da rede. É um espaço gratuito que oferece aos seus usuários inúmeras ferramentas de comunicação entre amigos, grupos, bem como de publicidade. O espaço apresenta inúmeras versões para celulares e computadores, os quais facilitam a visualização e acessibilidade. Adaptado de https://www.significados.com.br/facebook/. Acesso em: 14 de fev. 2018.

25 Trata-se de um software para smartphones lançado em 2009 pelos veteranos do Yahoo! É considerado

um aplicativo para celulares multiplataforma que possibilita a comunicação entre os seus usuários em forma de textos, mensagens de áudio, vídeo, além do envio de fotos, atualização de status como um substituto das mensagens via celular conhecidas como SMS. Adaptado de https://www.significados.com.r/whatsapp/. Acesso em:14 fev. 2018.

26 A casa funciona como uma pensão. Regularmente, abriga 30 (trinta) mulheres trans e travestis que

pagam aluguel por seus quartos. Os serviços de apoio psicológico, documentação, entre outros, eram de responsabilidade do GATTRS.

27 Conforme site da ANTRA. Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/. Acesso em: 21 nov.

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29 pessoas transgêneras no país, na corrida eleitoral de 2018, na disputa pelo cargo de Deputada Federal pelo Estado de Mato Grosso.

Tomei conhecimento de Adriana por meio de uma reportagem em um site local28 a respeito do grupo de apoio a travestis e transexuais em Rondonópolis. Fiquei

muito curiosa em conhecê-la, visto que, até então, as mulheres trans/travestis às quais eu tinha acesso não mencionaram nenhum grupo de apoio que operasse em Rondonópolis. De imediato, procurei seu nome no Facebook e lhe encaminhei uma mensagem explicando a minha pesquisa e demonstrando o meu interesse em encontrá-la pessoalmente.

Adriana me convidou à casa da Meire para que nos conhecêssemos melhor e também pudesse saber mais sobre o seu trabalho realizado junto às mulheres trans/travestis que moravam lá. Seus relatos consistiam na descrição de sujeitas que conhecem a exclusão, sofrimentos e a rejeição desde tenra idade, por expressarem o feminino em espaços escolares e cotidianos (SALES, 2018). De acordo com Antunes (2010), a exclusão já tem início dentro da família, por serem vistas como sujeitas que não se adequam às regras socialmente impostas: são consideradas transgressoras, aberrações, sujeitas que necessitam de tratamento. E com as mulheres trans e travestis da casa da Meire não foi diferente.

Passei a visitar a casa todos os sábados e/ou domingos. Ficava horas conversando, conhecendo um pouco mais sobre elas. Adriana me contava os seus relacionamentos, as violências, os problemas com a Câmara Municipal e com as questões de saúde, a montagem29, as injeções de silicone e as bombadeiras30, a pista, detalhes do

28 Disponível em:

http://www.midianews.com.br/cotidiano/marcada-pela-violencia-travesti-cria-grupo-contra-o-preconceito/276528. Acesso em: 02 fev. 2017.

29 Montagem consiste na adulteração corporal e execução de gestualidades na construção das performances

e identidades de gênero (BENEDETTI, 2005; WEEKS, 2001), ou ainda, na modificação corporal como uma estratégia que marca a tentativa de aproximação de uma dita “feminilidade” a ser seguida (SANTOS, 2014). É indispensável esclarecer que tais definições foram construídas por pessoas cisgêneras em um passado próximo. Atualmente, algumas de minhas interlocutoras não apreciam a adoção do termo, uma vez que passam o dia vestidas como mulheres. São mulheres, são corpos femininos. Algumas usam o termo para se referenciar a crossdressers e dragqueens. Outras utilizam o termo para referirem-se ao momento em que estão se preparando para o trabalho.

30 Bombadeira é o termo utilizado para designar a pessoa, geralmente uma travesti/mulher trans mais velha

e/ou mais experiente, e que faz a aplicação do silicone industrial nos corpos das meninas. Geralmente elas não falam muito sobre quem são tais profissionais, em virtude dos riscos à saúde que tais aplicações podem propiciar, bem como para preservar/assegurar a segurança das bombadeiras.

