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Pereira, Maria Helena da Rocha Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras. URI:

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Academic year: 2021

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O mundo clássico em Eugénio de Andrade

Autor(es):

Pereira, Maria Helena da Rocha

Publicado por:

Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23914

Accessed :

28-Apr-2021 17:08:11

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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MÁTHESIS 4 1995 17-27

o

MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA

É o próprio poeta que o delcara, em entrevista reimpressa em Rosto

Percário' , ao falar da influência exercida pelas sua leituras preferidas no livro que ele considera como sendo verdadeiramente a sua estreia literária, ou seja, As Mãos e os Frutos:

Feito na sua maior parte em Coimbra (melhor, numa quinta dos arredores da cidade) nos anos de 1945/1946, é portanto um livro de juventude, vinte e dois 1 vinte e três anos ( ... ) qualquer leitor culto detectará na escrita daquele livro, a par da sua modernidade, o fascínio dos clássicos - e não só gregos, meus senhores - que eu lia então com uma aplicação quase escolar.

Efectivamente, muitos críticos tinham falado dessa presença, entre eles Vitorino Nemésio, que foi sem dúvida das primeiras vozes credenci-adas a saudar o então jovem desconhecido autor daquela obra com estas palavras proféticas2

:

Em face deste livro, tão breve e escorreito, temos a impressão de que um grande poeta vai chegar à literatura portuguesa ( ... ) muito haveria a dizer de poesia tão densa, tão apurada, formalmente tão bela. A tendência epigramática ( ... ) revela em Eugénio de Andrade um discípulo dos latinos, como outros ingredientes da sua poesia o colocam sob o magistério dos ingleses ( ... ) e todo ele flui discretamente de fontes velhas nossas.

o

mesmo professor já antes detectara no poema "Foi para ti que criei as rosas" um "erotismo à Catulo, velado porém por um toqué lírico em que

I As citações deste livro serão feitos pelo volume Poesia e Prosa (1940-1980)

(Porto, sla [21981]), pp. 421-422.

2 "Frutos Líricos" in: 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrede (Porto, s.la.). As citações são das pp. 449 e 452.

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o ribeiro dos bucolistas, as rosas dos horacianos, o pinho dos trovadores discreta e harmonicamente colaboram" - para logo a seguir se deter na melodia, à maneiro dos raros poetas de O Trovador, de "To a green God", onde aliás reconhece desde logo um "estilo próprio e puro"3.

Essas quatro quintilhas são um dos poucos poemas em que toma forma e movimento um deus mitológico, facilmente identificável como Pã, embora permaneça anónimo; um deus que irrompe da Natureza, se personi-fica e até se metamorfoseia à maneira ovidiana4

:

Ervas nasciam dos passos, cresciam troncos nos braços quando os erguia no ar.

Poderemos ainda pensar, quanto ao verso "caem os sonhos um a um", que tem algo do ambiente de sonho, do jardim irreal que se descreve no famoso óstrakon de Safo (fr. 2 Lobel-Page) e que na metáfora inicial de um outro poema, "Somos folhas breves onde dormem" (p. 42), vai buscar o motivo a uma bem documentada tradição grega (lUada VI. 146-149;

Semónides, fr. 29 Dieh1; Mimnermo, fr. 2 West). Mas aqui o símile homérico é retomado sob a forma de uma metáfora logo prolongada por outras que virão a ser características do autor, como as aves, a flor, a brisa.

Não cremos, porém, que neste livro, mais do que noutros, haja, para usar as palavras de Mendes de Sousa, "um intertexto fundamental: a poesia grega"5, embora o mesmo estudioso denote, com extrema finura, a propósi-to de Safo, como nesta e noutras colectâneas "o olhar intertextual revela a consciência de um encontro que se mostra de um equiHbrio e harmonia admiráveis"6.

3 lbidem, pp. 450-451.

4 As Mãos e os Frutos. Os Amantes sem Dinheiro (Porto, 1975), p. 28. A 1 a ed. de

As Mãos e os Frutos é de 1948.

