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3.2 NOTAS SOBRE O DOSSIÊ ANA FERRAZ

3.2.3 Nota Três A coragem de Ana

Não poderíamos deixar de destacar nesse dossiê a atitude de coragem que Ana anuncia por meio do seu estilo de vida. Trata-se de uma forma de existência muito particular que como vimos circula as margens das instituições, das leis e dos grandes grupos sociais sem se enquadrar a elas. Não há em Ana nenhum sinal de interesse em convencer ninguém sobre suas escolhas e seu modo de vida. Ela é uma nômade que enfrenta os eventos que acontecem e assume os riscos da forma que escolheu viver sem poupar nada nem ninguém.

Sua insubmissão nos remete a problemática discutida por Foucault (57) sobre a prática do dizer verdadeiro, em especial quando trata do estilo de vida cínico em seu último curso. Segundo o autor, os cínicos viviam de forma a demonstrar publicamente suas experiências de vida. Para eles a condição para a felicidade era a liberdade em relação a qualquer lei, norma ou instituição social. Por meio de um despojamento que lhes era peculiar, os cínicos transgrediam os valores estabelecidos pela sociedade levando a prática da veridição a um ato de provocação que em muitos casos podia suscitar-nos algo do intolerável.

O dossiê de Ana nos apresenta elementos de como ela desestabiliza aqueles que a cercam como o seu modo de se relacionar consigo mesma e com os outros. Ela causa uma estranheza, uma exterioridade no modo como estamos acostumados a ver e a pensar o homem. Neste sentido, Ana se constitui como um sujeito que denuncia a impossibilidade de confiarmos na existência de um sujeito universal e estático. Com a própria vida, ela explicita como cada um de nós comporta uma multiplicidade de modos de existência que não podem ser reduzidos a um tipo ideal de sujeito moderno.

Portanto, não é em torno de um saber que se constrói fundado no justo e no universal que encontraremos uma resposta para o problema da saúde mental. É no que não percebemos em nós mesmos, em algo visível que poderemos encontrar essa verdade que não costuma ser dita, apesar de estar tão intimamente ligada a nós.

A batalha que Ana se encontra é imediata, é cotidiana. Seu agir revolucionário pode ser observado na atitude com que exerce a sua própria vida. Ana reinventa a cada dia um modo de resistir ao império da normalização. É essa coragem marginal, esse contra-poder que precisa se tornar visível e deve orientar as práticas de quem quer agir a favor da resistência e da militância no presente.

A coragem cínica consiste em algo que nos remete a isso, trata-se dessa outra forma de viver verdadeiramente que costumamos rejeitar, desprezar, condenar com nossos próprios

modos de vida. Talvez por isso a vida de Ana pareça tão chocante e infame, pois é sobre a forma de uma ciência normalizada, regulada e instituída que estamos habituados a acessar a verdade (58).

As escolhas de Ana são um escândalo da verdade, uma ruptura com as convenções, os hábitos e os valores de sua sociedade. Como alguém pode viver na rua tendo condições materiais e intelectuais para viver em uma casa ou uma pensão? Como uma mãe tão boa pode preferir usar drogas e se prostituir a criar as suas filhas e preservar sua estrutura familiar? Como as filhas de uma mulher dependente de drogas podem se recusar a receber a mãe em sua casa? Eis um teatro visível de um evento intolerável para os padrões modernos, mas que é perfeitamente real.

Por esse motivo podemos pensar que Ana e sua rede empreendem com as próprias vidas um processo de diferenciação e singularização sobre os padrões normalizadores que vivenciamos na atualidade. Seu modo de viver é uma atitude crítica sobre a ortopedia das normas de conduta vigentes. Tanto anteriormente com os arquivos como agora com o dossiê o que encontramos foram “sujeitos expressivos” que problematizam as condições de existência do presente dando visibilidade às lutas que se desenrolam nas relações de poder, bem como às estratégias e táticas de resistência e contra-poder possíveis de serem tramadas frente ao maciço processo de desqualificação que vem se operando sobre certas subjetividades (59 p6).

Assim, onde a ditadura do saber científico vê uma vida anormal e dependente de drogas e instituições, outras formas de saber podem reconhecer um exercício de liberdade e de alianças com objetos, pessoas, instituições e materiais, levando-nos a interrogar sobre quem realmente está vivendo de forma dependente na modernidade? Seria mesmo Ana nessa sua maleabilidade? O que nos fica desse mergulho no dossiê de Ana é que se há “formas de vida dependentes” que estão sendo anunciadas, veiculadas e investidas pelo governo como corpos abjetos. Também encontramos “outros modos de vida dependentes” que seguem velados nas vielas que contornam a nossa sociedade como problemas sem importância.

