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Cataldo Sículo e o mecenato da Rainha D. Leonor Autor(es): Toipa, Helena Costa

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23994 Accessed : 2-Feb-2022 02:47:29

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MÁTHESIS 3 1994 167-197

CATALDO SÍCUW E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR·

HELENA COSTA TOIPA

D. Leonor nasceu em Beja, em 1458 (2 de Maio, segundo Damião de Góis e outros cronistas, 8 de Dezembro,'segundo Fr. Jorge de S. Paulo), e morreu em Lisboa, no seu Paço de Sto. Elói, em 18 de Novembro de 1525.

Nos seus 67 anos de existência, atravessou um dos períodos mais importantes da históría de Portugal: a segunda metade do séc. XV e o primeiro quartel do séc. XVI. Conheceu as expedições ao Norte de África e a guerra com Castela; aprovou as tentativas de unificação da Península;

assistiu às lutas internas entre o rei, seu marido, e alguma nobreza; viu os esforços dispendidos nas Descobertas e viveu o seu apogeu, naquele que muitos historiadores e poetas designam por "século de ouro".

Assistiu ao reinado de quatro reis e com eles esteve intimamente relacionada: foi sobrinha e nora do primeiro (D. Afonso V), prima e esposa do segundo (D.João

II),

irmã do terceiro (D. Manuel, o Venturoso), tia e madrinha do quarto (D. João

m).

Foi rainha durante 14 anos; depois da morte de seu marido, durante os reinados seguintes, foi conhecida por

"Rainha Velha", na designação de Gil Vicente. Princesa foi-o desde que casou, aos 12 anos, "por palavras de presente", com o príncipe D. João, de 16 anos, a 22 de Janeiro de l47i1, até que este foi defmitivamente aclamado rei, após a morte de D. Afonso V, em fmais de 1481

2

No campo político, o seu papel não teve o relevo do de sua prima, Isabel, a Católica, no pais vizinho. As crónicas que cobrem os reinados de

• Artigo extraído da nossa tese de mestrado Cataldo e as Duas Princesas, elaborada sob a orientação do Prof. Doutor Américo da Costa Ramalho e defendida em 1991.

I Cf. Damião de Góis, Crónica do Príncipe D. Joilo, cap. XVII, e Rui de Pina, Chronica do Senhor Rey D. Alfonso V, cap. CLXI.

2 Cf. Rui de Pina, Chronica d'ElRey DJoilo II, cap I.

(4)

D. João II e de D. Manuel poucas vezes se lhe referem, ofuscada, em primeiro lugar, pela acção governativa arrojada e moderna de seu marido, e, em segundo lugar, pela importância das Descobertas, no reinado do

"Rei Venturoso".

Exerceu, no entanto, o papel de regente, por duas ou três vezes.

Quanto à primeira regência, não há consenso; em Agosto de 1471, quan- do D. Afonso V e o principe D:João se deslocaram ao Norte de África, para a conquista de Arzila e Tânger, tê-Ia-ia exercido, segundo Damião de Góis

3

com o duque de Bragança, D. Fernando L como Presidente do Conselho.

Rui de Pina, no entanto, refere a nomeação apenas do duque como Governador do Reino, ainda que, pelo menos, a princípio, este recusasse4, e D. Ant Caetano de Sousa aceita esta mesma hipótese, argumentando que a pouca idade de D. Leonor não lhe permitia desempenhar o carg0

5•

Outros historiadores, ainda, aftrmam que o papel de regente coube à Infanta D. Joana, fllha de D. Afonso V

6.

A segunda regência exerceu-a em 1476

7,

quando o principe D. João se dirigiu a Castela, em auxílio de seu pai, à frente de um exército de reforço. Por esta altura tinha já nascido, havia quase um ano, o principe D.

Afonso

(I

8-V-14 7 5)8, que viria a falecer tragicamente aos 16 anos de idade.

A terceira regência desempenhou-a em 1498

9,

quando os reis D.

Manuel e D. Isabel, fllha primogénita dos Reis Católicos e viúva do principe D. Afonso, se deslocaram a Toledo, para aí serem jurados herdeiros dos tronos de Castela, Leão e Aragão. Foi durante esta regência que D. Leonor deu início a uma das suas mais importantes obras de carácter social: a instituição da Misericórdia.

O seu papel no campo da politica reflectiu-se ainda na influência que terá exercido no espirito do marido para que ele escolhesse, por seu sucessor, D. Manuel

10,

e não o fllho bastardo, D. Jorge, que tentou legitimar para fazer sentar no trono.

3 Cf. Damião de Góis, obra citada, cap. XXI.

4 Apud Chronica do Senhor Rey D. Alfonso V, cap. CLXIII.

5 Apud História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo VI, livro VII cap.

m.

6 Sobre este assunto leia-se: GASPAR, João Gonçalves A Princesa Santa Joana e a sua época (1452 -1490), Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 21988.

7 Cf. Damião de Góis, obra citada, cap. LXXiiii, e Rui de Pina, Chronica do Senhor Rey D. Alfonso V, cap. CLXXXVII.

8 Cf. Rui de Pina, Chronica do Senhor Rey D.Alfonso V, cap. CLXXVI, e Damião de Góis, obra citada, cap. XLVilli

9 Cf. Damião de Góis, Crónica do Serenissimo Rey D. Emanuel, parte I, cap. XXVI, e parte IV, cap. XXVI.

(5)

CATAIDO SíCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

169

D. Leonor distinguiu-se principalmente nos campos social, religioso e intelectual, principalmente durante o reinado de

D.

Manuel. Não vamos debruçar-nos exaustivamente,

aqu~

por não caber no âmbito deste trabalho, sobre as suas obras de carácter social e religioso, como foram:

- A fundação do Hospital das Caldas, para os doentes que, aí, precisassem de banhos, tratamento e agasalho, e os incentivos para a formação do núcleo daquela que viria a ser a vila, hoje cidade, das Caldas da Rainha. Os privilégios régios para os futuros moradores desse lugar foram concedidos por D. João II e a primeira pedra do Hospital lançada em 1488

11

Em beneficio desta obra, D. Leonor alcançou também privilégios de seu irmão D. Manuel, quando rei, e conseguiu, do Papa Alexandre VI, indulgências para os doentes que ali morressem e para todos aqueles que contribuissem com donativos.

- A remodelação da Confraria de Nossa Senhora da Piedade, transformando-a na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em prol dos desprotegidos, dos pobres e dos doentes, a que deu início quando da sua regência em 1498 (cf.nota 9), e em cuja tarefa foi auxiliada pelo seu confessor Fr.Miguel de Contreiras

l2

Cumulou, depois, esta sua obra de benesses e donativos e atraiu sobre ela as de outros senhores, grandes e pequenos, e as isenções e privilégios dos Papas reinantes, de modo que, com o tempo, esta instituição irradiou para as cidades e vilas mais importantes do país. A Misericórdia era uma

"confraria nos moldes de innandade, em que um grupo de pessoas de boa fonnação cristã, tomando por modelo o Evangelho de S. Mateus e o princípio da solidariedade expresso por S. Paulo - "trabalhai e suportai as cargas uns pelos outros" - , se propunha cumprir os 14 preceitos da Misericórdia divina Eram sete de natureza espiritual: dar bom conselho, ser benevolente para os pecadores, consolar os infelizes, perdoar a quem errou, ter paciência para as injúrias, ensinar os ignorantes e rogar a Deus pelos vivos e mortos. De natureza humana eram os restantes preceitos: curar os doentes, visitar os presos, dar de comer aos famintos e de beber aos sequiosos, vestir os nus, abrigar os pobres, enterrar os mortos."ll.

10 Cf. Rui de Pina, Chronica d'ElRey D. João II, cap. Ll

II Cf. Fr. Jerónimo de Belém, Chronica Serafica da Santa Província dos AlgaIVes , parte III, cap.

xx.

12 Cf. idem, ibidem, parte III, cap. XIX:

"( ... )0 certo he, que assim a Rainha, com o seu venerável confessor derão principio a esta grande obra de piedade, este dirigindo, e aquella obrando ".

