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4.2 SÉRIE B GUERRILHAS COTIDIANAS

4.2.2 Os semblantes das diferenças

Figura 36 - Identical twins, Roselle, N.J. 1967

“Aqui no Hospital, nós da equipe do setor de internação não vemos muitas diferenças entre as internações compulsórias e as internações involuntárias e as voluntárias. Por exemplo, muitos casos que você [estão se referindo a pesquisadora] está acompanhando na sua pesquisa de internações compulsórias estão internados agora em internações voluntárias e involuntárias. Nós temos refletido que as internações têm funcionado no molde de uma porta giratória. Penso que tem uma invisibilidade da judicialização da vida que opera em todo tipo de internação psiquiátrica. Quando a gente fala dos pedidos de internações compulsórias, das solicitações das internações voluntárias e involuntárias por parte dos serviços da rede, e do processo de institucionalização de alguns pacientes em tratamento nos CAPS que são serviços abertos, para mim em todas essas frentes estamos dando a mesma resposta, todas estas coisas convergem para o mesmo ponto”.

“Ainda a esse respeito, trabalhando aqui na internação, eu como trabalhador da rede de saúde mental me faço a seguinte pergunta: Por que nós nos estressamos tanto quando a internação é judicial, mas quando a internação é solicitada pela rede de saúde não? Qual a diferença quando a solicitação de internação vem de um serviço de saúde? É apenas porque somos pares, iguais? Fico pensando nos casos que patinaram aqui no hospital. Qual a diferença entre nós pedirmos para o juiz dar a alta e termos que pedir autorização para as equipes para dar à alta? Como a equipe da internação fica nestes casos? Hoje em dia, a construção de diálogo com o judiciário muitas vezes é mais fácil que com alguns dos nossos serviços de saúde mental.”

“Acho que você [estão se referindo a pesquisadora] precisa tomar cuidado com os dados, para não enviesar as informações. Você podia fazer um comparativo entre as internações compulsórias e as internações voluntárias e involuntárias realizadas e o tempo de duração de todas as internações. Seria importante detalhar esses pedidos e as internações por serviços, pois a postura de alguns CAPS na condução das internações voluntárias não é tão diferente assim da postura que falamos que deve ter o setor judiciário. Temos casos internados no Hospital que se tornaram moradores, e essa situação, muita vezes, tem relação com o sentido que algumas equipes construíram sobre a internação”. Afirma outro profissional da equipe de internação.

“Existem algumas diferenças entre as internações psiquiátricas nos dois Hospitais municipais da cidade. Eu não sabia que no Hospital Amarelo não se aguardava a autorização do juiz para definir a alta dos pacientes. Eu me surpreendi com essa informação! Mas por que é, então, que nós funcionamos de maneiras tão diferentes?”, ressalta outro membro desta equipe.

“A grande maioria das internações compulsórias chega aos hospitais por um motivo, mas, na verdade, a razão da internação costuma ser outra. As famílias não conseguem pensar em outras formas de tratamento, para além da internação. Mas como podemos questionar as famílias se muitas vezes as próprias equipes pensam assim? Não é raro as próprias equipes nos questionarem sobre o porquê de estarmos deixando o paciente sair do setor. Eu te pergunto: por que as famílias teriam que pensar diferente?” problematiza um dos profissionais.

“Percebemos que as internações compulsórias não ocorrem por falta de acesso à rede psicossocial territorial, e sim por sofrimentos e conflitos familiares intensos ou por furos da rede, quando a família não entende o que se passa com o usuário, quando a relação com o serviço de saúde (em geral os CAPS) fica truncada” destaca outro profissional.

“A experiência com as internações compulsórias me fez compreender que existem interpretações muito diferentes sobre a própria lei. Lembro quando a gente tinha que pedir autorização do juiz para deixar o paciente sair do setor para almoçar. Quando eu entrei, eles ficavam literalmente presos, não podiam sair nem para almoçar no refeitório. Às vezes, o juiz não nos autorizava sequer a propor atividades externas para os pacientes internados compulsoriamente. O tempo da Saúde é diferente do tempo da Justiça. Nós ficávamos muito desmotivados, nessa época, cada vez que chegava uma nova internação compulsória, pois não tínhamos nenhuma autonomia para construir o tratamento desses pacientes. A intervenção judicial muitas vezes divergia do modelo de saúde mental com o qual estávamos nos propondo a trabalhar” coloca outro membro da equipe de internação.

“Hoje em dia, o judiciário nos reconhece como profissionais que têm um saber técnico sobre os casos, isso muitas vezes não acontece quando estamos dialogando com alguns serviços de saúde mental. Há algum tempo atrás, organizamos uma reunião com o judiciário. Nessa reunião, percebemos que eles desconheciam completamente o funcionamento dos hospitais. Foi uma reunião histórica para nós. Disparamos muitas coisas depois daquela reunião. Os juízes e promotores não conheciam sequer o nosso espaço físico, achavam que tínhamos muros altos e grades. Eles se surpreenderam quando souberam que os CAPS não tinham transporte para realizar busca ativa dos pacientes. O imaginário deles sobre as internações era totalmente diferente da internação que nós propomos. Um exemplo é o fato de oferecermos atividades externas e propostas de licenças no decorrer da internação. Para eles (judiciário), a internação tinha muito um efeito de condenação. Antes desta reunião, tínhamos muito menos autonomia para indicar licenças e propostas terapêuticas para os pacientes internados compulsoriamente do que hoje em dia” outro profissional aponta.

Esse diálogo foi construído a partir dos encontros que realizei com as equipes dos dois Hospitais estudados. Ao finalizar essa etapa da pesquisa, tive a sensação de que havia um processo de reformulação da prática de internação em curso na Cidade Invisível.

Havia entre eles uma força de problematização e um desejo pulsante de reformulação da própria prática. Meses depois, pude acompanhar os primeiros passos da equipe do Hospital Azul rumo ao fechamento desse serviço e a promessa de abertura de algumas poucas vagas novas no Hospital Amarelo.