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PARA UMA CRÍTICA DA ANGÚSTIA EM MARTIN HEIDEGGER. Introdução: a transcendência do Dasein e o privilégio da angústia

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PARA UMA CRÍTICA DA ANGÚSTIA EM MARTIN HEIDEGGER

por J. C. Marçal Introdução: a transcendência do Dasein e o privilégio da angústia

Nas discussões levadas a termo por Martin Heidegger em dois textos de grande acuidade filosófica (Vom Wesen des Grundes de 1929 e Der Satz vom Grund de 1955 e que marcam os dois pólos fundamentais dentro da Kehre do pensar heideggeriano) a despeito do principium rationis trazido à tona por Leibniz no seu tratado Primae Veritas, é apontado, numa nota de rodapé ao primeiro texto, que um dos escopos essenciais da tarefa de Ser e Tempo (Sein und Zeit) não era outro que o projeto concreto-desvelador da transcendência do Dasein. A compreensão heideggeriana da transcendência marca uma ruptura definitiva entre seu pensar e o pensar metafísico da Tradição, mais especificamente aquele consolidado pelo Idealismo em que se pensava o sujeito e o objeto como duas esferas distintas de articulação. Aqui, o que temos é a compreensão de que o “mundo como totalidade não “é” ente, mas aquilo a partir do qual o Dasein se dá a entender a que ente pode dirigir-se”

1

, logo deve-se abrir a possibilidade de compreender que o Dasein é de um modo tal que existe em-vista-de-si-mesmo e que o mundo se mostra como “aquilo em- vista-de-que o Dasein existe”

2

. Esta discussão não surge primariamente neste texto de 1928, mas já era a base de articulação do pensar heideggeriano sobre o mundo e o Dasein em Ser e Tempo. No § 16 do referido tomo já temos o questionamento sobre o mundo a partir do fato de que este não é um ente intramundano – mesmo que o determine – e o atrelamento da questão do mundo com a cotidianidade que se entende como o fato de que

“à cotidianidade do ser-no-mundo pertecem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa”

3

. Deste modo, é usada uma compreensão quaternária da questão mundo: 1. é conceito ôntico e significa a totalidade dos entes; 2. ontologicamente é o ser dos entes; 3. é o contexto, na esfera ôntica, “em que” de fato o Dasein vive e 4. trata- se do conceito existencial-ontológico da mundanidade – discussão do § 18 e que traz à tona o conceito de conjuntura que se dá pela abertura da “significação como constituição

1

Heidegger, Martin. Sobre a essência do fundamento. In Os Pensadores. Abril: São Paulo. 1984. p. 115.

2

Ibidem.

3

Heidegger, M. Ser e Tempo. Vol. I.Vozes: Petrópolis. 1988. p. 115.

(2)

existencial do Dasein, o ser-no-mundo”

4

que se trata de uma condição ôntica da possibilidade da descoberta da totalidade inerente à conjuntura.

Entretanto, quando nos damos conta desta ruptura levada a termo por Heidegger, vislumbramos um fato inevitável: ela só o é possível na medida em que o alicerce desta ontologia já está plenamente assentado sobre um ponto nevrálgico dentro da exposição heideggeriana: a diferença ontológica. Não é sem motivo aparente que ele se debruça sobre o principium rationis que reza que nihil est sine ratione. Aqui, Heidegger afirma que “o principium rationis é para Leibniz, pensado rigorosamente, o principium reddendae rationis. Rationem reddere significa: devolver o fundamento”

5

e, mais à frente, na mesma conferência, nos informa que o Nada – e isso quando a entonação do princípio sofre sua primeira mudança de acento – “é”, e explica que “o que diz: “é”? [...] <<Nada>>, isto é, nenhum que de certo modo é um ente <<é – sem fundamento>>”.

