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Essas foram algumas das histórias que encontramos pelo caminho, na nossa expedição pelos arquivos pesquisados nos hospitais Amarelo e Azul. Essas histórias nos lançam na experimentação de uma variedade de afectos em relação aos diferentes sujeitos nelas envolvidas. Pacientes, familiares, profissionais de saúde, agentes da lei, peritos, advogados e juízes se movimentam no espaço enquanto as histórias se desenrolam.

Os prontuários em geral, assim como o discurso da internação, tratam muito pouco dos sujeitos que estão ali envolvidos, e até mesmo sua escrita exerce sobre os sujeitos uma espécie de prática de silenciamento. Para encontrar a vida que eles obliteram, foi preciso escarafunchar suas páginas e seus anexos. Em muitos deles encontrei materiais mais sensíveis, guardados nos plásticos que costumam ser colocados no final dos prontuários. Ali havia cartas, desenhos, relatos de supervisão e cópias dos processos jurídicos que foram de extrema importância para a construção das narrativas. Deles procurei extrair alguns traços das formas de vida que foram compulsoriamente conduzidas para esses hospitais, compondo com estes traços pequenas regiões, de modo que fosse possível fazer notar o estilo de jogo implicado naquele território de disputas de poder-saber.

Denominamos essas regiões de “espaços de indiferença”, “terrenos obstruídos”, “zonas de destruição”, “solos insubordináveis”, “sinais que vão pra rua” e “as fronteiras da maternagem”. Ao apresentar essas regiões ao leitor, pretendi conduzí-lo por um caminho que possibilitasse ver e ouvir aquilo que está guardado nos arquivos, bem como perceber os corpos indóceis e os movimentos heterogêneos de desassujeitamento que essas existências comportam. Essa experimentação tem como objetivo tentar libertar do aprisionamento dos arquivos algumas formas de vida que o diagrama das internações compulsórias silencia, enquanto o dispositivo do hospital as distribui, reorganiza e posteriormente as arquiva.

Os sujeitos que ali vão sendo armazenados e esquadrinhados reagem pondo em questão as estratégias de poder-saber sobre eles aplicadas. Eles fumam, levam drogas, quebram objetos, fogem, tem relações sexuais desprotegidas, fazem amigos e inimigos, enquanto a “vida normal” segue contida do lado de fora dos muros dos hospitais.

Com isso, percebemos que esses casos de internação compulsória não só expõem o modo como certas estruturas e instituições sociais lidam com determinadas condutas humanas, mas também explicitam os alcances limitados dos “tratamentos de saúde mental” ofertados.

As ações desses sujeitos, portanto, não interrogam apenas as formas de controle e dominação vigentes na nossa sociedade, mas também o próprio regime de saber e de poder que delineia o campo da saúde mental no contemporâneo. Talvez por isso a própria política reformista não tenha avançado muito no processo de problematização da prática da internação compulsória até esse momento. Ao que parece, sabe-se muito pouco o que fazer com essas existências anormais, ou talvez não se queira efetivamente produzir algo com elas.

Assim, o sujeito judicializado é antes de tudo um sujeito que apresenta uma postura crítica em relação às formas de controle que tentam se impor sobre ele e seu corpo. Ele nos sinaliza seus rastros, suas marcas inclusive as impressas pelas práticas preconizadas pela Saúde Mental. Ele é, sobretudo, um sujeito que resiste às formas de servidão, pois não se submete facilmente nem às normas sociais nem as práticas antimanicomiais.

Dessa maneira, onde as evidências talvez insistissem em discutir a judicialização na Saúde Mental à luz de um debate histórico entre as práticas manicomiais e antimanicomiais, nossa aposta foi tratar dessa questão por meio da problematização de um campo de lutas entre o normal e o anormal, apoiando-nos em um processo de ruptura com uma suposta verdade construída em torno da Reforma Psiquiátrica. Verdade esta que em muito fundamenta a forma atual de saber e as práticas dos profissionais de saúde mental, inclusive a minha própria como trabalhadora de uma Rede de Atenção Psicossocial brasileira.

Nesse sentido, minha imersão nos arquivos levou-me a pensar que o problema da judicialização no campo da Saúde Mental não deve ser focalizado nem nas internações compulsórias, nem em explicações embasadas pelo discurso reformista. Pois,

[...] o problema, vejam, é o do sujeito da ação – da ação através da qual o real é transformado. Se as prisões, se os mecanismos punitivos são transformados, não será porque se terá posto um projeto de reforma na cabeça dos assistentes sociais; será quando aqueles que têm de se haver com essa realidade, todos eles tiverem se chocado entre si e consigo mesmos, quando tiverem encontrado impasses, embaraços, impossibilidades, quando tiverem atravessado conflitos e enfrentamentos, quando a crítica tiver sido atuada no real, e não quando os reformadores tiverem realizado suas idéias (6 p349).

Dessa forma, buscamos ao longo desse capítulo desenvolver o nosso problema de forma a narrar sua formação imanentemente conflituosa, pois foi a partir dessa perspectiva de conhecimento que empreendi a sua escrita.

Assim, é importante ressaltar que para esse trabalho a produção de conhecimento nada mais é do que uma relação estratégica, em que se fabrica não uma verdade universal, mas uma perspectiva, um apontamento que lança o pesquisador em direção ao “desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, de política da verdade” (23 p39).

Nessa direção, me despeço dos arquivos, partindo para o estabelecimento de um contato mais intensivo com os sujeitos neles confinados através da discussão de um dos casos do arquivo.

Ao passo que fui deixando os arquivos para trás, notei que também aquele corpo de trabalhadora militante foi tomando certa distância da paisagem da investigação. Deparei-me então com outro corpo que, em ebulição, estava prestes a ganhar outros contornos, aquele da pesquisadora que devia em mim. E é ela que, nesse momento, buscava se dessubjetivar e partir para a ação à procura de novas experimentações com os sujeitos da pesquisa.

Figura 16 - Os arquivos, Campinas. 2016

3 DA INDIGNIDADE DE FALAR PELOS OUTROS

Figura 17 - Headless woman. 1961

Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Clarice Linspector