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Corpos em Transformação: os babados contados por Travestis/Mulheres Trans

4.1 Ai que batifum!

Antes de mais nada, penso ser conveniente explicar a construção do título desta subseção. Batifum é um termo oriundo do bajubá, mais especificamente de origem Nagô e que tem um sentido negativo, ou seja, sempre que a referência é para algo que não vai bem, usa-se o termo batifum. Adriana Liário o utiliza em inúmeras situações. Ao relatar como se deu sua transição e das dificuldades de aceitação da sua família no respeitante à sua transição, ela me contou que “foi o maior batifum!”, expressando que enfrentou inúmeras adversidades.

Ao mencionar certa vez que a Câmara Municipal de Rondonópolis-MT exigia dela e da Meire que recolhessem o lixo e os dejetos produzidos e deixados nos pontos onde os programas aconteciam, como por exemplo, camisinhas usadas, fezes, etc, Adriana usou o termo batifum. “Ai que batifum que é ter que voltar nos pontos e juntar

aquelas camisinhas e lavar ... ‘cê sabe que as vezes tem cocô pra tudo que é lado, né?”

Entendi que ela quis dizer que tratava-se de algo muitíssimo desagradável de ser feito. Em outra ocasião, Adriana estava demasiado triste com os impedimentos que se formavam sempre que decidia estudar, como problemas a serem resolvidos na casa da

101 Meire, os assassinatos da Tábata Brandão e da Tyetta Prazer, a falta de ônibus coletivos em horários variados, falta de respeito no ambiente escolar, etc, e acabou me confessando que estava pensando em ir ao terreiro para tirar o batifum. “Eu não tenho religião certa

não. Às vezes eu vou na igreja. Mas hoje eu quero ir no terreiro pra tirar o batifum”.

Entendi que a intenção de Adriana era simplesmente receber boas energias e afastar as ruins.

Diante dos três exemplos trazidos, todos com Adriana Liário usando o termo

batifum, penso que seria apropriado utilizá-lo no título dessa subseção considerando-se

as adversidades enfrentadas pelas mulheres trans e travestis no tocante ao seu presente. Ao narrarem acerca de suas ações atuais, pedi que elas evidenciassem o que elas achavam mais difícil para as suas vivências, o que mais as incomodava enquanto mulheres trans/travestis. Observemos alguns excertos:

Excerto 1

“Ah! É claro que o mais difícil pra nós é sair na rua de dia né? Eles xinga, faz cara feia, joga pedra...” (Kate, 2 set. 2018).

Excerto 2

“A hostilização de nossos corpos ocorre pelo simples fato de respirarmos” (Gabriela da Silva, 14 jan. 2018).

Excerto 3

“Eles fica olhando e cochichando. As vezes eles solta que a gente precisa de um corretivo.... sabe né? Eles acha que se dão uma lição na gente a gente vai virar homem...” (Fabiula, 13 jul. 2018).

Nos chama atenção na leitura dos três excertos acima que a maior preocupação que paira sobre as mentes das mulheres trans/travestis tem relação com a violência vivenciada, em especial nos exemplos trazidos, a violência verbal materializada em forma de ameaças, independente da faixa etária das entrevistadas.

As narrativas elencadas acima nos apontam que corpos trans e travestis são corpos femininos que encontram-se longe da imagem casta e submissa defendida pelo discurso normativo vigente desde a Idade Média, período em que o corpo era marcado por reprimendas e atitudes de correção (CORBIN; COURTINE; VIAGRELLO; 2012/2017; ROSÁRIO, 2004).

Esse discurso parece rotular os corpos trans como pagãos, errantes pecadores e suscetíveis ao vício, à fraqueza, à sexualidade, à prostituição, à luxúria, à perversão da

102 alma, ou seja, a um estatuto de deteriorização social dos sujeitos (DOMINGUES, 2015; ROIZ, 2009).

Essas designações acabam por construir uma percepção não-humana para os corpos trans (JESUS, 2018), portanto, torna-se natural a violência contra seus corpos. Particularmente, neste momento em nosso país, em que observa-se uma ampliação do discurso de ódio contra pessoas vistas como abjetas, penso como essa percepção direcionada aos corpos trans e travestis criam cadeias discursivas que procuram anular a existência desses corpos lidos como permiciosos para a sociedade. E constantemente a sociedade vincula a transgeneridade aos conceitos de impureza, ameaça, contaminação, rancor (PAZZINI; MIGUEL, 2016; PELUCIO, 2007; BENEDETTI, 2005).