6

A mudança desta entonação é muito própria quando se percebe que o que está sendo visado aqui é fundar a própria diferença ontológica, já que neste momento – mais precisamente o prefácio a terceira edição do texto de 29 – o nada se assume como o não do ente e que, por isso, trata- se do ser experimentado a partir do ente. O não nadificante do nada e o não da diferença não são idênticos, mas pertencem ao mesmo, ou seja, fundam a comum-unidade que para Heidegger conduz o pensar a pensar aquilo que foi esquecido e que exige, portanto, uma nova abordagem. O mais importante aqui, entretanto, é perceber que é pela articulação perene das esferas ônticas e ontológicas, guiadas pela própria diferença – e isso quando já se estabeleceu a transcendência do Dasein e seu lugar privilegiado dentro de tal ontologia – que se dão Mundo e transcendência. Estas esferas, além do mais, mantêm um rigor de relação e se completam, numa interação ontológica que permite ao Dasein possuir exatamente a existência. A questão que se põe é simples: quais momentos podem ser tomados para fundamentar a analítica existencial e trazer à tona a diferença ontológica como um diferencial? A resposta é, também ao seu tempo, simples: a angústia. O privilégio da angústia dentro do universo da analítica existencial será justificado por Heidegger como um momento muito particular da existência do Dasein, a saber, o enfrentamento deste, enquanto ente, com o nada. Segundo Heidegger, a angústia “se angustia com o ser-no-

4

Ibidem, p. 133.

5

Heidegger,M. O princípio do fundamento. Lisboa: Piaget. 2000, p. 40.

6

Idem, p. 78.

(3)

mundo como tal”

7

e que “a angústia manifesta o nada”

8

, mesmo que a angústia não seja, de fato, apreensão do nada. O que surge, então, é um modo originário do nada que Heidegger traduz pelo nadificar do nada, já que para o nada sua essência originariamente nadificante conduz o Dasein diante do ente enquanto tal. A revelação se dá quando quando entendemos que dentro da analítica heideggeriana apenas o nada pode conduzir o Dasein a chegar ao ente e adentrar sua esfera, o ôntico. No bojo estrutural desta articulação do nadificar do nada – e seu percurso e privilégio até à angústia (abertura privilegiada do dasein) – Heidegger funda os momentos constitutivos da de-cadência e do temor até desentranhar o conceito de cura como ser do Dasein e conquistar de modo modo muito particular o conceito de angústia como disposição privilegiada. É nossa a pergunta já estabelecida pelo próprio filósofo da Floresta Negra: “Em que medida a angústia é uma disposição privilegiada?”.

9

1. A estruturação ontológica da angústia em Ser e Tempo.

No percurso que vai se desenvolvendo em Ser e Tempo – e isto já estabelecidos os primados ônticos e ontológicos da questão do Ser, bem como a estruturação devida dos existencias, além de uma constância metodológica na proposta de uma ontologia fundamental que se baseia na necessidade de determinações ônticas e possibilidades ontológicas – percebemos alguns pontos relevantes para nosso trabalho: 1. as dimensões da problemática ontológica se mantém separadas em três pontos cruciais (1. o ser dos entes intramundanos, 2. o ser dos entes (o ser simplesmente dado) e 3. o ser da “condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade do mundo”

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como determinação existencial do ser-no-mundo); 2. o fato peculiar de que o mundo é o solo originário que libera não apenas o manual – o ente que vem ao encontro – mas também os outros em co-pre-sença; 3. é pelo humor que o Dasein se abre como o ente que se entrega em responsabilidade ao seu ser, mesmo que “na maior parte das situações

7

Ser e Tempo. Op. Cit. p. 249

8

O que é Metafísica? In Os Pensadores. Op. Cit. p. 39.

9

Ser e Tempo. Op. Cit. p. 247.

10

Idem. p. 133

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ôntico-existenciárias, o Dasein se esquiva ao ser que se abre no humor”.

11

Daí a compreensão de que o “o humor já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim torna possível um direciornar-se para...”

12

e, por último, 4. o estabelecimento do temor (Furcht) e suas perspectivas: o que se teme, o temer e pelo que se teme. Deste modo, podemos coadunar este todo em quatro bases fundamentais para chegarmos à diferença ontológica, a saber: o caminho do pensar ao ser; a transcendência do Dasein e o Mundo; a definição do humor como um existencial e, por fim, a conexão entre este mesmo humor e o temor e a angústia.

