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Anais da III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz

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Academic year: 2021

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Organização: Prof. Renato Mendes Rocha

Anais da III Semana

Acadêmica do Instituto de

Filosofia e Teologia Santa

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Ficha técnica

Esta é uma publicação do

Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz

Grão-Chanceler

Dom Washington Cruz, CP

Diretor Geral

Mons. Luiz Gonzaga Lobo

Diretor Acadêmico

Pe. David Pereira de Jesus

Endereço

Av. Anápolis, 2020 - Jardim das Aroeiras 74770495 Goiânia - GO

Tel: (62) 3567-9060

e-mail: institutosc@superig.com.br

Organização e diagramação

Renato Mendes Rocha

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Sumário

Apresentação ... 4

Palestras

A literatura e o ser da linguagem ... 8  

Denis Borges Diniz  

A metafísica como disposição natural do ser humano ... 13  

Pe. Edmar José da Silva  

A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional ... 30  

Pe. Joaquim Cavalcante  

Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel ... 36  

Júlia Sebba Ramalho de Morais  

Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl ... 48  

Martina Korelc  

Comunicações

A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla ... 65  

Arpuim Aguiar de Araujo  

Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade ... 72  

Cláudio José De Carvalho  

O homem: um ser composto de corpo e alma, segundo T. de Aquino ... 78  

Divino Eterno  

A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI ... 86  

Mário Correia  

A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e no ensaio “Do ente e da essência”, de Santo Tomás de Aquino ... 95  

Pedro Mendonça Curado Fleury  

Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios ... 106  

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Apresentação

Este trabalho que o leitor tem em mãos só foi possível graças ao esforço conjunto de coordenadores, professores, funcionários e acadêmicos do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC). Trata-se de um registro em texto de temas que foram apresentados e discutidos no âmbito da terceira edição da Semana Acadêmica que aconteceu de 12 a 16 de Setembro de 2011 nas dependências do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, local de formação que acolhe seminaristas em busca da sua confirmação vocacional e formação sacerdotal.

Estes Anais foram compostos a partir de textos de alunos e professores que apresentam o trabalho de suas pesquisas durante o nosso evento. Elegeu-se a metafísica como tema para esta semana acadêmica. A metafísica é uma das área mais fundamentais da Filosofia, pois seus temas permeiam todas às demais áreas da Filosofia. Ainda que implicitamente, toda posição filosófica, seja ela em ética, epistemologia, lógica, ou filosofia política estão assentadas em uma certa visão concepção da realidade. Este modo de conceber a realidade é metafísica. Até mesmo as ditas posturas antimetafísica são, em algum sentido, metafísica. De um modo mais amplo, podemos compreender a metafísica como uma tentativa filosófica de revelar a realidade última das coisas. Em outras palavras, sobre o quê está por trás da mera aparência das coisas. Partindo desse ponto de vista, podemos formular três questões básicas, a partir das quais podemos compreender melhor a natureza das questões metafísica: a) quais são as características gerais do mundo e que tipo de coisas existem no mundo? Como o mundo é?; b) Por que o mundo existe, e mais especificamente, por que o mundo existe com as características descritas na resposta à 1?; c) Qual é o nosso lugar no mundo? Como nós, seres humanos, nos encaixamos no mundo?

De alguma forma, os textos reunidos nesse volume constituem tocam em alguma destas questões, alguns mais diretamente e outros apenas de modo tangencial. Portanto, a riqueza deste volume está em apresentar um mesmo tema, sendo abordado por diferentes maneiras de se fazer filosofia. Os textos destes anais foram divididos em duas partes, sendo que, em cada uma destas partes os textos foram dispostos a partir da ordem alfabética do primeiro nome do autor. Na primeira parte dos anais publicamos texto das palestras dos professores e na segunda parte estão os textos das comunicações dos alunos.

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5 A parte relativa aos textos dos professores inicia-se com trabalho do prof. Denis Borges Diniz em que ele apresenta uma abordagem do ser na literatura tal como interpretada pelos filósofos franceses. Na sequência temos o texto da palestra Pe. Edmar José da Silva, professor convidado da Faculdade Arquidiocesana de Mariana de Minas Gerais, em que ele apresenta a metafísica como disposição natural do ser humano e defende essa posição a partir dos escritos de Pe. Henrique Lima Vaz. No texto seguinte, o leitor poderá acompanhar no texto do Pe. Joaquim Cavalcante uma apresentação da liturgia como epifania do mistério trirrelacional e compreender cada um dos termos dessa definição. Os dois derradeiros textos dessa edição são os mais extensos e densos desse volume. O primeiro é da profª. Júlia Sebba Ramalho de Morais e ela apresenta aspectos da metafísica de G. F. Hegel comparando-a com aspectos da metafísica de Immanuel Kant, ambos filósofos alemães que viveram na passagem do século XVIII ao XIX. O segundo texto é da profª. Martina Korelc que escreve sobre a metafísica por via da fenomenologia husserliana. Esse é um texto muito importante pois resulta de pesquisa bibliográfica que a pesquisadora realizou em seu estágio pós-doutoral onde pôde entrar em contato com manuscritos de Edmund Husserl.

Na segunda parte desta publicação encontram-se textos escritos pelos acadêmicos do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz. No primeiro texto, Arpuim Aguiar de Araújo expõe sobre a fenomenologia personalista de Karol Wojtyla e a partir desta perspectiva aborda o conceito de pessoa humana. No segundo texto, Cláudio José de Carvalho defende uma visão conciliadora entre a prática religiosa e a prática científica, argumentando que mesmo teorias controversas como o darwinismo não contradizem as verdades reveladas do cristianismo. Em seguida, Divino Eterno apresenta a importante teoria hilemórfica de Tomas de Aquino que consiste na fundamentação filosófica da concepção de que o homem é um ser composto de corpo e alma. Mário Correia é o autor do próximo texto que versa sobre a importância de valores estéticos como a beleza para manifestação da verdade, a partir dos escritos do Papa Bento XVI. No texto seguinte, Pedro Mendonça Curado Fleury faz uma aproximação entre os pensamentos de Parmênides e Santo Tomás de Aquino procurando mostrar semelhanças entre a relação entre o ser e o ente nesses dois autores pertencentes à duas épocas históricas distintas. Por fim, no último texto desta segunda parte Ueslei Vaz Aredes aborda a realidade transcendental do sacramento e o apresenta como símbolo do sinal da vida do homem em comunhão com a Igreja.

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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011

Não poderia deixar de lembrar e agradecer às pessoas e instituições que tornaram a realização da III Semana Acadêmica do Instituto Santa Cruz. Em primeiro lugar ao trabalho dos membros da comissão organizadora: Mons. Luiz Gonzaga Lobo, Pe. David Pereira Jesus e aos acadêmicos Arpuim Araújo, Jefferson Tomaz, Mário Correia, Ronaldo Rangel, Washington Uberaba. Em especial aos acadêmicos que verdadeiramente “carregaram o piano” da organização, se ocupando de todos os detalhes para garantir o sucesso do evento. Do lado institucional é importante lembrar e agradecer à Fundação Aroeira, à Catedral Metropolitana de Goiânia e às Paróquias São Nicolau, Aux. Cristãos, Imaculado Coração de Maria, São José, São Pio X, Rainha da Paz e Bom Jesus que contribuíram financeiramente para a realização do evento.

Para concluir, este trabalho pode ser visto como uma pequena amostra do pensamento das pessoas que estudam e trabalham no IFTSC. Faço votos de que este continue sendo um espaço propício ao ensino, estudo, pesquisa e divulgação do pensamento filosófico e teológico na cidade de Goiânia. Desse modo, espero que a leitura destes textos aqui apresentados possa ser além de um registro material da atividades do nosso Instituto, também um instrumento para o desenvolvimento intelectual e aprendizado filosófico de seus leitores.

