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Uma genealogia dos anormais na contemporaneidade : ensaios sobre alguns processos de judicialização que atravessam a rede de atenção psicossocial  

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA

CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE

ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

CAMPINAS 2017

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CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE

ATRAVESSAM A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva na área de concentração em Política, Planejamento e Gestão em Saúde.

ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES E ORIENTADO PELO PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO.

CAMPINAS 2017

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ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

MEMBROS:

1. PROF. DR. SÉRGIO RESENDE CARVALHO

2. PROF. DR. DURVAL MUNIZ ALBUQUERQUE JÚNIOR

3. PROF. DR. TANIELE CRISTINA RUI

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

Data: 20 de fevereiro de 2017 [20/02/2017]

BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO CAMILA CRISTINA DE OLIVEIRA RODRIGUES

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Dedico esse trabalho, todo seu processo, seu tempo e espaço, às mulheres que, em devir, pensam, geram, cuidam e

têm palavras, força e resistência para estilizarem esse mundo.

Em especial, dedico esses escritos para algumas mulheres que com suas lutas deram contornos a minha própria batalha:

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AGRADECIMENTOS

À minha família, por todo o apoio e compreensão, por apostar sempre em mim e me fazer acreditar que eu poderia ir aonde nenhuma de nós ainda havia chegado.

Aos meus eternos mestres, Marilia Muylaert, Silvio Yasui e Sonia França, com quem aprendi a amar a Saúde Mental e a Filosofia da Diferença.

Aos usuários dos serviços de saúde mental onde trabalhei, por me ensinarem tanto sobre a vida e o oficio de cuidar.

Aos parceiros de trabalho da rede de Saúde Mental de Campinas, em especial, Flora de Paula (in memorian), Katu Silva, Ruth Cerejo, Celio Doni, Juliana Souza, Patrícia Bichara, Georgia de Sordi, Isa, Emelice Bagnola, Gal de Sordi, Telma Palmieri, Cássia Ramos, Clayton Ramos, Sander Albuquerque, Heloisa Amaral, Cláudia Carezzato, Daniel Rigotti e Nayara de Oliveira pelo companheirismo e por tantos ensinamentos.

À toda equipe do CAPS AD Independência e da Unidade de Acolhimento Nise da Silveira, pela abertura e garra de invenção no cotidiano presente.

Ao meu orientador, Sérgio Resende Carvalho, e aos demais companheiros do Coletivo Conexões, em especial, ao Bruno Mariane, Ricardo Pena e Ricardo Teixeira, pela generosidade e acompanhamento nesse processo de escrita.

À Margareth Rago, Durval Muniz, Tony Hara pelo carinho com que me acolheram nessas novas incursões pela obra de Foucault.

À Taniele Rui e Emerson E Merhy pelas orientações nas bancas de qualificação e defesa. À Ana Godoy, pelo companheirismoanárquico que possibilitou que eu me reconectasse com a arte e comigo mesma.

Aos amigos do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, em especial, Núbia Viana e Márcio Melo, por me mostrarem outros trânsitos possíveis pela universidade e pela vida.

À Aloide Ladeia, Márcia Lutaif, Sara Sgobin, Susilaine Clemente, Márcia André, Marianne Herrera, Ana Magri, Bárbara Ferrari, Amaranta Krepischi e Mirs Monstrengo, por todo o apoio no trabalho de campo.

Às minhas queridas amigas Erika Marinheiro, Pérola Lozano, Mariane Nogueira, Elizandra Zeulli, Luciana Nogueira, Ana Cristina Vangrelino, Francielly Damas, Elisabeth Zuza, Camila Ramos, Bruna Martins Reis e Karina Boin e Karina Morelli pelo amor e pelo colorido especial que disseminam na minha vida.

À toda família Ilesin Ogun Lakaine Osimole, em especial, Baba Toloji, Obade Nunes, Antônio Violla Filho, Tomás Cajueiro, Regina Carvalho e Vinnie Fuscaldy por todo cuidado e axé compartilhados nos últimos tempos.

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Escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar,

eu sou um cartógrafo.

(8)

RESUMO

Este trabalho pretende compreender como a judicialização enquanto um acontecimento vem se efetuando em determinadas práticas de saúde mental na contemporaneidade. Procurou-se levantar, a partir de um trabalho teórico-empírico, alguns diagramas de força que compõem as relações de poder e saber estabelecidas entre os campos da Saúde Mental e da Justiça, indagando sobre o que vem acontecendo em alguns serviços da Rede de Atenção Psicossocial do município de Campinas/ SP – Brasil. Para isso, buscou-se produzir diálogos com profissionais, usuários e familiares desses serviços, objetivando a apropriação dos acontecimentos que têm atravessado o seu cotidiano e que dizem respeito às conexões com as práticas jurídicas. O trabalho de campo foi realizado nos serviços de internação psiquiátrica acompanhados pela Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas/SP, onde alguns tratamentos compulsórios foram levantados por meio de uma pesquisa de arquivo. É importante ressaltar que todo o acervo do material recolhido ao longo do trabalho de campo foi apresentando a partir de certa política de narratividade. Entende-se por política de narratividade uma forma de apreensão da dimensão expressiva que atravessa as práticas estudadas nessa investigação. Nesse sentido, esse trabalho foi confeccionado como uma bricolagem de narrativas; trata-se de uma proposta em que se pretende marcar uma postura política de implicação com o debate sobre a produção de formas de verdade e conhecimento que atravessam nossa sociedade. Assim, com base na leitura de algumas obras de Foucault e nos princípios metodológicos de modalidade genealógica, traçou-se um terreno onde a prática discursiva da judicialização foi articulada à medicalização, à psiquiatrização e à normalização. Nessa superposição de mapas, notou-se que o diagrama da internação compulsória se conectou ao dispositivo-drogas, indicando certos modos de subjetivação que expressam algumas séries discursivas que podem ser articuladas às categorias dos anormais na contemporaneidade. Considerou-se, portanto, que esse continuum médico-judiciário é um mapa estratégico que engendra acontecimentos que marcam significativamente os atuais serviços de saúde mental brasileiro. Por fim, é importante ressaltar que a obra da fotógrafa Diane Arbus foi apresentada ao longo de todo o texto sempre acoplada às narrativas, uma vez que as fotos dessa artista funcionaram nesse trabalho como dispositivos capazes de expressar algumas das regularidades que foram apresentadas e discutidas. O método de produção das fotografias produzido por Diane Arbus serviu ainda de operador para mover a pesquisa em direção a formas de produção de resistência possíveis frente ao cenário apresentado.

Palavras-Chave: Saúde Pública, Saúde Mental, Psicologia Clínica, Internação Compulsória de Doente Mental, Medicalização.

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ABSTRACT

We intend in this work to understand how the judicialization as an event is taking place in certain mental health practices in the contemporary world. We seek to draw from a theoretical-empirical work some force diagrams that compose the relations of power and knowledge established between the fields of Mental Health and Justice inquiring about what has been happening in some services of the RAPS (Psychosocial Attention Network) in the city of Campinas / SP - Brazil. For this, we seek to produce dialogues with professionals, users and family members of these services, aiming to appropriate the events that have crossed their daily life and that relate to the connections with legal practices. Our field work was also carried out with the psychiatric hospitalization services, accompanied by the Sectorial Coordination of Access Regulation of the Municipal Health Department of Campinas / SP, where some compulsory treatments were collected through a file search. It is important to emphasize that the whole collection of the material collected in our field work was composed by us from a certain policy of narrativity because we understand that the production of narratives is a way of apprehending the expressive dimension that crosses the practices studied in this investigation. In this sense, this work was made as a bricolage of narratives. It is a proposal in which we intend to mark a political position of implication with a debate about the production of forms of truth and knowledge that cross our society. Thus, based on the reading of some works by Foucault and the methodological principles of genealogical modality, we draw a ground where the discursive practice of the judicialization was articulated to the medicalization, the psychiatrization, and the normalization. In this overlapping of maps, we noticed that the diagram of compulsory hospitalization was connected to the device-drugs indicating certain modes of subjectivization that express some discursive series that can be articulated to the categories of the abnormal ones in the contemporaneity. We consider, therefore, that this medical-judicial continuum is a strategic map that engenders events that significantly mark the current Brazilian mental health services. Finally, it is important to note that the work of the photographer Diane Arbus has been presented throughout the text always coupled with the narratives, as we consider that the photos of this artist are devices capable of expressing some of the regularities discussed throughout the work. The method of producing the photographs created by Diane Arbus has also served as an operator to move us towards possible forms of resistance production in front of the presented scenario.

