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Considerações Acerca do Envelhecimento: o babado e a confusão encontrados nas pesquisas

1.3 Mulheres trans e travestis envelhecem?

Apresentei nas seções anteriores certas características acerca do processo de envelhecimento de homens e mulheres cisgêneros(as), sendo a feminilização do processo um evento crescente em termos sociais. Apontei algumas pesquisas sobre o envelhecimento de pessoas homossexuais femininas e masculinas, sendo notável a carência de pesquisas acerca das condições do envelhecimento de homossexuais femininos.

Intento, a partir de então, esboçar algumas contemplações sobre o envelhecimento de pessoas trans e travestis nesta seção, retomando que, de maneira alguma, pretendo esgotar o tema, porém, anseio mostrar algumas das pesquisas que orientaram este trabalho.

Desta feita, inauguro aqui com o clássico trabalho de Siqueira (2004), que objetivou mostrar que as travestis envelhecem, sim, embora nem todas tenham essa “sorte’ de alcançar o período da velhice. Falo de sorte, entre aspas, uma vez que a própria autora declara que, de modo geral, resta aos velhos a depreciação e a estigmatização situações as quais podem, inclusive, influenciar no tempo de vida dessas pessoas.

As participantes da pesquisa de Siqueira (2004) alegam ter satisfação em viver a velhice e, concomitantemente, apontam as dificuldades por elas enfrentadas nesse período. Suas interlocutoras enxergam o fato de chegarem à velhice como um status

56 social, tendo escapado da AIDS, dos vícios, e podendo transitar e ser respeitadas por diferentes segmentos sociais.

Interessante observar que no decorrer da minha pesquisa também constatei tal satisfação acerca da velhice identificada por Siqueira (2004). Rebeca, Jussara e Kate, colaboradoras da minha pesquisa, se posicionam da mesma maneira que as travestis da pesquisa de Siqueira (2004), principalmente no tocante à sobrevivência nas ruas e drible na AIDS. Jussara afirma que, embora existam inúmeras dificuldades no tocante à igualdade de oportunidades, se considera uma pessoa afortunada e feliz com a vida que leva na casa da Meire.

Siqueira (2004) também percebeu que as travestis da sua pesquisa tendem a se voltar mais para a esfera da casa para usufruírem de uma velhice mais tranquila, participando mais efetivamente de atividades políticas e de militância e socializando-se com familiares e amigos (SIQUEIRA, 2004), o que se confirma com os relatos de Jussara, Kate e Rebeca. Essas colaboradoras informaram que com o processo de envelhecimento há uma busca maior pelo sentimento de família.

No que diz respeito à sexualidade, Siqueira (2004) constatou que esta ainda encontra-se ativa para as participantes de sua pesquisa, mesmo que as relações sexuais ocorram com frequência menor. Tal fato também se confirma por meio das minhas interlocutoras, as quais alegam que a chegada da velhice não representa a diminuição de seu apetite sexual.

Finalmente, as participantes da pesquisa de Siqueira (2004) confessam que, embora sejam oriundas de uma classe social um pouco mais abastada, se prepararam para chegarem “bem” neste momento, o que contradiz a realidade apresentada pelas minhas colaboradoras. Rebeca é funcionária pública e tem sua aposentadoria garantida. Contudo, Kate e Jussara dizem viver um dia de cada vez e não se preocupar com o futuro.

A pesquisa de Antunes (2010) almejou investigar o impacto das normas de gênero sobre as travestis que atravessam a vida e atingem a velhice, de modo a observar que estas não vivem da maneira que querem, mas em concordância com o que os saberes lhes permitem. Para o autor, é muito difícil generalizar os modos de lidar com as adversidades da vida, mesmo as participantes de seu estudo tendo externado enfrentarem a exclusão desde a infância por não se adequarem às regras sociais.