Travestis e mulheres trans, então, são vistas como ininteligíveis (BUTLER, 2003) isto é, seu sexo biológico, sua identidade de gênero e sua orientação sexual não condizem com o discurso socialmente imposto, gerando preconceito e discriminações de toda ordem contra essas mulheres.

Larissa Pelúcio (2007) pondera que, conforme apontam as colaboradoras da sua pesquisa, em concordância com as minhas interlocutoras, “sair de casa é como ir à guerra”, uma vez que é extremamente fatigante para as mulheres trans/travestis se salvaguardarem dos olhares, falas e violências a que são acometidas diariamente (“...Eles

xinga, faz cara feia, joga pedra...”; “Eles fica olhando, cochichando...”).

Jussara tem vários relatos que confirmam os dicursos e as práticas sociais que violentamente atacam as mulheres trans e travestis pelo simples fato de saírem de casa. A impressão que tive foi que Jussara e as demais mulheres trans e travestis são pessoas que devem ser mantidas em cárcere, isoladas da sociedade, em conformidade com os excertos:

Excerto 4

“Só tando aqui mesmo [na avenida durante o desfile de 7 de setembro] pra ninguém fazer nada com nós. Se fosse outro dia, eles ficava olhando, jogando pedra...” (Jussara, 7 set. 2017).

Excerto 5

“A gente não pode nem sentar aqui na frente [de casa] que as doida crente lá da frente fica jogando pedra, ovo, tomate. Elas acha que a gente quer aqueles macho delas” (Jussara, 10 dez. 2017).

103 Excerto 6

“A gente quer sair mas não é qualquer lugar que a gente pode. As vezes as pessoas quer bater, pegar a gente” (Jussara, 14 jan. 2018).

Os excertos 4, 5 e 6 corroboram com a ideia de que os corpos das mulheres trans e travestis são hostilizados pelo simples fato de exibirem uma estilística feminina que diverge dos padrões discursivamente lidos socialmente como os adequados e normais.

Se compararmos os relatos demonstrados nos excertos de números 4, 5 e 6 com os relatos dos excertos de números 1, 2 e 3, percebemos a evidenciação de um mundo o qual mulheres trans e travestis não podem macular, no qual não tem permissão para fazer parte. A sua entrada é impedida pelas constantes agressões e violências a que são submetidas (“...Eles xinga, faz cara feia, joga pedra...”; “...Se fosse outro dia, eles ficava

olhando, jogando pedra...”; “Eles fica olhando e cochichando. As vezes eles solta que a gente precisa de um corretivo.... sabe né? Eles acha que se dão uma lição na gente a gente vai virar homem...” “... “A gente não pode nem sentar aqui na frente [de casa] que as doida crente lá da frente fica jogando pedra, ovo, tomate...”; “A gente quer sair mas não é qualquer lugar que a gente pode. As vezes as pessoas quer bater, pegar a gente”).

Essas sujeitas se deparam com a exclusão e as violências desde muito novas por expressarem o feminino em espaços cotidianos (SALES, 2018). Antunes (2010) também concorda que são vistas como pessoas que transgridem as regras sociais impostas: são aberrações, sujeitas que precisam de tratamento, em conformidade com os discursos médico-psicosocial.

Amanda afirma que já sofreu muito com esse tipo de violência mas sente que hoje é mais respeitada graças às inúmeras intervenções cirúrgicas a que se submeteu. “As

pessoas olham pra gente e nos veem como mulheres que somos, né?”. Para ela, quanto

mais proxima ela estiver dos traços sociais normativos de feminilidade, menor a discriminação e a violência sofridas.

Fabíula, mesmo expressando que ao ser vista muitas pessoas ficam cochichando, olhando ou até ameaçando lhe aplicar um corretivo, conforme o excerto de número 3, também me confessou que quanto mais se assemelha ao feminino considerado o ideal, normal, tanto por meio das vestimentas, gestualidade como também por meio das

104 intervenções hormonais, menos violências sofria, principalmente a partir de pessoas que não sabiam de sua identidade transgênera.

Jéssica, que se autodenomina gay afeminado, não dispensa os cuidados com os cabelos, com o corpo, com a gestualidade, modo de falar e vestir, visto que ela acredita que para “ser vista como mulher eu preciso estar parecida como uma né?”.