Key Words: Public Health, Mental Health, Clinical Psychology, Compulsory Internment of Mentally Ill, Medicalization.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957. 14 Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland, 1964. 18

Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970. 19

Figura 4 - Intitled. 1970-1971. 24

Figura 5 - Intitled. 1970-1971. 26

Figura 6 - Intitled. 1970-1971. 30

Figura 7 - Intitled. 1970-1971. 33

Figura 8 - Intitled. 1970-1971. 39

Figura 9 - Person Unknown, City Morgue, Bellevue Hospital. 45 Figura 10 - Jorge Luis Borges in Central Park, N.Y.C. 1969. 47

Figura 11 - Intitled, 1970-1971. 54

Figura 12 - A child crying, N. J. 1967 59

Figura 13 - Child with a toy hand grenade in Central Park, N.Y.C.1962. 65 Figura 14 - Two boys smoking in Central Park, N.Y.C. 1962. 71

Figura 15 - Diane with Doon and Amy, N. Y.1956. 77

Figura 16 - Os arquivos, Campinas, 2016. 86

Figura 17 - Headless woman. 1961. 87

Figura 18 - Woman at a conter smoking, N.Y.C. 1962. 91

Figura 19 - Superstar at home, N. Y. C. 1968. 92

Figura 20 - Albino sword swallower at a carnival, Md. 1970. 100 Figura 21 - Albino sword swallower and her sister, Md. 1970. 101 Figura 22 - The legendary blind beggar, standing at his regular post, 1961.

Figura 23 - Happy Birthday. 112

Figura 24 - The house of horrors, Coney Island, N. Y. 1961 130

Figura 25 - Brenda Frazier, 1961. 131

Figura 26 - Child in a nightgown, Wellfleet, Mass. 1957 137

Figura 27 - A flower girl at a wedding, Conn. 1964 138

Figura 28 - A Young Brooklyn Family going for a Sunday outing. N.Y. 1966 142

Figura 29 - Sem título. 143

Figura 30 - Fire Eater at a carnival, Palisades Park, N. J. 1956. 160

(11)

Figura 32 - Woman with eyerliner, N.Y.C. 1964 165 Figura 33 - A Puerto Rican woman with a beauty mark, N.Y.C. 1965 171 Figura 34 - A young man in curlers at home on West 20th Street, N.Y.C. 1966

Figura 35 - Untitled (42). 1970-1971 177

Figura 36 - Identical twins, Roselle, N.J. 1967 180

Figura 37 - The Human Pincushion, Ronald C. Harrison, N. J. 1962 184 Figura 38 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (1), Campinas. 2016 190 Figura 39 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (2), Campinas. 2016 191 Figura 40 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (3), Campinas. 2016 192 Figura 41 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (4), Campinas. 2016 193 Figura 42 - A Jewish giant at home with parentes in the Bronx, N. Y. 1970 195

Figura 43 - Girl in her circus costume, Md. 1970 196

Figura 44 - Feminist in her hotel room, N.Y.C. 1971 206

Figura 45 - Sem título. 211

Figura 46 - Russian midget friends in a living room on 100 th Street, N. Y. C. 1963 214 Figura 47 - Oficina com profissionais da Saúde Mental (5), Campinas. 2016 230

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LISTA DE ABREVIATURAS

RAPS – Rede de Atenção Psicossocial CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CAPS III – Centro de Atenção Psicossocial 3 (24h)

CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas CAPS-i – Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil

CNR – Consultório na Rua

CECO – Centro de Convivência e Cultura

SRT – Serviços Residenciais Terapêuticos (Moradias) UAA – Unidade de Acolhimento Adulto

UBS – Unidade Básica de Saúde (Centro de Saúde/ Posto de Saúde) SAMU – Serviço de Atenção Médica de Urgência

UPA – Unidade de Pronto Atendimento (Pronto Socorro) SMS – Secretaria Municipal de Saúde

COSEMS – Conselho de Secretários Municipais DS - Distrito Sanitário

CRAS – Centro de Referência da Assistência Social CT – Conselho Tutelar

FC – Fundação Casa (Fundação para Menores) GM – Guarda Municipal

DP – Defensoria Pública

CID 10 – Classificação Internacional de Doenças CRM – Conselho Regional de Medicina

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SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO ...16

2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS ...26

2.1 O CENÁRIO...28

2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS...31

2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES ...34

2.4 OS ARQUIVOS ...41

2.5 AS SÉRIES DOS ARQUIVOS ...48

2.5.1 Série 1 - Espaços de indiferença ...50

2.5.2 Série 2 - Terrenos obstruídos ...57

2.5.3 Série 3 - Zonas de destruição ...62

2.5.4 Série 4 - Solos insubordináveis ...68

2.5.5 Série 5 - Sinais que vão para a rua ...74

2.5.6 Série 6 - As fronteiras da maternagem ...80

2.6 CONVERSAÇÕES SOBRE OS ARQUIVOS...87

3 DA INDIGNIDADE DE FALAR PELOS OUTROS ...90

3.1 O DOSSIÊ ...93

3.1.1 Paisagens mutantes ...94

3.1.2 Sob os trilhos de uma montanha russa ...104

3.1.3 O processo ...116

3.1.4 Trechos de uma história institucional ...134

3.1.5 Uma nômade no deserto ...141

3.2 NOTAS SOBRE O DOSSIÊ ANA FERRAZ ...146

3.2.1 Nota Um – Uma genealogia dos anormais ...148

3.2.2 Nota Dois - Estados anormais no contemporâneo: o uso de álcool e outras drogas como agente disparador do jogo da normalização ...155

3.2.3 Nota Três - A coragem de Ana ...161

4 OS PIROTÉCNICOS ...164

4.1 SÉRIE A - COMBATES DESORDENADOS ...168

4.1.1 O apelo in-provável ...169

(14)

4.2 SÉRIE B - GUERRILHAS COTIDIANAS ...180

4.2.1 Um novo no discurso da Saúde Mental ...181

4.2.2 Os semblantes das diferenças ...184

4.2.3 A cultura de amassar o barro ...188

4.3 SÉRIE C - BATALHA ENTRE GIGANTES ...199

4.3.1 Uma testemunha ocular ...200

4.3.2 Um silenciamento quase invisível ...210

4.3.3 A paralisação ...215

4.4 NOTAS SOBRE OS PIROTÉCNICOS ...218

4.4.1 Um discurso intoxicado ...219

4.4.2 Os regimes de verdade e a psiquiatrização das condutas ...223

4.4.3 Uma história dos pirotécnicos ...232

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...235

5.1 POST-SCRIPTUM SOBRE A GENEALOGIA DOS ANORMAIS ...242

6 REFERÊNCIAS ...250

7 APÊNDICES...257

(15)

UMA GENEALOGIA DOS ANORMAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENSAIOS SOBRE ALGUNS PROCESSOS DE JUDICIALIZAÇÃO QUE ATRAVESSAM A

REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Untitled (6), 1970-1971

(16)

1 APRESENTAÇÃO: A PESQUISA COMO JOGO

Figura 1 - Kid in black-face with friend, N.Y.C. 1957

(17)

Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. Carlos Drummond de Andrade

(18)

Esta dissertação procura narrar uma espécie de jogo tecido entre as práticas jurídicas e o campo da saúde mental. Considero-a como um jogo porque, no seu desenrolar, vamos nos deparar com mudanças de posição, modificações de funções, variação das regras, enfim, com diferenças e heterogeneidades. Dessa forma, apresentaremos alguns pontos de atrito, tensão e vizinhança encontrados entre esses discursos (1).

