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Sagarana. (João Guimarães Rosa) 1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA 2. INTRODUÇÃO OBRAS DE GUIMARÃES ROSA JÁ PUBLICADAS:

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Sagarana

(João Guimarães Rosa)

1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA

João Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, pequena cidade situada entre Cur- velo e Sete Lagoas, Minas Gerais. Foi menino nessa re- gião de gado vacum, de onde saiu aos dez anos para estudar no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte. Não era um menino comum, pois gostava de botânica, zoologia e lite- ratura, e lera seu primeiro livro em francês aos seis anos.

Por causa de sua figura circunspecta e estranhíssima, ga- nhara no colégio o apelido de “boi sonso”.

Uma vez terminado o colégio, ingressou na Fa- culdade de Medicina de Belo Horizonte. Os anos de- dicados ao curso e, depois, ao exercício da medicina em Itaguara, município de Itaúna, não lhe tiraram o gosto pela literatura. Já, naquela época, fora premia- do várias vezes por seus contos no concurso promo- vido pela revista O Cruzeiro. Mas eram textos que ainda não definiam seu estilo e sua linguagem.

Serviu como médico voluntário, em 1932, e de- pois como concursado. Em 1936, foi premiado pelo livro de poemas Magma no concurso da Academia Brasileira de Letras. Em 1937, concorreu com o livro Contos ao prêmio Humberto de Campos, obra que se transformaria mais tarde em Sagarana.

Sua paixão por vários idiomas levou-o a prestar exame para o Itamarati em 1934. Em 1938, foi nome- ado cônsul-adjunto em Hamburgo. Chegou a ser inter- nado em Baden-Baden como preso de guerra, tendo sido trocado por diplomatas alemães. Em 1946, foi nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura. No mesmo ano, estreou com a publicação de Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios im- portantes da literatura brasileira. Em 1952, viajou pelo sertão de Minas Gerais com um grupo de vaqueiros. O chefe da comitiva era Manuel Nardes, o Manuelzão, vaqueiro conhecido e respeitado nos “ermos das gera- es”, a quem coube introduzir Guimarães Rosa nos mis- térios e vivências das passagens sertanejas. Manuelzão transformou-se depois no personagem central da no- vela Uma história de amor, que faz parte do livro Cor- po de baile (atualmente, Manuelzão e Miguilim).

Em 1953, tornou-se chefe da divisão de Orçamento do Itamarati. Em 1956, publicou Corpo de baile, co- letânea de novelas. No mesmo ano, consagrou sua carreira literária com a publicação de sua obra-pri- ma: Grande sertão: veredas.

Em 1958, foi promovido a ministro de primeira classe (diplomata). Em 1962, assumiu a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. No mesmo ano, publicou Primeiras estórias. Em 1963, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, mas só resolveu to- mar posse quatro anos depois. Escolheu para a posse a data do aniversário de seu antecessor, João Neves da Fontoura, no dia 16 de novembro. O discurso de posse foi premonitório, causando espanto em todos que o conheciam. Faleceu três dias depois.

OBRAS DE GUIMARÃES ROSA JÁ PUBLICADAS:

Sagarana (1946); Com o vaqueiro Mariano (1947); Corpo de baile (1956) — obra posteriormen- te desmembrada em três livros: Manuelzão e Migui- lim (l964), No Urubuquaquá, no Pinhém (1965), Noites do sertão (1965); Grande sertão: veredas (1956); Primeiras estórias (1962); Tutaméia (Tercei- ras estórias) (1967); Estas estórias (1969); Ave, pa- lavra (1970) e Magma (1997).

2. INTRODUÇÃO

Publicado pela primeira vez em 1946, o livro de

contos Sagarana constitui a primeira obra-prima da

produção roseana, introdutória da mágica prosa lite-

rária atingida pelo autor. São nove contos ou novelas,

que descortinam o universo da linguagem regional

de Guimarães Rosa e recriam, na ficção, a vida de

personagens saídos do interior das Gerais. A grande-

za dessas produções narrativas não se deve apenas ao

cenário, ou à linguagem, mas à riqueza da experiên-

cia humana traduzida em personagens que parecem,

em certos momentos, vencer suas fraquezas huma-

nas para fazer parte da galeria dos mitos e heróis do

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sertão. Dentro desse mundo regional, a paisagem in- tegra-se ao homem, delirando junto com ele (Sara- palha), servindo de itinerário sensorial à sua cegueira (São Marcos), servindo de caminho e descaminhos (Duelo), mostrando seus avisos e perigos (O burri- nho pedrês), bem como instrumentalizam, através do trabalho, a possibilidade de ascensão ao plano do di- vino (A hora e vez de Augusto Matraga). O processo