Não falamos aqui das "metamorfoses elementais" a que alude Óscar Lopes, "Morte e ressurreição dos mitos na poesia de Eugénio de Andrade (meditações quase em rond6)" in: 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade, p. 429. Por outro lado, não nos parece que este poema possa ser abrangido pela generalização de Jorge de Sena no prefácio a As Mãos e os Frutos. Os Amantes sem Dinheiro, p. 13: "Dança, sim. Dança pagã sem deuses olímpicos nem telúricos, anterior e alheia ao hieratismo dos mistérios ou ao alegorismo das mitologias."

5 O Nascimento da Música. A Metáfora em Eugénio de Andrade(Coimbra, 1992),

p.177.

(5)

o MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE 19 Não vamos retomar aqui o que já escrevemos em tempos acerca dessas inigualadas versões da poetisa eólica para a nossa língua7

• Observemos tão

somente que a primeira edição do livro data de 1974, e que essa tradução, havia muito ambicionada pelo poeta, a executou "febrilmente", durante quinze dias, como se de criação pessoal se tratasse", conforme revela em

Rosto Precários. Embora nessa mesma entrevista tenha afirmado, umas

linhas atrás, que "Hesíodo, Homero, Sófocles, Safo, os pré-socráticos, são fontes onde muitas vezes matei a sede", a verdade é que a presença grega - figuras, mitos, paisagens (estas certamente derivadas de uma viagem ad loca sancta) - adquire cada vez maior importância a partir daquela data,

desde Escrita da Terra até Rente ao dizer. Tal não significa que não haja

anteriormente outras composições de temática helénica, como esta bela vinheta de "Súnion" em Véspera da Agua, onde o templo do promontório

da Ática se destaca, numa evolução em que há apenas dois elementos concretos, as colunas e as falésias, entre três tópicos favoritos do autor - o silêncio, o amor, a luz - cada um em ligação com um qualificativo ou um determinativo metaforizante, até culminar na alteração fInal9

:

Nesse novembro nos flancos do crepúsculo,

como falar entre o silêncio calcinado

das colunas de Súnion nos ramos do amor, como falar das falésias tão longe

e leve a luz das abelhas?

Mas é sobretudo em Escrita da Terra, datada do ano seguinte, que

paisagens gregas e romanas se sucedem: Corcira (designada, ora pelo nome antigo, ora pelo moderno), arredores de Atenas, Tebas, Delfos; e também Roma, Paestum, Brindes, e, no extremo oriental do império, Calcedónia.

7 No artigo "Poesia de Safo em Eugénio de Andrade", Biblos 53 (1977) 365-373,

depois incluído na colectânea Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa, 1988), pp. 323-332.

8 Poesia e Prosa, p. 436.

9 Véspera da Agua (Porto, 1973), p. 43. Deixamos por agora de lado o que o

próprio autor chama o "erotismo exacerbado" de Obscuro Dom{nio, que refere em

Poesia e Prosa, p. 422. Nessa obra se contêm poemas como "Ariane" e "A Palmeira Jovem".

(6)

Fixando-nos apenas nalguns, poderemos formar, com três desses poemas, uma espécie de tríptico de Corcira, tendo no meio o quadro, recorrente na obra de Eugénio de Andrade, do episódio de Ulisses e Nausícaa, no Canto VI da Odisseia.

Sabem todos os visitantes de Corcira e todos aqueles em geral que acreditam na possibilidade de localizar as aventuras de Ulisses (e a dúvida já partia de Eratóstenes ... ) que é numa das praias da formosa ilha que é costume situar o encontro do herói náufrago e desconhecido com a jovem princesa dos Feaces. Mas aqui o poeta, tal como fará treze anos mais tarde, no veemente protesto de "A Flor da Tessália" contra a invasão turística que desvirtua as belezas naturais da antiga Hélade, quer sobretudo sublinhar o contraste entre a pureza de outras eras e a vulgaridade modernalO:

Onde Ulisses avistou Nausica com o verão brincando na areia espreita agora a nádega indecisa e vagabunda de qualquer sereia se não for de algum anjo sodomita.

Bem diferentes são, porém, os volantes do nosso possível tríptico: de um lado os asfódelos em flor, brilhando no meio de alguns dos símbolos preferidos do poeta (vento, lábios, água)l1:

em Corfu os asfódelos devem estar em flor, quando

o vento os inclina no deserto dos lábios rompe a água.

