A CRISE EXISTENCIAL D A JUSTIÇA D O T R A B A L H O
G E R S O N L A C E R D A P I S T O R I O
A Justiça d o Trabalho c o m e ç o u n o final d o s a n o s trinta c o m o órgão administrativo d o P oder Executivo, tendo permanecido sob a égide do g o verno federal até a Constituição Democrática de 1946, q u a n d o foi elevada a o P oder Judiciário. Esse início d a Justiça do Trabalho foi m ar ca do por u m a estrutura burocrática simples, dirigida pelo Ministério do Trabalho, c o m n o m e a ç ã o d o s julgadores, s e g u n d o os critérios políticos d o Estado Novo.
C a b e lembrar a proposta d o Estado Novo, defensor d a existência de u m desenvolvimento industrial urbano dirigido pelo Estado que, para isso, teria o controle d a classe trabalhadora, através da utilização d a estrutura sindical c o m o correia de transmissão d o aparelho estatal (sindicatos assis- tenciais e n ã o reivindicativos), s o b o discurso de busca da paz social. N e s te contexto, a Justiça d o Trabalho seria a válvula d e pressão controladora, quer no âmbito individual, dirimindo os conflitos empregatícios, quer n o â m bito coletivo, normatizando as condições coletivas n o interesse do Estado autoritário.
O s e g u n d o período d a Justiça do Trabalho, já parte d o Poder Judiciá
rio e q u e se m a n t e v e s e m muitas alterações até 1966, n ã o teve afastado d e seu objetivo a proposta inicial d o desenvolvimento industrial, atendidos requisitos m ín im os d e garantia social, já que, a pó s a seg un da guerra m u n dial até os a no s sessenta, o c h a m a d o "estado do bem-estar social” predo
m i n o u n a s propostas e c o nô mi ca s mundiais. N e s s e período tivemos gran
d e s investimentos d o Estado na área industrial e o seu incentivo à implan
tação d a indústria automotiva. Tais atos se relacionavam c o m a função d a Justiça d o Trabalho: impedir o excesso de exploração d o trabalho urbano, propiciando u m a certa repartição d a renda circulante, a par de continuar ser
vindo d e válvula d e pressão controladora d o s conflitos sociais, por óbvio interesse d a classe dominante.
(•) Juiz d o Trabalho, Juiz Presidente da 6* J C J d e Campinas, atual Juiz Auxiliar peranto a Cor- regedoria Regional d o T R T — 15* Região.
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Tanto n o primeiro, c o m o n o s e g u n d o período d a Justiça d o Trabalho, u m a das principais funções d a atividade jurisdicional era garantir o e m p r e go, o u então u m a remuneração mínima para fazer frente às relocações de mão-de-obra. C a b e destacar que as principais ações trabalhistas nessa é p o c a e r a m decorrentes d a estabilidade, conseguida a pó s dez anos de traba
lho contínuo, assimilada pelo contexto do "bem-estar social" e da função social da empresa. P o d e m o s afirmar q u e a Justiça do Trabalho, nessa é p o ca, atendia plenamente esses objetivos, quer por existir principalmente e m função dos trabalhadores urbanos, quer por haver u m constante crescimen
to d a e c o n o m i a e a ampliação de empregos.
C o m a c h a m a d a Revolução d e 1964, o governo brasileiro teve alte
rada sua face mais nacionalista e de c unho populista social para u m capi
talismo m ai s integrado aos interesses internacionais, optando-se, via a u toritarismo, por u m a abertura maior de mercado, dentro d o n ov o contexto ideológico predominante. A partir d e então inicia-se u m a crise na atuação d a Justiça d o Trabalho, pois, depois d e 1966, c o m a criação d o F G T S , al
terou-se a legislação q u e possuía na estabilidade a pedra d e esquina d a estrutura d o Direito d o Trabalho n o país. Assim, c o m o F G T S e a a u t o m á tica perda da estabilidade, o ângulo d e análise d o Judiciário Trabalhista foi substituído por outro: a d e m is sã o dos empregados.
C u m p r e lembrar q u e a instituição d o F u n d o d e Garantia teve a m p a r o da própria Carta Constitucional d o Estado, que inseriu sua o pção c o m o al
ternativa d o direito à estabilidade. Tal modificação permitiu a ampliação no país das grandes empresas internacionais, pois facilitou-se a rotatividade da mão-de-obra, tendo e m conta seu barateamento.