“mimético” (imitativo) atinge a perfeição meticulo- sa, recriando detalhes insignificantes da natureza no sentido de capacitar a universalização, ou seja, de in- ventar uma outra natureza além do espaço natural e emprestar ao cenário das Gerais características uni- versalizantes.

Não são esquecidos os valores espirituais do ma- tuto mineiro, que se igualam e traduzem os valores comuns aos homens de qualquer espaço ou tempo, consagrando a “travessia” humana pelo viver. As cren- dices deixam, assim, seu espaço restrito para toca- rem a intuição universal de uma fé que ultrapassa todas as fronteiras, colocando os sentimentos religiosos como elos de uma cadeia universal e metafísica, igua- lando os homens por força interior e circundando o pensamento roseano de que o “destino inexorável”

nasce das atitudes humanas e da força diária empre- gada na sua condução.

A linguagem regional alia-se ao sentimento do mais puro poético para criar efeitos inusitados. O ca- samento entre o regional e o erudito surpreende o lei- tor, entre maravilhado e chocado diante do sortilégio verbal que, ora prende, ora espanta, criando dificul- dades de entendimento para muitos.

Cabe ressaltar que o título da obra é mais um neo- logismo roseano. A palavra Sagarana vem de saga (nar- rativa épica) e do sufixo rana, que em tupi significa “à maneira de”. Assim, pode-se dizer que as nove narrati- vas são contadas à maneira de epopéias, projetando feitos heróicos, míticos e maravilhosos, associando o regional a uma dimensão de interesse universal.

3. ANÁLISE E RESUMO DOS CONTOS

O BURRINHO PEDRÊS

Era um burrinho pedrês

1

, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no

sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fôra tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. 12. ed.

Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970. p. 3.

O burrinho Sete-de-Ouros está decrépito e apo- sentado na fazenda da Tampa. Ele já teve outros no- mes: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho;

conforme o gosto de cada dono. Conhecera muitos lugares, tendo vivido outras tantas aventuras. Em certa ocasião aparecera com uma cobra jararacuçu

2

pen- durada no focinho como uma tromba. Escapara da morte por sorte. Em cima dele morrera, em certa oca- sião, um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas.

Chegou a ser roubado por ciganos. Agora descansava sua velhice na fazenda do major Saulo.

Nesse dia, estava a lamber um resto de sal perto da varanda da casa-grande e acabou sendo escolhido para acompanhar um grupo de vaqueiros para levar uma boiada ao povoado. Ninguém se lembraria dele, se alguns cavalos não fugissem na noite anterior por causa de uma tempestade.

O primeiro engano seu nesse dia. O equívoco que decide o destino e ajeita o caminho à grandeza dos homens e dos burros. Porque: “quem é visto é lem- brado”. (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 8.)

Os vaqueiros deixam a fazenda. Por ordem do major Saulo, Manico vai montado no burrinho e é ridicularizado por todos. Francolim alertara o patrão de que havia uma briga entre Badu e Silvino, por causa de uma moça que desprezou o Silvino, trocando-o pelo Badu. A vingança seria cumprida no decurso da viagem.

Várias histórias são contadas no transcorrer da viagem, sempre relacionadas com o cotidiano dos boiadeiros. Narra-se, por exemplo, a história do me- nino Vadico e seu Zebu, o Calundu, cuja amizade era grande entre eles. Sem se saber por que, o touro mata o menino subitamente, morrendo misteriosamente na mesma noite. Conta-se também o caso de um fogoso touro que colocou uma onça para correr.

Silvino atiça um touro contra Badu, mas este con- segue sobreviver. Francolim, a pedido do patrão, tro- ca de montaria com Manico, mas pede de volta sua montaria na entrada do povoado para não ficar feio como capataz de major Saulo.