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30 trabalho que realiza junto às meninas. Muitos dos dados e detalhes da pesquisa foram obtidos nesses encontros, algumas vezes com a participação de outras moradoras da casa, e registrados em meu diário de campo.

Adriana, então, me inseriu no grupo do Whatsapp do GATTRS e o estreitamento de nossa relação a fez nomear-me, em 16 de julho de 2017, vice-secretária do grupo de apoio. As discussões do grupo dizem respeito à visibilidade das travestis e a criação de políticas públicas municipais que assegurem direitos de cidadãs a todas as travestis, um termo que, conforme Adriana, tem sido “higienizado” não só pela sociedade, mas também pelas próprias transgêneras/travestis (SALES, 2018).

Penso que a tal higienização mencionada por Adriana ocorre, uma vez que a sociedade tende a associar as travestis à prostituição e, consequentemente, à criminalidade. Isso é muito recorrente em suas falas, bem como em inúmeras pesquisas acadêmicas. Brum (2014), Jesus (2012), Peres; Toledo (2011), Garcia (2008; 2009), Borba; Ostermann (2008), Benedetti (2000), Kulick (2008), Albuquerque; Janelli (1995) evidenciam a relação das travestis com a criminalidade31. Dentre os atos de ilegalidade,

observam-se roubos, furtos, (ab)uso de drogas e bebidas alcoólicas (GARCIA, 2008). De outra via, o termo também reflete um ato ético-político e de empoderamento, ou seja, de expressão de uma identidade política, de expressão de gênero e de uma estilística de existência muito válida (SALES, 2018). Este é outro motivo que me levou a usar os termos mulheres trans e travestis no título, de modo a evitar o apagamento dessas lutas, usando um termo mais genérico como transgênero, por exemplo.

Todavia, ao me relacionar com as travestis/mulheres trans, tanto de modo presencial na casa da Meire e nas reuniões do GATTRS, como nos bate-papos estabelecidos online, principalmente por meio do Facebook, percebi o tempo de vida curto que elas têm. Adriana brinca o tempo todo, dizendo que tem apenas dois anos de vida, ou seja, sua morte está prevista para os trinta e cinco anos, média estimada de vida

31 Mais uma vez, retomo que as pesquisas mencionadas foram realizadas já há um bom tempo e podem não

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31 de uma travesti no Brasil (SALES, 2018; SIQUEIRA, 2004; PERES, 2005; KULICK, 2008, entre outros).

Em certa ocasião, Adriana me revelou que até aquele mês – maio de 2017 – cinquenta e quatro32 mulheres trans e travestis brasileiras tinham sido assassinadas, sendo

que muitas delas não tinham sequer alcançado nem os trinta e cinco anos33.

Com esses números em mente, e tomada pela curiosidade, arrisquei: “Então não existe mona34 velha?”, perguntei à Adriana. Ela riu afirmando, que sim, mas que eram

pouquíssimas. Ela me explicou que muitas delas morriam cedo, vítimas da violência praticada contra elas nas ruas. Aquelas que conseguiam milagrosamente ultrapassar os cinquenta anos e que não tivessem recursos para ter sua própria casa de acolhimento/pensão passavam a trabalhar dentro dessas casas com a limpeza, manutenção, serviços de cozinha, num sentimento de pertencimento familiar, de modo a fixar morada e não retornar para as casas de seus parentes consanguíneos.

Adriana também me alertou que a velhice entre mulheres travestis é um fenômeno precoce em relação às pessoas cisgêneras, filiando-se a Antunes (2010), ao explanar que tal envelhecimento ocorre se considerarmos as trajetórias de vida dessas sujeitas sinalizadas por quadros de violência das mais variadas espécies. Quanto à questão da idade de envelhecimento, Casteleira (2014) assegura que a fronteira entre a idade jovem e o envelhecimento não é traçada pela idade cronológica, mas, antes, de maneira a concordar com os relatos de Adriana.

