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Língua Portuguesa: entre conceitos e preconceitos

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Academic year: 2021

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Língua Portuguesa:

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Professores,

Esse curso foi idealizado para permitir reflexões sobre alguns pontos que tratam do ensino da língua portuguesa, principalmente o “embate” entre norma culta e teorias da linguística. Por isso escolhi o nome “Língua Portuguesa: entre conceitos e preconceitos” pois, se por um lado há o discurso da necessidade de se preparar os alunos para o mercado de trabalho - e neste ponto surgem discursos sobre a importância do domínio da linguagem culta para o sucesso na carreira e, cientes de nossa missão, nossas aulas priorizam a gramática. Por outro lado, preocupados em não resvalarmos para o preconceito linguístico, discorremos sobre questões da linguística... Oscilando, assim, entre conceitos e preconceitos, talvez sem percebermos, muitas vezes, que o preconceito pode estar muito mais presente em nosso discurso do que gostaríamos.

Mas esses conceitos de escrita, envolvem outros de poder na sociedade e sempre estiveram entrelaçados na história das civilizações. A consciência da relação desses conceitos e da forma como eles afetam nossas vidas, leva ao aluno uma informação e formação que lhe conferem autonomia e visão crítica quanto à sua realidade linguística.

Este curso pretende atualizar e capacitar 40 professores de Língua Portuguesa e Literaturas e também da disciplina Linguagem Trabalho e Tecnologia ao propor 16 horas presenciais e 24 a distância, pelo Programa Brasil Profissionalizado.

Yara M. Denadai Golfi Graduada em Letras e Linguística pela Unicamp e Especialista em Literatura Brasileira

pela mesma universidade. Coordenadora de Projetos na Cetec Capacitações, e professora da Etec Polivalente de Americana.

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Palavras de chegada

Dificilmente algum pensador ou escritor seria capaz de exagerar o valor e a importância da linguagem verbal para a humanidade. Para ser um ser humano na acepção mais estrita de sua definição, o “verbo”, a “palavra”, é tão essencial quanto o próprio ar. Matéria-prima do pensamento, meio mais eficiente de comunicação entre as pessoas, forma mais elevada de expressão artística e intelectual, a linguagem verbal, apesar de reconhecida em sua essencialidade, é ainda um dos limites do nosso conhecimento. O que é a língua? Como funciona sua aquisição? Qual a sua gênese? São estas apenas algumas das perguntas mais genéricas que ainda estão por ser devidamente respondidas.

Quando, porém, o assunto é o ensino da língua, no nosso caso da portuguesa,há mais o que considerar. A gramática e as normas de escrita passam a funcionar como uma espécie de vade-mécum, uma Bíblia sobre o que é certo e errado em português. Nesse momento, um grande conjunto de preconceitos e mitos acaba funcionando como verdades de fácil assimilação pelo senso comum. E, por não serem neutros, carregam consigo formas de poder político, de prestígio social e perpetuam a manutenção de duras injustiças sociais.

O educador, principalmente os professores de língua e literatura, é então convocado a compreender tanto o funcionamento rigoroso da língua — não apenas as regras gramaticais — quanto o modo como os preconceitos linguísticos se propagam e distorcem a formação dos nossos jovens. Afinal ele, como intelectual e pesquisador, é o principal agente nesse jogo da educação e formação de futuras gerações de profissionais e cidadãos, que precisarão da língua para se expressar e para participar ativamente da vida política e social deste país.

Prof. Dr. José Carlos Siqueira E-mail: jsiqueira@usp.br

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1. Brevíssima história da língua portuguesa

Um aspecto pouco lembrado nas discussões sobre a língua portuguesa, em espe-cial nas relacionadas ao ensino, é o fato de que toda a língua possui uma história, sempre muito longa e rica. Não se trata aqui da história das palavras, a conhecida etimologia, mas da grande narrativa de como um idioma se constituiu, passou por diversas fases e chegou até nós mais rico ou mais modificado, mas sempre funcio-nal e expressivo. Conhecer a história de uma língua, mesmo que de forma breve, é obter uma nova perspectiva sobre “o certo e o errado” postulado pela gramática e entender como as normas são relativas e... mutantes.

Assim, estudar a história da língua portuguesa é fazer uma arqueologia linguística, é o desenterrar de línguas que se sobrepuseram na passagem do tempo e que possibilitaram um idioma de riquezas e complexidades expressivas. Dizer somente que o português descende do latim significa empobrecer essa história e não apon-tar para as lutas entre línguas e dialetos que concorreram para a sua formação. Nossa intenção é dar neste breve excurso algumas indicações das tensões e con-flitos da constituição do português moderno.

Em busca de um eixo direcionador da abordagem histórica, cabe-nos situar pri-meiramente a introdução do latim na Península Ibérica para então falarmos das línguas anteriores e posteriores que tiveram influência nesse caminho. O latim foi introduzido durante as Guerras Púnicas com a conquista da Espanha pelos roma-nos em 197 a.C. Em toda a Península, o latim-vulgar tornou-se a língua comum com exceção da região basca. Os fatores que contribuíram para a fixação dessa língua foi o poderio do Império Romano, senhor absoluto da Europa nos séculos seguintes, o consequente serviço militar exigido pelos conquistadores, as escolas instaladas na época e a posterior pregação do cristianismo.

A divisão político-geográfica imposta pelos romanos à região começou a dar con-tornos àquilo que se tornaria Portugal e à sua língua. Augusto em 27 a.C. denomina de Lusitânia a parte ocidental da Península Ibérica, que compreendia também a região da Gallaecia, berço da língua portuguesa.

A pré-história da língua portuguesa

Logicamente, a região peninsular não estava desabitada quando os romanos che-garam. Antes da conquista, a península fora ocupada por dois povos: o

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mediterrâ-de 1.100 a.C. No período do século VIII ao III a.C., os celtas provenientes da Gália e do sul da Alemanha deram origem aos celtiberos. Estes últimos possuíam como língua o celto-ibero, proveniente do tronco indo-europeu, e que é considerada a língua de substrato do português, ou seja, o falar existente antes da chegada do latim à região.

O celto-ibero deixou alguns vestígios em nossa língua: palavras como cama, barro e barranco são creditadas a essa origem. No entanto, a força do latim levou à extinção dessa língua que não logrou deixar uma influência visível no português.