Ao longo do percurso, mostrarei como certas práticas desenvolvidas em campos a princípio separados como a saúde e a justiça chegaram a formar conjuntos discursivos estratégicos capazes de participar ativamente da constituição dos discursos médico e psiquiátrico e da fabricação dos modos de subjetivação anormais.

Dessa forma, será possível acompanhar a trajetória da construção de uma pesquisa que partiu do campo problemático da judicialização e se desdobrou numa discussão sobre a normalização. A judicialização, portanto, não foi tomada nesse estudo como uma estrutura conceitual fixa, mas, sim, como um acontecimento singular que foi sofrendo transformações, rupturas, descontinuidades, repetições e reativações ao longo do tempo (2). Segundo Foucault (3), o que permanece regular em um problema não é o objeto em si, tampouco os domínios por ele formados, nem mesmo seu ponto de emergência ou modo de caracterização. O objeto não preexiste a si mesmo, ele só existe mediante um conjunto singular de relações que estão no limite dos discursos.

Com isso, é importante ressaltar que a própria temática da pesquisa foi sendo reinventada no decorrer do seu desenvolvimento, na medida em que fui me conectando com o material recolhido ao longo do trabalho de campo, bem como com conceitos tais como a medicalização e a psiquiatrização.

O ponto de partida tomado para esse estudo foi às internações e tratamentos compulsórios em saúde mental, uma vez que a temática da judicialização está mais associada, no campo da Saúde Mental, com as determinações judiciais de tratamento compulsório.

Segundo os profissionais de rede, as internações compulsórias distorcem os princípios de tratamento oferecidos pelos serviços preconizados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira que valorizam a espontaneidade e voluntariedade do tratamento como direitos dos seus usuários.

Por outro lado, como trabalhadora de uma rede de Saúde Mental, tive oportunidade de presenciar discussões de caso em que alguns colegas faziam uma espécie de apelo às praticas jurídicas. Esses profissionais apostavam que o sistema judiciário era uma alternativa pertinente para solucionar a condução desses casos. Contudo, não estamos falando de um caso qualquer. Esse tipo particular de caso tem como uma de suas características mais visíveis o fato de

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desafiar a capacidade de intervenção das equipes e os alcances das formas de tratamento propostas por esses serviços. Assim, o que foi se evidenciando ao longo do estudo é que as problemáticas que esses casos apresentam não apenas tocam o campo da Saúde Mental, mas vão muito além do que ele é capaz de abranger.

Nesse sentido, é importante ressaltar que o campo da Saúde Mental será tratado aqui como um modo de conhecimento cujas linhas de força estão em constante tensão e atravessamento com outros campos entre eles o da Saúde Coletiva. Portanto, ao longo de todo trabalho esses territórios de saber serão postos em diálogo, uma vez que considerarmos que esses campos articulam um plano de composição possível para a elaboração dessa investigação (4).

Desse modo, a constatação de uma espécie de regularidade presente em uma série de situações que eu vivenciava como trabalhadora foi me conduzindo para a investigação dessa problemática. Eu não sabia exatamente o porquê, mas algo me fazia inferir que aquilo que eu observava como trabalhadora era bem mais complexo do que o que conseguia trocar com meus pares e isso era algo que passou a me incomodar. Intuía que havia uma série de elementos no processo de fabricação desses acontecimentos que permanecia sob o efeito de um campo de invisibilidade e indizibilidade que me instigavam a uma espécie de exploração.

A seguir, apresentarei, então, uma história. Trata-se de uma narrativa que construí sobre uma paciente que tive a oportunidade de acompanhar no decorrer da minha trajetória profissional. Acredito que compartilhar essa história pode ser importante para que o leitor compreenda melhor o que me levou a desenvolver esse estudo.

(20)

A história de uma mulher que tinha um tesouro escondido

Figura 2 - Miss Maryking and her dog, troubles carnival, Maryland. 1964

(21)

Figura 3 - Masked woman in a wheelchair, Pa. 1970.

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O que você faria se fosse encarregada de cumprir um mandato judicial de internação compulsória de uma senhora de 58 anos?

Na visita que organizamos para conhecer Dona Maria junto com a equipe de Saúde da Família de uma Unidade Básica de Saúde a encontramos sentada no sofá da sala, não havia mais ninguém em sua casa, exceto seu cachorro. O marido falecera há dois anos, a filha foi embora de casa com um “namorado traficante” e o filho faz uns bicos durante o dia e costuma voltar tarde, geralmente alcoolizado.

Dona Maria está só e sorri quando me apresento para ela. Tem um sorriso que marca a gente, daqueles que se expandem por todo o rosto e fazem os olhos brilhar. Dona Maria me faz pensar na minha avó. Como eu poderia internar alguém como a minha avó em um Hospital Psiquiátrico baseando-me nos motivos pelos quais ela seria internada?

A internação compulsória de Dona Maria foi solicitada por um juiz que interpretou o pedido de abrigamento, feito pela equipe de Saúde da Família, como “um pedido de internação em Hospital Psiquiátrico”. Talvez porque Dona Maria tomava uma ampola de Haldol injetável por mês ou porque tinha um carimbo anterior de internação psiquiátrica na sua história de vida?

Para a equipe de Saúde da Família, Dona Maria precisava de abrigamento, pois não tinha um cuidador em sua casa. Ela tomava seus remédios irregularmente, não se alimentava adequadamente, e isso fazia com que sua hipertensão e diabetes ficassem piores a cada dia. A equipe se preocupava muito com ela, visitavam-na regularmente e se indignavam com o que estava lhe acontecendo. Chegaram a tentar uma parceria com o CAPS do território, mas naquele momento a discussão não rendeu muita coisa.

Pela situação social de Dona Maria, eu já sabia que se ela fosse internada dificilmente sairia de lá. Em pouco tempo viraria mais uma moradora do hospital, como outros que conheci – abandonados pelas famílias, esquecidos pela sociedade, sem qualquer rede ou suporte exterior. Enfim, sem um fora que acolha suas formas de vida. Para Dona Maria esse seria um provável caminho sem volta.

Agora, imagine você com as chaves das portas de um manicômio em uma das mãos e na outra um mandado de internação do juiz, o que mesmo você faria? Como exerceria o “poder de fazer viver e deixar morrer”? Algo que talvez Foucault (5) nos perguntasse ao ouvir essa história. Eis as peças de um tabuleiro montado: a vida vulnerável de Dona Maria, as previsões médicas ruins para o seu futuro, um juiz piedoso no seu tribunal, alguns agentes da lei, outros da saúde

(23)

pública, todos executando o seu trabalho cotidiano. Eis um tabuleiro armado indicando que o jogo podia enfim começar.

Mas que tipo de jogo é esse? É o jogo de judicializar uma vida. Certamente não existe esse tipo de intenção sobre uma vida qualquer. Trata-se de uma vida bem definida, aquela que mobiliza uma série de pessoas que estão do lado de fora dela.

Mas quando a adentramos, encontramos uma vida desinteressada por aquilo que a rodeia, uma vida alheia às normas sociais, padrões de conduta e níveis de saúde. Uma vida que acontece quase sempre em um sofá.

Dona Maria não parecia se importar com o futuro, demonstrava apenas certa preocupação com o que estava se passando com a filha desaparecida. Ironizava as palavras do médico que dizia que ela corria risco de morte se não tomasse os seus remédios.

