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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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Academic year: 2021

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A INTERFACE ENTRE LÍNGUA E CULTURA, OU DE COMO UMA GRAMÁTICA CUMPRE UMA FUNÇÃO RELACIONAL

Maria Helena Mira MATEUS1

RESUMO

Partindo da afirmação de que “a língua é um factor de identificação cultural”, revêem-se diferentes perspectivas das relações entre língua e cultura e entre língua e pensamento, perspectivas que emergem das obras de Herder (século XVIII), Humboldt (século XIX), Whorf e Sapir (século XX). Faz-se em seguida uma referência à gramática generativa e à sua característica de teoria mentalista. A par desta teoria, refere-se a importância que foi adquirindo, na segunda metade do século XX, a teoria variacionista decorrente de estudos sociolinguísticos e da análise da variação das línguas. Essa variação interage com a variação cultural das sociedades, o que permite concluir que o estudo da variação linguística na sua vertente gramatical põe em relevo a função relacional que a gramática exerce como uma interface entre a língua e a cultura.

PALAVRAS-CHAVE

Identificação cultural; sociolinguística; variação linguística; bilinguismo; crioulo

Existe um pressuposto de que partimos muitas vezes nas reflexões sobre as relações

entre língua e cultura e que está contido na frase: a língua é um factor de identificação

cultural. Verificamos no entanto que, frequentemente, uma só língua identifica culturas

distintas, bastando referir o Inglês, o Castelhano ou o Português.

Ao questionar esta afirmação fui levada a rever diferentes perspectivas sobre as relações

entre língua e cultura. Julguei de interesse iniciar essa reflexão lembrando Herder, um

filósofo do século XVIII cuja obra teve grande influência nos séculos XVIII e XIX.

Herder e os filósofos que se lhe seguiram romperam com a perspectiva empirista e

descritiva do estudo das línguas, e passaram a atribuir à linguagem uma nova atenção

1

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras / Instituto de Linguística Teórica e Computacional, Rua

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desenvolvendo uma progressiva reflexão sobre as funções das línguas na sua relação

com aspectos das culturas nacionais.

É neste enquadramento que se entendem afirmações como as dos Românticos alemães,

com relevo para Wilhelm von Humboldt que, no século XIX, estabeleceu uma relação

entre as línguas e as culturas dos povos. No ensaio Sobre a origem das formas

gramaticais e sobre a sua influência no desenvolvimento das ideias pode ler-se que o

que caracteriza o mérito de uma língua são as suas formas gramaticais, que permitem a

representação do pensamento abstracto.

Mesmo quando não dirigimos voluntariamente a atenção sobre uma forma gramatical, ela produz e deixa a impressão de uma forma, e deste modo favorece o desenvolvimento do pensamento abstracto (HUMBOLDT, 1822-23, p.37)

Para Humboldt, as características da forma possibilitam o reconhecimento da "acção do

pensamento", pelo que

uma língua nunca alcançará uma excelente constituição gramatical se não tiver o feliz privilégio de ser falada, pelo menos uma vez, por uma nação de inteligência viva ou de pensamento profundo (HUMBOLDT, 1822-23, p.33).

Para este filósofo existe portanto, entre língua e pensamento caracterizador de uma

nação (entenda-se também, da sua cultura), uma dialéctica impulsionadora da elevação

do pensamento abstracto, que tem como motor inicial a superioridade da comunidade

nacional.

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como exemplo marcante a concepção dessa relação expressa por linguistas e

antropólogos norte-americanos.

O contacto e a análise de línguas índias da América ao tempo pouco conhecidas,

sobretudo da língua dos Hopi, levaram Benjamin Lee Whorf, linguista e antropólogo

(embora engenheiro de formação) a registar diferenças estruturais entre essas línguas e

as indo-europeias ocidentais, pondo em destaque o facto de a língua Hopi poder

transmitir numa única expressão o espaço e o tempo, diferentemente das línguas em

que as duas noções se verbalizam em expressões independentes.

Whorf concluiu que a apreensão da realidade decorre das formas que a língua põe à

disposição dos falantes. Veja-se como Whorf explicou o modo como a língua Hopi

exprime a noção ‘espaço-tempo’:

Entre as propriedades peculiares do tempo em Hopi está a de que o tempo varia com cada observador, não permite a simultaneidade e não tem dimensões, isto é, não lhe pode ser atribuído um número maior do que um. Os Hopi não dizem: “Eu fiquei durante cinco dias” mas “Eu parti no quinto dia” (WHORF, 1956, p. 216).