13 Apud Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, tomo III, pág. 349.

(6)

Com a Misericórdia, D. Leonor remodelou a assistência social em Portugal, dando continuidade às instituições de caridade, hospitais, albergarias, gafarias e mercearias, que existiram em grande número, em Portugal, durante a Idade Média, que a própria rainha Santa Isabel incrementou e para que seMu de exemplo.

Numa época em que se assistia às viagens dos descobrimentos e conquistas, fontes de glória para Portugal, mas também da miséria que a acompanhava, pelos casos de viuvez, orfandade, doenças e abandono a que deram lugar, D. Leonor aperfeiçoou as instituições que existiam, acrescentando-lhes o que faltava, aproveitando os melhores modelos, pondo termo a abusos, dando às instituições normas regulamentares, reorganizando o que estava mal dirigido.

- A fundação do Mosteiro da Madre de Deus, em Xabregas, que foi povoado em 1509 por sete religiosas c1arissas, que vieram do Convento de Jesus de Setúbal, a que se juntaram outras mais até perfazerem o número de vinte. D. Leonor tomava, por vezes, parte nos exercícios espirituais da comunidade e fazia vida de freira professa nas temporadas que ali passava.

Aqui jaz sepultada, na companhia de sua irmã, a duquesa de Bragança, e da primeira madre abadessa, Soror Collecta. Neste Convento reuniu valiosas obras de ourivesaria e inúmeras relíquias

14.

- A fundação do Convento da Anunciada, em Lisboa, destinado a freiras dominicanas, que começaram a povoá-lo em 1519, vindas do Mosteiro de Jesus de Aveiro

15.

- A fundação da Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Merceana, no termo de Aldeia Galega, hoje Montijo, em 1520

16

- A instituição de mercearias, em Torres Novas, Óbidos e outras localidades. As mercearias eram instituições de assistência, mas sobretudo piedosas e caritativas, onde se acolhiam os chamados a merceeiros, assim designados graças à mercê com que eram contemplados. Os merceeiros

14

a

Fr. Jerónimo de Belém, obra citada, parte

m,

cap. I e segs.

15

a

idem, ibidem, parte m, cap. XIX.

16

a

idem, ibidem, parte

m,

cap. XIX.

17

a

idem, ibidem, parte

m,

cap. XIX:

"No último anno da sua vida C •• ) ainda instituio sette Mercearias no Convento de Santo Agostinho de Torres Vedras, para deixar em sette mulheres outras tantas pregoeiras do seu abrazado espirito e que com suas orações tivessem lembrança da sua alma Determinou que estas fossem mulheres viúvas,e honestas; e outras, que nunca houvessem casado, mas de bom procedimento, e ajustada vida: que fossem todos os dias ao Convento ouvir huma Missa, a rezar pela sua alma, com sessenta alqueires de trigo cada huma de sua ordinária, e sua esmola de dinheiro para hum calçado (. . .)"

(7)

CATALDO StCULO E O MECENATO DA RAINHAD. LEONOR

171

deviam ser indivíduos inválidos ou idosos, de ambos os sexos, e de bons costumesP

Salientemos ainda, entre as actividades pias fomentadas por D.

Leonor, o projecto de edificação de uma capela, no Mosteiro da Batalha, onde deveriam ser sepultados D. João TI e o principe D. Afonso, que nunca chegou a concluir-se

18.

Não vamos, também, alimentar velhas polémicas em tomo do carácter da rainha e das suas relações com seu marido e com a sua família; sobre esses assuntos, já falaram suficientemente, entre muitos outros, o Conde de Sabugosa, João Ameai, Braamcamp Freire e Carolina M. de Vasconcelos (cf. Bibliografia).

O que nos interessa salientar, neste capitulo, é o papel importantissimo desempenhado por D. Leonor, no campo das artes e das letras, nomeadamente na forma como apoiou a afirmação e desenvolvimento da Imprensa e a implantação de impressores em Portugal; como protegeu Gil Vicente e o novo teatro português; como se mostrou compla- cente para com os poetas da sua corte, entre os quais podemos contar CataIdo.

Diz-nos Fr. Jerónimo de Belém que

"esta foi aquella virtuosa Rainha tão amiga de Deos, e amante do culto Divino, que por suas próprias maõs fiava têas de fino panno de linho para ornato dos Altares; e tão versada na lição dos livros historicos e espirituaes, que pelo amor, que tinha ás letras fez reimprimir muitas obras antigas, e outras modernas, para utilidade do bem commftm.~ [9

Com efeito, D. Leonor fomentou a fIXaÇão da Imprensa em Portugal, protegendo os impressores e patrocinando, a expensas próprias, a impressão de alguns livros, principalmente de carácter devoto.

A Valentim Fernandes de Morávia, escudeiro de sua casa, impressor, historiador e geógrafo, chamado a Portugal por D. João TI, onde veio a exercer a arte da tipografia de 1495 a 1516, encomendou D. Leonor a impressão de:

18 Cf. idem, ibidem, parte

m,

cap. XIX:

"No anno de 1509 (._) deu principio a fábrica da Capella do Convento da Batalha, para jazigo perpetuo do Rey seu marido, que primeiro fora sepultado na Sé de Silves, e para depósito do Principe D. Afonso, seu filho, os quaes para elle foraõ Tresladados."

19 Cf. obra citada, parte

m,

cap.

xx.

(8)

- VIta Christi , obra escrita em latim por Lundolfo ou Ludolfo de Saxónia, que já tinha sido mandada traduzir a Fr. Bernardo de Alcobaça, por volta de 1445, por D. Isabel, duquesa de Coimbra e senhora de Montemor, mulher do regente D. Pedro, irmão de D. Duarte e tio de D.

Afonso V

20.

A publicação "em lingoagem", encomendada por D. João II e D.

Leonor, é talvez de 1495, e, nela, Valentim Fernandes trabalhou de parceria com Nicolau de Saxónia.

A impressão foi feita a pedido e a expensas da própria rainha e, por desejo expresso da mesma, o texto foi escrito em português, por serem mais, em Portugal, os que sabiam vulgar que os que sabiam latim. Assim, aproveitaria melhor às suas almas

21

- Os Actos dos Apóstolos, obra que foi impressa em 1505, da autoria de Bernardo de Brihuega ou Briocanus; foi traduzido para português por Fr. Bernardo e Fr. Nicolau Vieira e foi esta versão que serviu de base à impressão de Valentim Fernandes.

A actividade de Valentim Fernandes de Morávia não se esgotava, no entanto, na impressão; com efeito, sob a provável protecção da rainha, publicara, dedicado a D. Manuel, o livro que incluia os seguintes textos: O Livro de Marco Polo, O Livro de Nicolao Veneto (da autoria de Poggio Florentino) e Carta de um genovês mercador, devendo ser-lhe atribuidas as traduções para o português

22

20

a

o "cólofon" da edição da Vita Christi da responsabilidade de Valentim Fernandes:

"Acabase ho prirneyro livro intitullado de vida de Christo em lingoagem portugues (H')' O qual mandou tresladar de latyrn em lingoagem portugues a muyto alta princesa infante dona Isabel duquesa de Coymbra e senhora de Monte Moor ( ... ). E foy empresso C .. ) por mandado do muy yllustrissimo senhor el Rey dom Joharn ho segundo. E da muy esclarecida Raynha dona Lyanor sua molher."

21 Leia-se a "Proermial Epistola" :

"E seendo ha sereníssima senhora Raynha de seu propio natural muy virtuosa e a todo acrescentamento e bê" da_ repubrica destes regnos e senhorios, segudo seu poder e boa vontade natura1mete inclinada, nõ soomete nas cousas q a cOJporal vida cõvem; mas per hüa singular e virtuosa inclinaçarn aqllas que ao spiritual viver pertençeC .. ) mandou estãpar e de forma fazer em lingoa materna e portugues linguagem, como de feito com divino favor per obra comprio, com muyta dispeza de sua fazenda, por serviço de nosso senhor e proveito cornmü(H')'

22 Diz no proémio do Livro de Nicolao Veneto :

"E por ysso consijrando que a nossa vida nom deve passar em silençio, tomey por descanso antre os grandes trabalhos COIporaes que tenho por sostentamento de vida e honra, em a muy nobre arte Impressoria, e quis occupar ho engenho e tralladar este presente livro de Nycolao Veneto de latim em linguagem portugues.