Ora, já vimos que a própria diferença ontológica é quem traz a carga do Nada e sua possibilidade enquanto sem fundamento e que articula as esferas ônticas e ontológicas que é um dos sentidos buscados por Ser e Tempo. Do mesmo modo, percebemos que só a partir da compreensão heideggeriana da diferença ontológica é que podemos inserir a transcendentalidade do Dasein e sua conexão entre “sujeito” e “mundo”, mas isto já ciente de que o que Heidegger realmente busca é esquadrinhar e vislumbrar de modo muito mais profundo e radical o que podemos compreender a respeito de tal transcendentalidade.

Resta-nos, portanto, divisar em Ser e Tempo – e isto a partir do Capítulo Quinto – como a ontologia heideggeriana salta de uma analítica do ser-em como tal (análise do Dasein como disposição, o temor como modo desta mesma disposição, o Dasein como compreensão, a cura como ser do Dasein) para por fim chegarmos ao estatuto privilegiado da angústia dentro desta mesma analítica. Mas por que dizemos aqui privilegiado? Na verdade, esta assertiva é do próprio Heidegger e nos conduz a entender que a angústia é um modo privilegiado por se tratar a mesma de uma abertura, ela também privilegiada, do Dasein, momento este em que o mesmo se experiência frente a frente com o Nada e pode, a partir de um modo ôntico de se dar, tomar ciência deste mesmo Nada e do sentido buscado em relação ao Ser.

“Conjuntura é o ser dos entes intramundanos em que cada um deles já, desde sempre, liberou-se”

13

, explica Heidegger. Este liberar-se traz em si um ponto de vista ôntico em que o deixar e fazer em conjunto significa um âmbito de uma ocupação de fato – eis a conexão com a mundanidade do mundo e a transcendência do Dasein, já que o mundo

11

Idem, p. 189.

12

Idem, p. 191.

13

Idem. p. 128.

(5)

libera “não apenas o manual enquanto ente que vem ao encontro dentro do mundo”

14

, mas também, e na mesma medida, o próprio Dasein. De acordo com seu sentido mais próprio, é um ser-em um mesmo mundo, ou seja, ele é co-presente, encontra-se com outros. Daí a necessidade metodológica de Ser e Tempo desvelar ao Dasein como disposição. A disposição é aquilo que Heidegger define como o que onticamente é mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor (Stimmung) que também pode nos dar uma idéia de

‘estado da alma’ ou ‘estado de ânimo’. Para bem da verdade, o termo em Heidegger é muito rico, já que devidamente conectado à sua idéia de abertura. No humor, ele nos ensina, “o Dasein já sempre se abriu numa sintonia com o humor como o ente a cuja responsabilidade o Dasein se entregou em seu ser e que, existindo, ele tem de ser”

15

.

Entretanto, a analítica existencial tenta nos fazer ver que na maioria de tais situações ôntico-existenciárias, e isto mesmo a partir do ponto de vista ontológico-existencial, há, no humor, um esquivar-se próprio de seu modo de ser e que faz com que o dasein se descubra entregue à responsabilidade do Da (aí, pré). O que se ver aqui é a possibilidade de um dirigir-se para, a tomada de uma direção. Neste sentido, Heidegger afirma que “o humor já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim torna possível um direcionar-se para...”

16

.

Neste percurso, a disposição é um modo existencial básico já que ontologicamente caracteriza o Dasein. Isto nos faz entender que a mesma é quem possibilita a escuta do ser dos entes que antes já se abriram. Entendo-se a disposição e suas possibilidades, vê-se com a devida clareza por que Heidegger colocará o temor como modo desta. Há dois pontos a se considerar: 1. aquilo que se aproxima – e não somente com o caráter de temível e 2. este mesmo aproximar-se trará a possibilidade de ir além daquilo que, neste caso mais específico deste modo, se teme. Ora, “o que se teme, o temível, é sempre um ente que vem ao encontro dentro do mundo”

17

. O que se contempla aqui é não apenas um aproximar-se, aquilo que chega à mão, mas também um superar, aquilo que permite um olhar além. Por que? Simples: “O próprio ente que teme, o Dasein, é aquilo pelo que o temor teme”

18

.

14

Idem. p. 175.

15

Idem. p. 189.

16

Idem. p. 191.

17

Idem. p. 195.

18

Idem. p. 196.