Após a queda do Império Romano, a área ibérica sofre uma série de invasões de bárbaros europeus. Do século V a VIII d.C., sucederam-se na península os alanos, os vândalos, os suevos e os visigodos. Estes povos não deixaram uma marca impor-tante em termos de cultura e língua, mas alguns léxicos ainda permanecem no nosso idioma: britar (suevo) e ganso, roupa, espeto e guerra (visigodo). As línguas bárbaras fazem parte daquelas denominadas de superstrato da formação portuguesa.

A história do português depois dos romanos

Outra língua de superstrato é o árabe. Falada pelos muçulmanos que conquistaram a Península Ibérica em 711, o árabe inicia um capítulo surpreendente na história de portugueses e espanhóis. Poderosos e arrojados, os árabes dominam toda a região, cravando sua posição mais profunda na Europa e que foi mantida duran-te cinco séculos. Os mouros, como eram chamados pelos ibéricos, difundem sua religião, sua cultura e, principalmente, a sua língua. Durante esse período, o árabe

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convive nas regiões dominadas com os dialetos moçárabes, que são dialetos de origem românica falados por populações cristãs remanescentes.

A influência muçulmana foi menos sentida na região norte da península, o que pos-sibilitou a formação de movimentos de resistência cristã, que deram nascimento aos reinos ibéricos, entre eles Portugal. Iniciando uma grande ofensiva no século XI, paulatinamente as regiões do Douro, Tejo e, finalmente, foram sendo recupera-das dos árabes, compondo as atuais divisas de Portugal. Nesse movimento de norte para o sul, o dialeto galego-português de origem latina foi sendo levado e substituiu tanto o árabe quanto os falares mocárabes.

O galego-português constituía, ao lado do castelhano e do catalão, as línguas de resistência dos reinos cristãos do norte. No processo de reconquista, tornaram-se as línguas principais da região ibérica. Assim, o galego-português assumiu a função de língua-comum no reino de Portugal a partir do século XIII (veja o Mapa 1).

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Na tabela, a síntese do desenvolvimento linguístico exposta até aqui: Quadro 1. Formação da Língua Portuguesa Língua de substrato Língua de origem Línguas de superstrato 1a fase Língua de superstrato 2a fase Celto-ibero (século VIII a III a.C.) Herança: cama, barro, barranco, várzea, mato, bezerro, bruxa. Latim-vulgar (século II a.C. a V d.C.) Suevo Visigodo (século V a VII) Herança: trégua, luva, roupa, espeto, ganso, britar, agasalhar. Árabe

(século VIII a XIII)

Herança: álgebra, cifra, zero,

almanaque, alquimia, elixir, álcool, xadrez, azar, alfândega, alfaiate, açúcar, alface, arroz.

Vejamos agora a evolução do galego-português para a língua portuguesa propri-amente dita. Originado na região ao norte do Minho, denominada Galiza, o gale-go-português desenvolveu-se do latim-vulgar similarmente ao castelhano e o catalão já citados. Com a reconquista e a separação da Galiza do reino de Portugal, a língua galaica-portuguesa sofre um desdobramento que dá surgimento ao portu-guês e ao galego, dialeto falado no noroeste da Espanha.

Em Portugal, do século XIII a meados do XIV, o galego-português é o idioma oficial da jovem nação. Era a língua-poética da península e os primeiros textos escritos datam do final do século XIII. Por causa da transferência do centro político e cultural do reino para o sul, com a troca da capital para Lisboa, o galaico-português sofre influências determinantes. Perdendo o contato com sua área de origem, a Galiza, agora sob o domínio espanhol, essa língua recebe importantes inovações, cujas gêneses são efeitos do Renascimento, das novas escolas literárias, do papel da Contra Reforma e do início da expansão ultramarina. Desta forma, o galego-por-tuguês de Portugal ganha uma feição própria e transforma-se numa nova língua: o Português.

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O galego-português: a língua poética da Península Ibérica Os primeiros registros escritos da Literatura Portuguesa são em ver-so. As produções do primeiro período medieval, que se estende dos séculos XII ao XV, correspondem, como sabemos, ao movimento literário conhecido por Trovadorismo.

A expressão deriva do verbo provençal trobar, que exprimia o fazer poético da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar. Em consequência, chamavam-se trobador o poeta que criava, instrumen-tava e, por vezes, entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas e divulgadas pelo Segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte com o seu Jogral (dançarino, acrobata, mímico). Chamava-se Menestrel, o músico.

Um dos mais notáveis trovadores medievais foi, por certo, o rei D. Di-nis (1261-1325). As suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da poesia no sentido da apropriação do instrumento verbal e da sua adequação ao dizer poético. D. Dinis leva a bom termo o desejo de todo trovador medieval, a saber, a plena realização da aliança en-tre motz el son, enen-tre a palavra e música. Leia-se:

Quer’eu en maneyra de proençal fazer agora hun cantar d’amor, e querrei mûit’y loar mha senhor, a que prez nen fremosura non fal, nen bõdade; e mays vos direy en: tanto a fez Deus comprida de ben que mays que todas las do mundo val.

(Extraído de FURLAN & SIQUEIRA, Literatura Portuguesa. Curitiba: IESDE Brasil, 2008, p. 7-8.)

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História do português do Brasil:

a contribuição indígena e negro-africana

Com a expansão ultramarina portuguesa, iniciada no século XV, nossa língua foi levada para três outros continentes: primeiro para a África, depois Ásia e, por fim, para as Américas. No Brasil, a língua portuguesa dá início a um novo e vigoroso processo de transformação. Como ocorreu na Península Ibérica, aqui também já havia outros povos antes da colonização europeia. No caso, os indígenas falavam diversas línguas, sendo o tupi uma das mais difundidas, servindo por vezes como língua comum (ou seja, usada como língua de contato entre diferentes tribos e nações indígenas).