No mínimo intrigante tudo aquilo que se passava naquela sala, especialmente quando pensava que, do lado de fora, um batalhão de responsáveis sanitários e legais se articulavam para decidir o seu destino, sem quase nada saber sobre o que realmente se passava naquele sofá. Cobraram-me agilidade no processo, pois cada dia que não cumpríssemos a tal Ordem Judicial custaria ao Estado o pagamento de uma multa altíssima. Meu trabalho, em um instante, tornara-se alvo direto de intervenção dos gestores e advogados “do nível central”. Chamaram-me para uma reunião. Assim acrescentamos mais uma peça ao tabuleiro: a vida que se transforma em produto do capital. Não há tempo, temos que intervir!

Alguns dias depois, volto a encontrar Dona Maria, agora em outro sofá. Lembro-me mais uma vez da minha avó e sinto a punhalada que muitas vezes é trabalhar em uma Rede de Atenção Psicossocial. Afinal, como podemos agir em defesa de uma sociedade sem manicômios numa sociedade que ainda os deseja ardentemente?

Abraço Dona Maria e digo-lhe como é bom poder reencontrá-la. Ela então me sorri e pergunta se eu era a pessoa que a levaria até o seu tesouro? “Você sabia né menina que eu tenho um tesouro guardado em algum lugar”? Os olhos de Dona Maria então reluziram. Acontecera algo ali que me fez entender que ainda havia alguma coisa nessa vida tão complicada que ainda fazia muito sentido.

No CAPS, sentada na sala de TV junto com alguns outros usuários e profissionais, pensei que ali, muito possivelmente, ela encontraria alguém capaz de acolher a sua história. A história de uma mulher que tinha um tesouro escondido.

Talvez Dona Maria nunca venha a dimensionar o quanto eu e mais alguns parceiros de trabalho lutamos e tentamos articular toda uma rede de forças, composta de pessoas e serviços,

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para que ela pudesse estar sentada ali, naquele sofá de couro preto, e não no de cimento frio de um hospital qualquer.

E aqui termina a parte em que a história de Dona Maria se cruzou com a minha, que pouco tempo depois também foi deslocada para atender as novas normas e padrões legais. Mas, de tempos em tempos, do outro lado da cidade, chegam-me algumas notícias dela...

O contato com a vida de Dona Maria e sua trajetória de tratamento na rede pública de saúde me levou a construir a seguinte questão: o que será que está acontecendo conosco? Por que será que esses casos nos mobilizam tanto e nos levam a apelar para as práticas jurídicas se temos tantas ferramentas potentes de trabalho na Saúde Mental?

Tomar essas situações como acontecimentos e fazer aparecer os espaços onde eles se davam foi à estratégia que encontrei para tentar compreender o que se passava comigo e com o meu corpo de trabalhadora imerso no processo de transformação de uma rede de saúde. Era extremamente necessário para mim tentar compreender que práticas eram essas que levavam todos nós, trabalhadores daquela rede de Saúde Mental, a escorregar nos nossos próprios preceitos, como se essas situações fossem cascas de banana.

A partir da noção de acontecimentalização elaborada por Foucault (6), passei a olhar para os casos como o de Dona Maria como séries compostas de múltiplos processos que, no seu desenrolar, se conectaram e se dispersaram das práticas jurídicas e das práticas de Saúde Mental. Nesse sentido,

[...] A acontecimentalização consiste em reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, que, em um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade, necessidade. Ao tomar as coisas dessa maneira, procedemos, na verdade, a uma espécie de desmultiplicação causal (6 p339).

O caso de Dona Maria me fez experimentar como elementos do discurso jurídico, médico e psiquiátrico eram facilmente naturalizados dentro de nosso universo de trabalho. Tratava-se de discursos que se organizavam de certo modo, com o intuito de demonstrar um tipo de verdade que não condizia com sua experiência real.

Isso me fez apreender a maneira pela qual a prática que envolve um processo de internação compulsória é composta de uma variedade de processos e de indivíduos anônimos

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que organizam esse regime de enunciação e tentam falar por meio dele, sem que para isso se estabeleçam formas de comunicação entre si.

Para me aproximar dessa prática, optei por realizar contatos diversificados com os acontecimentos que a materializavam. Fiz entrevistas com usuários, profissionais e familiares e adentrei os espaços de internação por meio de uma proposta de pesquisa de arquivo. Além disso, procurei divulgar entre meus colegas a pesquisa que estava realizando, pedi que me convidassem para debates sobre o tema da judicialização e discussões de casos judicializados que acontecessem em seus serviços. Esse material híbrido se consolidou nesse mosaico de elementos que procurarei compartilhar ao longo de toda a dissertação.

Acredito que o material aqui apresentado é, sobretudo, um efeito de um jogo que se desenrolou durante toda a pesquisa (1). É possível que o leitor experimente certo incômodo no transcurso da sua leitura, pois, ao adentrar esse jogo, percorrerá não apenas regiões obscurecidas, mas um campo muitas vezes incerto, composto por conflitos fabricados entre sujeitos, instituições e processos de trabalho.

Assim, procurei propiciar ao leitor um modo de acesso à experiência de mergulhar nesse terreno, muitas vezes caótico, atravessado por embates e disputas. De outra parte, considero que esse trabalho também se tornou um acontecimento, no sentido em que possibilitou que eu fosse transformando meu território existencial de trabalhadora do SUS em um terreno fértil de criação da pesquisadora que hoje me habita. Portanto, é esse acontecimento rizomático1 que agora ponho, por meio desse texto, sob o signo do conhecer.

Nesse momento, convido então o leitor a se aproximar um pouco mais desse cenário. Minha proposta é que juntos façamos um sobrevoo por nosso campo de investigação explorando por meio do contato com alguns dos seus elementos um cenário que chamei de “Cidade Invisível”. Tomando como inspiração Itálo Calvino (8), a descrição dessa Cidade Invisível tem como objetivo apresentar o território onde essa investigação se passará, compreendendo esse cenário como um fato histórico e não como um mero espaço administrativo.

Aliás, vocês estão prontos para iniciarmos essa expedição? Podemos começar?

1 Por rizomático entendemos “ diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer

com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo (...) Ele não é efeito de unidades, mas dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda(7 p32 ).

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2 UMA EXPEDIÇÃO PELOS ARQUIVOS

Figura 4 - Intitled. 1970-1971

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Em consequência de graves traumatismos, às vezes mesmo por um nada, o caminho se bifurca e um personagem novo, sem precedente, coabita com o antigo e acaba tomando o seu lugar. Um personagem irreconhecível, cujo presente não provém de nenhum passado, cujo futuro não tem porvir, uma improvisação existencial absoluta. Uma forma nascida do acidente, nascida por acidente, uma espécie de acidente. Uma estranha raça. Um monstro cuja aparição nenhuma anomalia genética permite explicar.

Um ser novo vem ao mundo uma segunda vez, vindo de uma vala profunda aberta na biografia. . Malabou

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2.1 O CENÁRIO

Figura 5 - Intitled. 1970-1971

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A Cidade Invisível teve lá sua fama na Saúde Pública e na Saúde Mental. A proporção com que conseguiu expandir os serviços de saúde por todo seu território é uma de suas marcas. Esse foi um dos fatores que fez com que a cidade conseguisse se diferenciar de grande parte das outras. Chegou, inclusive, em certos momentos, ao “atrevimento” de fazer arranjos diferentes dos preconizados pelas normativas federais. Mesmo com essa ousadia, serviu de inspiração para a fabricação de outras normativas que hoje orientam o funcionamento de alguns serviços, em especial, os de saúde mental.

Foi um momento de muita força e criação. Muitos de nós, estudantes e militantes da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, seduzidos por tudo que ouvíamos falar sobre a rede de saúde da Cidade Invisível, nos mudamos para essa cidade. Eu fui uma delas. Vivemos momentos memoráveis, daqueles em que não restavam dúvidas de que se está fazendo parte de uma grande história. Eram horas de exercício de construção coletiva. Rodas enormes e debates quentes. Disputávamos, nos mínimos detalhes, as estratégias de atenção e os modelos de cuidado em pauta. Certa vez, ouvi de trabalhadores de outras cidades que éramos prepotentes demais.