Renato Mendes Rocha, Florianópolis, 08 Junho de 2012

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A literatura e o ser da linguagem

Denis Borges Diniz1

Em As palavras e as coisas, livro publicado em 1966, Foucault descreve a ruptura epistemológica ocorrida na virada do século XVIII para o século XIX. Segundo ele, naquele momento uma nova ordenação dos saberes estaria em curso na cultura ocidental impondo a destruição da Representação como tarefa fundamental desses saberes. A partir daí, novos objetos, conceitos e saberes iriam se configurar constituindo assim o que ele denomina de modernidade. A linguagem surge neste momento de um modo inteiramente novo. Surge como objeto bastante definido e no entanto bastante complexo devido ao fato de ser irredutível à representação. Ao contrário do que era para os clássicos, não se trata mais para os modernos de conduzir a palavra, o signo à ideia; ou dito de outro modo, de conceber a linguagem nesta sua função puramente representativa. Isso porque este novo objeto aparece aos novos saberes como que dotado de uma historicidade, de regras e de leis que lhes são próprios e que, por isso mesmo não se deixam atualizar plenamente pelas regras de um pensamento que se dá apenas como representação. Entretanto, e em função mesma de sua irredutibilidade ao cogito, essa novidade ocorre segundo uma dispersão que é assim anunciada por Foucault:

Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história; para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso; se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. (FOUCAULT, 1995, p. 320)

A literatura, porém, é onde a linguagem aparece como compensação a toda objetividade que qualquer daquelas análises possa se configurar, onde, de modo absolutamente autônomo, além - ou aquém - de todo significado prévio ou conteúdo designativo a lhe emprestar alguma substância, a linguagem manifesta seu ser bruto.

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A literatura e o ser na linguagem 9 A princípio, a linguagem na sua modalidade literária se desenvolve num duplo movimento que manifestaria assim a dinâmica de seu ser. Por um lado é de uma incomunicabilidade absoluta com quaisquer valores exteriores a ela (FOUCAULT, 1995, p. 316); estes nascem de seu próprio espaço e vem assinalar o sentido de sua pura existência, posto que irredutível às formas exteriores: “[...] nessas condições, não lhe resta senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por conteúdo senão dizer sua própria forma [...]” (FOUCAULT, 1995, p. 317). De fato, vê-se que a literatura aí é a manifestação de uma linguagem que não tem por lei outra coisa que não a afirmação de si mesma. Nada mais distante portanto, da linguagem como funcionamento representativo, posto que, na idade clássica o que o ser afirmava era a ideia. Agora na literatura moderna a linguagem desenvolve-se sobre si mesma formando ela própria seu espaço, seu tecido, onde a singularidade dos pontos de sua trama é constituída a partir desse “[...] espaço que os contém e os separa ao mesmo tempo.” (FOUCAULT, 1990, p. 14). Muito semelhante, sem dúvida, à concepção que Foucault constrói acerca da formação discursiva quando se refere à disposição manifesta dos elementos que a compõe: estes são formados a partir de um agrupamento heterogêneo que ganha sentido pela sua coexistência regrada definindo um espaço comum e que é irredutível a toda interioridade, como que resistindo a ela.

A trama na qual a palavra se desenvolve mantém a partir de si mesma suas relações de identidade e não-identidade. Não é o caso de vislumbrar nesse desenvolvimento um contexto, do qual o sentido poderia então ser produzido2. Se assim

fosse, tal contexto designaria uma linguagem que se interioriza numa auto-identificação consigo mantendo-se ao nível do significante. Ao contrário, e aí se manifesta a outra face do ser da linguagem, na literatura, diz Foucault, ela se distancia “[...] o mais possível de si mesma; e se este colocar-se “fora de si mesma” põe em evidência seu próprio ser, esta claridade repentina revela uma distância mais do que um sinal, uma dispersão mais do que um retorno dos signos sobre si mesmos.” (FOUCAULT, 1990, p. 14). O que nosso autor coloca é uma contraposição à concepção, superficial segundo ele, de que a literatura moderna designaria apenas a si mesma: auto-referência. Ao contrário, sua posição é de que o “sujeito” da literatura (aquele que fala dela, ou aquele de quem ela fala) está na verdade evidenciando um vazio, apenas uma função gramatical que se deixa enunciar no “falo”. É

2 Foucault também refuta o recurso ao contexto para explicar o modo de existência dos enunciados

que comporiam o domínio discursivo distinguindo os enunciados das unidades linguísticas habituais. Cf. FOUCAULT, 1997, 111-114.

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Denis Borges Diniz 10 esse vazio que seria, para nosso autor, o traço distintivo da moderna literatura ocidental. Essa posição de Foucault é importante, pois a lacuna deixada pelo sujeito ausente nos propõe a um certo abandono do exercício do “pensamento do pensamento” – herança cartesiana do “Penso” – e nos conduz ao exercício da “palavra da palavra”: nessa experiência nua da linguagem a evidência do “existo” pode ser posta em questão.

Essencial dissimulação portanto: nesse retorno sobre si, desenvolve-se, porém, rumo a um exterior3 o mais longínquo possível. E tal movimento encontra-se somente

numa linguagem que não funciona mais como discurso representativo, que readquire sua existência selvagem onde a significação do signo está ausente; onde o significante, face neutra, é surdo às interrogações sobre sua existência enigmática. Essa existência reaparece na experiência cultural do Ocidente quando no final do século XVIII, o sujeito deixa de conduzir a linguagem à sua função primeira de desdobrar as séries de representações e de erguer como sua morada a interiorização do pensamento.

O distanciamento que a literatura assume em relação à idade clássica a reaproxima, por outro lado, da Renascença ainda que por uma diferença fundamental. Tal como naquele período, as palavras como que se adensam e seu poder encerra-se naquilo que permite o movimento de um discurso indefinido. Foucault aponta entretanto, que no Renascimento aquilo que ao mesmo tempo fundava esse movimento e o limitava era “aquela palavra primeira, absolutamente inicial” (FOUCAULT, 1995, p. 60) que fazia de todo discurso, divinatio. Na modernidade esse movimento assume sua radicalidade pela ausência absoluta de um fundamento, de uma anterioridade: “[...] doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.” (FOUCAULT, 1995, p. 60).

A literatura moderna está assim a marcar um triplo e radical afastamento das experiências com a linguagem ao longo desses séculos: do Renascimento, como foi visto, mas também do classicismo e da modernidade, como resume Roberto Machado:

Na modernidade, a literatura é um “contra-discurso”, no sentido do que compensa, e não do que confirma, a forma significante, o funcionamento significativo da linguagem. Ou de modo mais explícito: a literatura é o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na época

3 Esse termo se refere àquele mesmo utilizado na tradução brasileira de La pensée du dehors (O

pensamento do exterior). Seu sentido parece ser melhor preservado pela tradução por “de fora” ficando então

O pensamento do de-fora ou do lado de fora. De fato, essa expressão foi utilizada na tradução do livro de

Deleuze, Foucault, onde ele faz a distinção entre exterior ou exterioridade e o lado-de-fora. Com essa ressalva, mantém-se aqui a opção por “exterior” em função de que aquela tradução é a referência para este trabalho.