A esse respeito, Almeida & Vasconcellos (2018) asseguram que quanto melhor travestis e mulheres trans conseguirem performar o seu gênero de maneira mais próxima possível da performance de pessoas cisgêneras, maior será a sua aceitabilidade, acessibilidade e facilidade no meio social. Essa afirmação das autoras traz implícita a noção de que as pessoas transgêneras devem ser uma cópia das pessoas cisgêneras.

A premissa ignora que os corpos transgêneros têm uma potência questionadora do discurso heteronormativo compulsivo que por si já é extremamente violento. E não é necessariamente o desejo de muitas das minhas interlocutoras serem apenas uma fotocópia de uma mulher cisgênera. Pensar nisso é ler as mulheres trans ou travestis como irreais e artificiais.

Vale acrescentar que essa leitura social que interpreta corpos transgêneros como uma cópia de corpos cisgêneros não é apenas equivocada, mas uma criação dos discursos médicos, psiquiátricos e sociais cis-normativos. Uma vez que os corpos transgêneros transgridem as normas de gênero, estes não precisam se “refazer” para se transformarem em corpos semelhantes aos corpos cis e alcançarem uma “validação” (LANZ, 2014).

Amanda é a primeira a se expressar nesse sentido. Embora tenha uma preocupação em ser socialmente lida como mulher – que de fato o é – não exprime o mínimo desejo em se submeter à cirurgia de redesignação de gênero: “Bicha, ‘cê tá

louca? Tirar a neca63? Nunca! Sou uma mulher muito mais completa!”.

Patrícia, Jéssica e Rebeca, do mesmo modo, não acreditam que precisam se submeter à retirada do pênis, por meio da cirurgia de redesignação de sexo, para que suas feminilidades sejam confirmadas, nos apontando que elas são “mulheres de pau” (PELÚCIO, 2004). Em outras palavras, mulheres trans e travestis não são pessoas que querem se “passar” por mulheres, mas querem questionar o discurso hetero-cisnormativo que lhes é imposto desde o nascimento: “é menino!” (BUTLER, 2003).

105 Embora os dados mostrem a vontade das minhas interlocutoras em serem um modelo de feminilidade, os mesmos dados mostram que a sociedade é implacável quando a leitura social empreendida sobre seus corpos diverge ou se afasta do feminino tido como discursivamente ideal.

O que está em jogo não é a teatralização de uma determinada identidade normatizada, mas os direitos de simplesmente existir de inúmeras outras formas de feminilidades, sejam elas mais próximas ou não da expressa pela cisgeneridade como natural, numa busca constante de vencer a violência que encontra-se implícita em todos os detalhes das normas de gênero, para que sejam assim, incluídas na sociedade como sujeitas além de simples alegorias carnavalescas (FLEMING, 2005).

Silva et al (2016) concordam que a população de mulheres trans/travestis sente severamente os efeitos do preconceito e da discriminação em diversos ambientes, em especial nos que requerem a aceitabilidade, discutida acima. Tais atos de preconceito e de discriminação são naturalizados, relegando estas sujeitas a uma subsistência oculta, transformando-as em vítimas da violência fortificada pela (hetero) normatização social (SILVA et al, 2016).

Foucault (2007, 1996, 1988) nos ensina que o corpo é o território onde as batalhas relativas ao poder são estabelecidas, no intuito maior de moldar e adestrar esse corpo, ajustando-o em conformidade com as expectativas do discurso de poder. Logo, os corpos trans/travestis que não se adequam à esta lógica de ajuste e adestramento sentem os efeitos da violência, mesmo que apenas pelo julgamento do olhar, conforme os excertos de números 1, 2, 3, 4, 5 e 6.

E é claro que essa vivência de tensão acentuada por episódios de violência verbal pode afetar consideravelmente o seu processo de envelhecimento. Costa (2013) revela que as sujeitas de sua pesquisa – todas autodenominadas travestis – vivem tanta apreensão em seus cotidianos em termos de violência verbal que passam a desacreditar em seus futuros, investindo todas as suas perspectivas no presente.

A esse respeito, minhas informantes concordam que suas vivências negativas aceleram o seu processo de envelhecimento. As entrevistadas expressam que os ataques contínuos colaboram para a eclosão de estresse psicológico de modo a incidir sobre a corporalidade, degradando-o.