(Citado em Conde de Sabugosa, A Rainha D. Leonor, p.306)

(9)

C'ATAIDO

stcuw

E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

173

Nos anos de 1506-1509 teria este impressor reunido relatos sobre viagens e navegações dos portugueses, na costa africana, dumnte o séc.

XV, que foram publicados, por iniciativa de Joaquim Bensaúde, sob o titulo O Manuscrito "Valentim

Femandes~

em edição da Academia Portuguesa de História, 1941.

Entre as muitas obms que fez imprimir, contam-se as de Cataldo, nomeadamente as Epistolae et Orationes quaedam Cataldi Siculi, publicadas em 1500. Dumnte este período, é natural que tenha estado ao serviço da minha

A Hermão de Campos, impressor de nacionalidade ale- mã, encomendou D. Leonor, em 1515, a publicação de Boosco Deleitoso, obm de devoção escrita pam bem formar as almas, de maneira a que elas possam alcançar o Paraíso ou Bosque deleitoso

23.

Diz Ant José Samiva:

"Este livro defende a forma mais radical da vida religiosa, o total desprendimento do mundo e da vida activa como caminho para o contacto directo com Deus ainda durante a existência terrena (M')" 24

Em 1518, encomendou ao mesmo impressor O Espelho de Christina, da autoria de Cristina de Pisano. Neste livro, diz o impressor,

"se cõtan muytas probeytosas doutrinas y salutares exemplos assy pera as generosas e grandes donas como pera as outras de qualquer estado o condicion que sejan. E poderem nelle deprender como se ham de regir e governar no regimento de suas casas fazendas e honras." 25

23 Diz-se, nesta edição:

"A muyto esclarecida e devotissyma Rainha dona Lyanor molher do poderoso e muy manifico Rey dom Joam segundo de Portugal, como aquella que sempre foy enclinada a toda virtude e bem fazer, zelosa grandemente de sua salvação e de toda alma christãa, mandou empremir ho seguinte livro chamado Boosco deleitoso, veendo sua alteza nelle tanta ducura espiritual e proseguindo com tantos enxempros e figuras por convidar a muytas aa doutrina de nosso redemptor Jhesu Christo."

(Citado em Mário Martins, "A Rainha D. Leonor e os livros", pág. 255.

a

Bibliografia)

24 Apud História da Cultura portuguesa, p.329.

25 Apud Espelho de Cristina, da autoria de Cristina de Pisano, editado em Usboa, em 1518. (citado em Conde de Sabugosa, obra cit, pág. 309.)

(10)

Em 1523, a rainha patrocinou ainda a edição de Contra osjuizos dos Astrólogos, que o autor, Fr. António de Beja, lhe dedicara. A impressão ficou a cargo de German Galharde, que também deu à estampa a Epístola de S. Crisóstomo, Nemo laeditur, traduzida e dedicada à Rainha pelo mesmo Fr. António de Beja

Estas obras, publicadas sob o patrocínio da rainha, revelam o seu empenho na difusão da cultura.

Assistiu D. Leonor, no Paço da Alcáçova, na noite de 7 de Junho de 1502, à representação do Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação, feita pelo próprio Gil Vicente nos aposentos em que se encontrava a rainha D. Maria,

segu~a

mulher de D. Manuel, ainda mal refeita do parto, pelo qual dera li luz o futuro D. João m. Estavam presentes, além das duas rainhas, a npva (D. Maria) e a velha (D. Leonor), o rei D. Manuel, a duquesa de Bragánça D. Isabel e a infanta D. Beatriz, mãe dos três últimos

26

Agradando-lhe a representação (de que provavelmente teria conhecimento prévio), logo D. Leonor pediu que se repetisse nas Matinas de Natal, mas adaptada às circunstâncias

27

Gil Vicente apresentou, então, uma obra nova, especialmente feita para a ocasião, que íntitulou de Auto Pastoril Castelhano Diz António José Saraiva: .

"Assim iniciava Gil Vicente a sua longa carreira de animador dos serões e festividades palacianas. As suas peças, fantasiosas, movimentadas com bailados e peripécias, um fio de intriga inicialmente muito débil, um diálogo vivissimo e

26 Diz a didascália da CompilaçA.o (usámos uma edição cuja introdução e normalização do texto foi feita por Maria Leonor Carva1hão Buescu - cE Bibliografia), que foi corrigida por D. Carolina M de Vasconcelos em "A Rainha Velha e o Monólogo do Vaqueiro", in Notas Vicentinas...pág. 89 :

"Por quanto a obra de devoçam seguinte procedeo de hua visitaçam que o autor fez ao parto da muyto esclarecida raynha dona Maria e nascimento do muyto alto e excelente principe dom Joam, o terceyro em Portugal deste nome, se põe aqui primeyramente a dita visitaçam por ser a primeyra cousa que o autor fez e que em Portugal se representou, estando o muy poderoso rey D. Manoel, e a raynha dona Lyanor sua irmãa e a ifante dona Breytiz sua mãy e a senhora duquesa de Bragança, sua filha, na segunda noyte do nacimento do dito Senhor".

27 Diz a didascália da Compilação referida, pp.22-23, vo I:

"E por ser cousa nova em Portugal, gostou tanto a Rainha velha desta representação, que pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas do Natal, endereçado ao nacimento do Redentor. E porque a substância era mui desviada, em lugar disto fez a seguinte obra", etc.

28 António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, voL II, pág. 237.

(11)

CATALDO SíCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

175

certamente uma rica encenação e guarda-roupa, concorriam vantajosamente com os 'mornos', espectáculos mudos, a que a corte estava habituada, nos festejos do Natal ou Páscoa, de nascimentos, casamentos régios ou outros. Era a primeira vez que a corte portuguesa via teatro."28

Mário Sampayo Ribeiro partilha da mesma opinião. Diz que, fruto da resolução de Gil Vicente de fazer uma obra "ad hoc" para as matinas de Natal, surge o Auto Pastoril CastelhailO,

"em verdade, a primeira peça do Teatro Português, compreendendo por tal a realização plena da ficcão teatral, com entrecho perfeitamente definido, interlocutores e comparsas contracenando ordenadamente e indumentados a preceito.

Nasceu, pois, sob a égide de Dona Leonor de Lencastre, que amorosamente lhe serviu de madrinha e lhe amparou, com disvelado carinho, os primeiros passOS."29.

Encomendou-lhe, de seguida, a Rainha Velha, uma nova peça para o dia de Reis, surgindo, assim, o Auto dos Reis Magos 30. E, daí em diante, até cerca de 1521 ou mesmo para além dessa data, muitas outras obras, principalmente de carácter religioso e moralizante (a saber, quase todos os Autos religiosos), foram dedicadas à rainha D. Leonor, ou representadas na sua presença e sob a sua protecção.

As

composições que, além das já mencionadas, fazem referência à rainha D. Leonor, nas didascálias da Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente de 1562, ou nas das impressões - príncipes avulsas, são as seguintes:

- Auto de S. Martinho, representado na sua presença, em 1504, na Igreja das Caldas, na festa do "Corpus Christi";31

- Sermão perante a Rainha D. Leonor, parodiado, representado em 3 de Março de 1506, numa terça-feira "Gorda",em Abrantes;32

29 Mário Sampayo Ribeiro, "A Rainha Dona Leonor de Lencastre e os alvores do Teatro Português·" (cí Bibliografia), pág. 70.

30

Didascália da CompilaçAo citada, pp.36-37, I vol.:

"A dita Senhora Rainha, muito satisfeita desta pobre cousa (scil. o Auto anterior) pediu ao autor que pera dia dos Reis logo seguinte lhe fizesse outra obra.

31

Didascália da Compilação, pág. 349, I vol.:

" O auto que adiante se segue foi representado à mui caridosa e devota senhora a Raynha D. Lianor na Igreja das Caldas, na procissão do Corpus Christi ._".