O tupi, no início da colonização, chegou mesmo a ser usado como a base de uma língua geral, isto é, uma língua criada a partir de outras e utilizada para facilitar a comunicação entre grupos de falas diferentes. Essa língua geral, cuja gramáti-ca vinha do português, desempenhou um papel importante durante mais de dois séculos, mas depois acabou extinta devido à imposição do próprio português. Com o grande aumento do tráfico de escravos a partir do século XVII, graças ao sucesso da produção de cana-de-açúcar, o português no Brasil passou a receber a rica influência de uma série de línguas africanas. Tal influência veio principalmente da língua iorubá, falada pelos escravos da Nigéria, e do quimbundo angolano. Assim, as contribuições vindas do tupi e de outras línguas autóctones, chamadas indigenismos, e as das línguas africanas, denominadas africanismos, passaram a modificar algumas características do português europeu e favoreceram o início da constituição de uma variante brasileira do idioma lusitano. A importância desse processo pode ser conferida nesta declaração da linguista brasileira Margarida Petter sobre as palavras de origem africana:

Embora fossem “termos estrangeiros” do ponto de vista do português eu-ropeu, constituíam, na perspectiva brasileira, ao lado dos indigenismos, os brasileirismos, e contribuíam com sua parcela de originalidade para a defesa do argumento da autonomia do português do Brasil. As unidades lexicais de origem africana e indígena passam a ser percebidas como autóctones pelos defensores do PB [Português do Brasil] (NUNES & PETTER, 2002, p. 147).

Em outras palavras, a integração de palavras de origem indígena e africana ao português falado no Brasil foi um dos fatores que levaram à identidade linguística dos brasileiros, o que constitui um dos passos fundamentais para a construção da identidade nacional.

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Quadro 2. Contribuições de línguas africanas para o português do Brasil

Africanismos

Do quimbundo (Angola) Do iorubá (Argélia) Batuque

cachimbo caçula

cafundó (lugar longínquo) capanga carimbo cochilar dengo moleque samba tanga xingar abadá abará acarajé axé Exu Iansã vatapá

Para saber mais

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Padrão-Livraria Editora Ltda., 1985.

FURLAN, Stélio & SIQUEIRA, José Carlos. Literatura Portuguesa. Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2008

ILARI, Rodolfo. O português da gente, a língua que estudamos, a língua que fala-mos. São Paulo, Editora contexto, 2011

NUNES, J. Horta & PETTER, M. M. T. (orgs.). História do saber lexical e constitui-ção de um léxico brasileiro. S. Paulo, Humanitas, Pontes, 2002.

SPINA, Segismundo (org.). História da língua portuguesa, São Paulo: Ateliê Edito-rial, 2008.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Tradução de Celso Cunha. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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2. O papel da Linguística: a língua e a sociedade

Um dos objetivos da seção anterior era deixar claro que as línguas têm uma história e que suas estruturas, vocábulos e pronúncia sofrem alterações ao longo do tempo. Outro fato importante, indicado ao final do texto, foi de que há um nítido processo de diferenciação entre o português europeu e o brasileiro, a ponto de hoje já se falar até em dois idiomas distintos — o que, talvez, ainda não seja o caso. De qualquer forma, com o conhecimento histórico da Língua Portuguesa, começa-se a pôr em xeque algumas das “verdades” pré-estabelecidas pelo senso comum que vigoram em nossa sociedade: não existe “uma” língua portuguesa, seja historica-mente, ou no presente. Trata-se de um sistema que se constrói e se modifica com o passar do tempo, e que ganha novas características conforme o lugar e a situação social em que se insere.

E, mais importante, também não existe uma língua “correta”, pois, como se sabe, ela passa por frequentes alterações, e o que era “certo” em determinado momen-to, passa a não se assim considerado em outro. É interessante notar que, já no século XIX, tais ideias sobre o desenvolvimento e mudanças das línguas já haviam sido apresentadas pelos neogramáticos, uma linha de pesquisa científica que dará origem à linguística moderna — estes linguistas precisaram quebrar a resistência da ideia dominante na época de que existia uma língua original (e correta) que ia se degenerando com o tempo.

Frente a essas considerações, cabe aqui uma análise sobre aspectos da língua portuguesa no presente e em nossa comunidade.

Há uma anedota, bastante difundida em Portugal e no Brasil, que começa assim:

Um turista brasileiro, perdido em Lisboa, necessitava urgentemente chegar à estação de trem. Cruzando com um senhor elegantemente vestido à moda lusitana, ele pede orientação:

— O senhor poderia me dar uma informação? — Ora, pois, pois — aquiesce solicito o português.

— Onde fica a estação ferroviária onde eu posso pegar o trem para Cascais? —Tu és brasileiro, não és? — retruca o senhor. Meio constrangido pela obvie-dade da pergunta, o brasileiro responde:

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— Olha que está claro, ó menino. É porque cá em Portugal não se fala “es-tação”, nem “trem”! — explica triunfante o lusitano — diz-se aqui “gare” e “comboio”.

Já pouco à vontade, o turista aceita o jogo:

— Me perdoe, não sabia. Então me diga: onde fica a gare na qual posso pegar o comboio que vai para Cascais?

— Não te posso dizer.

Perplexo, o brasileiro indaga o porquê e o homem esclarece: — Eu tambaim não sou de Lisboa. [...]

O fim da história não é adequado a este espaço, mas a pequena joia da criatividade popular ilustra com perfeição um conceito fundamental no estudo e compreensão das línguas. Porém, antes da apresentação desse conceito, façamos uma rápida análise do episódio narrado.

1. As duas personagens, apesar de originárias de países distantes, usam o mesmo sistema linguístico e se comunicam com clareza, conforme se demonstra pelos intercâmbios pertinentes de fala.

2. Apesar da comunidade de língua, um conjunto de componentes específicos na fala de cada um proporciona uma riqueza de informações de um sobre o outro, cuja consciência é plena por parte dos interlocutores.

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nítida hierarquia entre elas : o português, em sua condição de nativo, posi-ciona-se acima do outro, agora colocado como estrangeiro — isso apesar da comunidade de língua.

Língua, norma e fala

A anedota e sua análise descortinam para nós uma instância da linguagem ver-bal, capaz de explicar a convivência no mesmo ato de conversação de uma forte unidade (a comunidade de língua) e uma clara diferença (os componentes específi-cos). O linguista Eugenio Coseriu1 denominou de norma este conceito, cuja origem está na verificação de que a divisão estabelecida por Saussure entre langue e pa-role não dava explicava uma série de fenômenos da linguagem, exatamente como o exposto na anedota.

1 Eugenio Coseriu (1921-2002) foi um linguista romeno especializado em filologia românica. É um dos maiores expoentes da linguística do século XX.