A boiada chega ao povoado. Major Saulo resolve pernoitar por lá, e passa o comando a Francolim, pedin- do a este que ficasse de olho em Silvino. Os vaqueiros ficam na cidade bebendo. Badu fica completamente

1 Salpicado de preto e branco na cor.

2 Guimarães Rosa grafa jararacussu: réptil ofídio, crotalídeo (Bothrops jararacussu), comum nas regiões baixas e alagadiças desde o litoral Sul e Leste até a região Centro Oeste do Brasil, de dorso amarelo-escuro com largas manchas laterais levemente unidas ou confluentes; comprimento: até 2,20 m.

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

embriagado. Sai mais tarde que os outros, sobrando para ele o burrinho. Voltam em fila indiana, trazendo uma garrafa de cachaça como suplemento.

No caminho, Manico conta um caso ocorrido com ele e o major em Goiás: trouxeram de longe um me- nino negro, que chorou a viagem toda pedindo para voltar, terminando por sumir junto com toda a boiada enfurecida. Na ocasião morreram vaqueiros. Silvino vai tramando a morte de Badu, que vem mais atrás, arriado de bêbado no lombo do animal.

Os vaqueiros se assustam com a enchente do cór- rego da Fome. O pássaro joão-corta-pau anuncia o perigo. Manico e Juca temem a enchente. Todos aca- bam entrando nas águas. O burrinho segue firme e heróico, trazendo no lombo Badu. As águas enfureci- das acabam derrubando cavalos e cavaleiros, condu- zindo todos para a morte. Apenas o burrinho pedrês consegue transpor as águas, deixando-se boiar na cor- renteza forte. Francolim salva-se, agarrando a cauda do burrinho, que atinge o outro lado em segurança. O burrinho escoiceia o intruso e segue para a casa com Badu no lombo. Francolim e Badu foram os únicos sobreviventes daquela noite em que oito vaqueiros morreram.

O burrinho, tendo cumprido a sua missão, procu- ra um resto de milho no cocho e um lugar para dor- mir, acomodando-se entre a vaca mocha e a vaca malhada.

O conto é iniciado por uma epígrafe (E ao meu macho rosado? carregado de algodão / perguntei: pra donde ia? / Pra rodar no mutirão), que alude simboli- camente à carga dos homens, referência ao mundo da necessidade e à forma de ajuda mútua no meio rural.

Em outros termos: submissão ao império do destino.

O conto dá-nos mostra clara do pensamento roseano de que cada ser tem seu momento de grandeza, ou melhor, sua hora e vez. Assim, o primeiro conto pare- ce fechar-se com o último (A hora e vez de Augusto Matraga), mostrando a temática de que um instante pode fazer valer por toda uma vida.

Outro aspecto de destaque é o comportamento do burrinho pedrês, que se mostra contemplativo, estói- co, indiferente às paixões humanas, impassível e se- reno. Ele procura fugir de confusões, mantendo-se sábio e paciente diante do mundo dos homens e suas paixões. Essa sabedoria parece ser resultado da ve- lhice.

A aproximação dos bois com os homens é, sem dúvida, um caso de zoomorfismo: “Saudade em boi, eu acho que ainda dói mais do que na gente”. (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 58.) Os bois parecem completar os vaqueiros: “Sem a boiada, seriam como almas sem corpo”. (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 51.)

Cabe ressaltar a presença de micronarrativas de encaixe no eixo da estória principal e o fato de o con- to apresentar-se como uma fábula, já que humaniza o animal, dá-lhe atitudes humanas. Outros recursos empregados são: linguagem expressiva e poética, ad- jetivação excessiva, metáforas originais, aliterações, arcaísmos e comparações.

TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE LALINO SALÃTHIEL OU A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO

Lalino Salãthiel (Laio) trabalha numa mineração nas proximidades de Belo Horizonte. É um homem de bem com a vida, meio irresponsável, mas com grande poder de persuasão. Laio chega sempre atra- sado ao serviço e embroma o chefe, seu Marra, com estórias. Tem sempre o que dizer, inventa peças que assistiu no rio de Janeiro, onde, aliás, nunca esteve.

Fala de seu sonho de possuir terras no rio do Peixe e plantar árvores com enxertos. Generoso, um compa- nheiro de serviço de Laio, diz que ele vê passarinho verde toda-a-hora, fazendo-se de bobo para viver.