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A literatura e o ser na linguagem 11 clássica reduzida a discurso [...]; mas a literatura é também o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existe na modernidade com sua relação significante, em que a significação é considerada como determinada na consciência [...] que se torna, portanto, o fundamento, a condição, o ato constituinte da significação. (MACHADO, 2000, p. 18) Daí, na ausência da anterioridade divina [Renascimento] e de um espaço interior que a conduzam, a linguagem aparece como “trânsito ao exterior” onde o sujeito é apenas um “vínculo gramatical” evanescente a ser requerido ao sabor de algo que não mais lhe pertence. É nesse ponto, da destruição do sujeito como lugar de origem, que Foucault identifica o perigo da literatura: “Sem dúvida é por esta razão pela qual a reflexão ocidental não se decidiu durante tanto tempo em pensar o ser da linguagem: como se pressentira o perigo que faria correr a evidência do ‘existo’ a experiência nua da linguagem.” (FOUCAULT, 1990, p. 15).

Ora, nessa brusca autonomia com que o ser da linguagem se manifesta ele rompe com uma dimensão fundamental da nossa experiência: a memória, que se forma a partir de representações sedimentadas na consciência e, consequentemente, com a linguagem instituída e com o tempo como ordenação dos fenômenos. Essa manifestação num “não-tempo” não permite, pois, que se a imobilize em nenhuma forma. De fato, toda formalização se dá conforme regras - lógicas ou gramaticais - e supõe pontos de origem e término, axiomas, demonstrações e, enfim, uma verdade, ainda que imanente ao campo semântico. Ao contrário, afirma Foucault, a linguagem não tem amparo na memória e suas palavras não se dirigem a conteúdos que lhe precedem, (FOUCAULT, 1990, p. 72) no seu ser ela é amparada pelo esquecimento atento da espera:

É no esquecimento que a espera se mantém como uma espera: atenção aguda àquilo que seria radicalmente novo, sem ponto de comparação nem de continuidade com nada (novidade da espera exterior a si e livre de todo o passado) e atenção àquele que seria o mais profundamente velho (posto que nas profundidades de si mesma a espera não deixou nunca de esperar). (FOUCAULT, 1990, p. 74)

Daí, a origem e a morte achatam-se no instante de um esquecimento, e é nisso em que consiste a experiência nua da linguagem, que conserva sua força e sua ação “no rumor informe e fluido”4. É uma situação paradoxal esta que Foucault assinala à

linguagem. Ao invés de ser a morada da verdade, e ter daí inferida a sua força, a linguagem

4 Idem, p. 71. Em outras ocasiões, como já observou Deleuze, Foucault vai desejar estabelecer-se

nesse murmúrio da linguagem, como por exemplo, quando do discurso da aula inaugural no Collège de France. Cf. FOUCAULT, 1998, p. 5. Quanto a análise que Deleuze faz do “murmúrio anônimo” Cf. DELEUZE, op. cit., p. 19, 64, 65.

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Denis Borges Diniz 12 tem sua existência na precariedade, na limitação, vale dizer, na ausência de um poder que designa, que aponta, e é neste momento que reside sua força. Aquele exterior - aberto pelo vazio da ausência do sujeito - que anuncia a brusca oscilação da linguagem na morte e na origem, “não estabelece jamais o limite a partir do qual se delinearia finalmente a verdade. [...] a origem tem a transparência que não tem fim, a morte dá acesso indefinidamente à repetição do começo.” (FOUCAULT, 1990, p. 73). Surge aí a interessante ideia da verdade como invenção da linguagem, ideia de inspiração nietzscheana e que permeia as análises arqueológicas de Foucault.

Estes são alguns dos aspectos pelos quais a literatura como “palavra da palavra” funciona ao revés do “pensamento do pensamento” (FOUCAULT, 1990, p. 15). Decorre daí, do apagamento do sujeito, do discurso e da verdade a necessidade de se pensar a ficção como lugar manifesto do impensado.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

_______. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_______. Nietzsche, Freud e Marx. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.

_______. O pensamento do exterior. Trad. Nurimar Falci. São Paulo: Princípio, 1990. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

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A metafísica como disposição natural do ser humano

Pe. Edmar José da Silva1

Resumo: Podemos refletir sobre a metafísica a partir de duas óticas ou perspectivas: 1ª)

Compreendendo-a como investigação sistemática e crítica do sentido último da realidade (sentido próprio da tradição filosófica ocidental); 2ª) Compreendendo-a como disposição natural do ser humano.

O objetivo da palestra é debruçar sobre a segunda perspectiva. Valendo-me do arcabouço teórico da antropologia do grande filósofo brasileiro, jesuíta, Henrique Cláudio de Lima Vaz, pretendo mostrar que o ser humano é essencialmente metafísico e que esta é uma exigência que nasce da sua complexa e nobre estrutura constitutiva.

Partindo da afirmação de que o ser humano é um animal metafísico (Schopenhauer), pretendo apresentar e aprofundar as categorias antropológicas estruturais de Lima Vaz que permitem tal afirmação, a saber: corpo próprio, psiquismo e espírito. No ápice do discurso antropológico, concluiremos que o homem é um ser espiritual (categoria do espírito) e que, portanto, possui um excesso ontológico que o abre para o relacionamento com as coisas, com os outros e com a transcendência (realidades metafísicas).

Introdução

A interrogação do homem sobre si mesmo sempre constituiu parte essencial do discurso filosófico. A pergunta “quem é o homem?” sempre ocupou a centralidade das buscas mais profundas do ser humano porque a resposta a esta interrogação não é secundária e não se refere a um objeto que está fora de si, mas esclarece o seu próprio ser e agir. Como afirma o filósofo jesuíta Lima Vaz:

Desde a aurora da cultura ocidental (cujos começos se situam convencionalmente em torno do século VIII a. C, na Grécia), a reflexão sobre o homem, aguilhoada pela interrogação fundamental “o que é o homem?” permanece no centro das mais variadas expressões da cultura: mito, ciência, filosofia, ethos e política. Nela emerge com fulgurante evidência essa singularidade própria do homem que é a de ser interrogador de si mesmo (LIMA VAZ, 1993, p. 09).

Agostinho afirma que mais cedo ou mais tarde, o ser humano acaba descobrindo que é um problema para si mesmo: “Factus eram ipse mihi magna questio” (AGOSTINHO, 1964, p. 113). O homem é o único ente existente no cosmos que interroga sobre sua própria existência, busca a sua razão de ser, deseja entender o sentido do seu agir no mundo e indaga sobre a real possibilidade de ser para além da realidade física.

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Pe. Edmar José da Silva 14 No percurso da antropologia filosófica, encontramos diversas definições de ser humano que não se excluem, mas colocam em relevo aspectos importantes e distintivos deste ente especial, o ente humano: zoon logikón, zoon politikón, Imago Dei (Patrística),

homo faber, homo loquens, home ludens, etc. Schopenhauer o define como “animal

metafísico”. É baseado na afirmação deste renomado filósofo contemporâneo, que desejo colocar em relevo a disposição natural e estrutural que existe em todo indivíduo humano para a busca das realidades metafísicas. Meu objetivo não é aprofundar a afirmação a partir da doutrina de Schopenhauer, mas da teoria antropológica do grande filósofo brasileiro, Henrique Cláudio de Lima Vaz.

Aristóteles, no início da sua obra denominada Metafísica, afirma que “todos os homens, por natureza, aspiram ao saber” (ARISTÓTELES, Met. I, 980 a 21). Para ele, há uma hierarquização das ciências e o topo mais alto é reservado às ciências teoréticas, dentre elas, a metafísica. Para ele, as ciências se dividem em poéticas, práticas e teoréticas. As ciências poéticas estão ligadas ao conhecimento produtivo e visam a fabricação de algum utensílio (Ex.: o homem que aprende a fazer uma mesa, roupas, vasos, etc.). As ciências práticas estão ligadas ao uso do saber com finalidade moral (ética e política). As ciências teoréticas, por sua vez, buscam o saber pelo saber, não têm finalidade prática ou utilidade imediata. Segundo ele, a metafísica (física primeira) está no topo hierárquico de qualquer conhecimento, por isso é a ciência mais elevada e mais nobre. O estudo da metafísica faz com que os homens se assemelhem a deus, objeto da metafísica e o metafísico por excelência. A metafísica (ciência primeira) à qual se refere Aristóteles é a ciência mais elevada. Mas todo ser humano, ainda que não seja iniciado à ciência metafísica, pelo simples fato de ser humano, tende a este conhecimento mais elevado, porque possui racionalidade (Cf. ARISTÓTELES, Met. VI, 1025 b).