32

Didascália da Compilação, pág. 613, II vol.:

"Sermão feito à cristianíssima Rainha Dona Lianor e pregado em abrantes ao

(12)

- Auto da Índia, representado na sua presença em Almada, em 1509;33

- Auto da Sibila Cassandra, que lhe foi representado na véspera de Natal, no Convento da Madre de Deus em Xabregas, em 1509, segundo António José Saraiva, ou em 1513, segundo Paul Teyssier e Braamcamp

Freire;34

- Auto da Barca do Infemo, que lhe foi dedicado e representado na Câmara da rainha D. Maria, no Paço da Ribeira, nas matinas do Natal de

1517;35

- Auto da

Alma,

representado na sua presença em 1 de Abril de '1513, numa quinta-feira Santa;36

- Auto da Barca do Purgatório, que lhe foi representado no Natal de 1513, no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa 37.

Acerca da 'vrrilogia das Barcas", não fazendo a da Glória qualquer referência a D. Leonor, diz D. Carolina M. de Vasconcelos:

"Eu estou todavia certa e persuadida de que a peregrina e sugestiva ideia geral das três partes que constituem uma tão admirável "Dança Macabra" ou "Divina

muito nobre Rei Dom Manuel, o primeiro do nome, na noite do nacimento do illustríssimo Ifante Dom Luis.".

33 Diz a didascália da CompilaçAo, p. 345, II vol.:

"A Farsa seguinte chamam Auto da India ( ... ). Foi feita em Almada, representada à muito católica Rainha Dona lianor."

34

Didascália da Compilação, pág, 47, I vol.:

"A obra seguinte foi representada à dita Senhora, no mosteiro de Xobregas nas matinas de Natal".

35

Didascália de uma edição-príncipe avulsa:

"Auto da moralidade composto por Gil Vicete, Por contemplaçam da serenissirna e muyto catholica raynha dona lianor nossa seftora, e representada per seu mandado ao poderoso principe e muy alto rey dõ Manuel primeyro de portugal deste nome,"

(Citado em C. M. de Vasconcelos, Notas Vicentinas, p.91

36

Diz a didascália da Compilação, pág. 175, I vol.:

"Este auto presente foi feito à -muito devota Rainha Dona lianor, e representado ao muito poderoso e nobre Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de lisboa, nos paços da Ribeira, em a noite de Endoenças."

37

Cf. didascália da Compilação, pág. 229, I vol.:

"Foi representada à muito devota e Católica Rainha Dona lianor, no hospital de Todolos Santos da cidade de Lisboa, nas matinas de Natal, era do Senhor MDXV1II".

38 Apud Notas Vicentinas, pág. 90.

(13)

CATALDO SíCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

177

Comédia" popular, foi inspirada por D. Leonor, e que portanto todas deviam levar indicação do seu nome."38

- Auto dos Quatro Tempos, que lhe foi dedicado e representado perante D. Manuel, no Paço da Alcáçova, na capela de S. Miguel, em 1511, segundo AntJosé Saraiva, ou em data incerta (mas antes de 1521, bem entendido), segundo Paul Teyssier

39.

- Auto da Fama, que lhe foi representado talvez em 1521, segundo Ant José Saraiva, e em data incerta, segundo Paul Teyssier

40.

É de crer, no entanto, que todas as obras escritas e representadas por Gil Vicente, até cerca de 1521, o tenham sido sob a protecção da rainha D. Leonor.

O facto de tal protecção não ser mencionada nas didascálias da Compilação referida não é significativo, uma vez que, como demonstra D.

Carolina M. de Vasconcelos, no que dizia respeito ao Auto da Barca do Infemo, nenhuma referência se podia ali encontrar a D. Leonor, tendo-se, posteriormente, encontrado uma menção explícita na didascália do mesmo auto impresso numa folha volante, em edição - principe, por alturas da sua primeira representação em 1517

41

Gil Vicente estava, pois, ao serviço da rainha; di-lo explicitamente na dedicatória da edição - principe da Tragicomédia de D. Duardos, escrita antes da morte da sua benfeitora, dirigindo-se a D. João ID:

"Como quiera, excelente y rey muy poderoso, que las comédias, farsas e moralidades que he compuesto en servicio de la reina vuestra tia (.. ) "42

39 Didascália da CompilaçSo, pág. 81, I vol.:

"Esta seguinte obra se chama dos Quatro Tempos; foi representada ao mui nobre e próspero Rei Dom Manuel na cidade de Ilsboa, nos paços de Alcáçova, na capela de São Miguel, por mandado da sobredita Senhora sua irmã, nas matinas do Natal."

40 Didascália da Compilacão, pág. 360, II vol.:

"A Farsa seguinte foi representada à mui Católica e Serenissima Rainha Dona Ilanor, e depois ao muito alto e poderoso Rei Dom Manuel, na cidade de Ilsboa em Santos-o-Velho, na era do Senhor de 1510."

41

a c.

M. de Vasconcelos, "A rainha Velha e o Monólogo do Vaqueiro", in Notas Vicentinas ".

42 Citado em C. M de Vasconcelos, ibidem, pág. 92.

43 Apud A rainha D. Leonor, pág. 315:

"Numa festa a que assistiu D. João II, já o poeta se encontrava, não sabemos bem

(14)

o dramaturgo, segundo opinião do Conde de Sabugosa

43,

frequentaria já a corte, durante o reinado de D. João fi, e seria conhecido da rainha, vivendo, com outras pessoas da sua família, em Lisboa, em casas de D.

Leonor, perto do Paço.

Não é, pois, de total descrédito a hipótese de, na noite da representação do Monólogo do Vaqueiro, estar D. Leonor a par de tudo e de ter até patrocinado o espectáculo.

As obras que Gil Vicente escreveu até cerca de 1521 eram principalmente "de devaçam". Diz Ant José Saraiva:

"Até cerca de 1521 Gil Vicente, ao serviço da Rainha D. Leonor, apreciadora de obras devotas e tratados alegóricos, vai praticar intensamente o teatro alegórico religioso, cultivando um género literário muito em voga em toda a Idade Média e particularmente no séc. XV

C .. ),

cuja forma teatral são as "moralidades".

Acomodando-se a este gosto, colhendo elementos na liturgia católica, nos hinos religiosos, e até na mitologia greco-latina (que chegava ao seu conhecimento através dos poetas peninsulares, do próprio Encina, do Cancioneiro geral de Garcia de Resende), Gil Vicente criou um teatro poético fantasista, em que se movimentam as abstracções medievais, os deuses do paganismo, os anjos e os diabos as quatro estações do ano, os ventos e outras forças da Natureza A intenção religiosa e dominante nesta fase da sua obra, cuja expressão mais acabada é o Auto da Alma, uma das mais perfeitas realizações da arte medi- eval."44

Escreveu, no entanto, neste penodo, obras de carácter profano ou satírico, que não agradaram menos à rainha, uma vez que esta não suspendeu, a partir daí, a sua protecção. Estão nesta situação, entre as que têm dedicatória expressa, as peças: Auto da Índia, Auto da Fama, e Sermão

à

Rainha D. Leonor, paródia dos sermões, ditos nos púlpitos das igrejas, pelo clero. Diz Ant José Saraiva:

"( ... ) a arte de Gil Vicente é multiforme; e ao lado do simbolismo religioso encontramos já nesta época, além da farsa que desde 1509 não deixou de cultivar (O Velho da Horta, Quem tem farelos'!), as alegorias profanas, verdadeiras

em que qualidade, mas incluído na Côrte, pois claramente diz, fallando do monarcha:

Yo lo vi entre estas flores Con gran hato de ganado Com su cayado real".

44 História da Cultura em Portugal, voI. II, pp. 256-257.

(15)

CATAlDO stCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

179

testas carnavalescas de fantasia, já discretamente anunciadas no Auto dos Quatro Tempos ( ... ).

É outra característica desta fase da obra vicentina, fase contraditória e de viragem, o lançar-se o poeta deliberadamente na sátira social, cuja primeira grande expressão é o Auto da Barca do Inferno, embora já anterionnente o Auto da Jndia e Quem tem farelos? nos apresentem caricaturas com intensão satírica.