Do outro, toda a paisagem da ilha se subsumira nas sugestões de alvura dadas pelo linho, pela sensação táctil no corpo, pela terra clara, pela sua nudez, símbolo de verdade e despojamento que já aparecera na "palavra nua" de Véspera da Agua12

:

10 "Estávamos na Grécia, não havia dúvida. Apesar de o turismo ter transformado a mais sagrada das terras numa feira perpétua e reles, uma ou outra coisa resistia à peste: os cardos de Epidauro, as cigarras da Arcádia, os asfódelos de Egina. Alguma coisa mais: a luz sem peso das colunas, o azul espesso do golfo de Corinto" ("A Flor de Tessália" in Vertentes do Olhar (Porto, 1987, p. 76). O trecho citado no texto, "Turismo

em Corfu" é de Escrita da Terra (Porto, 51983), p. 68.

11 "Liliáceas em Corfu", Escrita da Terra, p. 69.

12 Em "Na outra margem", VésperadaÁgua,p. 41. O poema de Escrita da Terra citado no texto, intitulado "Kerkira", é da p. 14.

(7)

o MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE

Com esse cheiro a linho

que só os ombros acariciados têm a terra é branca

e nua.

21

Um dos mais belos textos deste grupo é o que tem por título "Arredores de Atenas". Leitor confesso de Platão13

, não admira que a entrada do poema

encerre os principais elementos descritivos da abertura do F edro,

localiza-da, ela também, fora de Atenas, em lugar que o citadino Sócrates nunca vira, pois "o campo e as suas árvores não têm nada que me ensinar; mas os homens que vivem na cidade, esses, sim". Este período contém, para os estudiosos do filósfo ateniense, o ponto fulcral do interesse do texto, porquanto revela o pensador que volta a sua reflexão exclusivamente para o homem. Não é esse, contudo, o aproveitamento que dele faz Eugénio de Andrade: é a beleza calma da paisagem, onde não faltam, tal como no original grego, o plátano, o canto da cigarra, a água fresca, os nichos das ninfas, o começo da discussão filosófica. Só que o uso da hipálage, tão bem posto em evidência por um estudo de Óscar Lopes como característica dominante do estilo do poetaiS, transformou a "melodia estival" que "ressoa com o coro das cigarras" do texto grego no "estrídulo / sol a prumo das cigarras". E a discussão que vai começar está preludiada no rumor "não de ninfas: de palavras". No meio do poema fica o esplendor da luz, que transforma em branco o azul intenso do céu. Este não é, no entanto, o ar leve que circula habitualmente na poesia do autorl6, mas "duro", certamente

porque simboliza densidade, concentração. A segunda parte do poema é o quadro imobilizado -"agora" - com os dois homens adormecidos no passado. O leitor versado em Platão sabe que os interlocutores do diálogo eram Sócrates e Pedro. Ouçamos o poemal?:

o

plátano. E o estrídulo

13 Poesia e Prosa, p. 403. 14 Fedro 230b-d.

15 "Morte e ressureição dos mitos na poesia de Eugénio de Andrade" (meditações quase em rondó)" in 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade, pp. 419-420: "Nós poderíamos encarar toda a poesia de Eugénio de Andrande como uma permanente hipálage".

16 Sobre o uso do branco e do ar, vide C. Mendes de Sousa, O Nascimento da

Música. A Metáfora em Eugénio de Andrade, pp. 167 e 112-113, respectivamente; e compare-se a frase de Rosto Precário citada infra, nota 19.

(8)

sol a prumo das cigarras. O rio quase à mão. E um rumor,

não de ninfas: de palavras. O azul é branco,

duro.

Os dois homens dormem agora

à sombra da tarde. E da memória.

o

poema "Tebas", esse, condensa numa série de imagens de deso-lação, de ausência, de negação, a carga mítica da cidade de Édipo. Até os signos que habitualmente têm valor positivo - a luz, a árvore, o vento - são aqui despojados de vigor e reduzidos ao nada, ao pó que vai cobrindo o sítio ermo (não propriamente o da florida cidade de hoje, mas por certo o da famosa encruzilhada)18:

Era um lugar onde só a poesia

me podia ter levado -lugar de morte, a luz roída, rala. Até a minguada romãzeira era de pedra. O vento acrescenta-lhe a poeira.