106 Jéssica é um dos exemplos. Ela conta que os comentários e olhares são tão inconvenientes que chegam “até a causar desânimo (...). A gente nem acredita às vezes

que um dia vai ficar velha”. Ela teme não viver a sua velhice porque não sabe se será

sucedida em alcançar tal fase em virtude do estresse psicológico a que é regularmente exposta.

Patrícia também tece comentários semelhantes aos de Jéssica e concorda que em alguns momentos elas passam por tantas circunstâncias de violência verbal que “chega a ficar de cabelo branco”, de maneira a inferir que as violências verbais e gestuais sofridas aceleram o seu processo de envelhecimento.

A esse respeito, Beauvoir (1970) entende a velhice como degradação do organismo, utilizando-se da metáfora da máquina que se desgasta depois de longo período de uso para referir-se ao corpo humano. Essa degradação corporal descrita por Beauvoir (1970) não leva em consideração o processo de violência enfrentado por mulheres trans e travestis, e que produz efeito psicológico tamanho a ponto de afetar o processo de envelhecimento de tais sujeitas.

Uma vez que vimos que cada uma das etapas da vida nos inferem determinadas condutas e que o envelhecimento é uma construção cultural baseada no discurso social, podemos deduzir que as experiências vivenciadas pelas mulheres trans e travestis desta tese afetam diretamente o seu processo de envelhecimento, e consequentemente, o curso de suas vidas.

Além da agressão verbal e simbólica sofrida, as narrativas obtidas indicam considerável incidência de violências sofridas pelas mulheres trans e travestis no centro de situações sociais sublinhadas por relações de poder (FOUCAULT, 2007, 1987), de modo a salientar que as ofensas não são sofridas apenas nas ruas e nos locais de prostituição, mas perpassam as inúmeras esferas de suas vidas. Uma dessas esferas diz respeito ao atendimento à saúde nas unidades públicas.

Excerto 7

“... Aí a menina foi violentada e nós levou ela pra UPA né.... Depois de uma tarde inteira é que foram fazer a profilaxia nela. Só porque era travesti deixaram a menina esperando o dia todo. (Anotação no Diário de Campo. Adriana me contava como foi o atendimento a uma menina que tinha sido recentemente violentada no horário de trabalho. Violentada sexualmente, espancada e teve os objetos pessoais roubados. 22 jan. 2018).

107 “... aí toda vez que a gente precisa do serviço daquela enfermeira, ela fica zombando da gente, deixa a gente nessa situação. Acredita que ela chegou e ficou falando que hoje não era dia de prevenção da AIDS? (Anotação no Diário de Campo. Adriana e Jussara me contavam a respeito do atendimento de uma enfermeira em um posto de saúde da família que atende as mulheres trans e travestis da casa da Meire. 20 fev. 2018).

Os excertos 7 e 8 delineiam o tratamento vivenciado pelas interlocutoras ao necessitar de atendimento na rede pública de saúde. O excerto de número 7 diz respeito a um episódio em que uma das moradoras da casa da Meire foi violentada em seu horário de trabalho, estuprada e roubada. Ao procurar os serviços oferecidos na Unidade de Pronto Atendimento Municipal, elas alegam terem esperado a tarde inteira por atendimento, bem como afirmam que viram diversas outras pessoas, que tinham chegado depois delas, serem passadas à sua frente. Conforme as mesmas alegaram, o atraso no atendimento poderia ter causado danos à saúde da travesti que necessitava de atendimento urgente.

É como se os corpos dessas mulheres precisassem ficar expostos para a apreciação pública, julgamento, acareação, humilhação, antes de serem atendidas de maneira a lhes apontar quem encontra-se no topo das relações de poder.

Uma vez que é sobre o corpo que recaem as estratégias de poder (FOUCAULT, 2007), ele também se torna um ambiente de nomeação de saberes (FOUCAULT, 2007, 1989), saberes os quais determinam o padrão de corpo a ser seguido e a patologização daqueles considerados desviantes. Os desviantes, deste modo, sofrem as punições, como a exposição à avaliação pública, riscos à saúde, humilhações.

Embora a travesti descrita no excerto 7 tenha sofrido violência sexual, física e ainda tenha sido roubada, ela precisa ser castigada e aguardar mais que os demais pacientes da unidade de saúde para “aprender”, ser “docilizada”, entender que há um poder que domina e controla o seu corpo (FOUCAULT, 2007, 1987). O corpo anuncia o que a cultura lhe autoriza falar, mas, concomitantemente, torna-se alvo das manipulações simbólicas no interior das sociedades (PAIM; STREY, 2004).