A partir de 1521, Gil Vicente abandona de maneira geral o teatro religioso e cultiva predominantelilente o género da alegoria profana (".)."45

Pretenderam alguns autores justificar este abandono do teatro religioso com o abandono simultâneo do setviço da rainha, devota, como salientámos já. Braamcamp Freire vai mais longe e diz:

"Gil Vicente já de hã muito vivia afastado da sua primeira protectora e natural era que, exaltando-se nela com a idade a devoção, o seu poeta lavrante, incorrigivel censor do clero devasso, fosse encontrando menos entrada junto da Rainha"46

Opinião diversa defende Stephen Reckert; sensível à renovação e rejuvenescimento dos temas do autor, afIrma que este, andando pelos 57 anos, lhe parecia viver uma segunda Primavera, arrastado pelo turbilhão da vida e do amor, a que não teria sido alheio o seu casamento em segundas núpcias.

47

Para terminar este assunto, vejamos, emjeito de conclusão, a opinião de Braamcamp Freire sobre as relações entre Gil Vicente e a rainha, pela qual confessa nutrir profunda antipatia:

"Ao despedir-me desta senhora quero recordar a sua influência benéfica sobre a pessoa e a obra de Gil Vicente, como poeta e como ourives48• Assistiu D. Leonor à estreia do poeta dramático no Monólogo do Vaqueiro, em seguida ao qual lhe pediu mais obras daquele género, sendo a seu pedido, como o próprio autor

45 Ibidem, pág. 258.

46 B. Freire, Vida e obras de Gil Vicente - Trovador e Mestre da Balança, pág. 199.

47 Stephen Reckert, O espirita e a letra, pág. 23.

48 Alguns dos autores citados, entre os quais Braamcamp Freire e Carolina M. de Vasconcelos, identificam Gil Vicente, trovador, com Gil Vicente, ourives da rainha, que foi Mestre da Balança da Casa da Moeda e vedor das obras de ouro e prata dos Conventos de Belém e Tomar e do Hospital de Todos os Santos.

(16)

declara no prólogo do terceiro livro, que a maior parte dos seus primeiros autos foram compostos.( ... ) Foi ela, sem dúvida, desvelada protectora de Gil Vicente nos seus primeiros tempos. Deu-lhe casa para habitação, deu-lhe entrada no Paço. A sua sombra protectora pôde medrar o poeta artista. A viúva de D. João II devemos, pois, sob este aspecto, todos os que amamos as artes e as letras, profunda gratidão e indiscutível aplauso."49

Foi D. Leonor, como vimos, uma rainha empenhada na vida cultural do país, saindo da sombra e fazendo notar a sua presença, principalmente no periodo de trinta anos que decorreram entre a morte de seu marido e a sua

Interessou-se particularmente, como ficou demonstrado, pelas obras de carácter religioso: eram maioritariamente deste teor os Autos que lhe dedicou Gil Vicente; eram devotos os livros que escolheu para serem impressos a expensas próprias e aqueles que compunham a sua livraria particular, escritos quer em latim, quer em português.

Chegaram até nós, pelo menos, três dos seus "Livros de Horas"50, profusa e artisticamente iluminados (o seu gosto e empenho na defesa das artes, manifestava-se também nas encomendas com que cumulava ourives, iluministas, pintores e artífices em geral); e, no extracto do seu testamento (nunca encontrado) que se r~fere aos bens deixados ao Mosteiro da Madre de Deus, em Xabregas, temos uma incompleta descrição da sua livraria:

"Item deixo ao dito Moesteiro todos meus livros de latim, e os de lingoagem, e quaesquer Breviarios, diurnaes, cadernos, contemplações, orações, quantos se acharem em minha capella, oratório, arcas, todos se entreguem à Madre Abadessa do dito Moesteiro; e assi lhe seja entregué o Breviario, que agora mandei fazer, para rezarem por elle no Coro, o qual he de purgaminho, por que

49 Braamcamp Freire, obra citada, pp. 199-200.

50

Acerca dos "livros de Horas~ e do sentimento religioso deste periodo, diz Joaquim Verissimo Sertão, na História de Portugal (1415-1495), tomo II, pp. 324-325:

"Uma valiosa fonte para conhecer a dimensão do espirito religioso são os "livros de Horas~ em que os reis e a principal nobreza seguiam quotidianamente a prática litúrgica( •. ) Desde o nascer (hora prima) ao pôr do Sol (vésperas), os fiéis recitavam as preces respeitantes ao oficio espiritual: às 9 da manhã (hora de terça), ao meio- dia (hora de sexta) e às 3 da tarde (hora de noa). A existência de monarcas e seus familiares era pautada por esses calendários, onde também se invocavam os santos de maior nomeada nos seus dias festivos, numa permanente devoção em que podia haver hinos e cânticos (matinas, laudas), para a maior vivência religiosa.~

51 Fr. Jerónimo de Belém, obra citada, parte III, livro XIlI, cap. XXI, pág. 86.

(17)

CATALDO StCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

181

ora rezão os Capellães em minha Capella; e assi os livros por que me leu á mesa com todos os outros, que em minha casa acharem."51

Os interesses de D. Leonor não se voltavam exclusivamente, porém, para os textos religiosos. Gil Vicente dedicou-lhe alguns de carácter profano, e a rainha parece até ter olhado, com complacência, os poetas da corte que nos aparecem no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, nomeadamente o autor de entremeses (género que teve grande voga nos serões cortesãos de D. João II e de D. Manuel), Henrique da Mota, autor ou compilador do célebre "Processo de Vasco Abul", de 1509 provavelmente, no qual a rainha é mencionada como juiz supremo, embora o autor se não atreva a fazê-la falar, pela sua pena

Neste "Processo de Vasco Abul"52, a trama desenrola-se a partir da avareza do personagem nomeado no título que, tendo oferecido um colar de ouro a uma moça nova que gostou de ver bailar e que lhe não devolveu, veio para tribunal; nele intervém também Gil Vicente, dando o seu parecer, pois a peça, concebida sob a forma de um processo jurídico, tem colaboradores que intervêm como testemunhas, relatores ou juiz (como dissemos, este papel é atribuído à própría rainha D. Leonor, o que confere verossimilhança ao texto, pois o acontecimento verídico que dera esta matéría de comédia passara-se em Alenquer, vila de que a aquela possuía as jurisdições); a causa era pleiteada em Almada, onde ela residia então. Diz Mário Sampayo Ribeiro:

"A expressa alusão à Rainha Dona Leonor feita numa das rubricas deste último entremês, a circunstância de Henrique da Mota ter estado a seu servíço como Juiz dos Orfllos (em Óbidos e em Almada) indicia que a excelsa Senhora deve ter estado intimamente ligada às várias produções, se é que não foi mesmo para serem lidos nos serões dos seus paços que os entremeses - e não somente os nossos conhecidos - foram compostos por Henrique da Mota

C .. ) Tudo, pois, concorre para se crer Dona Leonor de Lencastre inseparável das produções de Henrique da Mota"53

52 a

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, edição de Costa Pimpão e Aida Dias, II vol., pp. 275-278, comp. 803 (a Bibliografia):

"Anrrique da Mota a Vasco Abul, porque andando hua moça baylando em Alanquer deu-lhe, zombando, hua cadea d'ouro e depois a moça nam lha quys tomar e andaram sobre isso em demanda E veo Vasco Abul falar sobre isso ha Raynha, estando em Almada, e hahy lhe fez estas trovas", etc.

53 Obra citada, pág. 97.

(18)

Terá igualmente apreciado D. Leonor os poetas das cortes de D. João II e de D. Manuel, nomeadamente os que participaram na célebre contenda literária "Cuidar e Suspirar", a que pertence um grande número de composições do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, e que constitui o núcleo inicial desta diversificada compilação de textos de autores dos finais do séc XV e dos primeiros anos do XVI.