N o m o m e n t o e m q u e a prioridade d a Justiça d o Trabalho, q u e era a g a rantia d o e m p re go , alterou-se para a despedida d o emprego, p a s so u a ocor
rer o início d a crise d e identidade d a própria Justiça d o Trabalho, já q u e d e u m a Justiça voltada a o e mp r e g a d o , e n q ua nt o exercente d e s u a função, foi p a s s a n d o a ser u m a Justiça voltada a o d e s e m p r e g a d o e, portanto, n ã o mais u m a Justiça d o Trabalho, m a s u m a Justiça d o D e s e m p r e g o . Tal p r o b l e m a foi s e a v o l u m a n d o à m e d i d a e m q u e c o m e ç a r a m a aparecer a s diversas cri
s e s e c o n ô m i c a s e m n o s s o país: o p r o b l e m a d o petróleo n o início d a d é c a d a d e setenta, a s recessões n a d é c a d a d e oitenta, culminando c o m o s pro
b l e m a s atuais d a globalização.
Acrescente-se a isso a alteração d a estrutura rural d o país, e s t ab e lecida pela Lei d o trabalho rural (5.889/93), q u e regulou a s relações empre- gatícias n o c a m p o , m a n t e n d o direitos trabalhistas d e contexto anterior, o u seja, a estabilidade a o trabalhador c o m m ai s d e d e z a n o s d e serviço, m as , a o m e s m o tempo, estabelecendo condições d e f ormação d e u m exército d e mão-de-obra s e m emprego, diante d a d e m is sã o e m m a s s a c o m o reação d os proprietários rurais a o s diversos direitos criados a partir d e então. H o u v e u m aniquilamento d e colônias rurais n as fazendas para n ã o s e onerar o e m p re en di me nt o rural, levando u m n ú m e r o e n o r m e d e p e s s o a s p ar a a s peri
ferias d a s p e q u e n a s e m é d i a s cidades, surgindo daí a figura d o s "bóias-
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frias”, trabalhadores volantes e temporários, c o m vida miserável, custo de trabalho barato e constantes reclamações n a Justiça do Trabalho pelos de- sempr eg os sucessivos, exigindo ampliação d o n úm er o d e juízos trabalhistas.
U m a Justiça d o " N ã o Trabalho" e m u m contexto ainda mais c o m p l e xo se verifica q u a n d o nos d e p a r a m o s c o m os problemas trazidos pela eco
n omia informal. C o m a s recessões iniciadas n a d éc ad a d e oitenta e a c o n sequente diminuição ou não crescimento do m e r c a d o de trabalho, a par de u m a não-política de assentamento rural, e m contraponto a o crescimento p o pulacional, o Brasil t a m b é m passou a possuir u m n ú m e r o c a d a vez maior da c h a m a d a economia informal ou underground, s endo q u e atualmente pos
s uí mo s 5 3 % d a e co no mi a d o país considerada alternativa (dados publica
d o s constantemente n o jornal " O Estado de S ã o Paulo"); nessa atividade n ã o h á carteira d e trabalho assinada, notas fiscais, tributos e muito m e n o s F u n d o de Garantia. N e s s e caso, para 5 3 % d a população ativa brasileira, a Justiça d o Trabalho n ã o existe.
A l é m d a e c o n o m i a informal, há hoje outro fator q u e afasta c a d a vez m ai s a atuação d a Justiça d o Trabalho: é o q u e o professor doutor Ricar
do Antunes, da Unicamp, denomina de trabalho precarizado, relativo às ter
ceirizações, subcontratos o u trabalho part-time, q u e corre paralelo à e c o n o m i a formal.
N ã o obstante a redução de atingidos pela Justiça do Trabalho e m mui
to mais d e 5 0% , diante da economia informal e d o trabalho precarizado, h á ainda o temor d o uso d a reclamação trabalhista por aqueles q u e p o s s u e m direitos violados, mas, t em em , c o m razão, s erem demitidos d o e m p r e g o se forem à s portas d a Justiça. Isso torna a Justiça d o Trabalho inviável para q u e m está e mp r e g a d o e só p od e utilizá-la q ua nd o demitido e ainda sob o ris
co d e fazer parte de "lista negra" de empresas que não contratam q u e m pos
sui ação n a Justiça. Tal situação, q u e reduz consideravelmente o alcance da Justiça d o Trabalho, já pela metade, tornou totalmente vetusto o a r g u m e n to d o Judiciário Trabalhista c o m o elemento d e paz social, pois s e m atuar na área d o emprego, q u e paz social p od e a Justiça d o Trabalho propiciar?