Ao elaborar a sua antropologia, Lima Vaz mostra que o homem não está confinado nos limites e determinismos do material, biológico ou psíquico (apesar de constituírem categorias essenciais do ser humano), mas ele é um ser espiritual e isso significa que é um ser que possui uma abertura constitutiva que o torna um eterno fatigador do infinito, um aspirador das realidades metafísicas, um possuidor de marcas da eternidade, apesar de estar no tempo e no espaço. A abertura constitutiva do ser humano nasce do seu excesso ontológico, da sua superabundância de ser, do “mais” que emerge da sua estrutura constitutiva e que o impulsiona para o transcendente, seja ele real ou formal.

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A metafísica como disposição natural do ser humano 15 Afirmar que o homem possui uma exigência estrutural que conduz a buscas metafísicas, não significa afirmar que todo homem precisa ter contato direto com esta área do conhecimento filosófico. Assim, a exigência que nasce de sua estrutura humana é de uma metafísica natural e não tanto acadêmica (como ciência).

Podemos entender o termo ‘metafísica’ de dois modos: como disposição

natural do ser humano ou como reflexão crítica e sistemática a respeito do fundamento último das diversas realidades existentes. Valho-me de um precioso artigo do prof. Dr.

João Macdowell para clarear esta dupla possibilidade de compreensão do termo. Segundo o professor Macdowell, pode-se afirmar que a metafísica, no sentido amplo e fundamental, constitui uma disposição natural do ser humano, na medida “em que o ser humano, enquanto dotado de razão, tende a buscar o sentido da existência e da realidade como um todo” (MACDOWELL, 2002, p. 10). Ele afirma ainda que “a necessidade de motivar de algum modo a própria compreensão da existência como um todo, é a expressão daquilo que se pode chamar de constituição metafísica do espírito humano. Ser humano consiste em abrir-se para a totalidade e entender-se a partir dela como horizonte da própria existência” (MACDOWELL, 2002, pp. 10-11). A metafísica como foi entendida na tradição ocidental, diferentemente da primeira perspectiva apresentada, é a interrogação crítica sobre o sentido último da realidade, é a investigação sistemática e crítica do movimento ascensional do espírito humano em busca do sentido global da realidade:

O mundo das coisas materiais, temporais e sujeitas à mudança e ao desaparecimento, é ultrapassado em direção ao seu fundamento, captado não pelos sentidos, mas pela inteligência, e concebido negativamente como imaterial, intemporal, imutável, por contraste com o que é percebido imediatamente (MACDOWEL, 2002, p.12).

Esta é a metafísica entendida como a ciência mais elevada, o conhecimento filosófico por excelência. Esta metafísica é a busca acadêmica logicamente organizada dos fundamentos, das causas ou dos princípios da realidade sensível. É uma importante área do conhecimento da tradição filosófica ocidental, que ocupou a centralidade do pensamento antigo e medieval, até perder espaço para o antropocentrismo (sujeito) moderno e sofrer duras críticas da filosofia contemporânea. É esta compreensão de metafísica que vai marcar decisivamente toda a história da civilização ocidental.

Clareados os dois sentidos do termo “metafísica”, resta afirmar que minha reflexão não pretende discutir sobre os diversos problemas levantados pela metafísica ocidental, na sua vertente sistemática e crítica, nem apresentar historicamente as diversas

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Pe. Edmar José da Silva 16 afirmações ou negações do ser2, mas meu enfoque se direciona para o primeiro aspecto da compreensão de metafísica, entendida como exigência natural e constitutiva da estrutura do ser humano. Entendo que esta reflexão que ora apresentamos antecede a apresentação da metafísica como área do conhecimento filosófico, visto que sem a disposição natural e estrutural do ser humano, a metafísica enquanto ciência do ser não existiria. Neste discurso que ora apresentamos, se entrelaçarão duas importantes áreas do saber filosófico: a antropologia e a metafísica.

1. Categorias estruturais do ser humano

Filosoficamente, o termo categoria significa modos de ser3. Em Aristóteles, por exemplo, a tábua das categorias quer revelar os diversos modos de ser que constituem o ser. Nenhuma categoria isoladamente pode ser identificada com o ser. Assim também acontece na antropologia filosófica de Lima Vaz. Ao tratar das categorias estruturais do ser humano (corpo próprio, psiquismo e espírito), ele vai mostrar que cada uma delas é parte constitutiva da estrutura humana, mas o ser humano na sua totalidade constitutiva não se resume a nenhuma delas isoladamente. O ser humano é a totalização de todas as categorias. A divisão da estrutura humana em categorias é apenas de ordem metodológica e sistemática, para facilitar o discurso filosófico. No nível metafísico e existencial, o ser humano é unidade estrutural e é compreendido como totalidade das categorias estruturais. Portanto, o ser humano é uno no seu existir e todas as suas ações são praticadas com a totalidade do seu ser. Neste sentido, podemos afirmar que é o ser humano todo que chora e não somente o corpo humano, é o ser humano todo que sente e não somente o psiquismo humano, é o ser humano todo que se abre à verdade e ao bem e não somente o espírito humano. Baseado na dialética hegeliana, Lima Vaz retoma o conceito de Aufhebung (suprassunção dialética: assumir elevando), para mostrar que cada categoria separadamente não responde plenamente à pergunta “o que é o homem?”, mas depende das outras para compreendê-lo. As categorias estão em íntima relação e uma suprassume a outra dada imediatamente anterior a ela.

Ao tratar dos temas das categorias estruturais ou constitutivas do ser humano, Lima Vaz vai mostrar que pelo corpo próprio o homem se abre para o contato imediato

2 Para quem desejar um aprofundamento maior da história da metafísica ocidental, conferir a obra:

MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. São Paulo: Paulus, 2002. Nesta obra, o autor apresenta a história da metafísica na perspectiva da sua construção, desconstrução e reconstrução.

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A metafísica como disposição natural do ser humano 17 com o mundo das coisas; pelo psiquismo, o homem se abre para o relacionamento propriamente humano e pelo espírito, o homem se abre para a relação de transcendência. É na abertura constitutiva para a transcendência que podemos constatar a vocação metafísica de todo ser humano:

Em cada esfera das relações, observa-se a primazia de uma das estruturas que integram a totalidade do ser-homem: na relação de objetividade a primazia é dada ao corpo próprio, na relação de intersubjetividade é dada ao psiquismo, e na relação de transcendência a primazia é dada ao espírito. [...] A primazia à qual nos referimos significa que o corpo próprio é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de uma abertura constitutiva ao mundo, o psiquismo é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de abertura constitutiva ao outro (ou à história), o espírito é a condição primeira de possibilidade de nossa presença é realidade na forma de uma abertura constitutiva ao Absoluto. O homem é, pois, ser-em-relação, segundo a totalidade estrutural que o constitui como corpo, psiquismo e espírito. (VAZ, 1995, p. 14).

Esta abertura do ser humano possui níveis diferenciados, de acordo com as categorias estruturais preponderantemente envolvidas: “Desta sorte, o ser humano pode abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional [...] pode abrir-se ao outro e à história, num segundo nível relacional [...] pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado nível relacional que se exprime pela categoria de transcendência” (VAZ, 2000, p. 24).