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Sobre Ferdinand de Saussure

Ferdinand de Saussure nasceu em Genebra, em 26 de novembro de 1857. Sua Mémoire sur le systeme primitif des voyelles dans les langues indo-européennes apareceu em Leipzig, em 1878. Em 1880, Saussure estabeleceu-se em Paris, onde frequentou os cursos de Mi-chel Bréal e, já na Escola de Altos Estudos, assistiu aos cursos de iraniano de J. Darmesteter, de sânscrito de A. Bergaigne e de filologia latina de L. Havet.

Em 1881, Bréal cedeu-lhe seu curso na Escola e assim, com vinte e quatro anos, Saussure foi nomeado “maitre de conférences de gothique et de vieux-haut allemand”. Era a primeira vez que se en-sinava linguística numa universidade francesa e seus cursos ficaram famosos. Entre outros, foram seus alunos, em Paris, E. Ernault, Mau-rice Grammont, Paul Passy, Antoine Meillet; e em Genebra — para onde Saussure se transferiu em 1891 e onde deveria lecionar até sua morte, ocorrida em 1913 —, na cadeira de linguística, especialmente criada para ele, frequentaram suas aulas S. Karcevskij, A. Riedlinge, P. F. Regard, Ch. Bally e A. Sechehaye, sendo os dois últimos os re-sponsáveis pela edição, em 1916, três anos decorridos da morte de Saussure, do seu monumental Cours de Linguistique Générale.

(Extraído de LOPES, Edward. Fundamentos da Linguística Contemporânea. São Paulo, Cultrix, 2000, p. 72.)

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Para maior clareza do que desejamos expor, retomemos a teoria saussuriana. O linguista genebrino postulava, para a ciência Linguística, uma importante sepa-ração entre os fatos da linguagem verbal: de um lado ficariam os fatos abstratos e sociais pertinentes à linguagem — definidos como língua — e de outro, os fatos concretos e individuais — a fala. Com essa análise, Saussure propôs, como objeto da Linguística, a língua: “de fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito” (Saussure, 2000, p. 17). Já a fala, cujas “manifestações são individuais e momentâneas” (ibid., p. 28), não seria um objeto preciso de uma ciência, apesar de passível de ser estudado: “pode-se, a rigor, conservar o nome de Linguística para cada uma dessas duas disciplinas [língua e fala] e considerar uma Linguística da fala. Será, porém, necessário não confundi-la com a linguística propriamente dita, aquela cujo único objeto é a língua” (ibid., p. 28). Se num primeiro momento essa divisão foi altamente produtiva e estruturadora da moderna Linguística, posterior-mente pesquisas demonstraram sua insuficiência. A seguir, um resumo da teoria saussuriana, de forma sistematizada:

Síntese da teoria central de Saussure

Para Saussure, uma marca linguística “não é um elo entre uma coisa e um nome, mas entre um conceito [significado] e um padrão sonoro [significante]”. Um signo ganha seu sentido não por se referir a uma coisa, mas por diferir de outros signos (e.g., “quente” não é “frio”, “morno”, etc., nem é “pente”, “dente”, “gente”, etc.). O que confere ao signo um significado específico é seu lugar em um sistema de signos do qual ele difere. [...]

O sentido de um signo ou “significante” para Saussure não é alguma coisa real à qual o signo se refere, mas, sim, um conceito, ou “sig-nificado” que passou a ser arbitrariamente associado a ele. É apenas por uma convenção arbitrária que as letras D-e-u-s signifiquem uma entidade divina e não outro ente. Uma palavra, afinal de contas, não se assemelha a alguma coisa, mas a uma outra palavra (as poucas exceções, geralmente exemplos de onomatopeias, provam a regra geral). “Gato” significa o que significa porque não é “mato”, “fato” ou “bato”, e porque não é “cachorro”, “girafa”, “jacaré” ou “ornitorrinco”.

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Em outras palavras, “gato” é um signo arbitrário que assume seu sig-nificado com base em seu lugar dentro de um sistema de diferenças linguísticas. [...]

Saussure distinguiu o sistema da língua (langue) dos atos específicos do dizer ou falar (parole). Derrida observa que a fala e pensamen-to são sempre secundários e derivativos; o sistema de linguagem é necessariamente anterior. Sem a linguagem, o pensamento é caótico: “Nenhuma ideia é preestabelecida, e nada é distinto antes da intro-dução da estrutura linguística”. Para Saussure, a estrutura da langue é arbitrária; línguas diferentes empregam conjuntos diferentes de con-trastes. As fronteiras entre as cores verde, azul, cinza e marrom, por exemplo, posicionam-se de maneira diferente em galês e em inglês. Em galês, glas (azul) inclui matizes que os falantes de inglês chamari-am de verde ou cinza. Os termos para cores, como a linguagem de maneira geral, formam um sistema de diferenças que os falantes ex-perienciam como “naturais”, mas que, na verdade, são arbitrárias e convencionais. O mundo — a soma total de categorias, distinções e conexões — não é dado, mas escrito. O aprendiz de uma língua, diga-mos, uma criança, aprende um conjunto de conceitos diferenciadores “que identificam não entidades dadas, mas significados socialmente construídos”.

(Extraído de VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? S. Paulo: Vida Acadêmica, 2005, p. 73.)

Coseriu, em um dos estudos incluídos no livro Teoria da Linguagem e Linguística Geral (1979), faz um histórico das investigações que resultaram numa crítica ao modelo dicotômico de Saussure, no qual frisa importância dos estudos fonológicos para tanto. Sintetizemos os resultados de Trubetzkói, citados por Coseriu:

No capítulo acerca da fonologia e fono-estilística [dos Princípios de Trubetz-kói], indica-se que ocorrem nas línguas realizações acústicas particulares de certos fonemas, que caracterizam o falar das várias gerações, ou dos dois

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guísticos; entretanto, não são individuais, não são momentâneas e ocasionais, mas normais e constantes na expressão de grupos humanos mais ou menos amplos” (1979, p. 51).