(6)

Esta afirmação é deveras importante quando tentamos conectar o temor com a angústia. Em Heidegger, o privilégio da segunda se dará exatamente por seu encadeamento com a primeira. Neste caso, somente o ente em que está em jogo o seu próprio ser é que pode temer. Mesmo que possamos onticamente falar em modos deste temor – horror, terror, timidez, acanhamento, receio e estupor – é na base desta realização ôntico-ontológica – o ser que está em jogo – que a analítica existencial pode pensar o privilégio da angústia.

Nas discussões abertas com o sexto Capítulo que trata da cura como ser do Dasein, o § 40 trará à tona o privilégio da angústia em relação ao Dasein. De início, devemos entender que ao imergir no impessoal junto ao mundo das ocupações, o Dasein, de fato, foge de si mesmo como seu próprio poder-ser propriamente, daí o falatório, a curiosidade e a ambigüidade, modos estes que desentranham um modo fundamental de ser da cotidianidade que em Ser e Tempo se chama de-cadência (Verfallen). Isto nos leva a compreender a assertiva heideggeriana de que “chamamos de fuga de si mesmo o fato do Dasein de-cair no impessoal e no mundo das ocupações”

19

.

O grande diferencial dado à angústia está na compreensão de que aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. Não se trata de uma análise psicológica que derivasse termos ônticos para sua efetivação originária; tais possibilidades psicológicas são efetivas e concretas, mas a discussão da analítica existencial é desvelar o solo originário de sua possibilidade ôntica, o que só o é possível na esfera da ontologia. Daí a afirmação de Ser e Tempo de que “na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora”

20

e é isto que permite que o angustiar-se abra, de modo originário e direto, o mundo como mundo. Na sua preleção de 1929, Que é Metafísica? (Was ist Metaphysik?), Heidegger já havia mencionado que “o nada é a plena negação da totalidade do ente”

21

. O que se afirma aqui está em conexão com sua compreensão de que a angústia vai além do temor, já que neste o temeroso e o medroso são retidos por aquilo que se teme. Na angústia há uma certa e estranha tranqüilidade. Tal estranheza, responde Heidegger, só o é possível porque todas as coisas e nós mesmos nos afundamos numa indiferença. “Isto, entretanto’, ele explica, ‘não no sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós”

22

. O que nos resta, já que não

19

Idem. p. 249.

20

Idem. p. 250.

21

Heidegger, Martin. Que é Metafísica? In Os Pensadores. Abril: São Paulo. 1984. p. 38.

22

Idem. p. 39.

(7)

temos nenhum apoio nesta contenda, é um “nenhum”. A afirmação de Heidegger é definitiva: “A angústia manifesta o nada”

23

!

Mas que fique claro que este manifestar-se do nada não pode ser dado como ente, já que a angústia não é uma apreensão do nada. O que isto nos diz: que só na base desta revelação originária do nada é que pode o Dasein chegar ao ente e nele entrar. Sem isto não há o ser-si-mesmo e nem tampouco a liberdade – temas capitais discutidos por Heidegger no texto de 29 sobre a essência do fundamento e a transcendência do Dasein. Além do mais, tal ocorrer não é tal simples e cotidiano no sentido de uma repetição diária, já que o nada é dissimulado em sua originariedade posto que nos perdemos junto ao ente. Por outro lado, Heidegger irá afirmar que é este nadificar do nada que possibilita e é origem do

“não”. Daí a diferença ontológica e o sentido mais radical de mundo e Dasein.

Mas como, então, se dá a possibilidade da angústia retirar do Dasein a capacidade de interpretar a si mesmo a partir dos entes? Por que “ela remete o Dasein para aquilo pelo que a angústia se angustia, para o seu próprio poder-ser-no-mundo”

24

.Assim, o disparo psicológico da angústia já se funda no ser do Dasein e isto Heidegger indica como o não sentir-se em casa, que ontológica e existencialmente deve ser entendido como o fenômeno mais radical.

Por fim, no delineamento de sua análise do ser-para-a-morte, Heidegger retorna à problemática da angústia como modo privilegiado da abertura do Dasein. Aqui ele assevera que “é na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desentranha para o Dasein de modo mais originário e penetrante. A angústia com a morte é angústia ‘com’ o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável”

25

. Isto justifica a tematização da morte em Ser e Tempo quando Heidegger coloca que existência, facticidade, de-cadência caracterizam, de fato, o ser-para-o-fim, e aí é que reside o conceito existencial da morte, já que esta se funda na cura. Lembrando: “cura designa, ontologicamente, a totalidade do todo estrutural do Dasein”

26

.