Mas, com o passar do tempo, esse clima se deslocou. O objeto das disputas deixou de ser “o melhor modelo de saúde pública e saúde mental do país” para ser “a rede de saúde mental que deve se enquadrar nas normativas”. Era como se tivéssemos sido transportados de uma paisagem típica da primavera para um ambiente desértico e quase inóspito.

O fato é que, naquele momento, os gestores alegavam que havia determinações claras dos setores judiciais de que os modos de funcionamento da rede pública de saúde da Cidade Invisível não eram condizentes com as normatizações vigentes. Inclusive uma das leis que regia o trabalho na área da saúde foi julgada como incoerente, pois esta só existia na Cidade Invisível e não se ajustava às outras leis municipais, estaduais, nem federais.

As forças de toda essa rede de invenções foram sendo direcionadas para outros caminhos. Era preciso, naquele momento, se haver com os “atrevimentos” e trabalhar para que eles fossem revertidos em normativas. O que outrora era concebido como ferramenta de potencialização daquela rede viva aos poucos foi sendo considerado enquanto incoerências do sistema. Nesse processo, fomos sendo encurralados por algo que ainda estava obscuro para nós. Muitas coisas começaram a mudar de lugar. Um grande deslocamento de pessoas, coisas, espaços, serviços passou a acontecer para tentar que nos ajustassem às normas. As grandes rodas de conversa passaram a ter como foco as mudanças que se engendraram com todo esse processo em curso e não mais os modelos de cuidado em saúde. Muitos de nós, desgastados, nos mudamos da cidade, em busca de outros locais potentes de trabalho.

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Restava pouca energia e disposição para discutir as especificidades de nossas práticas. Pouco se ouviam vozes empolgadas com a criação de algo novo – naquele momento, não havia mais muito espaço para novidades. Entramos em um estado em que a luta era para garantir a conservação do que havíamos conquistado. E desse processo ainda pouco se sabe o que será que será...

Concomitantemente a essa reformulação do modelo de gestão da rede pública de saúde, a expansão do processo de normalização também atravessou o campo de nossas práticas clínicas. Essa dinâmica de funcionamento me levou a pensar mais intensamente nos processos de internação compulsória, pois o modo como experimentávamos essas ações jurídicas me remetia à forma como estávamos lidando com os processos de normalização que se capilarizavam, naquele momento, por toda a rede.

O modelo da compulsoriedade associada às internações agora também nos remetia, de certa maneira, a algo que todos nós trabalhadores vivenciávamos no cotidiano do nosso trabalho. Penso que foi esse processo que me conduziu para o tema dessa pesquisa. Nesse sentido, tentar devolver uma existência possível à heterogeneidade de vidas submetidas às estratégias de tratamento compulsório talvez tenha sido a forma que encontrei para tentar resistir ao que estava experimentando.

Segundo Deleuze é a partir das lutas de cada época, do estilo de lutas de uma sociedade que podemos compreender o que se passa no seu conjunto. É preciso partir de um mapeamento dos seus diagramas para tentar acessar essa máquina que fabrica a realidade do vivido (9).

Procurei então deixar meu corpo ser guiado para a experimentação de tais acontecimentos e assim fui adentrando o espaço das internações compulsórias como alguém que busca se surpreender com aquilo em que se depara. A prática das internações compulsórias foi tomada, portanto, como um diagrama que atravessa o terreno das internações psiquiátricas. Um espaço que expressa esse não-lugar onde certas vidas que foram marcadas pelos processos de psiquiatrização e judicialização passavam a habitar. Vidas que eram silenciadas para que algo que era exterior a elas pudesse ser visto e falado (10).

Na próxima sessão desse capítulo vou tentar narrar um pouco dessa experimentação e espero que ao acompanhá-las o leitor também possa experimentar algo desse estranhamento no seu próprio corpo. Está preparado? Vamos lá?

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2.2 AS INTERNAÇÕES E SUAS FORMAS

Figura 6 - Intitled. 1970-1971

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Hoje em dia, para se conseguir uma vaga de internação psiquiátrica pelo SUS na Cidade Invisível, não basta que a pessoa concorde em se internar, é necessário que um serviço de saúde a solicite. Depois disso, essa solicitação tem que ser avaliada e aprovada pelo médico regulador da Coordenadoria Setorial de Regulação de Acesso. Só então se consulta os hospitais para saber se há vagas disponíveis.

Quando entrei em contato com essa Coordenadoria, fui informada de que não havia na Cidade Invisível uma sistematização específica das internações compulsórias reguladas entre os anos de 2012 a 2014.

Em conversas com profissionais da rede de saúde, obtive a informação de que uma equipe de gestão da Secretaria Municipal de Saúde vinha tentando implantar um fluxo para internações compulsórias um pouco diferente das demais modalidades de internação psiquiátrica. Essa equipe havia passado a concentrar os pedidos de internação compulsória. Desta forma, os mandados de internação, que eram dirigidos para a Secretaria de Saúde, passaram a ser respondidos em primeira instância por esse grupo de gestão.

Nessa primeira resposta, essa equipe se baseava no artigo 6º da Lei nº 10.216, que diz: “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos” (11). Assim, preparavam um relatório no qual diziam que, primeiramente, providenciariam um laudo médico sobre o caso judicializado e, mediante as indicações do laudo, procederiam ao pedido de internação compulsória.

Nesse fluxo, o mandato judicial era então encaminhado para o Distrito Sanitário responsável pelo território onde o paciente que devia ser submetido à internação compulsória vivia. Ao receber esse documento um profissional da equipe do Distrito Sanitário, intitulado de apoiador, por sua vez tinha que realizar articulações com os serviços de referência, no sentido de providenciar o laudo médico. Com o laudo em mãos, a equipe de gestão da Secretaria de Saúde dava então continuidade ao processo, notificando o judiciário sobre os futuros encaminhamentos a cerca do pedido de internação compulsória.

Apesar de esse fluxo estar funcionando nessa rede de saúde mental, alguns processos ainda escapavam e eram remetidos diretamente para os serviços de saúde mental que atendiam os pacientes. Isso acontecia principalmente nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial2). Nesses casos, muitas vezes a condução do pedido de internação compulsória em geral ficava a

2 Os Centros de Atenção Psicossocial são os pontos da Rede de Atenção Psicossocial especializada constituídos

por equipes multiprofissionais que atuam sob a ótica interdisciplinar e realizam atendimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não intensivo (12).

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cargo dessas equipes. Ou seja, cabia a elas decidir se iriam acatar ou contrapor à solicitação judicial.

Quanto a esses desvios no fluxo determinado para as internações compulsórias, até aquele momento, não foi encontrado nenhum consenso entre os profissionais da rede sobre uma posição a se adotar acerca dos pedidos de internação compulsória. Alguns profissionais entendiam que, por se tratar de uma Ordem Judicial, cabia ao serviço cumprir o mandado, outros apostavam na estratégia de enviar relatórios e problematizar os pedidos de internação com o judiciário. Ainda encontramos aqueles que tentavam realizar alguma articulação com os profissionais da Defensoria Pública para mediar o pedido de internação compulsória expedido. Não se deve esquecer que essas medidas eram tomadas, geralmente, nas internações compulsórias que foram solicitadas por familiares ou responsáveis, mas outras modalidades de internação compulsória foram encontradas nesse estudo. Estamos nos referindo às internações que foram solicitadas pelas próprias equipes de saúde e/ou de assistência social, Conselho Tutelar e Penitenciárias. Essas costumam ser conduzidas de outra maneira, tanto pela rede de saúde como pelo sistema judiciário. Dificilmente são questionadas.