1.1 Corpo próprio

Para Lima Vaz, todo discurso antropológico-filosófico sério deve iniciar analisando o tema do corpo, visto que o somático é o dado mais evidente no ser humano e o situa de maneira imediata no mundo sensível. O corpo é o ponto de partida para se compreender o homem e a sua presença no mundo:

O problema do corpo próprio ou, em termos filosóficos, o problema da categoria da corporalidade é não somente um problema fundamental para a Antropologia Filosófica, mas é o seu ponto de partida, pois a autocompreensão do homem encontra seu núcleo germinal na compreensão de sua condição corporal (VAZ, 1993, p.175).

Segundo o nosso filósofo brasileiro, o corpo humano pode ser pensado como corpo físico, biológico ou corpo próprio.

Corpo físico é tudo aquilo que é constituído de matéria e ocupa espaço. Neste sentido, o corpo humano possui esta dimensão material e, por isso, é também corpo físico e está sujeito a todas as leis da física ou da química (Ex.: lei da gravidade). O corpo

(18)

Pe. Edmar José da Silva 18 biológico é o corpo entendido como organismo vivo, com todas as suas funções e organicidade. Como qualquer corpo biológico, está sujeito às leis da biologia (Ex.: comer, beber, dormir, necessidades fisiológicas). Estes dois primeiros sentidos apresentam o corpo humano na sua dimensão natural. Enquanto corpo físico, ele é semelhante ao corpo de uma pedra ou de um artefato qualquer. Enquanto corpo biológico, ele se identifica com o funcionamento dos corpos de qualquer ser vivo, qualquer animal. Mas o corpo humano é mais do que isso! É corpo vivo (não no sentido biológico, mas intencional), é corpo próprio (Cf. VAZ, 2003, p.176). O corpo próprio4 é o corpo que tem consciência da sua própria corporalidade, é o corpo que não somente sente, mas se sente, não somente percebe, mas se percebe, não somente toca, mas é tocado e se toca. Como afirma o filósofo contemporâneo Merleau-Ponty: “O corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca, um sentido que se sente. O corpo é instrumento de percepção, e consciência perceptiva é consciência existencial” (PONTY, 1999, p. 19).

O corpo é uma dimensão constitutiva do ser humano. Para ser humano é necessário ter corpo. O homem não somente tem corpo, mas é corpo, ou seja, este faz parte da sua constituição ontológica: “No discurso antropológico, a realidade do corpo enquanto humano é afirmada como constitutiva da essência do homem, isto é, como afirmável do seu ser” (VAZ, 1993, p.182). O homem é ser humano também por causa da corporalidade. Como ser composto, a dimensão corpórea é essencial para a sua existência:

A importância capital de que a dimensão se reveste para o homem: a somaticidade é um componente essencial do ser do homem. Sem corporeidade o homem não é mais homem, porque não pode mais realizar muitas atividades que são tipicamente suas, como o sentir, o falar, o cantar, o jogar, o trabalhar, etc. (MONDIN, 1983, p. 38)

Dentre as diversas funções do corpo humano, podemos ressaltar a sua importância para situar o homem no mundo, historicizar sua existência, individualizar a sua presença no mundo, possibilitar um contato imediato e originário com o mundo:

Graças à minha somaticidade, eu estou situado em uma determinada posição, estou fechado dentro de certos confins, sou diferente dos outros seres: sou eu mesmo e não outras coisas; eu tenho a minha personalidade (MONDIN, 1983, p. 38)

4 O termo corpo próprio é específico da filosofia contemporânea e o autor o toma emprestado para

explicitar a categoria do corpo no seu aspecto propriamente humano (Cf. VAZ, 2033, nota de rodapé nº 2, p. 184)

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A metafísica como disposição natural do ser humano 19 Os alemães usam a expressão korper para falar do corpo físico-biológico e Leib para retratar o corpo propriamente humano (VAZ, 1993, p. 176). O corpo humano enquanto corpo natural (aspecto físico-biológico) está sujeito às determinações e limitações próprias de sua realidade, mas por estar inserido numa realidade estrutural mais ampla, tem capacidade de transcender os limites impostos pelo aspecto físico-biológico até certo ponto. Por exemplo: um atleta pode conseguir, por causa da sua determinação e força de vontade, superar os limites do próprio corpo. Neste sentido, até a dimensão corporal do ser humano possui algo de metafísico. O ser humano é capaz de dar intencionalidade ao seu corpo e transcender o nível físico. O corpo é para o homem um corpo vivido. Por meio do corpo próprio, o estar-no-mundo se estrutura em níveis: nível físico-biológico (corpo natural); nível psíquico (sexualidade), nível social (simbólica do corpo); nível cultural (adestramento e cuidado estético do corpo). (Cf. VAZ, 1993, p. 177-178).

O corpo é também uma dimensão expressiva do ser humano. Pelo corpo o ser humano pode revelar-se ou esconder-se:

Nós sabemos que o homem pode esconder-se atrás do próprio rosto, pode colocar uma máscara e representar um papel que não lhe é próprio: com as suas palavras ele pode não só manifestar, mas também ocultar as próprias ideias e intenções. A corporeidade do homem atesta-nos que ele pode distanciar-se de si mesmo, fechar-se, recusar-se ao outro. (W. KASPERS, 1975, p. 279)

A somaticidade humana é “epifania” de algo mais profundo, é expressão e manifestação de alguma coisa que ultrapassa a própria dimensão corporal. Pode-se conhecer muito do íntimo do ser humano através da sua corporalidade: “Assim o corpo é condição de possibilidade da manifestação humana. A pessoa expressa e manifesta sua intimidade precisamente através do corpo” (STORK et. Ali, 2005, p. 88). O rosto e o conjunto de ações corporais revelam que há algo a mais no ser humano, além da própria somaticidade:

A cara representa a pessoa externamente. Costuma-se dizer que ‘a cara é espelho da alma’: o homem não se limita a ter cara, mas tem rosto. O rosto humano, especialmente o olhar, é tremendamente interpelante e significativo. A intimidade é expressa também através de um conjunto de ações expressivas. Através delas, o homem fala a linguagem dos gestos: expressões faciais (desprezo, alegria), das mãos (cumprimento, ameaça, ternura), etc. Através dos gestos o homem expressa o seu interior. (STORK et ali, 2005, 88).

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Pe. Edmar José da Silva 20 A dimensão somática do ser humano, ao mesmo tempo em que está marcada pelos limites próprios da matéria, está impregnada de elementos psíquicos e espirituais que a fazem transcender os seus próprios limites. Por que não afirmar que já na corporeidade há sinais visíveis da abertura constitutiva do ser humano para as realidades metafísicas?

A somaticidade em si mesma parece inexoravelmente bloqueada entre certos confins e exposta à corrupção. Mas, ao mesmo tempo, a somaticidade humana leva consigo alguns sinais que contrastam com estas misérias. É uma somaticidade cheia de consciência, aberta no ser, estendida para a felicidade mais completa. É uma somaticidade que transcende a própria natureza da somaticidade e se transforma em epifania do espírito (MONDIN, 1983, p. 41)

No final do discurso antropológico sobre o corpo próprio, Lima Vaz afirma que o homem é e não é seu corpo. Este é não significa que ele se reduz á corporalidade, mas que a dimensão somática é parte essencial da estrutura humana. Ou se tem corpo e é ser humano, ou não se é ser humano. O corpo faz parte da sua essência composta. Não é seu

corpo porque a compreensão do ser humano na sua totalidade, impele o discurso

antropológico para outra categoria importante: o psiquismo (Cf. AF I, PP. 182-183). Aliás, a própria compreensão do corpo humano como corpo próprio (pleno de intencionalidade e autoexpressão do sujeito) já nos impele para o estudo de outra categoria antropológica estrutural que coloque em evidência a dimensão da interioridade do ser humano no seu aspecto psíquico.