No pólo oposto a este quadro assombrado pela tragédia grega, está o hino à beleza dos templos de Paestum, surpreendentemente descritos na fase invisível da Lua. A altura (um topos frequente no poeta), a música das cigarras (que ecoa tantas vezes na sua obra, vinda, como ele declara, dos tempos da sua infância 19), o aroma darosa20

, são os elementos fundamentais

de "Paestum com Lua Nova"21:

18 Escrita da Terra, p. 66.

19 "O amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras" (Poesia e Prosa, p. 398).

20 Aqui, sem qualquer possibilidade de lhe atribuir o valor simbólico referido em Mendes de Sousa, O Nascimento da Música. A Metáfora em Eugénio de Andrade, pp. 69-73.

(9)

o MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE

No céu de Paestum as colunas sobem à altura rigorosa

da lua nova e da alma.

À música deserta e rouca das cigarras. Ao aroma inesperado de uma rosa.

23

Duas visões da própria cidade de Roma penetram neste mundo clássico. Uma está em Escrita da Terra e intitula-se precisamente "Roma". Nela o nível cronológico da Antiguidade cruza-se com o da modernidade no meio do pequeno poema, através da referência tópica à entrada na Via Ápia. Para trás ficara uma alusão à estação do ano - o verão, geralmente considerado como um indicativo do desej0 22 - e a comparação com três

grandes figuras da Romanidade, mencionadas em disjunção - processo que se aponta como característico de Eugénio de Andrade. Tal comparação não observa a ordem cronológica, mas provavelmente uma ordem simbólica, pois o primeiro, Adriano, anuncia o desenvolvimento que compõe o final do poema, onde surge a figura de Antínoo, associada no juramento ao desejo, simbolizado no "amor da terra" que comanda a metamorfose dos opostos - luz em pedra. É este o poema23

Era no verão ao fIm da tarde

como Adriano ou Virgílio ou Marco Aurélio entrava em Roma pela Via Ápia

e por Antínoo e todo o amor da terra juro que vi a luz tornar-se pedra.

o

outro é um dos poemas em prosa de Memórias Doutro Rio e intitula--se "De passagem"24. Localizando vagamente numa praça de Roma - que não pode deixar de ser a rniguelangelesca Piazza deI Capidoglio, com as estátuas do Dioscuros a encimar a larga escadaria de acesso da Capitólio -é um nocturno em que a configuração real dos grupos escultóricos, com cada um dos jovens representado a levar o cavalo pela rédea, assume de repente um valor metafórico ("levando os cavalos pela mão" do texto pode significar o domínio dos impulsos eróticos, que vai de seguida limitar -se ao

22 Vide C. Mendes de Sousa, O Nascimento da Música. A Metáfora em Eugénio

de Andrade, cap. IV, especialmente pp. 50 sqq. 23 Escrita da Terra, p. 16.

(10)

olhar "oblíquuo à passagem das raparigas" e ao sorriso entre ambos )25. Em qualquer caso, uma interpretação da dedicação entre Pólux e Castor que não está na linha traçada por um dos mais famosos mitos de Píndaro - o que ilumina a Xa Nemeia.Momento fugidio, não deixa de ser uma metamorfose

no sentido inverso do da tradição clássica: é a pedra inerte que adquire vida e sentimentos, a passagem da imobilidade das estátuas ao desejo oculto numa troca de olhares.

Passando adiante outros exemplos que poderíamos apontar, vamos voltar à Grécia com o livro mais recente do poeta, Rente ao Dizer.

Principiaremos pelo poema "Hidra", onde a formosa ilha grega serve de suporte geográfico a um quadro em que confluem vários dos lexemas favoritos do autor: o Outono, as cores claras do branco, do azul, o sol; e ainda o asfódelo, não nomeado, mas identificado pela perífrase "a flor encontrada por Ulisses no próprio inferno". Estamos numa cena de aparente brilho, transparência, alacridade, embora possamos admitir que a referên-cia inireferên-cial ao Outono contém já um signo que deixa antever uma nota melancólica26

• Esta é acelerada de súbito pela referência ao prado florido do

Hades homérico. É essa visão breve que, conduzindo-nos embora à ideia do aniquilamento, o faz na plena harmonia do valor matricial da terra. É de "luminosa melancolia" que, aproveitando a feliz expressão de Mendes de Sousa, gostaríamos de falar, a propósito deste poema27

:

Se nunca foste a Hidra no Outono então não sabes

como é branco o branco e azulo azul. Se nunca ali chegaste com o sol correndo nas colinas entre as hastes da flor encontrada por Ulisses no próprio Inferno - então não sabes como a Terra é o lugar certo para morrer.