Além disso, se fazia necessário considerar que, no Brasil, a internação compulsória “por tempo indeterminado e em estabelecimento correcional adequado” foi uma das primeiras medidas estatais de repressão ao uso de drogas, datando da década de 1920. Até a década de 1970, as políticas voltadas para essa área (Lei nº 6.368 de 1976) continuavam se referindo à questão do uso de drogas como um problema jurídico e as ações de saúde voltadas para as pessoas que faziam uso de drogas eram tratadas como uma medida secundária, dando-se, principalmente, por meio de práticas repressivas realizadas em regime de internação hospitalar (93, 94).

Com tantas especificidades e formas diferentes de funcionamento, pode-se constatar que construir um mapeamento das internações compulsórias não foi uma tarefa simples. Não havia nenhum banco de dados inicial de onde eu podia partir. Procurar os Hospitais para tentar acessar os seus arquivos foi à alternativa encontrada para iniciar essa expedição.

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2.3 OS HOSPITAIS E SUAS LUZES

Figura 7 - Intitled (28). 1970-1971

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Em dois pontos extremos da cidade, encontravam-se os Hospitais onde fui buscar informações sobre as internações compulsórias realizadas na Cidade Invisível. Foram dois caminhos diferentes que procurei compor no decorrer “dessa expedição pelos arquivos”.

O pedido inicial de autorização para o trabalho de campo se deu diretamente na Secretaria Municipal de Saúde, mas também foi necessário conseguir o consentimento dos dois Hospitais para ter acesso aos prontuários onde eu poderia encontrar maiores informações sobre essas internações. Essa não foi uma tarefa muito simples... Um dos Hospitais levou quase um ano para me autorizar a acessar seus prontuários. Foi necessária muita persistência para conseguir adentrar seu espaço.

Pretendi, nessa primeira etapa de incursão no campo de pesquisa, mapear as internações compulsórias realizadas nesses Hospitais nos anos de 2012 a 2014. Meu objetivo, com esse mapeamento, era compreender melhor como essas internações funcionavam e quem eram as pessoas cuja vida vinha sendo atravessada pelo fenômeno da judicialização. Procurei ainda entender o que os profissionais tinham a dizer sobre os acontecimentos que se desdobram nesses espaços em decorrência das internações compulsórias. Portanto, tomei como guia fontes que me levariam a conhecer diferentes vidas que foram marcadas pela judicialização, entendendo a internação psiquiátrica compulsória como a estratégia encontrada para chegar até elas.

Os dois Hospitais pesquisados faziam parte naquele momento da rede de saúde mental da cidade pesquisada. Como esta expedição tinha como perspectiva produzir um campo expressivo sobre essa problemática optei por tratar os dois hospitais estudados assim como já havia tratado o cenário da cidade a partir de uma denominação estética. Chamei então um dos Hospitais de Azul e o outro de Amarelo diferenciando-os por cores para que pudesse explorar suas singularidades.

O Hospital Azul ofertava até aquele momento 30 leitos de internação psiquiátrica breve para adultos que se encontram em situação de crise decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, inclusive aqueles associados ao uso problemático e/ou abusivo de álcool e outras drogas. O Hospital Amarelo também ofertava leitos de internação psiquiátrica voltada para o mesmo perfil de população, mas com a diferença de ter duas vagas destinadas também para crianças e adolescentes.

O Hospital Azul foi fundado em 1919, inaugurado em 1924, e seu projeto de trabalho foi reformulado em 1990, quando deixou de funcionar na “modalidade de sanatório filantrópico”. Grande parte de suas instalações preserva a estrutura de sua fundação, com

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características típicas da arquitetura colonial. São prédios altos com portas e janelas grandes, algumas com vitrais muito bonitos, além de jardins contidos no seu interior e exterior.

Todo o Hospital Azul é cercado por muitas árvores, há uma mata e um pequeno córrego que fica logo na entrada. Quando se chega ao local, é possível sentir uma brisa fresca tão logo se atravessa a ponte decorada por mosaicos coloridos. Inicia-se, então, uma subida íngreme e, a partir daí, pode-se escutar o barulho do atrito dos pneus nos paralelepípedos que vão conduzindo o visitante até o Hospital. As árvores antigas parecem acolher bem quem chega. Na paisagem, destacam-se as jabuticabeiras que florescem e dão frutos todos os anos. Elas estão plantadas na praça externa e central. Essa praça contorna a via de entrada e saída do Hospital, conduzindo de certa forma todos os que passam por ali.

A unidade de internação psiquiátrica atual está instalada em um desses prédios coloniais, mas apesar da bela arquitetura externa, sua configuração interna é em grande parte escura e fria. Quando se adentra a unidade de internação, se tem acesso a duas grandes salas com mesas e bancos de cimento, paredes descascadas e um piso escuro cor de barro. Em uma delas, fica a televisão que esta suspensa numa altura impossível de alcançar com as mãos. Os quartos estão distribuídos em dois corredores. Um, à direita da primeira sala, onde também foi instalada a sala de equipe. O outro corredor fica ao fundo, após a segunda sala, onde também foi instalado o posto de enfermagem. Da segunda sala se pode chegar a uma espécie de jardim onde, por ser um ambiente externo, os pacientes ainda podem fumar. Já do outro lado dessa sala, está à porta que dá acesso ao refeitório, e que só é aberta nos horários das refeições.

O Hospital Amarelo foi inaugurado em 2008, com capacidade para receber duzentos e dezenove leitos de internação. Ele foi distribuído em seis unidades, sendo elas: Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, UTI Adulto, Ortopedia, Pediatria, UTI Pediátrica e Saúde Mental. Para a Saúde Mental foram destinados 20 leitos de internação. O Hospital foi construído com um modelo arquitetônico contemporâneo, é muito arejado, claro e bem iluminado. Foi acoplado a um terreno onde já funcionava o Pronto Atendimento, o Laboratório Central e um ambulatório.

Essa região era bastante carente no quesito atendimento médico especializado, já que fica bastante afastada da região central da cidade. É notável a mudança da paisagem, quanto mais distante do centro, mas rudimentar as construções vão ficando. Os prédios, em menor quantidade, vão adquirindo uma expressão mais simples, as casas também acompanham essa imagem e muitos barracões revestem os espaços comerciais da região.

A Enfermaria de Saúde Mental fica bem próxima à entrada, logo à esquerda, sua estrutura é muito parecida com as demais unidades do Hospital, com a diferença que a porta de

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acesso à unidade foi bem reforçada na estrutura e na maçaneta com o passar dos anos. Há grades em todas as janelas e no pátio externo, o que não ocorre nas demais enfermarias. Quando se adentra o local, caminha-se por um corredor único, por onde é possível ter acesso a toda a unidade. Ao longo do corredor, podem-se observar os primeiros leitos à esquerda e as salas de atendimento, de reunião de equipe e refeitório à direita, até que se chega a uma grande sala que rompe de certa maneira com a horizontalidade do corredor.

Essa sala é dividida por um balcão em formato curvilíneo. Do lado direito, encontra-se um espaço destinado à equipe, com mesas, computador, telefone, arquivos, copa e posto de enfermagem; do lado esquerdo, ficam a sala de TV, a sala de grupo e a sala de jogos que conjuga uma porta que dá acesso a uma pequena área externa. Os pacientes não podem fumar em nenhum dos espaços da unidade. Já do outro lado da sala, o corredor continua até o fim da unidade, e nesta parte encontramos os demais quartos e banheiros.

O posto de enfermagem em ambos os hospitais é um espaço que agrega muito os usuários, que costumam se concentrar ali para demandar coisas para a equipe. No Hospital Azul, as refeições são servidas fora da unidade e os pacientes podem montar o seu próprio prato com o auxílio das auxiliares de nutrição. No Hospital Amarelo, as refeições são realizadas dentro da própria unidade em marmitas individuais que são distribuídas pela equipe de enfermagem. Nesse, a saída da enfermaria é bem mais restrita, sendo liberada apenas para exames e consultas de outras especialidades. Excetuando esses casos, só se sai do espaço no momento da alta ou de eventuais fugas.