Procurei por mulheres trans/travestis que aparentassem ser mais velhas na casa da Meire. Conheci Jussara – a vó – e a Kate35. Jussara sempre a mais sapeca, como

ela mesmo se rotula, entrava no seu quarto no final do dia, passava uma base, um pouquinho de blush e vestia uma roupa bonita. Só não passava sombra pra não parecer muito velha, como me confessou certa vez. Saía ao por do sol e retornava para casa até a

32 Dados obtidos durante uma de nossas conversas informais, registrados em meu diário de campo e que,

posteriormente, foram consultados e confirmados no site de notícias do Senado Brasileiro. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuais-e-de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em: 29 jun. 2017.

33 A expectativa de vida de 35 anos para as mulheres trans/travestis também é afixada, conforme as

estatísticas divulgadas pelo site da Antra. Disponível em: https://antrabrasil.org. Acesso em: 05 nov. 2018.

34 Travesti, no bajubá.

35 Jussara e Kate são nomes fictícios. Ambas me solicitaram que seus nomes reais não aparecessem na

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32 meia noite. Brinquei com ela certa vez que Cinderela existe sim! Ela riu e me explicou que agia dessa maneira para garantir a sua segurança.

Jussara então me contou que trabalha na pista36, embora tenha a alimentação

e a moradia garantidas na casa da Meire em virtude dos trabalhos de cozinheira que realiza lá.

O envelhecimento físico para elas é diferente do envelhecimento da alma. Antunes (2010) afirma que as travestis são consideradas velhas se não conseguem desempenhar o trabalho como profissionais do sexo, na pista. Nesse sentido, Mountian (2015), em sua pesquisa acerca de travestitilidade e envelhecimento, assevera que a travestilidade no contexto brasileiro é marcada por inúmeras formas de violência, oprimindo essas sujeitas e as agredindo de modo a ser um aspecto, talvez determinante, para o seu envelhecimento precoce.

As interlocutoras de Casteleira (2014) também confirmam que uma pessoa trans envelhece antes que uma pessoa cis, principalmente em virtude do uso excessivo de hormônios, silicone e, principalmente, por causa das violências a que são expostas no trabalho enquanto profissionais do sexo. Para elas, uma travesti aos 40 anos pode ser comparada a uma mulher cisgênera aos 60 anos.

Indagações como: o que os discursos afirmam sobre a velhice de mulheres trans/travestis? O que fazem as travestis/mulheres trans mais velhas e que não mais estão na pista? Todas encontram-se como a Jussara e a Kate?

Estas e outras questões foram determinantes para o trabalho de pesquisa que apresento a seguir. No intuito de desvendar alguns dos meus questionamentos, passei a procurar em bibliotecas online e em redes sociais pesquisas que falassem acerca da velhice, em especial de pessoas transgêneras.

Sempre enxerguei a velhice enquanto um estágio de sofrimento, solidão, perda da beleza e da jovialidade e, acima de tudo, perda da sexualidade e sensualidade. A esse respeito, Simone de Beauvoir (1970), em sua célebre obra ‘A Velhice: a realidade incômoda’, garante que o processo de envelhecimento é considerado não apenas uma mazela fisiológica para os indivíduos de uma dada sociedade, mas uma desqualificação

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33 de seres que não mais estão aptos a colaborar com o crescimento desta mesma sociedade, sob a ótica da produção e do lucro, de modo a tratar pessoas idosas como desqualificadas para a produção e também para o sexo. Beauvoir (1970) ainda usa a qualificação “boca inútil” para descrever os idosos que se tornam incapazes de batalhar dentro de uma sociedade, mas acrescenta que tal discurso sofre a intervenção de fatores e valores culturais.

Se é difícil para a categoria identitária que se julga a dominante – cisgênera – como será o processo de envelhecimento de pessoas transgêneras, alvos constantes de preconceitos, discriminações e violências? Como é ser duplamente estigmatizado: transgêneras e idosas?

Investiguei a existência de mulheres trans/travestis que tivessem conseguido sobreviver às inúmeras violências e adversidades impostas pelo discurso cisgênero normativo, contudo – e felizmente – fui presenteada com Sara Wagner York.