Soma-se a tal problemática o fato de os corpos trans e travestis representarem um aglomerado de carne e ossos que não possuem um gênero socialmente definido (BUTLER, 2003) e aceitável pelo discurso hetero-cisnormativo, o que justifica a falta de respeito por parte dos servidores na unidade de atendimento de saúde pública.

108 No excerto 8, Adriana e Jussara, referem-se ao tratamento dispensado por uma enfermeira encarregada pelo posto de saúde da família, localizado próximo à casa da Meire, e que, de acordo com elas, tal enfermeira tem satisfação em ofendê-las e inferir que elas procuram o posto de saúde por serem portadoras do vírus HIV/AIDS, principalmente, quando o posto encontra-se cheio. A queixa é que a enfermeira fala alto, de modo a constrangê-las e a ferir os seus direitos e privacidade.

Algumas mulheres trans e travestis afirmam que preferem enfrentar os problemas clínicos e/ou situações de dor para não serem mal-tratadas nas unidades de atendimento de saúde pública, mesmo conscientes de que tal postura pode trazer danos à sua saúde. Adriana, expressou, em algumas ocasiões, optar resolver seus problemas de saúde sozinha a ir ao posto de saúde da família localizado próximo à sua casa. Ela sempre conta com as dicas e sugestões das travestis/mulheres trans mais experientes que vivem em sua casa.

Patrícia e Jéssica igualmente confirmam já terem sido indevidamente tratadas em postos de atendimento de saúde pública. As interlocutoras concordam que seus direitos à saúde e à dignidade são reiteradamente violados, o que as desencoraja a procurar tais serviços.

Com isso, percebo dois fatores criados como uma resposta inconsciente à violência verbal sofrida por travestis/mulheres trans quando buscam o atendimento nas redes públicas de saúde, e que se confirmam por meio dos relatos. O primeiro destes fatores diz respeito a vulnerabilidade em que se encontra a população LGBT ao necessitarem acessar os serviços de ordem pública, de direitos de todos(as) os(as) cidadãos e cidadãs brasileiros(as).

Tal fragilidade no que se refere a proteção de seus direitos enquanto cidadãos e cidadãs agravou-se após a posse do novo presidente do Brasil em 2019. Em seu primeiro dia de mandato, o presidente Jair Bolsonaro, do PSL, assinou a medida provisória 870/1964 que omite a população LGBT da lista de políticas e diretrizes destinadas à

64 A medida provisória 870/19, assinada em 01 de janeiro de 2019 pelo novo presidente da República

Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, visa reduzir o número de ministérios de 29 para 22 órgãos com status ministerial, de modo a acoplar umas pastas às outras, mas nenhuma que garantisse o direito da população LGBT. A medida ainda não tinha sido votada pela Câmara de Deputados e Senado até a entrega da versão final desta tese.

109 promoção dos Direitos Humanos, colaborando para a desconstrução de serviços não discriminatórios65 por parte do governo.

Além disso, as transformações no atendimento às mulheres trans/travestis e população LGBT, em geral, dependem em grande parte da renovação no modo de pensar e atuar dos profissionais de saúde envolvidos com tal atendimento (CARDOSO; FERRO, 2012). Tal modo de pensar e atuar é afetado por valores culturais moldados pela estrutura heterossexual normativa que também toca a subjetividade de cada profissional da saúde (CARDOSO; FERRO, 2012), de maneira a conduzir a sua atuação. Consequentemente, o modo como efetivam o seu fazer profissional acaba por produzir preconceitos e violências, o que dificulta ou impede o acesso desta população aos serviços de saúde pública.

O segundo dos fatores tem relação com a procura por ajuda junto as mulheres trans/travestis mais velhas ou mais experientes. Uma vez que nos locais de atendimento de saúde as travestis e mulheres trans não recebem o tratamento que consideram digno e respeitoso, elas recorrem às “tias” ou “vós”.

Jussara e Kate são dois exemplos de travestis que são constantemente procuradas por travestis/mulheres trans da casa onde moram para oferecer conselhos de toda ordem, não apenas no tocante à saúde. “Elas sabem que nós já passou por muita

coisa né?”, como Jussara expressa. Kate revela que mesmo algumas das meninas sendo

mais “ousadas” e não levando tudo em consideração “quando é sobre a saúde delas elas