Entre os poetas que, então, frequentavam os circulos cortesãos contava-se o nosso Cataldo, mestre de latinidade,jurisconsulto, secretário latino de reis e otador oficial de D. João II e provavelmente D. Manuel, além de cultor das Musas. Tê-los-á, no entanto, frequentado mais assiduamente após a morte da Infanta D. Joana, em

1490,

com a qual colaborara, em Aveiro, na educação de D. Jorge, ftlho bastardo de D. João II. Por esta altura, acompanhou o seu pupilo, quando ele se dirigiu para a corte, para junto da rainha D. Leonor, que se propunha educá-lo como ftlho de seu marid0

54

Cataldo participou, assim, nos festejos de casamento do principe D.

Afonso; foi ele quem escreveu e disse, às portas de Évora, a oração de entrada à princesa D. Isabel, ftlha dos Reis Católicos (e será escolhido para idêntica tarefa, alguns anos mais tarde, quando da entrada em Santarém da rainha D. Maria, segunda mulher de D. Manuel)55. E, quando, alguns meses depois, o príncipe, em cuja educação terá também colaborado, morreu, dedicou-lhe inúmeros epitáfios, entre outras composições

56

São de diversa natureza os textos que Cataldo escreveu e dedicou à rainha D. Leonor.

Do carácter profundamente religioso e de teor consolatório e o texto do Segundo Livro de Visões de Cataldo, dedicado "à muito Sábia e Santa Rainha Leonor". Escrito em tom elegíaco, tem como fio condutor a fantástica aparição à rainha de seu ftlho D. Afonso, morto havia alguns anos. Com este artificio poético, o autor propõe-se, mais do que lamentar a morte deste, consolar aquela no seu sofrimento de tantos anos, entrando assim em profundas considerações sobre a fragilidade e instabilidade da vida do homem, na terra; sobre os medos e sofrimentos que o afligem;

sobre a sua insanidade e frivolidade; sobre a conduta que, por ele, deve ser

54

a

Rui de Pina, ChrOniC8 d'EIRey D. João II, cap. XLIII.

55 Ambas as orações se podem ler, em tradução portuguesa, em: M. Margarida G.

Brandão da Silva e Américo Costa Ramalho, Cataldo Parísio Sículo - Duas Orações, Coimbra (cf. Bibliografia).

56 Estas composições podem ler-se, em tradução portuguesa, em: M. Luísa N. C.

Costa, Da Morte do Príncipe D. Afonso (livro I) e Epitáfios de Cataldo Sículo.

(19)

CATALDO

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183

preferida; sobre a recompensa que espera todo aquele que age correctamente em vida: merecer ser elevado aos astros e ser colocado entre as estrelas, isto é, merecer, depois da morte, a verdadeira vida - ideal bem cristão da ressurreição para a vida eterna

O espírito deste texto coaduna-se perfeitamente com o pendor religioso da rainha, que se manifestou, como vimos, noutras áreas da sua actuação, e com a vida contemplativa que preferia levar. Ao mesmo felVor parecem dirigir-se os seguintes epigramas de Cataldo.

I -À Rainha Leonor

Rainha caída, do céu sereno, na terra, que sei ter aprendido a ciência dos astros. Se te apraz, revela essa ciência ao ignorante Cataldo, pelo que a nossa Camena mais te ficará a dever.

Porque se recusa, Deus, por vezes, a deixar cair a chuva, lá do alto? E porque não rega, com algum orvalho, os campos lavrados?

Deplora-os, então, quase queimados, o triste lavrador; chora, lastimoso, a sua aridez, com abundantes gemidos.

Logo depois, espalha a água em ondas ceJ;Illdas correndo abundantemente e satura a terra seca com muitas bátegas de água.

Alegremente recolhe, então, o lavrador, os cereaís, fruto da sementeira, o campo retribui com juro contuplicado.

Mantém-se oculta esta importante questão, para ser resolvida pelos antigos sábios, a qual, só tu podes revelar. Embora só tu possas desfazer tal nó, peço-te:

faz com que o Rei veja este problema contigo.

II -À SantissimaS7 Rainha Leonor

Há muito tempo que o mundo, Rainha, é oprimido pela peste, pela fome e pela guerra e por pouco se não desmoronou. Mas a tua infinita virtude e as tuas preces junto dos deuses superiores arrebataram-no a tão grandes males.

Não menos te devemos, nós, pois, testemunhar o nosso reconhecimento:

os deuses súperos dão a vida, e tu és a piedosa causa de a darem.

Neles são superlativizados, como costuma acontecer em textos encomiásticos, os dons da rainha, de tal maneira que esta, não só consegue atenuar e suprimir as calamidades que afligem os homens, graças à aceitação que as suas orações encontram junto dos deuses (m, como conhece os próprios desígnios de Deus

(I).

57 Interpretámos assim esta abreviatura, considerando o carácter do texto. "S." podia também traduzir-se, no entanto, por "Serenissima" ou "Sapientissima".

(20)

Apontando para a sua piedade e religiosidade, Cataldo louva-a como intercessora dos homens junto da divinqade. Elogiando a sua enorme sabedoria e conhecimento das coisas divinas, exorta-a a revelar os mistérios e desígnios do Deus providente, que nos aparece, por exemplo na seguinte passagem do Salmo 65:

"Visitais a ttrra e tomai-la fértil, cumulai-la de riquezas,

enchendo, a transbordar de água, os Vossos rios caudalosos.

Quando quereis que o trigo gennine irrigai-lo grandemente.

Irrigais os sulcos e aplanais as glebas;

amolecei-las com as chuvas e abençoais as suas sementeiras.

Coroais o ano com os Vossos beneficios e os Vossos caminhos ressumam abundância;" etc.

Ainda que não possamos datar, com exactidão, estes epigramas dedicados a D. Leonor, podemos, ao menos, balizá-los. O primeiro foi escrito, por exemplo, antes de 1495, pois o rei, que nele aparece explicitamente mencionado, morreu nesse ano. O segundo, publicado com as Visões é, muito provavelmente, posterior.

Os outros poemas (ID a VII e a Elegia, vd. Apêndice) foram escritos depois da chegada de Cataldo a Portugal, 1485

58,

ou depois da sua vinda definitiva para a corte, em 1490, com D. Jorge, e antes de 1491, ano da morte do principe D. Afonso, que neles aparece mencionado, como esperança e futuro do Reino (Elegia, w.55-60) e como elemento constituinte de trin-dade régia, semelhante em méritos e em importância aos reis, seus pais (ID), ele que é também um dos maiores titulas de glória da rainha (Elegia, w.57-58).

58 Sobre a data da chegada de Cataldo a Portugal, já se pronunciou exaustivamente o Prof Costa Ramalho; dentre os estudos onde podemos encontrar referência a este assunto, salientemos os seguintes: "D. Diogo de Sousa e o introdutor do Humanismo em Portugal" in Estudos sobre a Época do Renascimento , e "Uma Carta de Cataldo a D. João II", in Biblos, vol. LXII, 1986.

(21)

CATALDO

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185

m -

Do perfeito amor e concórdia do Rei, da Rainha e do Príncipe Gerou a natureza uma alma tripartida, mas cada uma dessas três partes está contida nas outras duas, igualmente suspensa

A primeira é o magnânimo Rei; a outra, a Rainha; a terceira é o Príncipe, que tem a mesma mentalidade e os mesmos zelos. Esta, ainda que seja inferior em idade 59, é semelhante na formosura e no valor, e é dificil dizer, pois, qual será a melhor.

É esta a sentença ditada pelos deuses superiores acerca delas: se uma das três faltar, logo as outras definharão.

Veneremos todos juntos esta alma e concedamos-lhe, incondicional e espontaneamente, de todo o coração, os nossos dias.

Estes são textos de carácter principalmente encomiástico. Neles, Cataldo tece, em tom de hipérbole, rasgados elogios a D. Leonor, que revela ainda a sua alegria de viver.

Louva-lhe a elegância e magestade no cavalgar, pelo meio do povo e da cidade, sobressaindo entre a numerosa comitiva, suscitando a admiração incondicional dos seus súbditos. Recorrendo a um processo muito do seu agrado, Cataldo compara-a a uma figura da Antiguidade, que, no entanto,·

por ela é suplantada: neste caso, D. Leonor excede a própria rainha das Amazonas, Pantesileia, necessariamente o paradigma da petfeita amazona.