Encontrei Sara York37, uma mulher fantástica, à época com 41 anos, que se

autointitula trans e, ao mesmo tempo, travesti, por questões políticas e de visibilidade, militância, ativismo. Sara é também pai, avô, professora de língua inglesa em uma escola pública no interior do estado do Rio de Janeiro, professora de teatro, Mestranda em um Programa de Pós-graduação em Educação e administra algumas páginas e comunidades no Facebook, assim como grupos de discussões políticas no Whatsapp. Procurei, então, travestis/mulheres trans no Facebook que tivessem mais de quarenta anos. Até aquele momento, a minha rede estava repleta de travestis/ mulheres trans jovens, a maioria com menos de 30 anos.

Em 29 de janeiro de 2017, Sara organizou um bate-papo por meio do

Facebook, ao vivo, com pesquisadores e acadêmicos renomados no país, como parte das

celebrações do dia da Visibilidade Trans. Entre os participantes, Gabriela da Silva38,

professora na rede pública na região Sul do país, travesti, doutoranda em um Programa de Pós-Graduação em Educação, à época, com cinquenta anos.

37 Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome. 38 Nome real. A participante da pesquisa manifestou não ter problemas com a aparição de seu nome.

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34 Após o bate-papo, procurei por Gabriela no Facebook e começamos a trocar mensagens. Passados alguns meses, acabamos nos encontrando em um dos grupos de discussões por políticas públicas, aberto por Sara no Whatsapp. A partir de então, nossa comunicação era realizada via mensagens de áudio por esse aplicativo.

Assim como Adriana Liário, Gabriela também foi muito importante para o meu trabalho, visto que, por estar no meio acadêmico, sempre me encaminhava textos que remetiam ao meu trabalho e discutíamos a respeito de diversos assuntos, como travestilidade e sexualidade. Ela também me ajudou com a elaboração do roteiro das entrevistas que eu realizaria para a materialização deste trabalho. Eu lhe enviava as perguntas e ela as avaliava, de modo a sugerir mudanças, deixando-as dentro da inteligibilidade das minhas interlocutoras.

Além de Sara e Gabriela, também pude contar com o valioso auxílio do Prof. Dr. Neil Franco de Almeida, que por inúmeras vezes discutiu alguns textos e trabalhos, além de ser o intermediador de algumas participantes, dentre elas Rebeca, a mais simpática de todas. Muito crítica quanto à elaboração das perguntas, mas também muito disposta a colaborar, dedicada e presente.

Sabendo que o Estatuto do Idoso (BRASIL, 2013) considera idosa toda pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos e que as mulheres trans/travestis têm uma expectativa de vida de trinta e cinco anos, tentei calcular a partir de que idade uma travesti/mulher trans poderia ser considerada idosa, de modo a direcionar as participantes do estudo.

Para Hélio Silva (1993), por exemplo, as participantes de sua pesquisa, na sua maioria praticantes do trottoir39, eram consideradas velhas após os trinta anos, por

questões de atratividade e jovialidade. Contudo, vale relembrar que a pesquisa de Silva (1993) foi conduzida nos anos noventa e que talvez aquela realidade retratada não seja mais a das mulheres trans/travestis desta investigação.

Ao conversar a respeito da questão do envelhecimento das mulheres trans/travestis com a Gabriela pelo Whatsapp, ela comentou que por muito tempo as travestis e pessoas transgêneras, em geral, têm convivido com os estereótipos impostos

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35 por meio dos discursos de beleza e do glamour. No momento em que tais marcadores são suprimidos pela idade, só lhes resta, na maioria das vezes, uma vida permeada de privações, isolamento e sem referência. Com isso, ponderei a respeito de estudar os enunciados40 que se evidenciam nas narrativas de travestis/mulheres trans no tocante ao

seu processo de envelhecimento.

Todos têm muito a dizer a respeito dos idosos e inúmeros são os atos ilocutórios41 que os fazem parecer, sincronicamente, inúteis ou novos guerreiros da

longevidade. No caso das travestis/transgêneras, os enunciados parecem apontar para uma dupla abjeção: serem travestis/mulheres trans e “velhas”. Para Siqueira (2004), “travestis” e “velhice” constituem duas categorias altamente excludentes, pois aquelas que ultrapassam os cinquenta anos enfrentam um duplo processo de marginalização e muitas encaram condições precárias de sobrevivência.