A questão que se nos abre, portanto, é sabermos se a angústia e tão somente ela responde por este modo privilegiado. Não se trata, contudo, de uma tentativa de abordarmos novos modos originários em que esta mesma abertura se funda, mas tão

23

Ibidem.

24

Ser e Tempo. Op. Cit. p. 251.

25

Idem. Vol. II. p. 33.

26

Idem. p. 34.

(8)

somente apontar para uma possibilidade de compreender a angústia como um modo privilegiado, é fato, mas não o único. O que se abre é uma nova porta para que a analítica existencial possa realmente cobrir a totalidade mesma do todo estrutural do Dasein. E é isto que tentaremos, a partir de agora, fazer de modo sucinto.

2. Para uma crítica da angústia em Martin Heidegger: Abgeschiedenheit e Gelasseinheit.

Paul Hühnerfeld, na sua obra Sachen Heidegger: Versuch über ein deutsches Genie, argumenta que há muito mais um elemento nacionalista e irracionalista no pensar de Heidegger do que, de fato, uma justa morada nesta habitação anterior à filosofia – uma ontologia originária - e que o percurso de seu pensamento atinge não a esfera de um pensar imaculado anterior a toda Metafísica, mas sim a esfera muito particular do dizer místico, daí sua assertiva de que seria impossível, ao menos em termos de filosofia, finalizar Ser e Tempo – isto exigiria uma tarefa para além da filosofia, entendida aqui como uma tarefa assentada no misticismo.

27

Evidente que o exagero de Hühnerfeld se aproxima daquele modo de pensar extravagante de um Pierre Bourdieu ou Victor Farias, por exemplo, já que aqui se trata mais de justificar o pensar de Heidegger como uma expressão terminada do Nazismo e não de compreender sua tarefa como um pensador original. Mas a indicação de Hühnerfeld é muito útil quando aponta um certo irracionalismo no pensar heideggeriano. A observação é pertinaz: Heidegger, vindo ele mesmo da tradição escolástica e do Neokantismo e procurando desvencilhar-se desta herança, já havia se dirigido quando jovem para Pascal, Dostoievsky, Kiekegaard e Nietzsche: percurso este que deveria, pela natureza de tais pensadores e por um retorno mais radical em seu pensar a tais fontes, conduzi-lo a um âmbito em que fosse necessário expurgar a própria filosofia de todo o seu ranço adquirido por uma tradição criticada por estes mesmos escritores. Hühnerfeld, além do mais, assinala que alguns dos temas mais importantes de Ser e Tempo (a angústia, a morte e o nada) foram os motivos predominantes dos poetas Expressionistas

28

, o que já nos dá uma chave peculiar para entendermos essa crítica ao elemento irracional em seu pensar.

27

Hühnerfeld, Paul. Sachen Heidegger: Versuch über ein deutsches Genie. Verlag : Munique. 1961.

28

Ibidem. p. 73-84.

(9)

Por outro lado, Laszlo Versényi , no seu Heidegger, Being and Truth, argumenta que Heidegger possui todo o direito de apontar o perigo do esquecimento da questão do sentido do ser e erigir os existenciais e fundar o privilégio da angústia, mas que este não deveria esquecer que o Ser e os seres formam uma polaridade própria do universo da filosofia e que, por sua impossibilidade inerente, o discurso não pode transcende-la fora da filosofia, já que gravitar em sentido único do Ser, e apenas neste, é decair num imenso vazio, o que deve ser compreendido inequivocamente como uma tarefa apenas aceite no mundo místico.

29

A filosofia, portanto, é quem deve ser restaurada em sua mais profunda originariedade, conduzindo o pensar à sua morada ancestral pelo reconhecimento de seus limites e pela extensão de sua tarefa.

O que estes dois pensadores querem nos fazer ver é que a tarefa mais radical de Ser e Tempo só pode ser devidamente entendida e levada a termo não na esfera própria da filosofia, mas sim d misticismo. Exageros a parte, este modo de compreender a analítica existencial levou comentadores do porte de um Michael Zimmermann a tentar conectar a doutrina heideggeriana com o budismo Mahayana, e isto mesmo a partir das próprias leituras levadas a cabo por Heidegger de um pensador Zen Budista, D. T. Suzuki.