Acompanhando o raciocínio do linguista romeno, percebemos um flagrante con-flito com a definição de Saussure para o objeto da Linguística: temos, através de Trubetzkói, uma situação clara em que um fato de linguagem verbal é social e con-stante, mas não participa da unidade e integralidade da língua enquanto sistema. Apesar de aqui termos apresentado apenas um trabalho de fonologia como exem-plo que contraria o binômio língua-fala, Coseriu arrola ainda pesquisas em vários campos e conclui que essa situação, verificada na fonologia, ocorre em todos os níveis de articulação da língua. Vamos aproveitar o exemplo anedótico, anterior-mente exposto, para mostrar o essa generalização.

No nível fonológico, escolhemos a expressão tambaim, usada pelo personagem português em sua última intervenção - não fizemos a transcrição fonológica para que não se perdesse o encanto narrativo da historieta. O brasileiro, que utiliza a realização também, não teve dificuldades em entender seu significado, creditando a diferença à origem européia do seu interlocutor.

No nível morfológico, podemos escolher a conjugação dos verbos, pelo lusitano, na 2ª. pessoa do singular para referir-se ao seu colocutor, fórmula em desuso no Brasil, inclusive na escrita.

No nível sintático, apontamos a colocação do pronome átono pelos personagens: enquanto o brasileiro prefere a próclise em qualquer situação, o português se guia pelas normas canônicas, usando próclise e ênclise de acordo com a “norma” culta. No nível semântico, selecionamos a expressão “menino”, usada pelo senhor português (“olha que está claro, ó menino”), que no Brasil não tem a mesma conotação ali empregada, sendo preferidas as formas “meu caro”, “amigo” etc. No nível lexical, há o próprio foco da anedota, que são os pares estação-gare e trem-comboio, léxicos usados por brasileiros e portugueses, respectivamente.

A liberdade que a língua nos dá

Fizemos todo esse percurso para demonstrar a pertinência da afirmação sobre a insuficiência explicativa da polarização língua-fala e a necessidade de uma terceira instância, capaz de acomodar os fatos sociais da linguagem, mas que não partic-ipam do sistema de invariantes da língua. Esse tertius foi esboçado por Martinet

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e Brøndal como um sistema a mais na teoria língua-fala de Saussure (cf. Coseriu, 2000, p. 53-54), solução não conveniente, segundo Coseriu, para manter as vir-tudes do esquema de Saussure e, ao mesmo tempo, ser mais explicativo. Para Coseriu, o conceito de língua como um fato social e abstrato era capaz de permitir em seu seio outro nível de abstração, mais dinâmico e fluido, a norma, que sem ser mais um sistema ou uma oposição à língua, estivesse contido na própria língua. Esmiuçando a proposta do pesquisador romeno, podemos dizer que a língua se define por meio de diversas perspectivas, e três instâncias da linguagem auxiliari-am nessa definição: o falar, a norma e o sistema. O falar é a realização concreta da linguagem verbal, individual e momentânea. A partir de seu registro, num primeiro esforço de abstração, subtraindo-se tudo o que é subjetivo, original e expressão individual, encontra-se a norma: modelos sociais produzidos e preservados no seio da comunidade, ponto de partida para que o indivíduo possa criar sua expressão própria. Num segundo momento de abstração, excluindo da norma aquilo que é repetitivo, tradicional e não distintivo na funcionalidade linguística, chega-se ao sistema, instância funcional nas quais as invariantes estão definidas em seus va-lores. É o sistema que sustenta as possibilidades da norma e do falar, e garante a comunicação entre indivíduos de normas diferentes, como no caso de nossa ane-dota. Num esquema gráfico sugerido por Coseriu, há:

fala norma sistema

Com esses conceitos articulados pela relação de inclusão, a língua pode então ser definida de várias maneiras, conforme o ponto de vista que se quer privilegiar:

a) Se a oposição se dá entre sistema e realização, a língua se define como o sistema e a fala como o conjunto norma e falar.

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Coseriu não apenas construiu uma teoria mais consistente para explicar os fatos da linguagem, como também preservou, no que tinha de basilar e produtivo, os con-ceitos de Saussure, conseguindo com maestria equilibrar no esquema dicotômico

língua-fala uma estrutura tripartite: falar-norma-sistema.

Voltando à análise feita no início sobre os falantes da história cômica, a aparente contradição verificada entre a possibilidade de comunicação e a percepção das diferenças de fala, capazes de alterar o comportamento das personagens, tem uma explicação satisfatória no conceito norma: a sustentação da comunicação é garantida pelo mesmo sistema, que ainda possibilita as criações da expressividade dos grupos representados pelo turista brasileiro e pelo senhor português (suas nor-mas), além dos próprios estilos individuais de cada interlocutor (as falas propria-mente ditas).

Neste ponto, interessa explicar como se dá o processo pelo qual se constrói a norma e o estilo pessoal. Ainda segundo Coseriu, o sistema é, na verdade, fonte de uma grande liberdade de criação linguística. Estabelecendo os parâmetros do que pode e do que não se pode fazer dentro de uma língua, antes de inibir o falante, concede a ele uma infinidade de possibilidades expressivas, mantendo, ainda assim, reais condições de comunicação. Numa figura altamente ilustrativa, Coseriu (2000, p. 74) compara o sistema ao conjunto tela e tintas disponíveis a um pintor: não se pode nem ultrapassar os limites da tela, nem usar tintas não disponíveis. Apesar disso, as possibilidades de criação são infindas. No sistema, ocorre o mesmo, fonemas, morfemas, regras sintáticas, léxico etc. estão dados como invariantes da estrutura linguística, a partir dos quais todo um universo de expressão é possível. O que lim-itará as condições expressivas é exatamente a norma, que por ser constituída por modelos comunais e tradicionais, constrange o falante a usá-los, marcando assim sua filiação ao seu grupo social, regional, geracional, sexual etc. É o que ocorre com nossos personagens em Lisboa, a percepção desses esquemas normativos gerou uma série de informações que definiu então a posição de cada um deles na relação experimentada (“és brasileiro”, “o senhor é português”).