A categoria do corpo próprio coloca o ser humano em contato imediato com as realidades do mundo externo (realidade das coisas). Como o ser humano não é somente corpo, ele dá um sentido propriamente humano ao mundo que o cerca.

1.2. Psiquismo

O psiquismo é definido por Lima Vaz como primeiro estágio de interiorização do mundo, como captação do mundo exterior e tradução ou reconstrução no mundo interior (VAZ, 1993, p. 188). Se a categoria do corpo próprio coloca o homem em contato imediato com o mundo exterior, a categoria do psiquismo tem um aspecto egocêntrico, porque está intimamente ligado ao modo como o sujeito internaliza todas as experiências do mundo externo. Este caráter egocêntrico será superado somente no plano

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A metafísica como disposição natural do ser humano 21 noético espiritual5. Há nesta categoria uma dialeticidade antropológica entre interioridade

e exterioridade. O mundo interior do sujeito é construído a partir de todas as suas

experiências vividas desde o seio materno e, ao mesmo tempo, estas experiências internalizadas filtram o modo como ele lida com os acontecimentos do mundo exterior. Esta categoria está situada numa posição mediadora entre a exterioridade do corpo próprio e a absoluta interioridade do espírito. Está numa posição intermediária entre a experiência corporal e a experiência espiritual.

Desde o ponto de vista filosófico, o eidos do psiquismo se define por esta posição mediadora entre a presença imediata no mundo pelo “corpo próprio” e a interioridade absoluta (ou a presença de si a si mesmo) pelo espírito. O psíquico se organiza segundo um espaço-tempo que não coincide com o espaço-tempo físico-biológico, ao qual está ligado o corpo, mas tem suas dimensões e seus ritmos próprios. Ele ordena o fluxo da vida psíquica em termos de percepção, representação, memória, emoções, pulsões. (VAZ, 1993, p. 193)

O estar-no-mundo através do psiquismo não denota mais presença imediata, como acontecia com o corpo próprio, mas presença mediatizada pela percepção e pelo desejo. Há uma passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo via interiorização do mundo ou construção do mundo interior. O psiquismo se dá em torno de dois eixos que são a imaginação, que trabalha com as representações e o afetivo que está ligado às pulsões psíquicas. “É o sujeito exprimindo-se fundamentalmente no “sentimento de si” e que se consumará na unidade espiritual do eu inteligível” (VAZ, 1993, p.190).

O ser humano percebe o mundo exterior e se relaciona com ele a partir das representações, imaginações, pulsões, desejos, memórias, emoções, etc. Nem sempre ele se relaciona com as realidades externas (coisas ou pessoas) a partir do que elas realmente são, mas a partir do que sente, imagina, representa, deseja, lembra ou projeta delas. É a interferência do psiquismo no modo de internalizar as experiências do mundo externo:

A sensação só nos faz tomar consciência do próprio corpo. O sentimento, ao contrário, nos abre à apreciação do que nos rodeia. Além disso, os sentimentos geram uma conduta, enquanto que a sensação termina no senti-la. [...] Os sentimentos e as paixões são um mundo muito complexo, no qual intervém como em tudo, o psiquismo humano, a razão e a vontade. (STOCK, 2005, 61- 62)

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Pe. Edmar José da Silva 22 O psiquismo abre o ser humano para o relacionamento propriamente humano, chamado por Lima Vaz, de relacionamento entre duas totalidades intencionais. Apesar da tendência egocêntrica do psiquismo, ele se abre ao relacionamento com o outro humano:

a reciprocidade constitutiva da relação com o outro mostra, assim, a impossibilidade do solipsismo. [...] Ora no termo da relação intersubjetiva, o sujeito tem diante de si um outro sujeito e deve assumi-lo no discurso de autoafirmação de si mesmo: vale dizer, tem diante de si uma outra infinidade intencional. (VAZ, 1995, 65)

Percebemos, portanto, que até na dimensão psíquica o ser humano manifesta uma abertura para as realidades metafísicas. O psiquismo lida com realidades que não são físicas: sentimentos, desejos, imaginação, aspirações (são todas realidades propriamente metafísicas). Schopenhauer considera a vontade (realidade psíquica) como o aspecto mais metafísico do ser humano. Isso nos leva a concluir que até no aspecto psíquico, o ser humano é um animal metafísico. O seu psiquismo não está apenas ligado ao aspecto físico- biológico, mas ao transcende.

No final do discurso sobre o psiquismo, Lima Vaz afirma que o homem é e não é seu psiquismo. É seu psiquismo, porque este faz parte da sua essência. O homem não é seu psiquismo porque a autoafirmação do sujeito na amplitude transcendental ultrapassa o

eidos do psiquismo, ou seja, é impossível esgotar no psiquismo o movimento dialético de

autoafirmação do sujeito. O discurso antropológico é impelido para além da fronteira do somático e do psíquico e reclama outra categoria: o espírito (VAZ, 1993, p. 195).

1.3 Espírito (noético-pneumática)

A categoria do espírito constitui o ápice do discurso sobre a unidade estrutural do ser humano6. Sem esta categoria, a compreensão do ser humano ficaria fragmentada e o discurso antropológico ficaria incompleto: “Com a categoria do espírito ou com o nível estrutural aqui designado como noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser humano” (VAZ, 1993, 201).

O termo espírito é herdado da teologia e aplicado ao ser humano por analogia. Não é um termo univocamente antropológico. Aplica-se ao ser humano por analogia de atribuição: o análogo superior é o espírito infinito ou o absoluto. Neste sentido, pelo

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A metafísica como disposição natural do ser humano 23 espírito o ser humano tem marcas do infinito, supera as determinações e as contingências da sua realidade física e psíquica.

Lima Vaz chama a categoria do espírito de dimensão noético-pneumática do ser humano. O termo noético (noésis em grego) revela que o ser humano é pensamento, inteligência ou razão. O termo pneumático (pneuma em grego) revela que o ser humano é espírito, é sopro, é liberdade. Segundo o autor, pela razão o ser humano se abre à verdade e pela liberdade se abre ao bem. Em poucas palavras: a categoria do espírito faz com que o ser humano se abra ao ser, ao transcendente, aos transcendentais do ser que, em última análise, se correlacionam perfeitamente com o ser. É esta dimensão que mostra que o ser humano é realmente um ser metafísico. Nela fica evidente que há no ser humano uma abertura constitutiva para a busca e o acolhimento do ser. Aqui se dá o encontro frutuoso, mas rechaçado por alguns modernos, entre metafísica e antropologia.