Nesse sentido, parece fundamental que “um pesquisador monstruoso” que esteja implicado com a reinvenção de outras táticas de resistência e contra-poder possa se conectar ao campo de investigação também com uma atitude corajosa. Pois é essa qualidade da força que pode o guiar em sua tarefa crítica.

Para Foucault

[...] a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus

discursos de verdade; pois bem, a crítica será a arte da inservidão

voluntária, aquela da indocilidade refletida. A crítica teria

essencialmente por função o dessasujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade (23 p39).

Assim, orientados por essa tarefa passaremos então ao próximo capítulo onde apresentaremos alguns elementos colhidos dos encontros que tivemos com profissionais de saúde no decorrer da investigação.

Além do contato realizado com os arquivos e o caso de Ana Ferraz, os encontros com os trabalhadores de saúde se destacaram como um analisador importante da produção da judicialização e da medicalização no contemporâneo. O leitor poderá notar a seguir como esses sujeitos também podem nos fazer ver e falar de outras perspectivas sobre a problemática da normalização.

4 OS PIROTÉCNICOS

Figura 30 - Fire Eater at a carnival, Palisades Park, N. J. 1956

Alguns não conseguem afrouxar suas próprias cadeias e, não obstante, conseguem libertar seus amigos. Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas? Friedrich Nietzsche

Como dissemos anteriormente, aconteceram muitas mudanças na Cidade Invisível no período em que desenvolvemos esse trabalho. Com o avanço do processo de judicialização sobre as práticas de Saúde Mental, uma grande transformação na paisagem começou a se desenhar. Um processo de enrijecimento dos movimentos e uma aridez dos contatos tomou conta de quase todo o espaço de produção da rede pública de saúde.

Essa rede, composta em grande parte de pessoas, pouco a pouco foi atravessada mais intensivamente por esse jogo da normalização, em que as forças que se apresentavam apontavam ora para um processo de implantação de uma série de normas que passaram a regular as relações, ora para formas de resistência que insistiam em buscar, por entre as fissuras, outras formas de efetuação.

Nesse sentido, é nos movimentos tecidos pelos profissionais de saúde mental que procuramos, neste capítulo, captar esses acontecimentos. O diagrama da internação compulsória foi tomado por nós, neste momento, como uma estratégia de acesso à realidade que se impunha sobre nosso campo de pesquisa.

Assim, como pesquisadora, mergulhei nesse campo, atravessada por uma série de implicações e experiências extraídas do próprio exercício de ser uma das trabalhadoras desta rede de saúde mental. Talvez por isso este momento da pesquisa tenha sido o mais difícil de produzir, pois o trânsito entre ser, ao mesmo tempo, protagonista e participante desse processo de investigação levou-me a uma prática híbrida muitas vezes perturbadora e desterritorializadora dos lugares e papéis que exercia concomitantemente. Ao longo do processo de investigação, sofri e reagi de diferentes lugares a muitos dos acontecimentos que passarei a apresentar ao leitor nas próximas páginas.

Organizei sua apresentação em três séries, nas quais procurei narrar os jogos e as batalhas percebidas no decorrer da construção da investigação. Veremos como estas disputas, em certos momentos, se sobrepõem à cena da própria internação compulsória, que se transforma em uma ferramenta de sua veiculação. Ao percorrer essas séries, denominadas “Conflitos Intoxicados”, “Guerrilhas Cotidianas” e “Batalhas entre Gigantes”, o leitor irá se deparar com movimentos das próprias equipes de saúde mental recorrendo à judicialização, também irá acompanhar debates nos quais as equipes experimentaram processos de judicialização em seus próprios corpos e práticas e, finalmente, será conduzido para a vivência do campo árduo dos embates de poder e saber tecidos entre diferentes modelos de atenção pública que vão da saúde mental até os campos da justiça e da assistência social.

A força de todos esses discursos que atravessam o jogo que envolve os profissionais de saúde mental no processo de judicialização da vida me fez pensar que essa segmentariedade acaba por compor um “discurso intoxicado”, do qual todos fazemos parte, sustentando e sendo sustentados por ele no contemporâneo.

O tema da autonomia e do controle sobre o próprio processo de trabalho faz ver e falar os estados de dependência aos quais os profissionais se sentem mais ou menos submetidos. Além disso, o descontrole sentido pelos usuários nas cenas de uso de drogas se atualiza agora no espaço dos serviços e nas cenas de desestabilização vivenciadas pelos profissionais.

Como veremos, a problemática da dependência de drogas que, em geral, tem motivado os pedidos de internação compulsória pode ser também sentida na experiência clínica e de gestão dos profissionais que integram a rede de saúde mental estudada. Assim, o anormal se faz presente nos jogos que se desenrolam por meio das práticas de saúde mental vigentes, conduzindo também os profissionais para esse terreno monstruoso.