Laio é casado com Maria Rita (Ritinha), por quem demonstra muita ternura. Um dia Laio percebe que sua vida foi talhada para a aventura no Rio. Reúne seis- centos mil-réis com a venda do carroção, do burrinho e das apólices do Estado, pede mais dois contos em- prestados ao espanhol Ramiro e parte para o Rio, sem despedir-se da mulher. O espanhol empresta uma par- te do dinheiro, porque já estava de olho na mulher de Laio, e consegue que este prometa que vai embora para sempre. Acaba dando-lhe um conto em cédulas de cem.

Laio parte, mas pede a seu Miranda que diga à mulher que vai sair por esse mundo, que ele não pres- ta e ela não perde, podendo fazer o que entender.

Três meses depois, Ritinha vai morar com Rami- ro. Passam-se seis meses sem notícias de Laio, que está no Rio, vivendo na dissipação com mulheres. Laio acaba repudiando a vida que leva e resolve regressar.

Não mostra desespero ao ver que a mulher está vi- vendo com Ramiro. Continua alegre e descontraído, como se nada tivesse acontecido. Por intermédio de seu amigo Oscar, consegue emprego com o pai do rapaz, o major Anacleto, ganhando logo a simpatia do irmão do major, Laudônio. Trabalha como cabo eleitoral para o major, estando sempre em companhia de um guarda-costas, o Estêvão.

Sentindo saudade da mulher, pede a Oscar que converse com Ritinha. Oscar acaba se aproveitando para dar uma “cantada” em Ritinha, mas é rechaçado por ela, que confessa amar Laio. Oscar conta ao ra- paz que Ritinha não quer mais saber dele.

A campanha corre quente, cheia de intrigas, das

quais Laio sempre sai ileso.

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Ritinha deixa o espanhol e pede proteção ao ma- jor, que a recebe, mas quase muda de idéia ao saber que Laio anda com a gente da oposição. Laio esclare- ce tudo: andava com o filho do inimigo político para levá-lo para o mau caminho. A culpa de um caso de desonra recai sobre o filho do inimigo, que foge para não se casar com a moça. A família atingida passa para o lado do major Anacleto. Depois disso, Laio acaba conseguindo levar o secretário do governo para a casa do major, quando estava de passagem pela re- gião.

O major vence as eleições. Maria Rita e Laio re- conciliam-se. O major Anacleto manda seus capan- gas expulsarem os espanhóis das terras, depois de descobrir que estrangeiro não pode votar.

A estrutura da novela apresenta marcação teatral, dividida em nove partes. O tema central é a alegria de viver. A política é tratada com ironia no texto. A epí- grafe traduz o comportamento de Lalino, que foi “ao inferno, mas não entrou”, ou seja, esteve na desre- grada vida carioca, mas não se deixou contaminar.

Lalino tipifica o herói pícaro (anti-herói), é apenas um indivíduo que goza a vida; com seu jeito malan- dro de resolver as coisas, simboliza o ânimo de viver.

SARAPALHA

“Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, dei- xaram largado um povoado inteiro: casas, sobradi- nho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério…”

(ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 119.)

Ribeiro e Argemiro viviam numa fazenda, no vau da Sarapalha, perto do arraialzinho, na beira do rio Pará, lugar cheio de mato e que ficou deserto por causa da malária. Eram cuidados por uma negra velha, Cei- ção (Conceição), condenados a morrer aos poucos por causa da doença. O único prazer que lhes resta é a tremedeira trazida pela doença. O cenário é tão deso- lador quanto a vidinha e o vocabulário dos dois.

Há mais de duas horas que estão ali assentados, em silêncio, como sempre. Porque, faz muito tempo, entra ano e sai ano, é toda manhã assim. A preta vem com os gravetos e a lenha. Os dois se sentam no cocho, Primo Argemiro da banda do rio, Primo Ribeiro do lado do Mato. A preta acen- de o foguinho. O cachorro corre, muitas vezes, até lá na tranqueira, depois se chega também cá para perto.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 122.