Entretanto, a realização concreta da linguagem traz mais um componente ao pro-cesso aqui descrito. Se o sistema gera possibilidades e a norma exige fidelidades, o falante tem a condição de escolher a cada momento seguir a norma ou rompê-la, conforme suas necessidades expressivas. Em nossa piada, o que se nota é, a princípio, o desejo de marcar identidades nacionais, pois a norma parece aos pro-tagonistas um valor importante naquele instante. Assim, a insistência em revelar

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os padrões normativos pelo senhor português e a concessão por parte do turista em aceitá-los, revela a adesão às normas como valor expressivo. Apesar disso, cada falante possui sua própria norma individual, ou seja, na fórmula utilizada por Genouvrier (1974, p. 394): “... definir o estilo como ‘a atitude adotada pelo utiliza-dor’ em face do ‘material que a língua lhe fornece’ (Marouzeau), como marca de uma reação subjetiva para com as ‘palavras’”. O que vale dizer que, mesmo man-tendo as normas sociais a que está sujeito, o falante constrói um padrão próprio, fruto de suas escolhas, e que define sua fala como pessoal.

As escolhas determinantes do estilo pessoal são operadas por procedimentos afe-tivos, definidos por R. –L., Wagner como “aquilo que exprime como eles (os agen-tes da mensagem) reagem em face de uma situação” (Genouvrier, 1974, p. 395). O locutor procura com suas escolhas marcar sua posição em face ao que está sendo dito e, para tanto, ele pode inclusive romper com a norma social por ele utilizada — nas palavras de Leo Spitzer, o estilo é o “desvio individual em relação a uma norma” (Genouvrier, 1974, p. 397). Recorrendo ao nosso exemplo, a última frase do personagem português, “eu tambaim não sou de Lisboa”, a colocação do advér-bio “também” é uma escolha de caráter pessoal, já que havia outras possibilidades sintáticas. Certamente a marca que ele quer dar ao seu enunciado está sobre sua pessoa: o importante é que ele não é daquele lugar, ele no fundo encontra-se na mesma situação de estrangeiro como o brasileiro.

Encerramos aqui a participação de nossos conversadores luso-brasileiros, utiliza-dos para amparar exemplarmente a análise do conceito de norma e seus coad-juvantes na teoria organizada por Coseriu, cujo valor explicativo e produtividade esperamos que tenham ficado claros neste texto.

Para saber mais

Coseriu, Eugenio. Teoria da linguagem e Linguística Geral. R. Janeiro: Presença, 1979.

________. Lições de linguística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio - Século XXI. R. Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

GENOUVRIER, E. & PEUTARD, J. Linguística e ensino do Português. Coimbra, Al-medina, 1974.

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3. O conhecimento da língua

e a resistência social

Enfatizamos o quanto é necessário ser rigoroso e lógico no estudo da língua: ela tem uma história absolutamente rica e complexa, e diante do sistema língua, con-forme definido por Saussure, não é qualquer gramática que dá conta de sua es-trutura e funcionamento. O que ocorre no Brasil de hoje - e nos restringiremos ao nosso país, pois é o que nos interessa - é que toda essa complexidade tem sido descartada por uma concepção simplória sobre o que é o Português e de como deve ser ensinado. O importante linguista, o prof. Carlos Alberto Faraco, já havia denunciado essa situação no artigo de opinião:

GUERRAS EM TORNO DA LÍNGUA Carlos Alberto Faraco

Talvez não seja exagero dizer que para boa parte das pes-soas soa estranha a afirmação de que as línguas humanas são objeto de ciência. Nor-malmente acredita-se que os velhos compêndios gramatic-ais contêm tudo o que há para dizer sobre uma língua. Há, in-clusive, uma reverência quase religiosa ao texto das gramáti-cas. Ao mesmo tempo, o sen-so comum recobre a língua com um conjunto de enuncia-dos categóricos (não demon-strados) que constituem um poderoso discurso mítico de ampla circulação social. No entanto, desde o fim do

século 18, vem-se construin-do um saber científico sobre as línguas humanas. Essa ciência, a linguística, já está solidamente estabelecida nas universidades do mundo todo e vem acumulando um saldo apreciável de observações e análises que corroem até o cerne tanto a reverência quase religiosa às velhas gramáticas quanto o discurso mítico do senso comum.

A mesma aventura científica moderna que redesenhou rad-icalmente nossa compreensão dos fenômenos físicos, bi-ológicos e sociais também reorganizou nosso modo de apreensão dos fenômenos linguísticos. Apesar disso, a linguística (e aqui nos interessa discutir só o caso brasileiro),

de modo diferente de outras ciências, não conseguiu ainda ultrapassar minimamente as paredes dos centros de pesqui-sa e se difundir socialmente para fazer ressoar o discurso científico em contraposição aos outros discursos que dizem a língua no Brasil. O claro antagonismo que há entre esses dois conjuntos dis-cursivos ainda não se transfor-mou numa “agonística”, isto é, os discursos conflitantes ainda não se confrontam de fato no espaço público. Em conse-quência, as pessoas em geral não têm acesso a uma crítica ao dizer mítico sobre a língua e este, então, continua a re-inar soberano. Em termos de língua, ainda vivemos cultural-mente numa fase pré-científica

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e, portanto, dogmática e ob-scurantista.

Se pensarmos que a questão da língua no Brasil não é uma questão apenas linguísti-ca, mas, antes de tudo, uma questão política, uma questão que interessa à “pólis” como um todo, na medida em que ela atravessa diretamente e afeta profundamente inúmeras situações sociais (bastaria lem-brar aqui os efeitos deletérios dos preconceitos linguísticos nas nossas relações sociais; e, em particular, na educação linguística que oferecemos a nossas crianças e jovens), fica evidente que está mais do que na hora de instaurar, no es-paço público, um indispensável embate entre os múltiplos dis-cursos que dizem a língua no Brasil.

Contudo parece que estamos ainda longe de alcançar esse ideal democrático. Depois de 40 anos de sua introdução oficial nas universidades bra-sileiras, a linguística perman-ece invisível e inaudível para a sociedade em geral. E isso apesar dos seus expressivos resultados, que incluem, por exemplo, um impressionante acervo de descrições do

por-linguística de um país em que se falam perto de 180 línguas, somando-se ao português as línguas dos outros grupos europeus e asiáticos que par-ticiparam da colonização, e, é claro, as línguas indígenas. Os linguistas brasileiros têm produzido também uma substanciosa crítica dos diz-eres míticos que enredam a questão da língua no Brasil e das suas trágicas consequên-cias: temos mostrado quão esquizofrênica é a sociedade brasileira quanto à questão da língua; temos combatido os arraigados preconceitos lin-guísticos que afetam tão insid-iosamente as nossas relações sociais; temos denunciado a miséria da educação linguísti-ca que se oferece na escola brasileira.