O outro poema fala também de Ulisses - mas sobretudo de Nausícaa e da palmeira de Delos, portanto, da cena do encontro das duas figuras no Canto VI da Odisseia.

25 Sobre a metáfora animal e a preferência pelo cavalo (aliás, acrescentaremos, com grande tradição na lírica grega), vide C. Mendes de Sousa, o Nascimento da Música.

A Metáfora em Eugénio de Andrade, pp. 80-82.

26 Cf. C. Mendes de Sousa, op. cit., pp. 42-44.

27 Rente ao Dizer (Porto, 1992), p. 49. A citação do livro de C. Mendes de Sousa

(11)

o MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE 25

o

motivo já tinha aparecido por duas vezes. Uma, já a vimos atrás, é "Turismo em Corfu", em Escrita da Terra. O outro exemplo, publicado

dois anos antes, em Obscuro Dominio, é "A palmeira jovem". Neste poema,

de que está ausente Nausícaa, domina o símile da Odisseia, cujo

enqua-dramento na súplica de Ulisses naúfrago à princesa dos Feaces recordare-mos brevemente28:

Jamais pus os olhos num mortal como tu,

fosse ele homem ou mulher! A tua vista infunde-me veneração. Conheci outrora em Delos, junto do altar de Apolo, uma beleza assim: um rebento de palmeira que se erguia nos ares.

Poist também já lá estive. Seguiam-me muitos homens pelo caminho que havia de ser a minha perdição. Assim como alegrei o meu coração ao contemplá-lo, por longo tempo, pois nunca lenho tão formoso saíra do solo, assim eu te admiro, mulher, e me deslumbro ...

A palmeira de Delos era· uma árvore real, de que hoje resta um substituto moderno no que foi outrora um dos maiores santuários de Apolo, a cujo nascimento estava ligada. Ao evocá-la, Ulisses pretende simultanea-mente elogiar a figura esbelta de Nausícaa e insinuar a sua importância passada, visto que o seguiam muitos homens.

É a comparação da esbelteza e da juventude que Eugénio de Andrade concentra na fase inicial do encontro com a amada, metaforizando de esbeltos o dia e a noite e terminando a composição com um símile animal que exprime toda a violência do seu desejo. Num outro nível de leitura, podemos dizer que o andante cantabile do três primeiros versos se converte

bruscamente num prestissimo molto agitato, o do novo símile que vem

substituir o da palmeira: o do "potro na planície nua"29.

Vinte anos depois, a palmeira de Delos volta a aparecer na sua poesia. Não que a árvore em si, com o seu caule altíssimo e folhas de fino recorte, andasse afastada da sua escrita. Ela passa em duas minaturas de Vertentes

do Olhar e em Epitáfios30. O primeiro desses textos recorta-se na paisagem

africana. E é precisamente daí que vem também a de "Passeio Alegre", a composição incluída em Rente ao Dizer que temos em mente. Está

certamente relacionada com a criação e a localização da casa que desde

28 Odisseia VI. 160-168. Tradução nossa.

29 Poesia e Prosa, pp. 174-175. Mendes de Sousa, op. cito p. 82, aponta este passo

como exemplo típico do que ele chama "presença da metáfora dos cavalos" frequente a partir deste livro, Obscuro Domínio.

30 Respectivamente, Vertentes do Olhar (Porto, 21987), pp. 36 e 69; Poesia e

(12)

aquele mesmo ano de 1992 tem o nome do poeta, situada mesmo em frente ao extenso jardim da Foz do Douro, homenagem tardia que se oculta sob a leitura emblemática que pode fazer-se do lexema "palmeira". Mas as palmeiras do Passeio Alegre, além de graciosas e esbeltas como a de Delos, são altas como os marinheiros de Homero e desafiam os ventos de todos os quadrantes. A imagem de virilidade, de força e resistência assim convocada cede, porém, de súbito o lugar à da fragilidade aparente de "dobrar pela cintura". "Os meus dias quebrados pela cintura" j á estavam em As Palavras