Ao nos elevarmos, no homem, ao nível do espírito, vemos anunciar-se a noção de espírito como coextensiva à noção de ser entendida segundo as suas propriedades transcendentais de unidade, verdade e bondade. Ela constitui, portanto, o elo conceptual entre a Antropologia Filosófica e a metafísica. Com efeito, na sua estrutura espiritual ou noético-pneumática, o homem se abre, enquanto inteligência (nous), à amplitude transcendental da verdade, e enquanto liberdade (pneuma), à amplitude transcendental do bem: como espírito ele é, pois, o lugar do acolhimento e da manifestação do ser e do consentimento ao ser: capax entis (VAZ, 1993, p. 202)

Dentro da tradição histórica, o termo espírito foi entendido de vários modos. Inicialmente foi entendido como pneuma, ou seja, como princípio interno ou forma superior de vida. Isso revela que no ser humano, vida não é apenas bios (vida natural), mas

zoé (vida com qualidades humanas). Espírito foi compreendido também como nous, ou

seja, como forma mais alta de conhecimento. Neste sentido, o ser humano possui não somente o conhecimento empírico, mas se abre também para a contemplação, considerada pelos gregos o mais alto grau de conhecimento. Espírito foi entendido também como logos. Somente no ser humano a palavra inteligível é manifestação do pensamento. A linguagem humana revela a dimensão espiritual do ser humano. O espírito foi compreendido também como synesis, capacidade que o ser humano tem não somente de conhecer, mas conhecer que conhece ou conhecer a si mesmo. Estes cinco tipos de compreensão do espírito unificam os traços fundamentais da experiência espiritual (Cf. VAZ, 1993, p. 203- 204).

Para Lima Vaz, o espírito suprassume o somático e o psíquico. Suprassumir não é suprimir, mas assumir elevando a uma condição mais elevada. Existe no espírito

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Pe. Edmar José da Silva 24 humano um duplo movimento: movimento ascendente, em que o espírito suprassume elevando o somático e o psíquico e o movimento descendente, em que o espírito se rebaixa, indo ao encontro do psíquico e do somático. É este movimento dialético do espírito que confere ao corpo e ao psiquismo um estatuto verdadeiramente humano. É ele quem os eleva a uma condição superior (Cf. VAZ, 1993, p. 221- 22).

Não podemos conhecer o espírito humano, mas sabemos que o ser humano é espiritual por causa das diversas atividades que revelam que há algo superior nele. Pelo espírito o mundo é compreendido e significado pelo homem, tornando-se mundo humano. É o mundo da linguagem e das formas simbólicas. A cultura, nas suas diversas facetas, é manifestação da dimensão espiritual do ser humano: linguagem, religião, política, ética, arte, vida social. São manifestações espirituais, por isso, a cultura é chamada de totalidade espiritual. O homem possui uma vida segundo o espírito e isso se manifesta através dos atos espirituais:

A vida segundo o espírito será, portanto, para o homem, o exercício dos atos que manifestam o espírito como o princípio mais profundo e essencial da vida humana. [...] O ato espiritual é o ato pelo qual se exerce e se manifesta no homem a vida do espírito. Como tal ele é, por excelência, o ato humano, e seu fundamento é a estrutura ontológica total do ser humano. (VAZ, 1993, pp. 240-241)

Se o corpo coloca o homem em contato imediato com o mundo e o psiquismo está ligado às dimensões das sensações e do instinto no ser humano, o espírito o abre para os transcendentais do ser: verdade, unidade, bondade e beleza. O espírito aponta para o que existe de mais específico na estrutura humana, aponta para a sua dimensão de abertura constitutiva para as diversas realidades: coisas, pessoas e o absoluto. Pelo espírito, o homem se abre ao transcendente formal (verdade) ou real (Deus):

A vida segundo o espírito manifesta-se como vida propriamente humana. Ela o é justamente em virtude da correspondência transcendental entre o espírito e o ser. E como o homem existe na sua abertura transcendental para a universalidade do ser ou na sua adequação ativa com o ser, o homem existe verdadeiramente enquanto espírito, ou a vida propriamente humana é a vida segundo o espírito. (VAZ, 1993, p. 239)

Descobrir a estrutura espiritual do ser humano é descobrir as reais condições de possibilidade do seu agir, é perceber que ele é um ser estruturalmente aberto. O espírito, apesar de ser a interioridade absoluta do sujeito, ao invés de circunscrevê-lo egoisticamente em si mesmo, o abre para o Outro absoluto:

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A metafísica como disposição natural do ser humano 25 É nesse nível que o ser do homem abre-se necessariamente para a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental, seja no sentido clássico, seja no sentido kantiano-moderno, que faz do homem nesse cimo do seu ser que é também, para usar outra metáfora, o âmago mais profundo da sua unidade, um ser estruturalmente aberto para o Outro. No horizonte do espírito, o Outro desenha necessariamente seu perfil como outro relativo na relação intersubjetiva, e se anuncia misteriosamente como Outro absoluto na relação que deverá ser dita propriamente relação de transcendência. (AF I, 201)

No final do discurso antropológico, podemos afirmar que o homem é estruturalmente um ser espiritual, ou seja, um ser metafísico. Aqui não há a negação das categorias do corpo e do psiquismo, visto que o espírito é aquela dimensão mais própria e mais específica do ser humano e é ele quem salvaguarda a unidade das categorias estruturais.

Podemos concluir afirmando que a vida propriamente humana é a vida segundo o espírito. Todas as vezes que o homem age envolvendo a sua razão e liberdade, ele está agindo de modo propriamente humano. Joseph de Finance (filósofo francês, neotomista) distingue ações do homem e ações humanas. As ações do homem são todas as ações feitas pelo ser humano, inclusive aquelas que são ditadas pelos instintos. As ações humanas, ao contrário, são somente aquelas ações espirituais em que concorrem a razão e a liberdade. Do ponto de vista ético, somente as ações humanas podem ser julgadas, porque o resto é instintivo.

O espírito é interioridade absoluta que ao invés de fechar o ser humano em si mesmo, pelo contrário, gera abertura não somente para as coisas e os demais seres humanos, mas uma abertura radical para o ser, para o sentido. A categoria do espírito permite a unidade do ser humano. Nela há a superação da pura exterioridade e imediaticidade do corpo próprio e a interioridade egocêntrica do espírito. Pelo espírito o homem se torna capax Dei, capax entis. O espírito revela o excesso ontológico que existe na estrutura humana. E é por causa deste excesso ou superabundância de ser que o ser humano se apresenta como sempre inquieto e sempre aberto a um “mais”. Ele nunca se realiza somente nas coisas físicas ou nos relacionamentos meramente humanos, mas aspira e busca o transcendente.

É justamente no encaminhar-se para a transcendência que o itinerário perfaz a reflexão total do espírito sobre si mesmo e o sujeito pode reencontrar-se no nível mais profundo do seu ser, onde, enquanto espírito, acolhe o Absoluto presente como verdade, como bem e como ser a todo ato de inteligência e liberdade. (VAZ, 1995, p. 96)

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Pe. Edmar José da Silva 26 A estrutura constitutiva do ser humano o abre para realidades metafísicas. Pelo fato de ser um ser espiritual, o ser humano está sempre em busca do absoluto sentido de valor do seu ser e agir, bem como do ser das outras realidades que o cercam:

É desse excesso ou dessa superabundância do espírito que procede, de resto, o dinamismo mais profundo da história e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do absoluto que acompanha o curso história e que é a atestação mais evidente da presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito. (VAZ, 1995, p. 93) O espírito é inteligência e amor. Como inteligência o ser humano acolhe o ser e como amor ele vê o ser como dom.

Segundo Lima Vaz, nem a ideologia própria da razão técnico-cientifica pode anular a dimensão metafísica do ser humano:

O ato de julgar algo ou alguma coisa (o juízo), ato banal e infinitamente grave, permite entrever na alma do homo technicus a subsistência do

homo metaphysicus. Afinal o universo técnico-científico não consegue

deixar de revelar uma dimensão inequivocamente metafísica, exatamente ao pretender substituir a própria metafísica, a qual por sua vez aponta para o problema da existência na verdade o mais metafísico dos problemas. (VAZ, 1997, p. 118)

Conclusão

Como se percebe, a metafísica é uma disposição natural do ser humano. Todo ser humano, pelo simples fato de ser humano, já possui na sua própria estrutura constitutiva uma abertura para um “mais”, possui um desejo metafísico, para usar a linguagem de Lévinas:

O Outro metafisicamente desejado não é «outro» como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este «eu», esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro. (LEVINAS, 1988, p. 21)

Ser metafísico não é luxo ou privilégio intelectual de um grupo que dispõe de tempo e recurso financeiro para propor interrogações a respeito do fundamento último das realidades diversas. No sentido mais amplo e fundamental, podemos afirmar com o prof.