N -À Rainha Leonor

Não ia Pantasileia60 ornada com tão magnificente ou tamanho cortejo triunfal, em feminino acompanhamento, como a assembleia de gente grada e de multidão aristocrática que te acompanhou, Rainha, nesse dia

Na verdade, cavalgando pelo meio da praça, pelo meio da cidade, parecias enviada por Júpiter do alto céu.

59 Ao referir-se ao principe, Cataldo recorre ao tópico do "puer Cato" ou "puer senex", do jovem que, apesar da sua pouca idade, já revela a sabedoria e o comportamento de um velho. Este tópico encontramo-lo formulado, por exemplo em Cícero (Cato Maior - De senectute , Xl,38) .

Não tendo ainda, pelo menos, 16 anos, idade com que morreu, DAfonso, nas palavras elogiosas de Cataldo, demonstrava já a mesma inteligência, os mesmos interesses, os mesmos cuidados dos pais; a beleza e a virtude eram também semelhantes, de tal maneira que, entre eles, pais e filho, não se podia escolher um, por melhor.

60 Tal como faz na Elegia, v.54 (cí nota 72), o poeta compara a rainha às Amazonas, mas, desta vez, compara-a à mais importante de todas elas: à rainha Pentesileia Filha de Ares e de Otrere, distinguiu-se na guerra de Tróia, na qual interveio em auxilio de Príamo, à frente do seu exército de Amazonas; morreu gloriosamente às mãos de Aquiles que, ao vê-la morrer, a chorou sentidamente.

A rainha D. Leonor, com o seu cortejo de fidalgos, cavalgando pelo meio da cidade, superava a própria rainha das Amazonas.

(22)

Tinhas o Rei à tua esquerda o teu filho seguia atrás: para vos contemplar, acorrem precipitadamente homens e mulheres

Ficam obscurecidas as poderosas senhoras hispânicas e gaulesas e diz-se que, em toda a orbe, nada há mais digno do que tu.

Entre incontáveis senhoras, mesmo aquele que fosse ignorante te escolheria, a ti, por Rainha e não a outra.

Vivo, suplico-te, e, cuidadosa, favorece os poetas merecedores: eles tornar- te-ão eterna e muito célebre deusa

Louva-lhe a beleza, a elegância no vestir, e aconselha-a quanto à cor adequada, para concluir que qualquer uma lhe fica bem, não necessitando senão dos mais simples ornamentos M. O que quer que use a toma superior.

V-ÁRainha

Responde-me, Rainha, suplico-te: na minha ignorância, não sei para onde vagueio e, de dia para dia, com a fronte cerrada, mais me admiro.

Quer te vistas com negra, quer com alva indumentária, ajusta-se-te esta cor, ajusta-se-te aquela

E se, no teu alvo corpo queres põr um manto cor de púrpura ou de ardente escarlate,61

a mais apropriada para ti é, reunida toda a arte, a cor púrpura, se bem que, na verdade, e escarlate demonstre seres deusa

Se desejas cobrir a cabeça, de acordo com as circunstâncias, uma fita, que há pouco era longa, adorna-te com particular encanto, apenas enrolada

Em suma, quando pões o que quer que seja no teu corpo tão belo, consideramos que nada há, no mundo, mais digno.

Louva-lhe a popularidade junto dos seus súbditos, que insistentemente reclamam a sua presença (VI), e que acorrem, em massa, para a verem passar; dentre estes, mesmo quem a não conhecesse, lhe atribuiria a posição da rainha entre as demais senhoras, nacionais, francesas, castelhanas, em suma, de toda a orbe terrestre

(IV).

61 A púrpura foi o corante orgânico mais utilizado na Antiguidade para tingir as vestes dos imperadores, dos reis, dos sacerdotes, dos magistrados e dos triunfadores. O trabalho exigido na sua preparação e para a sua beleza tomavam-no o corante mais precioso, acessível apenas a um número muito reduzido de pessoas. Os Antigos tiravam também uma cor escarlate de um insecto que vivia em certas espécies de

(23)

CATALDO stCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

187

VI-Ámesma

Tu que, única, resplandeces entre as grandes Rainhas e deves ser contada no número das deusas eternas: solicita-te Évora, que te enviou, e Viana62, que te espera. Qual das duas pretensões é mais legitima, vê-o tu própria

Cataldo não deixa de louvar-lhe também a cultura e a sensibilidade, ao, dedicando-lhe estes poemas, pressupor a atenção de conhecedora que lhes dispensaria, o seu conhecimento da cultura grego-latina e o domínio do latim.

Do seu interesse pelos poetas e, neste caso, por Cataldo, parece ser testemunho significativo a passagem entre os w. 35-54 da elegia; o poeta revela a atenção, o interesse, com que a rainha o acolhera, lhe prestara

"doutos ouvidos", quando chegara da Sicllia, com obra já elaborada, já polida

Ao compará-la a Calíope, ao enviar-lhe a sua Musa, a sua poesia, Cataldo parece realçar a aceitação que encontraria junto dela.

Elegia

Ordena a Musa que se dirija à Rainha e junto dela se justifique Sabendo nós que, até hoje, não foste tu, Musa61, ingrata para ninguém, peço-te que, solicitamente, tomes o seguinte a teu cuidado.

Veste roupas resplandecentes e elegantemente ordenadas e espalha os teus virginais cabelos em volta do rosto.

Do teu alvo pescoço suspende colares de ouro e penda dos teus ombros um manto cor de púrpura. Toma novo semblante, hannoniza toda a tua figura e põe, enfim, tudo o que tiveres de ornamento.

carvalhos. Esta tintagem, que também era feita na Lusitânia, em Emérita (Mérida), foi, do mesmo modo, muito reputada (cf. Plinio, História Natural, IX, 127, 134,

141).

Tanto a cor púrpura como a escarlate eram, portanto, próprias de reis e de imperadores e, como diz Cataldo, adequadas uma e outra à rainha D. Leonor.

62 Viana pode ser, aqui, Viana do Castelo (manifestando-se, assim, a ideia de que a rainha era querida pelos seus súbditos, de norte a sul do pais) ou Viana do Alvito, no Alentejo.

63 Neste passo, por metonimia mitológica, "Musa" pode querer significar "poema", isto é, a divindade é nomeada em vez do domínio em que exerce a sua actividade, que é, no caso presente, a arte, a poesia, a literatura. O poema, inspirado pelas Musas, é enviado à rainha para falar pelo próprio poeta.

Além disso, temos, aqui, uma sinédoque (a parte pelo todo), uma vez que as Musas eram nove e vemos invocada apenas uma.

(24)

Então, em passo regular, demanda os mais notáveis palácios, onde permanece grande multidão de condes e grande multidão de duques.

E não te atemorize a fama da Rainha, nem a sua ingente realeza, mais digna das riquezas de Átalo64; tem um temperamento dócil aquela deusa a quem anseias dirigir-te e, feliz de ti, uma culta Camena65 é recebida com agrado.

Quando, finalmente, tiveres chegado às celestes acomodações de Leonor, baterás à porta, virtuosamente, com mão direita, duas ou três vezes. Logo que te ouça, o guarda de espaçoso palácio, como guia, de resto sereno, te indicará o caminho.

Distingui-Ia-ás, então, com os seus, sentada à mesa, depois de disposto o jantar e os sumptuosos manjares.

Prudente e respeitosa, não saúdes com cara triste e, habilmente, volta os olhos para os teus pés. Creio que te estenderá a mão direita: beijá-Ia-ás, então, inclinada para diante e com o joelho bem submisso 66.

Quando te for dada ocasião do falar por nós, de peito corajoso, profero as seguintes palavras:

« Salve, digna mãe do pio o nobre Príncipe, que, com o poderoso Rei, tens dois vinculos67Deus vos uniu por isto: é que, para uma donzela como tu, não existia nenhum outro Príncipe, e para tão grande Príncipe, nenhuma outra donzela.