Interditas e "partir pela cintura" em Mar de Setembro31

E, mais próximo do contexto que estamos a examinar, temos "Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura", no poema "Sobre a Palavra", de Véspera da Agua.32

Poderemos dizer que em "Passeio Alegre" os ventos têm um dos seus valores simbólicos, o de "agentes do desejo"33. (E também podemos lembrar que nas epopeias clássicas eles eram personificações de forças indomáveis da Natureza, que acabavam por render-se ao desejo, de que as ninfas acorridas a apaziguá-los eram sujeito). Mas são sobretudo o fenó-meno real, observável por qualquer frequentador desse jardim portuense. O simbolismo do quadro vai, porém, ser recuperado na frase final, que termina com um adjectivo em posição predicativa que, tal como "altas", no meio da composição, é das metáforas mais frequentes da poesia de Eugénio de Andrade34. Vamos agora recompor os disiecta membra poetae ouvindo

o texto:

Chegaram tarde à minha vida as palmeiras. Em Marraquexe vi uma que Ulisses teria comparado a Nausícaa, mas s6 no jardim do Passeio Alegre começei a amá-las. São altas como os marinheiros de Homero. Diante do mar desafiam os ventos vindos do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste,

31 Respectivamente, pp. 54 e 104 de Poesia e Prosa. 32 Véspera da Água, p. 18.

33 Assim C. Mendes de Sousa, op. cit., p. 115, que também utiliza o exemplo de Véspera da Água.

34 Os exemplos são inúmeros. Apenas alguns: "E a manhã de oiro/alta como os mastros" (Ostinato Rigore in Poesia e Prosa, p. 119); "É preciso amá-la, /paciente e alta / onde a chama canta" (Matéria Solar, Porto, 1980, p. 38); "A doçura da erva/ alta/ como cantar ao crepúsculo" (Véspera da Água, p. 32).

(13)

o MUNDO CLÁSSICO EM EUGÉNIO DE ANDRADE

para as dobrar pela cintura. Invulneráveis - assim nuas.

27

Com estes breves apontamentos - que mais não são - estamos longe de esgotar o assunto. Não falámos, por exemplo, da presença subterrânea dos filósofos pré-socráticos, sobretudo Heraclito e Empédocles - o da teoria dos quatro elementos que resistiram vinte e três séculos até serem derrubados pela química de Lavoisier, e que pensadores contemporâneos se esforçam por recuperar ainda nas estrutras do imaginário moderno. É o próprio poeta que, em Rosto Precário, inclui aqueles filósofos, como já

vimos, nas "fontes onde muita vez matei a sede"35. Esta dívida à cultura grega em geral tem-na o poeta reconhecido em diversas ocasiões. Mas talvez nunca de uma maneira tão completa como nas formosas Palavras de Novembro36 que pronunciou por ocasião da homenagem que lhe prestaram

na Câmara Municipal do Fundão, há cerca de um ano:

Parco de haveres, nascido em terras onde a luz à noite era azeite e o pão tinha a cor das pedras, todo o excesso me parece falta de gosto, todo o luxo uma falta de generosidade. Dito isto, não poderá estranhar-se que me sinta tão religado ao solo pobre e arcaico da Grécia e à fecunda harmonia da sua cultura: o mar de Homero entre as colunas de Súnion, as ruas de Salónica com os muros acabados de caiar, a sombra luminosa dos degraus de Epidauro onde ressoam ainda os versos supremos de Ésquilo, têm para mim

um prestígio que nenhum parque de Londres ou praça de Paris, ou avenida de Nova Iorque poderão alcançar a meus olhos.

o

reviver dos lugares de beleza e dos altos valores humanos da matriz helénica em obras contemporâneas, que literárias, quer plásticas, quer dramáticas, quer mesmo cinematográficas, é uma tendência marcante entre muitos dos maiores artistas da nossa época, sem excluir os do nosso País. Na poesia de Eugénio de Andrade, na cintilação da sua palavra, na altura do seu verso, encontram-se a cada passo, muitos dos mais belos exemplos.

35 Poesia e Prosa, p. 436. Tanto Joel Serrão como Vergílio Ferreira, entre os

críticos, detectam esta origem, e Óscar Lopes fala mesmo do seu "mundo elemental" (pp. 203-204, 439 e 425, respectivamente, de 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade).

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