[...]

Pode-se concluir daí que, para a sociedade brasileira, não há propriamente uma questão linguística. Pode-se concluir mais: que o modo científico de dizer a realidade linguística na-cional não conseguiu ainda se fazer ouvir a ponto de colocá-la como uma questão concreta sobre a mesa. Apesar de to-dos os problemas linguísticos

É visível, por outro lado, que nossa intelectualidade, pelo menos aquela que circula pela mídia, desconhece o discurso científico sobre a linguagem verbal. O linguista Sírio Pos-senti, da Universidade Estad-ual de Campinas, em seu re-cente livro “Mal Comportadas Línguas” (Criar Edições), dá alguns exemplos bem interes-santes desse desconhecimen-to. Em geral, um intelectual da área de ciências humanas e sociais no Brasil não inclui a questão da língua como uma de suas questões críticas e, paradoxalmente, quando fala da língua, apenas se faz por-ta-voz das matrizes discursiv-as do senso comum.

[...]

De Jô Soares, Sírio Possenti, no livro citado, colecionou uma pérola sobre as línguas africa-nas, que, segundo ele, seriam fáceis de aprender porque têm poucas palavras e porque essas poucas palavras costu-mam ter muitos significados. Aparentemente uma asneira na boca de um barão douto (afinal, Jô Soares estudou na Suíça, fala fluentemente várias línguas e, portanto, não pode ser listado entre os

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excluí-ficientemente rico e em todas elas as palavras sempre têm muitos significados. Contudo, como bem destaca Possenti, antes de uma asneira, é um grosseiro preconceito linguísti-co e cultural que, em outras circunstâncias, atingiria, sem maiores cerimônias, alguns modos brasileiros de falar o português, com todas as trági-cas consequências disso. [...]

Já o projeto do deputado Aldo Rebelo [de proibir os estrangei-rismos na língua portuguesa] teve um mérito interessante: pôs os linguistas brasileiros em pé de guerra. Entendeu-se que era uma excelente opor-tunidade de avançarmos em direção a um rico confronto, no espaço público, sobre a questão linguística brasileira. Contudo nossa grita

general-izada não tem tido nenhuma ressonância: o deputado conti-nua nos ignorando e, fechado em copas, apenas repete sua preconceituosa e equivocada ladainha. A imprensa, por seu lado, não enxerga os linguistas como contendedores dessa batalha e, portanto, não busca ouvir sua voz. Nesse sentido, é interessante fazer referên-cia aos editoriais da grande imprensa sobre o tal proje-to: a maior parte fez críticas a ele, mas com base apenas num genérico bom senso. Em nenhum momento o discurso científico mereceu espaço. [...]

Aos linguistas, coloca-se o desafio de trabalharem essas questões todas como questões fundamentalmente políticas e de buscarem meios para pro-jetar sua voz, contribuindo,

assim, para a instauração de uma necessária guerra cultural entre os discursos que dizem a língua no Brasil.

[...]

Acima de tudo, porém, podem-os todpodem-os começar por discutir e enfrentar as razões que histori-camente têm gerado o profun-do distanciamento entre univer-sidade e sociedade no Brasil, uma das causas da calamitosa forma de tratar as questões de linguagem por aqui.

Carlos Alberto Faraco é professor de linguística da Uni-versidade Federal do Paraná e autor de “Gramática Nova” (Ed. Ática).

(Publicado na Folha de S.Paulo em 25 de março de 2001, no Caderno Mais!)

Este longo e primoroso artigo foi publicado no ano de 2001, na esteira de um de-bate promovido entre a comunidade de linguistas brasileiros, e que já havia resul-tado numa conferência acadêmica do mesmo autor em 2000, com o título provo-cador de “A linguística serve para alguma coisa? Questões de política linguística”, publicado posteriormente na Revista Letras2, da UFPR. Em suma, pode-se dizer, a partir desse artigo, que em nossa sociedade, quando se quer uma opinião aba-lizada sobre saúde procuram-se os médicos; sobre máquinas, engenheiros; mas, quando se quer saber sobre a língua em uso pelos brasileiros, os lingüistas não são procurados — sinal evidente de um grande descompasso entre o meio social e a disciplina que trata do assunto.

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Passados exatos dez anos, surgiu uma nova polêmica envolvendo a língua por-tuguesa e o seu ensino: foi a descoberta pela imprensa que um livro, adquirido e distribuído pelo MEC para o ensino de jovens e adultos (EJA), ensinava que “não era errado falar errado”:

Distribuído pelo MEC (Ministério da Educação) a alunos jovens e adultos, o livro foi foco da polêmica sobre o ensino do padrão da norma culta porque coloca a linguagem formal ao lado da coloquial, legitimando-as. Em um dos capítulos da obra, um trecho afirma: “Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito

linguístico”. (FSP, 22 de Junho de 2011)

Tratava-se do livro didático Por uma vida melhor, da linguista Heloisa Ramos, que fora aprovado no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático, do MEC) daquele ano. Uma obra para ser aprovada passa para uma extensa série de avalições, feit-as por especialistfeit-as de cada área da didática. Bem a despeito de tudo e de todos os envolvidos com essa obra, a imprensa e a opinião pública caíram como um raio sobre o livro e sua autora, com a simples e rasa crítica de que a escola deve ensinar “o certo” na língua portuguesa e nada mais.

Destacados linguistas e educadores entraram na polêmica para tentar esclarecer ao público um pouco mais sobre a questão, como foi o caso de Marcos Bagno, professor da UnB:

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Discussão sobre livro didático só revela ignorância da grande imprensa

Marcos Bagno

Para surpresa de ninguém, a coisa se repetiu. A grande imprensa brasileira mais uma vez exibiu sua ampla e larga ignorância a respeito do que se faz hoje no mundo acadêmico e no universo da educação no campo do ensino de língua. Jornalistas desinformados abrem um livro didático, leem metade de meia página e saem falando coisas que depõem sempre muito mais contra eles mesmos do que eles mesmos pensam (se é que pensam nisso, prepotentemente convencidos que são, quase todos, de que detêm

o absoluto poder da informação).