57 Assim como para as colaboradoras da pesquisa de Siqueira (2004), para as travestis investigadas no estudo de Antunes (2010) alcançar a terceira idade representa ser um referencial relevante, um exemplo a ser seguido e também um alerta para as meninas mais jovens. São consideradas velhas no momento em que seus corpos não mais podem ser vinculados à prostituição, embora nem todas tenham uma ocupação/profissão paralela que as livrem de doenças e violências (ANTUNES, 2010).

Esse é outro fato mencionado pelas minhas informantes. Gabriela, Kate, Jussara, Patrícia e Rebeca alegam que depois de certa idade aquelas que encontram-se envolvidas na prostituição não conseguem mais o número de clientes que possuíam antes. Jussara e Kate, que são as participantes com mais idade no universo da minha pesquisa e que ainda trabalham enquanto profissionais do sexo, asseguram que não pretendem “se aposentar” tão cedo, por sentirem estar longe da terceira idade e também por gostarem de exercer tal profissão.

Em sua tese de doutoramento, Siqueira (2012) apresenta algumas das entrevistadas na sua dissertação de mestrado e realiza um trabalho comparativo e de preenchimento de algumas questões que surgiram acerca das memórias das “travestis das antigas”, como ela própria nomeia. A autora propôs-se a investigar as narrativas biográficas e formas de sociabilidade de sujeitas – que não estão na linha da pobreza, são brancas/morenas claras e têm residência própria – que se autodenominam “travestis das antigas”, com a intenção de compreender como as participantes construíram suas formas de sociabilidade no que diz respeito às suas vivências no Rio de Janeiro. E, é claro, por meio do comparecimento de suas memórias, as participantes da investigação compartilharam histórias de preconceitos, discriminações constrangedoras de seus processos de subjetivação, bem como as estratégias de resistências, entendidas por elas como astúcias na tentativa de impor seus diferentes estilos de vidas.

Leite Jr (2017) realizou um estudo com três interlocutoras que se intitulavam travestis e tinham mais de cinquenta anos de idade, da região metropolitana de Fortaleza/CE. Tinha por objetivo compreender a produção das performatividades de gênero e a experimentação da sexualidade na intersecção de travestilidade e envelhecimento.

58 Embora o autor tenha percebido a dificuldade em envelhecer enfrentada pelas meninas investigadas em seu estudo, ele relata as resistências e adequações a que elas se submetem para poderem ressignificar suas vidas e construir suas histórias em contextos considerados possíveis. Também notou que muitos preconceitos e estigmas que circundavam as travestis no tocante a drogas, prostituição e escândalos já começam a ser problematizados junto à sociedade, porém o olhar da academia ainda persiste na exclusão e patologização (LEITE JR., 2017).

Ao concluir, Leite Jr (2017) relata que não é possível generalizar o envelhecimento travesti, visto que as travestis se encontram em situações diferentes, apontando para modos de existência diversificados, o que é perceptível diante dos dados da minha pesquisa. As suas trajetórias de vidas são marcadas por violências, lutas, resistências, mas, infelizmente, em alguns momentos, acabam silenciando frente às exigências das normas heteronormativas pela sua sobrevivência (LEITE JR, 2017).

A pesquisa de Casteleira (2014) é interessante por tratar do envelhecimento e da travestilidade a partir das narrativas de 4 (quatro) trans jovens – participantes com idades entre 20 e 29 anos – com o objetivo de descrever como elas constroem a velhice a partir de suas falas, no intuito de desvendar o modo no qual pessoas trans envelhecem, sob quais perspectivas e as soluções que estas sujeitas encontram para retardar o temeroso envelhecimento.

Essas participantes asseveram que sofrem um sistema duplo de invisibilidade – o do gênero e o da juventude – conforme nota-se em outras pesquisas que envolvem a população LGBT, e revelaram subverter não apenas as normativas de gênero e corporeidades, mas também a fronteira que demarca o início do envelhecimento. Para elas, a idade cronológica não é determinante para o marco do envelhecimento, mas as situações a que são submetidas enquanto profissionais do sexo.