Eis que, daqueles sucessos que a fama, até hoje, correntemente, já de ti celebrava, dás provas mais elequentes de que os que ela canta. Os homens

64 O adjectivo "attalicus,a,um" deriva do nome próprio Átalo, nome por que foram conhecidos vários reis de Pérgamo, dos quais, o mais famoso foi Átalo

m,

que é

dito ter inventado a arte de entretecer a roupa com ouro. Estes reis são conhecidos pelas suas fabulosas riquezas, que utilizaram na fundação e desenvolvimento da Biblioteca de Pérgamo, na construção de monumentos e, enfim, na protecção das artes e letras em geral; o adjectivo mencionado significa "próprio de. um Atalo, rico, esplêndido, fabuloso". Esta metáfora é corrente nos textos dos autores clássicos.

65 Temos de novo uma sinédoque (a parte pelo todo), uma vez que as Camenas, como veremos, eram nove.

Estas divindades romanas parecem ter sido, primeiro, divindades aquáticas, que tinham um santuário e uma nascente perto da Porta Capena Cuidavam das nascentes e dos poços, curavam doenças e prediziam o futuro; eram-lhes feitas libações pelas Vestais, com água e leite.

Mais tarde, nomeadamente desde Uvio Andronico, passaram a ser identificadas com as Musas gregas, protectoras das artes e das ciências.

Tal como acontece com "Musa" (cf. nota 63), também, aqui, temos uma metonímia mitológica, designando "Camena" a poesia, a arte. E esta afirmação de Cataldo tem fundamento, pois, como vimos, D. Leonor apreciava e protegia as artes.

66 Nestes quatro versos, Cataldo caracteriza, de alguma maneira, a sua poesia : respeitosa (VV. 21 e 22) e submissa à realeza (w.23 e 24).

Faz-nos entrever, além disso, um pouco do cerimonial da corte: quem se aproximasse da rainha, devia fazê-lo de olhos bruxos, humilde, mas não triste; devia beijar-lhe a mão direita, de joelho flectido, respeitosamente.

67 A rainha D. Leonor era , antes de esposa, prima directa do rei D. João II, pois era filha do infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V

(25)

CATALDO SíCULO E O MECENATO DA RAINHA D. LEONOR

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tecem admiráveis louvores da tua excelência; tu és, no entanto, mais ilustre pelos teus feitos.

Viera Parisio do Ocidente68, chegado de paragens sicilianas69, e consigo trazia obra polida10E ele, que havia de falar na presença de teu consorte, estava finne, preparado, quando tu apareceste, interessada, vinda de parte contrária

Começa ele e tu, gentilmente, dás mui sábios ouvidos. Tudo o que ele contava, ias tu anotando com mente hábil. Quando ele viu resplandecer a graça e o rosto sereno, imaginou estar na presença de uma deusa caida do céu e, quando te viu avançar um pouco, logo disse: Esta Rainha é Ca1iopell, do sagrado coro".

Assombrado, não soube o que dizia Olha, agora, para todos e pede, então, caindo em si, perdão pelo seu erro. E, para o redimir com uma dádiva maior, começa a compor sobre ti uma obra de grande vulto. Tudo aquilo com que a natureza o favoreceu, de talento ou de arte, esforça-se ele por manifestar naqueles poemas. Espero que não receie a argúcia dos poetas, nem o perspicaz juízo do honrado juiz.

68 O adjectivo "hesperius,a,um" pode significar "ocidental", referindo-se tanto à Itália e à Espanha, como ao remoto e mítico oeste. Do ponto de vista grego, "hesperius"

(palavra da mesma origem de "Hesperia", terra lendária que os Antigos situavam a oeste) refere-se à Itália; do ponto de vista romano, refere-se à Espanha.

Os autores clássicos uti1ízam este adjectivo aplicando-o tanto à Itália, como à Espanha Cataldo parece referir-se, nesta passagem, à Itália, donde vinha, se bem que, pelo trajecto que fizera, a Itália se lhe apresentasse, agora, o Oriente.

69 Nesta perifrase, Cataldo indica claramente a sua proveniência: vinha da Sicilia, donde era originário. É muito provável que esta perífrase seja também uma sinédoque e designe a Peninsula Itálica Mas podemos admítir que, antes de abandonar o continente (onde fizera os seus estudos), em direcção a Portugal, Cataldo tenha passado pela sua ilha natal (cf. Luis de Matos, "Nótulas, sobre o humanista italiano Cataldo Parisio Sículo", A Cidade de Évora, 35-36).

70 Trata-se, aqui, do adjectivo "leuis, e", isto é, "liso, polido, delicado, etc".

71 As Musas eram, como vimos já, em número de nove e os seus nomes conhecemo- -los já desde Hesíodo. As suas funções, porém, não estavam especificadas desde a sua origem, mas, em épocas tardias romanas, as Musas foram diferenciadas de acordo com as suas funções; assim, Ca1iope era a Musa da poesia épica; Clio, da história; Euterpe, das flautas; Terpsícore, da poesia lírica e da dança; Érato, da lírica coral, dos hinos liricos; Melpómene, da tragédia; Talia, da comédia; Polimnia, da arte mímíca, e Urânia, da astronomía

Ca1iope era, segundo Hesiodo, a principal dentre as nove irmãs (cf. Teogonia, v.79).

Nesta metáfora de Cataldo, a rainha assemelha-se a uma Musa inspiradora, mas não a qualquer uma das pertencentes ao sagrado conjunto: ela é Ca1iope.

Se bem que, por definição, Caliope seja a responsável pela poesia épica, alguns autores invocam-na como protectora da poesia lírica Cf. Horácio, Cannina ,

IIL

4,2).

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E daqu~ então, através de cidades hispânicas e italianas, serás considerada, por hispânicos e italianos, mais importante que as Amazonas72Contigo irá e contigo será considerado o Príncipe, esperança tua, esperança única do povo e esperança do pai.

Se nenhuma menção houver de ti no livro do Re~ a imensa glória deste Príncipe elevar-te-á aos astros. Esperamos que ele seja aquele que purifique o mundo com o seu nome e que, de novo, exceda, em excelência, os antigos bisavós.

Mais coisas canta o vate, uma só conta o narrador; cada arte desempenha a sua própria função. E, no entanto, ele não se afasta da verdade, seja o que for que componha em verso. Terá, por esta atitude, prémios do eterno louvor.

Disse, e se alguma falta cometi, admitindo-a, peço-te perdão: mais não posso dizer, impedido pela tua majestade».

De facto de saber latim

73,

algo mais há a dizer sobre a rainha. Com quem aprendeu esta língua, não o sabemos ao certo, mas supomos que com os religiosos que frequentavam a casa de seus pais, muito devotos, em Beja.

O domínio do latim não era de todo estranho entre as princesas e senhoras nobres da época. Sua prima Isabel, a Católica, com suas ftlhas, nomeadamente D. Isabel e D. Maria, esposas ambas de D. Manuel, dominavam-no.

74

72 As Amazonas constituiam um povo de mulheres guerreiras e caçadoras, que habitavam a norte, nas fronteiras do mundo conhecido. As suas divindades eram Ares e Artemis; as suas paixões, a guerra e a caça; as suas armas, o arco, o escudo, o machado e a lança.

Governavam-se sem a intervenção de homens e, para procriar, juntavam-se ciclicamente a homens de outras raças; dos filhos nascidos, conservavam apenas as raparigas.

Este povo, a quem recorreram alguns heróis lendários e que participou, com distinção, na guerra de Tróia, reveste-se, assim, duma auréola de grandeza, graças à sua autosuficiência e ao seu espírito combativo.

Por esta hipérbole, a rainha será, na afIrmação de Cataldo, considerada por todos - hispanicos e italianos - uma figura de maior grandeza que as próprias Amazonas.

73 Cataldo não poupava elogios a este aspecto da cultura da rainha. Leia-se a seguinte passagem da "Oração proferida por Cataldo à chegada da Príncesa Isabel a Portugal diante da porta da cidade de Évora", em tradução de M. Margarida da Silva, na obra acima citada:

"E tão grande a força do seu engenho tanto para interpretar como para ler os volumes das páginas sagradas e da lingua latina com uma admirável facilidade e velocidade na leitura, que se pensa ser, não leitora ou intérprete, mas mestra de intérpretes e leitores de obras."

74 Diz Carolina M. de Vasconcelos, em A Infanta D. Maria de Portugal e as suas damas, pág. 32:

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