H á ainda exceções, c o m o a figura d a representação o u substituição processual para os sindicatos, que a t u a m n o lugar dos reclamantes indivi
duais. M as , e ssas situações s ã o excepcionais e diminutas, quer por a n á lise formalista processual d o s próprios m e m b r o s do Judiciário Trabalhista, quer por timidez ou incompetência dos próprios sindicatos, q u e r a r a m e n te se utilizam desse meio processual. Resta apenas o âmbito dos dissídios coletivos, o n d e há u m a atividade mais operosa pelos Tribunais Trabalhis
tas, e m b o r a circunscrita, já q u e a d a e c o no mi a informal e o trabalho pre
carizado, c o m o já visto, n ã o p o s s u e m representação sindical e muito m e n o s se utilizam d o P oder Normativo.
E m q u e s e transformou, portanto, a face d a Justiça d o Trabalho? U m a justiça q u e atua e m função d o desemprego: cobra créditos individuais ina- dimplidos. E m razão d o a va nç o do d e s e m p r e g o nos últimos anos, ocorreu
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u m a inflação d e d e m a n d a s e, conseqüentemente, u m a saturação d e pro
cessos e m cidades maiores. Tal situação levou à d e m o r a d e prazos proces
suais e a o retardamento de atividade jurisdicional, e m prejuízo aos próprios cidadãos, e m s u a maioria d es em pr eg ad os . Diante disso, vê-se o incenti
vo aos acordos judiciais, q u e n esse contexto representam muito mais re
núncia de direitos, d o q u e transação d e direitos, o p ç ã o gerada pelo temor d a necessidade futura o u presente d e q u e m está d esempregado.
E s s e quadro depressivo social e jurisdicional possui mais u m agra
vante: a linha e co n ô m i c a preponderante mundial pressupõe u m a redução do t a m a n h o d o Estado, c o m consequente encolhimento d e verbas para o P oder Judiciário. A Justiça d o Trabalho, s e m poder expandir-se, vai conti
nuar recebendo o resultado d a contenção d a economia, o u seja, o a u m e n to d e d e m a n d a s pelos d e s e m p r e g a d o s q u e v ã o s e sucedendo. Afinal, nos últimos tempos, a face da Justiça d o Trabalho é a de u m cano d e esgoto da crise social, u m dos últimos dutos antes d e se escoar a força d o trabalho para a e c o n o m i a informal o u a marginalidade.
Quais a s alternativas para esse problema? S e quiséssemos optar por u m a linha otimista, diríamos q u e a Justiça do Trabalho poderia suplantar sua crise pela b o a vontade dos governantes o u dos grandes interesses e c o n ô micos, q u e cederiam mais verbas para o Judiciário Trabalhista, informati
zariam o sistema d e apoio a o exercício d a jurisdição, ampliariam o n ú m e ro de juizados, a par de d a r e m ênfase ao Poder Normativo, que poderia as
sumir u m papel inovador para solucionar os conflitos entre capital e traba
lho. Mas, n ã o é essa a realidade q u e circunda o Poder Judiciário. Este e s tá cercado por u m a política governamental d e contenção de d e s pe sa s d o Estado, c o m discurso concreto de diminuição d o aparelho estatal c o m o u m todo, e m consonância a o contexto da globalização d o mercado.