Em outros momentos, os dois Hospitais ofertavam atividades grupais e oficinas terapêuticas que, em geral, eram conduzidas pelas equipes multiprofissionais. O Hospital Azul chegou a fazer oficinas fora das suas dependências e ter monitores que conduziam um ateliê que ficava aberto ao longo de todo o dia, disto só restou atualmente uma ou outra saída acompanhada por algum membro da equipe até a cantina ou para consultas médicas, exames entre outros procedimentos clínicos ou odontológicos.

A proposta desse hospital, naquele momento, parecia caminhar na direção do que já vinha acontecendo no Hospital Amarelo, onde a equipe estava se constituindo preponderantemente por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem. Apesar de ainda existirem profissionais de outros núcleos de formação nos dois espaços, sua potência intensiva e extensiva tornava-se cada vez menor.

Por fim, há muitos rumores que se caminha para o fechamento da unidade de internação do Hospital Azul nos próximos anos. O fato de essa unidade perseverar em um espaço que

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outrora foi berço de um sanatório sempre foi tema polêmico entre profissionais, usuários, gestores e militantes da Saúde Mental de toda a cidade. Alguns discordam veementemente de sua existência, outros a defendem como projeto diferenciado e humanizado. Por ora, o campo de disputa se sustenta, mas sua existência vem sendo cada vez mais reduzida, a começar pelo número cada vez menor de leitos.

Após essa breve apresentação das dependências gerais das unidades de internação psiquiátrica pesquisadas considerei relevante descrever também para o leitor algumas características das salas onde encontramos os arquivos. Vocês vão notar que essas salas têm uma inscrição particular, pois carregam em silêncio o peso de uma centena de histórias, muitas delas esquecidas e empoeiradas.

No Hospital Azul não havia um profissional específico destinado para sua organização e manutenção. Portanto, já se pode imaginar a recepção que tive quando fui até a equipe solicitar os prontuários de que eu precisava. Você terá que nos solicitar os prontuários que você vai usar previamente porque não conseguiremos pegá-los para você no mesmo dia! Diziam algumas profissionais. Uma das vezes em que fui até o local, decidi me oferecer para ajudá-las, apesar de elas zombarem de mim e me garantirem que eu não conseguiria encontrá-los. Assim que entrei na sala de arquivos, compreendi afinal o que elas tentaram me dizer. Havia ali, naquela sala, um tipo de caos que só mesmo quem frequentava constantemente o local era capaz de superar.

Existiam armários com gavetas e muitas prateleiras, além de alguns bancos de madeira espalhados sem qualquer distribuição regular. A grande parte dos prontuários estava armazenada em caixas organizadoras com um número. Encontrar algo ali era quase como participar de um jogo de adivinhação. A impressão que se tinha é de que esses móveis e os prontuários foram levados para essa sala em alguma mudança realizada na instituição e que, depois disso, quase ninguém havia retornado ali para ter com eles algum contato mais intimo e regular. Já no final da pesquisa de campo precisei voltar ao local e essa sala havia sido transferida e organizada em outro espaço do hospital.

Como não era possível retirar os arquivos da instituição eu precisei realizar toda a pesquisa de arquivo no local. Providenciaram para mim uma pequena mesa e ali eu permaneci por muitas horas e vários dias. Com o passar do tempo, percebi que já havia construído uma espécie de intimidade com aquele espaço. Escavar os prontuários foi se tornando uma tarefa cada vez mais possível e inteligível para mim.

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Mas, de fato, compreender a dinâmica de um arquivo como os prontuários psiquiátricos é uma tarefa que requer paciência, dedicação e muito tempo do pesquisador, pois só após a construção de um campo relacional com os arquivos é que eles parecem revelar ao pesquisador os acontecimentos que eles guardam por entre seus registros, especialmente quando se trata de casos com volumes imensos que mais pareciam uma enciclopédia. Alguns desses acontecimentos inclusive eu pude posteriormente ouvir nos diálogos estabelecidos com alguns profissionais, usuários e familiares, o que colaborou também para que eu pudesse compreendê-los mais amplamente.

Já no Hospital Amarelo, o espaço destinado aos arquivos era enorme e extremamente bem organizado. Diria até que aquela sala mais parecia uma biblioteca, se não fosse o barulho permanente das profissionais responsáveis pela sua organização. Quase impossível se concentrar no que eu lia, tamanha a variedade de conversas que circulava pelo espaço. Apesar disso, a equipe costumava ter o cuidado de destinar uma mesa para que eu pudesse trabalhar enquanto estivesse por lá. Ali eu levei outro tanto de tempo para me organizar, afinal aquele era outro território a ser desbravado.

Depois de algum tempo por lá percebi que aqueles arquivos configuravam outro tipo de mapa que eu teria que aprender a percorrer e que o meu estranhamento no contato com eles não era apenas pelos barulhos que ecoavam do espaço, mas também pelos diferentes códigos e os relevos que emanavam daquela outra geografia. A predominância de um discurso médico e biológico nos seus registros fazia ver e falar a dinâmica de tratamento que o modelo hospitalar colocava nos processos de internação realizados dentro daquele hospital. Exames, diagnósticos e medicações se sobrepunham a outras estratégias de cuidado ofertadas aos pacientes ali internados.

Poder acessar aqueles prontuários, depois de quase um ano de insistência, significou para mim ainda a conquista de uma árdua batalha. Era como se tivesse na mão uma medalha, e eu certamente precisava fazer essa experiência valer muito a pena apesar de toda a adversidade que seu acesso impôs para o trabalho de campo dessa pesquisa.

Assim, após essa experiência de adentrar os hospitais por meios dos arquivos, foi ficando claro para mim que eu estava acessando outra dimensão do problema das internações compulsórias. Compreendi então o que Foucault (13) tentava dizer quando se referia a esse espaço como um dispositivo capaz de fazer o ver e falar o que estava do lado de fora. Pois, do lado de fora o que ouvimos é todo um discurso sobre a internação, mas os arquivos revelaram que aquilo que os pacientes que haviam sido colocados em seu interior viviam era, de fato,

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outra coisa muito diferente daquilo que habitualmente se discute acerca dessa problemática. Era algo que pouco se via e se falava sobre o acontecimento que compõe as internações compulsórias.

Dessa maneira, optei por narrar a minha passagem pelos arquivos como uma experiência de expedição, pois me dei conta que essa passagem pelos arquivos dizia respeito a uma forma de exploração de outra geografia. Eu havia, portanto, me deslocado do meu ponto de partida onde se discutia o lado de fora das internações compulsórias, para outro território onde pude acessar outra dimensão da problemática dessa modalidade de internação. Como vocês perceberão mais a diante com as narrativas dos arquivos, do lado de dentro das internações compulsórias a dimensão da vida resiste e ainda pulsa de forma bastante intensiva. A vida, portanto, não cessa com a internação, ela, ao contrário, insiste em se efetuar nesse espaço fazendo ver e falar uma série de acontecimentos que a compõe, desde suas atividades mais essenciais até as mais complexas.

Trata-se, portanto, de uma pluralidade de mundos que passaram a se expressar por meio do acesso aos arquivos. Nesse sentido, os prontuários revelaram no decorrer de sua exploração certos modos de vida que atravessam a vida das pessoas que foram internadas e que o discurso sobre a internação compulsória não podia nos mostrar.

Assim, contar as histórias guardadas nos prontuários foi o modo que encontrei para apresentar ao leitor esses outros elementos que a internação compulsória enquanto máquina quase muda e cega comporta em sua fabricação (9). Mas, antes de passarmos definitivamente para a apresentação das narrativas que procurarão contar ao leitor essas histórias, pareceu-me importante produzir um pequeno mapa onde procurarei reunir algumas informações que podem servir como ferramentas de experimentação das narrativas que nos esperam a seguir.