Entretanto, acreditamos que o meio termo destas abordagens, e que seguem o pensamento de Heidegger mais de perto, fiel à sua escrita, foi elaborado por John Caputo no seu The Mystical Element in Heidegger´s Thought. A base fundamental deste belo livro é nos fazer ver que há de fato uma conexão plausível entre Heidegger e um certo momento da Tradição Cristã, mais especificamente a poesia mística de Ângelus Silesius e o misticismo-filosófico de Mestre Eckhart, muito mais do que com Agostinho, Aquino e Suarez como Heidegger nos leva inicialmente a crer.

Como se sabe, Mestre Eckhart pertence à tradição da teologia negativa – aquela que pensa Deus a partir da impossibilidade de Lhe dar atributos positivos, o que é específico do âmbito da teologia positiva, e O pensa pelo viés da negatividade. Este modo de pensar Deus, o Uno e o Múltiplo surge com grande impacto nas obras Leggum Allegoriae e De Vita Mosis de Filo de Alexandria, depois se torna presente nas Eneadas de Plotino e por fim adentra a tradição cristã através do Corpus Aeropagiticum de Dionísio, o Aeropagita.

29

Versényi, Laslo. Heidegger, Being and Truth. New Haven: Yale University Press, 1965.

(10)

Mas, para nossa presente apresentação, vale salientar primordialmente a conexão estabelecida por Caputo entre Heidegger e Mestre Eckhart no que estes dois grandes pensadores tem em comum: pensar o nada (das Nichts). Caputo nos faz ver que a preleção Que é Metafísica?, e que trata essencialmente do nada e da angústia, foi lançada em 1929, ou seja, 600 anos após a morte presumível de mestre Eckhart – algo entre 1327 e 1329.

Caputo relaciona esta preleção ao tratado Do Desprendimento de Eckhart. Neste tratado, Eckhart descreve o desprendimento (Abgeschiedenheit) como uma das mais altas virtudes.

Caputo nos diz que o desprendimento “não é uma das virtudes morais das quais os filósofos tradicionamente falam em seus tratados de ética”

30

, mas deve-se entende-la literalmente, ou seja, no alemão moderno se traduz o vocábulo por ‘partida’ e que se conecta com a tradição com o termo separado de (substantia separata).Mas, além de tudo, é o seu sentido místico que Mestre Eckhart procura trazer à baila: é o estado de ter se separado de todas as coisas criadas, do mundo e de si mesmo. Trata-se de uma condição de pureza que possibilita ao homem perceber a altura em que Deus se encontra. Por isso mestre Eckhart poderá afirmar:

Deus é separado e desprendido de todos os seres: Ele é um puro nada. Assim é que Caputo percebe que o desprendimento é a chave para a união mística em Eckhart. O desprendimento, em eckhart, é maior do que o amor e a humildade, já que este “faz a alma receptiva de nada além de Deus porque pelo desprendimento de todas as coisas criadas, a alma traz a si mesma a proximidade com o nada em si mesmo, Deus”

31

. Deste modo, Caputo conecta a tradição de Mestre Eckhart, Hegel e Heidegger através da famosa proposição: puro ser e o puro nada são o mesmo! Se em Heidegger a angústia abre o Dasein para o nada, em Eckhart esta função cabe ao desprendimento. Como Caputo prefere a compreensão de alta virtude dada por Eckhart ao desprendimento, ele irá afirmar que o desprendimento não nega a angústia, mas se trata de um refinamento desta. Ambos trazem uma abertura ontológica mais radical do que aquilo que se mostra na superfície ôntica.

Outro conceito que Caputo traz para comparar com Heidegger é a serenidade (Gelassenheit). Caputo afirma que em Heidegger a angústia – não em termos patológicos, mas sim ontológicos – é tratada em termos de calma, serenidade, descanso, quietude e silêncio.

32

Tanto na angústia quanto na serenidade, explica Caputo, o Dasein é trazido para

30

Caputo, John D. The Mystical Element in heidegger´s Thought. Fordham: Nova York. 1986. p. 11. Trad. do Autor.

31

Idem. p. 13.

32

Cf. Op. Cit. p. 26.

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