Em consequência, as línguas, segundo Whorf, evidenciam diferenças estruturais entre

si, e essas diferenças reflectem-se na cultura:

Cada língua é um vasto sistema diferente dos outros no

qual são ordenadas culturalmente as formas e as

categorias pelas quais as pessoas não só comunicam

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e de fenómenos, ordenam o seu raciocínio e constroem a

sua consciência (WHORF, 1956, p.252).

De acordo com esta perspectiva, Benjamin Whorf recusa a teoria de uma gramática

universal, tal como recusa os princípios universais do pensamento: Por isso afirma:

“Não existe uma fonte universal do pensamento humano. Os falantes das diferentes

línguas vêem o Cosmos diferentemente, por vezes de modo aproximado, por vezes de

modo bastante diferente”.

A personalidade fascinante de Whorf, a novidade das suas teorias e o contacto com

Sapir que foi o seu professor em linguística fez com que as posições dos dois fossem

agregadas no que se denomina a hipótese de Sapir-Whorf. Na realidade, porém, existem

bastantes diferenças na perspectiva de ambos sobre a relação entre língua e cultura.

Na obra de Sapir, Linguagem, surgida em 1921, a relação entre língua, raça e cultura

não implica uma interdependência como fazia a perspectiva whorfiana:

Nada mais fácil que provar que um grupo de línguas não tem qualquer correspondência necessária com um grupo racial ou uma área cultural. Pode-se até mostrar que uma só língua não raro intercepta linhas de raça e cultura (…) O que se dá com a raça, dá-se com a cultura. Línguas sem qualquer parentesco partilham de uma só cultura; línguas intimamente cognatas - quando não uma língua única - pertencem a círculos de cultura distintos (SAPIR, 1921, pp.206 e 210-11)..

Sapir foi um linguista "mentalista" preocupado com a face oculta da língua, ancorada

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linguístico subjacente à superfície apreensível. Esse nível, que permite o funcionamento

geral da língua, constitui a sua gramática que todos os falantes possuem mas de que não

tomam consciência. Esta perspectiva teve sequência durante o século XX.

Nos últimos sessenta anos desse século, um conjunto de orientações no estudo da

linguagem, em interacção com o aprofundamento no conhecimento do cérebro,

inflectiu para uma relação entre linguagem e cognição. Neste percurso, a linguística

recebeu, a partir de então, uma valiosa contribuição da teoria generativa desenvolvida

por Chomsky que recusou uma análise das línguas puramente descritiva e

fundamentada na psicologia behaviorista.

Na perspectiva generativa, os estudos linguísticos procuram utilizar os factos das

línguas para identificar os princípios da gramática universal e a sua relação com

mecanismos psicológicos, e radicam na convicção de que o homem possui uma

faculdade particular, a faculdade da linguagem.

Estamos assim afastados dos dois conceitos atrás referidos no que respeita à relação

estabelecida entre língua e cultura:

 Por um lado, os estudos linguísticos deixaram de incluir a análise da diversidade

das línguas com o fim de demonstrar que elas provam, na sua complexidade, o

nível idêntico de complexidade cultural atingido pelas comunidades que as

falam, (Humboldt).

 Por outro lado, não se considera já que as línguas sejam condicionadoras de

uma específica maneira de interpretar a realidade (Whorf).

A partir de meados do século XX, e em paralelo com a perspectiva cognitivista da

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apreensíveis a partir de análises variacionais. A importância atribuída à variação das

línguas, em interacção com a modificação sincrónica e diacrónica das sociedades, abriu

campo para o estudo dos factores intervenientes nessa variação, internos e externos,

históricos e resultantes do contacto entre línguas, e para o desenvolvimento de

perspectivas teóricas nesta área.

Progressivamente, foi-se radicando a convicção de que bilinguismo e multilinguismo,

alternância de códigos, surgimento de línguas mistas e de línguas crioulas, embora

suponham, evidentemente, capacidades cognitivas e programas inatos, não estabelecem

com essas capacidades e programas uma relação de causa a efeito – ou seja, a variação

das línguas não resulta apenas das capacidades cognitivas do homem ligadas à

linguagem, mas da interacção dos factores linguísticos e dos factores socioculturais.