E o q u e tem a ver a globalização do mer ca do c o m a situação d a Jus
tiça d o Trabalho? Utilizando pesquisa da professora doutora Regina B e g a d o s Santos, d a Unicamp, v e m o s q u e a globalização da e c o n o m i a t e m c o m o estrutura básica a expansão mundial do comércio, c o m a disseminação d e fábricas d e m o n t a g e m pelo m u n d o , tendo c o m o tarefa montar c o m p o nentes semiprontos c o m a utilização m ín im a d e produtos locais. Assim, a repartição das funções produtivas difunde-se por países e continentes, h a v e n d o u m a p er am bulação internacional d o processo produtivo e do siste
m a financeiro. Isso t e m gerado investimentos tecnológicos e m escala m u n dial integrada, r ed undando e m d e s e m p r e g o e diminuição d o valor d e for
ç a d o trabalho. H á u m a m áx im a: "produzir onde os salários sejam baixos, pesquisar onde as leis sejam generosas e auferir lucros onde os impostos sejam menores". Está clara assim a m u d a n ç a d o papel do Estado brasilei
ro: t e m c o m o objetivo tornar possível o desenvolvimento d a e c o n o m i a na cional e sustentar condições estruturais d e competitividade e m escala glo
bal. Salários baixos, leis generosas e tributos m en or es representam m e n o s dinheiro para o Estado, maior flexibilização d e direitos trabalhistas e maior informalização n a s relações sociais. Nisso passa a reformulação estatal e s e u enxugamento, afetando diretamente o Poder Judiciário e mais particu
larmente a Justiça d o Trabalho.
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Observe-se q u e toda essa m u d a n ç a e co n ô m i c a e social a p a n h o u a Justiça d o Trabalho m o n t a d a nas bases rudimentares d o inicio d a industria
lização nacional e d e u m Estado investidor. E m pleno m o m e n t o d a c h a m a d a terceira o n d a (terceira fase d a revolução industrial), u m a justiça fede
ral especial, custosa (possui três instâncias — juntas, tribunais regionais
— u m e m c a d a Estado d a Federação e u m tribunal superior, s e n d o tribu
nais c o m infra-estrutura volumosa e ranço nepotista; juizes classistas adi
cionais p agos pelo Estado; u m a rede independente d e juízos e m todo o ter
ritório nacional, paralela à rede judiciária estadual e à rede judiciária fede
ral típica) e a o m e s m o t e m p o inflacionada d e d e m a n d a s , e portanto, m o rosa, c o m esclerose processual (os processos admitem u m s e m - n ú m e r o de percalços e recursos, dificultando o atendimento jurisdicional), atendendo b e m m e n o s q u e m e t a d e d o n ú m e r o d a população ativa d o pais, leva-nos a concluir q u e o Estado tende a alterar profundamente sua estrutura o u d e terminar s u a extinção.
Esta conclusão certamente n ã o é aquela q u e gostaríamos d e ante
ver. Seria importante informar à sociedade o papel social e democrático do Estado e o q u e representa u m a Justiça mais voltada a o interesse h u m a n o do q u e a o interesse econômico. Mas, para se legitimar tal discussão, é n e cessária u m a postura d a Justiça d o Trabalho condizente c o m o m o m e n t o histórico atual, q u e passa por u m a transparência de atos administrativos, u m a renúncia d e privilégios corporativistas que existem para parte d e seus m e m b r o s e c o r a g e m d e propor m u d a n ç a s c o m o : retorno à regionalização d o s Tribunais, c o m a extinção d e Tribunais nanicos, d e m a n u t e n ç ã o absur
d a m e n t e alta e repletos de ranços coloniais de "casas grandes"; efetiva ri
gidez nas contratações extraquadros, s e m influência daquilo que Darcy Ri
beiro c h a m a d e “cunhadismo"; ampliação dos valores relativos a o u s o do procedimento sumário, a fim d e se atingir rapidamente a Justiça s e m d e longas o u protelações; ampliação da competência d a Justiça d o Trabalho para acidentes do trabalho (pois possui relação c o m o trabalho e o interes
se d a União), quaisquer relações d e trabalho de âmbito privado ou públi
co e ênfase n a legitimação ao arbitramento d e origem sindical o u c o m u t a tiva. T a m b é m é fundamental u m e n x u g a m e n t o da m á q u i n a judiciária, pas
s a n d o pela sus pe ns ão d e custos d o s juízes classistas, q u e d e v e m ser o b servados c o m o parte da instituição d o julgamento popular, ou o júri e re
presentantes d e classe econô mi ca o u profissional, e n ã o u m a carreira b u rocrática e m si m e s m a , daí a necessidade d a sua exclusão e m s e g u n d a e terceira instâncias.
Estas são algumas das medidas profiláticas q u e ampliam a função s o cial e democrática da Justiça d o Trabalho, devolvendo-lhe o papel efetivo para o qual teria sentido sua existência.
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