Considerando o exposto, o corpus desta investigação contará com os enunciados reproduzidos pelas travestis/mulheres trans, obtidos de suas narrativas por meio de entrevistas, retomando que enunciados consistem em um conjunto de regras que ditam os limites e as maneiras com que algo é expresso, só definíveis em sua individualidade no interior de um sistema linguístico, definidos em conformidade com uma determinada época ou sociedade (FOUCAULT, 2008).

Inúmeros são os trabalhos acadêmicos nacionais nas áreas de Gerontologia, Enfermagem, Medicina, Psicologia, Sociologia, Educação e Antropologia que lidam com a questão das travestis/transgêneras. Uma breve e despretensiosa pesquisa na página de Catálogo de Teses e Dissertações da Capes42 nos mostra essa produção. Se usarmos como

entrada as palavras-chave travestis e envelhecimento, encontramos 1.088.674 pesquisas de mestrado e doutorado concluídas, mas não há pesquisas na área de linguagem que analisem as narrativas de mulheres trans e travestis quanto ao seu processo de envelhecimento.

40 O enunciado é um elemento indecomponível, carregado de “verdades” e formado por um conjunto de

regras para a sua formação, mas que difere da frase ou do ato ilocutório (FOUCAULT, 2008). Constitui sentido como um elemento em um campo de coexistência, uma materialidade repetível, o átomo do discurso (idem).

41 Para Foucault (2008), um ato ilocutório diz respeito ao que se produz pelo simples fato de ter sido

enunciado. Em outras palavras, trata-se do ato de fala, da enunciação.

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36 E mesmo com um número tão significativo de trabalhos produzidos acerca da temática “travesti”, observei que há uma carência de trabalhos na área de Linguística Aplicada que discuta a transgeneridade e o processo de envelhecimento.

É de extrema relevância trazer à baila que a vertente da Linguística Aplicada na qual este trabalho se inscreve é de ordem transgressora e crítica (MOITA LOPES, 2006), uma vez que as discussões aqui apresentadas se afastam da Linguística Aplicada convencional, do século passado, e que tinha foco apenas nas abordagens de ensino de línguas.

O viés da Linguística Aplicada que abarca esta pesquisa tem caráter multi/inter/in-disciplinar (MOITA LOPES, 2006; FABRÍCIO, 2017) de modo a promover práticas transaberes (FABRÍCIO, 2017), observando as fronteiras normativas relativas a gêneros, sexualidades, classes sociais e raças, questionando crenças arraigadas, comunidades coesas e corporeidades idealizadas (FABRÍCIO, 2017) para ultrapassar fronteiras estabelecidas discursivamente.

Intuito maior com esta pesquisa não é de maneira alguma esgotar o tema, mas desenvolver um estudo acerca de um tópico que tem ganho ampla visibilidade, bem como ultrapassar limites já demarcados, de modo a compreender os processos de inclusão/exclusão (FABRÍCIO, 2017) tão presentes em nossa sociedade.

Como se não bastasse, o corpo travesti sempre esteve muito evidente em minha vida e memória. Às vezes se escondia e por outras, se exibia. Lembro-me claramente de uma vez, quando criança, minha mãe era a Assistente Social responsável pelo programa de combate e prevenção à AIDS, programa este financiado pelo SUS. Fui ao posto de saúde e fiquei aguardando o final do expediente para que pudéssemos ir para casa.

Naquele vai-e-vem de pessoas, de repente, observo a entrada de uma moça extremamente alta, brincos de resina verdes em forma de argolas, saia de um tecido que me remetia ao coro, pernas esguias, longas e torneadas, cílios longos, unhas compridas e vermelhas, sombra rosa e marcante nos olhos expressivos e o blush desenhado nas bochechas em forma de círculos, remetendo à moda da época. Ela foi à mesa da recepção e disse o nome da minha mãe. Fiquei atenta àquela moça tão diferente de todas as moças que eu conhecia.

Referências

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