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2.4 OS ARQUIVOS

Figura 8 - Intitled. 1970-1971

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Encontramos registros de quarenta e quatro internações compulsórias nos arquivos dos Hospitais Azul e Amarelo entre os anos de 2012 e 2014. Uma quantidade irrelevante, se comparada ao montante total das internações psiquiátricas realizadas pelos dois hospitais nesse período: duas mil oitocentos e trinta e sete internaçõesp. Contudo, a quantidade intensiva, o quantum3 de força presente nas internações compulsórias constitui um plano que expressa formas e sentidos que acredito que deveriam ser mais explorados, uma vez que essas internações constituem uma modalidade de ação, ação através da qual o real é transformado (14, 6 p349).

O Hospital Azul possuía um levantamento de suas internações compulsórias e me disponibilizou essa informação. A equipe desse serviço estava sensível a esse tema em razão de algumas experiências vividas com alguns pacientes. Propuseram inclusive uma conversa com alguns atores do sistema judiciário, na qual procuraram lhes explicar como funcionava o trabalho desenvolvido no hospital. Essa conversa foi lembrada no momento de devolutiva que realizei com essa equipe como uma espécie de marca intensiva, uma linha de fuga da condição de impotência que até então experimentavam com o campo jurídico.

O Hospital Amarelo não possuía esse levantamento e precisei construí-lo a partir de outros dados que eles me ofertaram. Para isso, cruzei a tabela de usuários admitidos na internação da enfermaria com os relatórios de alta e os relatórios judiciais que haviam sido salvos no computador que ficava na sala da equipe, o que me rendeu um trabalho enorme. No momento da devolutiva, a equipe do Hospital Amarelo não trouxe muitas dificuldades na relação com o setor jurídico, muitos dos casos levantados foram recordados. Nessa conversa se destacaram, sobretudo, as internações compulsórias solicitadas por instituições que atuam com adolescentes e adultos em conflitos com a lei.

Ao longo do processo de mapeamento ficou claro que não período estudado as internações psiquiátricas compulsórias não eram tomadas como um indicador de saúde. Elas entraram nos registros de dados dessa rede de saúde mental como outra internação psiquiátrica qualquer. Portanto, diziam respeito a algo que não era possível ver nem falar. Uma espécie de acontecimento imponderável.

3 Segundo Paschoal, “um quantum não é algum tipo de matéria ou qualquer coisa que corresponda à ideia de ’ser’

(Daisen), mas algo que pode ser designado como ‘quantidades de ação’, ‘proporções de querer’, ‘força e ação’ [...] um quantum designa ação, produção de efeito (wirkung), dinamicidade e relação (wirken) com outros quanta” (14 p363).

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No Hospital Amarelo, encontramos vinte e oito casos, no Hospital Azul, dezoito. Dentre esses casos, dois foram transferidos de um hospital ao outro, o que se configurou no registro duplicado de internação compulsória.

No Hospital Amarelo não houve recorrência de internação compulsória nesse período. Já no Hospital Azul duas pessoas foram internadas compulsoriamente por duas vezes consecutivas, consta ainda uma terceira pessoa que tem registro de duas internações compulsórias, porém se trata de um episódio de evasão e posterior retorno dessa paciente ao hospital. Além disso, outras quatro pessoas estiveram internadas ao longo de dois dos anos levantados.

É no mínimo intrigante perceber como a dinâmica das internações compulsórias apontam algumas diferenças de funcionamento entre esses dois espaços. Enquanto no Hospital Amarelo as internações compulsórias não se estendiam por mais de um mês, no Hospital Azul houve casos cuja internação durou mais de dois anos.

Uma das justificativas para essa discrepância foi o fato de que o Hospital Amarelo entendia que a alta da internação era uma indicação médica, enquanto no Hospital Azul a alta só era realizada mediante autorização judicial. Alguns casos do Hospital Azul inclusive passaram por exame pericial realizado por um perito indicado pelo juiz ou promotor responsável.

As diferentes interpretações sobre o fluxo das internações compulsórias presentes no funcionamento dos hospitais apontam nuances do campo de disputa existente entre as relações de saber-poder presentes nos campos médico-psiquiátrico e jurídico. Assim, nos pareceu que, no Hospital Amarelo, onde a internação acoplou o saber-poder psiquiátrico a outras especialidades da medicina, as relações de força tecidas entre os campos médico e jurídico revelaram efeitos de uma forte incidência do poder da medicalização sobre os corpos, enquanto, no Hospital Azul, cuja internação se insere em um espaço fortemente marcado por inscrições da psiquiatria, pode-se notar uma proeminência do processo de judicialização das condutas (15, 16).

Nos relatórios expedidos ao judiciário por ambos os hospitais fica evidente que a postura dos serviços é muito destoante. No Hospital Amarelo a conduta da equipe é de comunicar sua indicação de alta médica ao juiz e não associar a liberação do paciente com a resposta judicial. As exceções encontradas a essa forma de agir dizia respeito àquelas situações em que o paciente de fato não teria alta, pois seria encaminhado para outra instituição, como a prisão ou centro de atendimento socioeducativo de menores.

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Já o Hospital Azul, em geral, elaborava um primeiro relatório ao juiz esclarecendo as características da hospitalidade do seu serviço4, ressaltando que seu funcionamento se orientava pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica e solicitando uma autorização judicial para indicar licenças médicas e participação dos usuários em atividades externas. Tais práticas aconteciam com a maior parte dos pacientes que estavam internados voluntariamente no serviço, apontando que dentro da mesma rede havia diferentes modos de conduzir o processo de internação psiquiátrica.

Assim, diferente do Hospital Amarelo, onde o paciente só saía do espaço da internação mediante alta médica, no Hospital Azul os pacientes podiam sair do espaço do hospital durante seu processo de internação. Portanto, quando a equipe do Hospital Azul era autorizada pelo juiz para proceder com estratégias de cuidado fora do espaço físico do hospital, a equipe desse serviço iniciava a construção de propostas terapêuticas realizadas junto a outros serviços da rede de saúde mental e as suas famílias. Em alguns casos, isso suscitava movimentos de fuga dos pacientes internados compulsoriamente e concomitantes incômodos e conflitos na relação dessa equipe com as famílias e a justiça. Nos casos estudados, a maioria das vezes em que fugas aconteceram, os pacientes retornaram espontaneamente para o hospital após algum tempo e, assim, o seu acompanhamento no regime de internação prosseguia.

A equipe do Hospital Azul relatava nos prontuários suas dificuldades com a morosidade para obter respostas do sistema judiciário. Faziam questão de registrar nos prontuários que entendiam que a demora do judiciário em autorizar a alta de alguns pacientes interferia no estado emocional deles. Havia ainda um movimento dessa equipe para sensibilizar as famílias para que elas concordassem com a indicação de alta dos pacientes, e propunham que elas reforçassem com os agentes do sistema judiciário as indicações de alta.

A maior parte das famílias acabava cedendo às orientações dadas por essa equipe. Houve situações em que a família retirou o pedido de internação compulsória e outros em que os responsáveis procuravam seus advogados dizendo que concordavam com a indicação de alta prescrita e reiterada pelos relatórios expedidos para o juiz. Mas também foram encontrados casos de internação compulsória em que algumas famílias se colocavam mais resistentes às indicações de alta.

4 O termo hospitalidade apresentado nesse parágrafo tem como objetivo expressar o ato de hospedar, ou seja,

receber e cuidar de alguém que é tomado como paciente por esse anfitrião que é a equipe do hospital. Trata-se de um termo bastante utilizado nos relatórios elaborados pela equipe e para nós pareceu sempre ser uma tentativa discursiva de ressaltar o caráter provisório (de passagem) que a hospitalização deveria comportar.

Referências

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