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A metafísica como disposição natural do ser humano 27 Macdowell, que “o ser humano é essencialmente metafísico: a metafísica é consequência necessária da sua racionalidade.” (MACDOWELL, 2002, p. 11). Ao descobrir o seu próprio ser, o homem desvela sua ordenação essencial e natural ao absoluto ou às realidades metafísicas: “no manifestar-se a si mesmo ou na reflexão sobre si mesmo, o ser humano desvela sua ordenação essencial ao absoluto” (VAZ, 2000, p. 24).

Dentro desta perspectiva, podemos afirmar que o homem é um cidadão de dois mundos, como afirmava o filósofo moderno Kant. Ele habita o mundo sensível do conhecimento natural e o mundo suprassensível da liberdade (cuja lei é ditada pela razão). Na perspectiva de Lima Vaz, o homem habita o mundo sensível da matéria, mas pelo fato de ser espiritual, transcende os limites da própria materialidade. Está sujeito às limitações impostas pelo mundo físico-material, mas tem condições de transcender este mundo pela sua capacidade racional. Ele eleva a matéria a uma dignidade maior e reduz o espírito, porque nele o metafísico toca o físico. Aproveitando ainda as palavras de Giordano Bruno, o homem se situa no limite entre o tempo e a eternidade, participando de ambos. Ouso acrescentar ainda mais: o homem se situa entre o as realidades contingentes, mas procurando o necessário que dê sentido à sua existência e à suas ações; se situa entre o que é relativo, procurando o absoluto; se situa entre o efêmero, procurando o estático. Há no ser humano um desejo de permanência e de eternidade que nasce da sua própria estrutura ontológica.

Para Lima Vaz, a experiência mística, compreendida no sentido mais amplo como “forma superior de experiência de natureza religiosa, ou filosófico-religiosa” (VAZ, 2000, p. 9), seja ela especulativa (mística como prolongamento da experiência metafísica) ou mistérica (mística como experiência do divino), se funda inconfundivelmente na estrutura espiritual do ser humano: “A experiência mística deve ser reconhecida como fato antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reconhecida e interpretada nos quadros de uma adequada filosofia do ser humano” (VAZ, 2000, 27). Isso quer dizer que toda experiência mística, que por si mesma é de cunho metafísico, só é possível por causa da estrutura constitutiva do ser humano que o habilita para tal. É na categoria espiritual do ser humano que reside a abertura para qualquer tipo de experiência metafísica.

O discurso que ora apresentamos constitui a base e fundamento da realização da metafísica ocidental. Nenhum outro ser no mundo faz metafísica, somente o ser humano. Isso porque somente ele possui disposição estrutural e natural para tal. Portanto, pode-se questionar a respeito da validade do discurso metafísico, mas não da disposição

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Pe. Edmar José da Silva 28 natural que o homem possui para fazê-la. Pode-se questionar a respeito do valor do discurso metafísico, considerando-o um discurso violento e totalizante, mas não sobre a capacidade natural que o ser humano tem de buscar o sentido das diversas realidades. Os questionamentos dirigidos à metafísica enquanto ciência ou ao discurso sobre o ser, não invalidam a reflexão feita, pelo contrário, somente atestam a capacidade que o ser humano tem, pelo fato de ser um ente espiritual, de estar sempre revendo os seus conceitos e o seu modo de interpretar as diversas realidades e a si mesmo.

Concluímos esta conferência afirmando:

a metafísica não somente é importante, como também é uma necessidade. Para o homem, a metafísica é uma exigência biológica, ou seja, é uma exigência conatural, primária e fundamental, como a necessidade do comer, do dormir e do vestir-se. O homem é naturalmente metafísico, um

animal metaphysicum, como o chama Schopenhauer, porque é dotado

além do corpo também de psiquismo e espírito. Ora, o espírito o direciona necessariamente para além do físico, da matéria, do natural, o faz superar as barreiras espaço-temporal e penetrar no transcendente (MONDIN, 1999, p. 12, tradução nossa).

Como afirma Cornélio Fabro, o homem que renuncia à metafísica recai na animalidade (cf. FABRO, 1967, p. 130). Fazer metafísica, ainda que não de forma acadêmica, é atividade própria, específica e primária do ser humano. O homem não é somente um registrador dos eventos que o circundam ou um potentíssimo computador, ele não é somente memória ou fantasia, ele é antes e sobretudo, razão e esta capacidade o leva a levantar interrogativos, a por questões, a buscar o porque de sua existência e de tudo aquilo que lhe acontece (Cf. MONDIN, 1999, p. 13).

O próprio Kant admitia que a metafísica não é uma invenção arbitrária de uma época particular da humanidade, mas uma exigência fundamental da razão humana:

é uma disposição natural da nossa razão que tem gerado a metafísica como a sua filha predileta: geração que como qualquer outra geração do mundo, não é devida ao capricho do acaso, mas a um germe originário, que está pré-formado sabiamente para altíssimos fins. A metafísica é talvez, mais do que qualquer outra ciência, já predisposta em nós, nos seus traços principais (KANT, 1988, p. 130-131).

Portanto, “viva” a metafísica! Viva a metafísica porque ela merece louvor, aplausos e aclamações e viva a metafísica porque é algo tão enraizado na estrutura humana que é impossível o vivente humano abdicar-se dela.

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A metafísica como disposição natural do ser humano 29

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____________. Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura. SP: Loyola, 1997.

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A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional

Pe. Joaquim Cavalcante1

Introdução

Gostaria de iniciar minha fala agradecendo a Equipe Organizadora desta Semana Acadêmica, pela delicadeza do convite que me oferece a oportunidade deste fidalgo e fraterno convívio. Promover eventos como este enobrece, fecunda e agiganta este Instituto, cujo nome é uma perene proclamação da vitória de Cristo que por amor nos salvou na cruz do Calvário. Os protagonistas não são os que sabem mais, são os que mais se empenham por isso eles marcam a história por onde passam. Foi me pedido que falasse algo sobre a Divina Liturgia. E, sem nenhuma pretensão, eu aceitei expor algo sobre “A liturgia como epifania do mistério trirrelacional”. Falo sobre a liturgia em um lugar privilegiado e em um momento especial, pois estamos celebrando os 50 anos da

Sacrosanctum Concilium, o maior documento da história sobre a liturgia. Falo em um

momento singular da minha vida, pois este ano, estou celebrando meus 25 anos de ministério sacerdotal. Boa parte desse tempo foi dedicada ao estudo e ao ensino da liturgia.

Desenvolvimento

Para entrar no assunto, tomo a compreensão teológica arquetípica da liturgia como mistério. Isto é, a liturgia, antes de tudo, é uma ação teândrica-eclesio-trinitária. Por isso mesmo pode ser pensada como epifania do mistério trirrelacional. O mistério trirrelacional é o mistério trinitário, é o mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É o mistério da fé que professamos como mistério trinitário e celebramos como mistério trirrelacional.

A Trindade é a íntima constituição de Deus em si mesmo. Deus é absolutamente Uno e relacionalmente trino. Isto é em uma só natureza ou essência subsistem três Pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O mistério trirrelacional é o mistério da Trindade pensada na teologia como Trindade imanente e econômica e celebrado, na liturgia, como Trindade litúrgica. A trirrelacionalidade se afirma na

Referências

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