Polêmica? Por que polêmica, meus senhores e minhas senhoras? Já faz mais de quinze anos que os livros didáticos de língua portuguesa disponíveis no mercado e avaliados e aprovados pelo Ministério da Educação abordam o tema da variação linguística e do seu tratamento em sala de aula. Não é coisa de petista, fiquem tranquilas senhoras comentaristas políticas da televisão brasileira

e seus colegas explanadores do óbvio.

Já no governo FHC, sob a gestão do ministro Paulo Renato, os livros didáticos de português avaliados pelo MEC começavam a abordar os fenômenos da variação linguística, o caráter inevitavelmente heterogêneo de qualquer língua viva falada no mundo, a mudança irreprimível que transformou, tem transformado, transforma e transformará qualquer idioma usado por uma comunidade humana. Somente com uma abordagem assim as alunas e os alunos provenientes das chamadas “classes populares” poderão se reconhecer no material didático e não se sentir alvo de zombaria e preconceito. E, é claro, com a chegada ao magistério de docentes provenientes cada vez mais dessas mesmas “classes populares”, esses mesmos profissionais entenderão que seu modo de falar,

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apenas uma língua diferente daquela – devidamente fossilizada e conservada em formol – que a tradição normativa tenta preservar a ferro e fogo, principalmente nos últimos tempos, com a chegada aos novos meios de comunicação de pseudoespecialistas que, amparados em tecnologias inovadoras, tentam vender um peixe

gramatiqueiro para lá de podre.

Enquanto não se reconhecer a especificidade do português brasileiro dentro do conjunto de línguas derivadas do português quinhentista transplantados para as colônias, enquanto não se reconhecer que o português brasileiro é uma língua em si, com gramática própria, diferente da do português europeu, teremos de conviver com essas situações no mínimo patéticas. A principal característica dos discursos marcadamente ideologizados (sejam eles da direita ou da esquerda) é a impossibilidade de ver as coisas em perspectiva contínua, em redes complexas de elementos que se cruzam e entrecruzam, em ciclos constantes. Nesses discursos só existe o preto e o branco, o masculino e o feminino, o mocinho e o bandido, o certo e o errado e por aí vai. Darwin nunca disse em nenhum lugar de seus escritos que “o homem vem do macaco”. Ele disse, sim, que humanos e demais primatas deviam ter se originado de um ancestral comum. Mas essa visão mais sofisticada não interessava ao fundamentalismo religioso que precisava de um lema distorcido como “o homem vem do macaco” para empreender sua campanha obscurantista, que permanece em voga até hoje (inclusive no discurso da candidata azul disfarçada

de verde à presidência da República no ano passado). Da mesma forma, nenhum linguista sério, brasileiro ou estrangeiro, jamais disse ou escreveu que os estudantes usuários de variedades linguísticas mais distantes das normas urbanas de prestígio

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significa automaticamente combater a outra. Defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio, mas é preciso repetir isso a todo momento. Não é preciso ensinar nenhum brasileiro a dizer “isso é para mim tomar?”, porque essa regra gramatical (sim, caros leigos, é uma regra gramatical) já faz parte da língua materna de 99% dos nossos compatriotas. O que é preciso ensinar é a forma “isso é para eu tomar?”, porque ela não faz parte da gramática da maioria dos falantes de português brasileiro, mas por ainda servir de arame farpado entre os que falam “certo” e os que falam “errado”, é dever da escola apresentar essa outra regra aos alunos, de modo que eles – se julgarem pertinente, adequado e necessário – possam vir a usá-la TAMBÉM. O problema da ideologia purista é esse também. Seus defensores não conseguem admitir que tanto faz dizer assisti o filme quanto assisti ao filme, que a palavra óculos pode ser usada tanto no singular (o óculos, como dizem 101% dos brasileiros) quanto no

plural (os óculos, como dizem dois ou três gatos pingados). O mais divertido (para mim, pelo menos, talvez por um pouco de masoquismo) é ver os mesmos defensores da suposta “língua certa”, no exato momento em que a defendem, empregar regras linguísticas que a tradição normativa que eles acham que defendem rejeitaria imediatamente. Pois ontem, vendo o Jornal das Dez, da Globo News, ouvi da boca do sr. Carlos Monforte essa deliciosa pergunta: “Como é que fica então as concordâncias?”. Ora, sr. Monforte, eu lhe devolvo a pergunta: “E as concordâncias, como

é que ficam então?

Marcos Bagno é professor da Universidade de Brasília. (Extraído da página que o MEC dedica a esta polêmica:

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Marcos Bagno, o conhecido autor de Preconceito linguístico, não foi o único a se posicionar sobre a ignorância da mídia e da parcela mais escolarizada a respeito da língua em uso, diversos outros pensadores defenderam a obra didática em questão e colocaram em xeque os preconceitos que existem sobre a Língua Portuguesa e seu ensino. Uma boa amostra desses depoimentos está no site do MEC cujo en-dereço demos acima e vale a pena conhecer mais os outros argumentos.

Está, portanto, posta uma importante discussão: qual o papel do conhecimento rigoroso da língua na educação e na formação dos cidadãos brasileiros? Como des-fazer os mitos e preconceitos existentes sobre a nossa realidade linguística? Como ensinar aos nossos jovens o padrão culto da língua sem desmerecer as demais normas e variantes, e, mais importante, sem continuar transmitindo uma série de concepções anacrônicas sobre o uso da língua, cujo principal interesse é preservar uma sociedade desigual e injusta?

Palavras de despedida

Com as observações até aqui apresentadas, não pretendemos estabelecer receitas sobre como dar aulas de língua portuguesa usando instrumentos teóricos pauta-dos na Linguística, mas sim permitir reflexões sobre as diferentes perspectivas de uso da língua no Brasil, usos esses tanto sociais quanto educacionais. Para tanto, usamos uma polêmica recente, a do livro didático que “ensinava a falar “errado”, como um exemplo teste: seria mais fácil a um educador que dominasse os con-ceitos da lingüística se posicionar de forma não preconceituosa sobre o problema em questão? Assim, resta o desafio ao leitor, que já conhece as teorias da lingüísti-ca, que se aproprie dela e se prepare não só para atuar na sala de aula, mas tam-bém para os desafios sociais que todos teremos pela frente, caso desejemos um país mais próspero e mais justo socialmente.

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