O autor também aponta que a ideia do corpo jovem relaciona-se com a beleza, isto é, um corpo velho é um corpo feio (CASTELEIRA, 2014), de maneira a corroborar o depoimento de uma de minhas interlocutoras, Gabriela da Silva.

A chegada da velhice é identificada por meio do pouco rendimento de seus corpos, em consequência da perda da jovialidade, ficando as trans da pesquisa na

59 expectativa do ingresso em atividades nas quais o corpo jovial não seja uma exigência (CASTELEIRA, 2014), como é o caso das minhas colaboradoras Jussara e Kate.

É curioso notar que os poucos trabalhos trazidos até aqui, no tocante ao envelhecimento de pessoas transgêneras, tratam quase que exclusivamente de travestis. Casteleira (2014) explica que no decorrer de sua pesquisa suas interlocutoras se autodenominaram mulheres, transgêneras ou travestis, contudo ele decidiu utilizar o termo trans por uma questão de unicidade entre tais denominações.

Neste ínterim, saliento que há uma escassez de trabalhos que lidem com o envelhecimento de mulheres transexuais ou mulheres trans. Muitos dos trabalhos encontrados, embora façam menção a velhice e/ou ao processo de envelhecimento, não tratam a temática como foco. Registro aqui tal fato não para justificar o meu envolvimento com o tema, mas para expressar o motivo da falta de dados para serem discutidos nesta seção.

A proposta desse capítulo foi apresentar ao(a) leitor(a) um panorama geral relativo ao processo de envelhecimento em conformidade com as pesquisas exploradas para a construção dessa tese, e que teoricamente embasaram algumas questões que referem-se ao envelhecimento biológico, psicológico, físico e social dos seres humanos.

Contudo, penso ser significativo comentar acerca da escolha da epígrafe deste capítulo, um poema de autoria coletiva cujo título é Voluptuosa dor extraterrestre, e encontra-se no livro Antologia Trans49. A dor sentida pelas pessoas

transgêneras é tão grande - em virtude das pressões hetero-cisnormativas - que a comparei com as dificuldades que as pessoas, em geral, acreditam enfrentar quando em seu processo de envelhecimento, é uma dor sem precedentes, uma dor extraterrestre, possivelmente graças às imposições dos discursos sociais de que o belo é o jovem, e que a velhice relaciona-se com a doença.

49 O livro Antologia Trans reúne 30 poetas trans, travestis e pessoas não-binárias que escreveram o poema

sob a coordenação da poetisa e mulher trans Danyelle Cavalcante, durante as oficinas de poesia do Cursinho Popular Transformação, o qual prepara meninos e meninas trans para o ENEM. O livro traz como prefácio

A Língua Como Nossos Corpos, de Amara Moira Rodovalho, assim como o poema Açaí.

Pessoas não-binárias, termo encontrado aqui nesta nota de rodapé, diz respeito a pessoas que não se identificam com o binarismo expresso por sexo/gênero como um todo, ou se identificam ligeiramente em ambos os sexos/gêneros, concomitantemente, ou ainda, com a predominância de um dos sexos/gêneros a maior parte do tempo (BONASSI, 2017).

60 Falar em envelhecimento de pessoas transgêneras é ainda mais doloroso. Não é fácil suportar o estigma, o preconceito e a discriminação sendo uma pessoa transgênera, o que dirá sendo uma pessoa transgênera e idosa. Um duplo processo de estigmatização e violências se instala.

No próximo capítulo, discuto sucintamente a questão do corpo, de modo a interpretar como os corpos masculinos e femininos foram construídos desde a Antiguidade até a contemporaneidade, visto retratarem a sociedade, seus valores e seus discursos. Também é meu objetivo entender a origem do estigma, do preconceito e da discriminação contra aqueles corpos transgêneros que nasceram masculinos e construíram o feminino, assim como o processo de envelhecimento desses corpos.

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CAPÍTULO 2