Por outro lado, as propriedades linguísticas, em estreita aliança com as sociedades em

mudança, são responsáveis por mutações nas línguas. Essas mutações desenvolvem-se

num contínuum, desde as variações internas de uma variedade (como, por exemplo, as

diferenças dialectais que se verificam na variedade europeia do português), passando

por alternância de códigos (que decorre de um contacto frequente e prolongado dos

falantes de uma língua com outra diferente, como o provam os sociolectos dos

imigrantes portugueses em França), até à criação de línguas mistas e ao surgimento de

novas línguas.

Nestas incluem-se, de forma particular, as línguas crioulas que têm propriedades

comuns e propriedades diferenciadoras conforme a língua que lhes serviu de base.

Sabemos que os crioulos se desenvolveram num contexto de colonização, com presença

(7)

A criação das línguas crioulas decorre, portanto, da necessidade de comunicação entre

línguas e culturas diversas. Não se trata de um mapeamento de características culturais

numa nova língua; trata-se, sim, da progressiva criação de uma língua autónoma cuja

gramática estabelece uma interface entre diferentes línguas e culturas, e reflecte as

difíceis relações entre saberes e interpretações do mundo, entre vivências culturais

distintas. Estamos portanto diante de criações linguísticas que relacionam línguas e

culturas diversas.

Finalmente, pode acrescentar-se a referência a uma situação que confirma a função

relacional da gramática de uma língua na sua utilização por falantes de diferentes

línguas e culturas. Sirva-nos de exemplo o contexto multicultural e multilinguístico que

encontramos hoje em muitos países, quer em consequência da existência de um

plurilinguismo tradicional (de que são exemplo países como Moçambique ou Angola),

quer em resultado de fluxos migratórios que levam grupos de falantes a deslocarem-se

para novos ambientes sociolinguísticos na procura de melhores condições de vida.

Neste tipo de contextos podemos distinguir duas situações diversas:

 Um país integra línguas e culturas nativas que são maternas para grande parte da

população (como as línguas bantas em Moçambique), mas que convivem, no

quotidiano e na escola, com uma língua diferente, não materna (neste caso, o

português).

 A maioria da população de um país tem como língua de escolarização a sua

língua materna, mas convive quotidianamente com as línguas de populações

imigrantes, nomeadamente em situação escolar (populações dos países

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Em ambos os casos, estamos perante a aprendizagem de mais do que uma língua, e da

tomada de consciência de gramáticas diferentes quer pelo contacto quotidiano, quer em

ambiente escolar. Esta situação tem reflexos na criação de pontes de entendimento entre

línguas e culturas, funcionando as gramáticas das línguas como interfaces que

contribuem para a aquisição de um espírito de cidadania tolerante.

Como conclusão, podemos acentuar a importância da convivência de línguas e culturas

diferentes nas situações multilinguísticas e multiculturais acima referidas. É convicção

justificada psicológica e sociologicamente que saber mais do que uma língua e,

sobretudo, aprender a tomar consciência da gramática de uma segunda língua e das

diferenças que possui em relação à gramática da língua materna tem reflexos positivos

no desenvolvimento dos mecanismos psicológicos e na aceitação da existência de

outras línguas e de outras culturas. Podemos assim manter a afirmação inicial de que,

na sua posição de interface entre língua e cultura, o tecido gramatical cumpre, na

realidade, uma função relacional.

Referências bibliográficas

Chomsky, Noam (1968). Language and mind. New York: Harcourt, Brace and

Jovanovich. A edição utilizada foi a tradução francesa de Louis-Jean Calvet, Le langage

et la pensée. Paris: Payot, 1969.

Chomsky, Noam (1986). Knowledge of language. Its nature, origin and use. New York: Praeger Publishers. A edição utilizada foi a tradução portuguesa de Anabela Gonçalves e Ana Teresa Alves, O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Lisboa: Editorial Caminho, 1994.

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Humboldt, Wilhelm von (1822-23). De l'origine des formes grammaticales. A edição utilizada foi a tradução espanhola de C. Artal, Sobre el origen de las formas

gramaticales, Barcelona: editorial Anagram, 1972).

Neto, Serafim da Silva (1950). Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. A edição utilizada foi a 3ª, de 1976.

Pereira, Dulce, Eva ARIM e Nuno CARVALHO (2008) Crioulo de Cabo Verde. In MATEUS, Maria Helena et al. (orgs.) (2008). Diversidade Linguística na Escola

Portuguesa. Lisboa: Fundação Gulbenkian, pp. 19-42.

Sapir, Edward (1921). Language. A obra utilizada foi a tradução portuguesa de Joaquim Mattoso Câmara, A linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954.

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