A conversa entre os primos é sempre de desalen- to, de tristeza, na espera da cura da doença ou mesmo da morte. Ribeiro tem ar de defunto, parecendo a todo instante que vai morrer. Ele pede que o Argemiro mande enterrá-lo no povoado, mandando chamar pa- dre. Conta ao primo Argemiro o que traz de amargo no coração, foi abandonado pela mulher, Luísa. So- nhara com ela, cujo nome nunca mais foi pronuncia-

do, depois de sua partida. Afirma que Argemiro é como um irmão para ele:

“Se duvidar, nem um filho era capaz de ser tão companheiro, tão meu amigo, nesses anos todos…”

(ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 128.)

À medida que Ribeiro narra suas dores, Argemiro recorda a mulher do primo. Ele gostava de Luísa. Ri- beiro sonhara com a mulher no dia do casamento e tivera a impressão de que ia morrer. Argemiro pede que não fale da morte, mas acaba prometendo não deixar que enterrassem o primo no arraial. Ribeiro fala que não tem raiva da mulher, mas que queria matar o homem com quem ela fugiu. Argemiro manda Ri- beiro levantar os braços, porque está botando sangue pelo nariz. Ribeiro não tivera coragem de ir atrás da mulher, porque teve vergonha dos outros, já que não teria coragem de matar a mulher. Ribeiro pega de tre- mer, por causa da maleita. Recusa o remédio, porque quer morrer.

Argemiro amou em segredo, em silêncio, a mu- lher de Ribeiro e resolve agora desabafar seu amor proibido. Nunca faltara com o respeito à mulher do primo, guardara em silêncio seus sentimentos.

“— Eu… eu também gostei dela, Primo… Mas respeitei sempre… respeitei o senhor… sua casa…

Nós somos parentes… Espera, primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha…” (ROSA, João Guima- rães. Op. cit., p. 136.)

Argemiro confessa que veio morar com eles por causa de Luísa, mas ficou por causa do primo, quan- do ela foi embora, por ficar querendo um bem enor- me a ele. Ribeiro recebe a confissão como se fosse uma traição, como se Argemiro fosse uma cobra, ex- pulsando-o da tapera. Nem aceita os argumentos de Argemiro, que parte com sua moléstia.

O conto se encerra com um delírio de Ribeiro por causa da maleita:

Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de- anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira.

Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas pelu- das.

— Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar boni- to p’ra gente deitar no chão e se acabar!…

É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 139-140.

O conto é uma pequena obra-prima dentro da co-

letânea Sagarana, quase um poema no qual homem e

natureza vão se corroendo por fora, por causa da

maleita, e no íntimo, os homens, por causa da lem-

brança da amada traidora. É o poema dos vencidos

da vida, desolados interiormente como a epígrafe lem-

bra bem: Não cantes fora da hora… / Coitado de quem

namora. A necessidade de expiação da culpa leva

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Argemiro à desgraça, confessando um amor proibido.

A natureza projeta a desolação dos personagens, iden- tificando-se com o homem. O tremor de Argemiro pro- jeta-se na natureza, que parece tremer junto com ele.

DUELO

“Turíbio Todo era seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas e chorava sem fazer caretas.

Era papudo, vingativo e mau. Mas, no começo desta estória, ele estava com a razão.” (ROSA, João Gui- marães. Op. cit., p. 141.) Naquele dia tinha saído para pescar, mas voltara para casa desconsolado. Tinha avisado que não vinha dormir em casa, pernoitaria em casa do primo Lucrécio, no Decamão. Mudou de idéia sem avisar a esposa, Silivana. Acabou flagran- do a mulher, que tinha olhos grandes, de cabra tonta, em pleno adultério com Cassiano Gomes. Não foi visto pelos amantes. De início, Turíbio Todo nada fez,

“foi cozinhar o seu ódio branco em panela de água fria”. (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 143.)

Turíbio sabia que Cassiano Gomes era homem perigoso no manejo de armas. No outro dia, voltou para casa. Tratou bem a mulher. Mandou pôr ferra- duras novas no cavalo. Limpou as armas e proveu a capanga. Falou numa caçada de pacas.

Dormiu mais cedo que de costume. Na quinta-fei- ra de manhã foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes.

Viu-o à janela, de costas para a rua, e baleou o outro bem na nuca. Correu para casa onde o cavalo o espe- rava na estaca e pronto para fugir.

Turíbio, entretanto, acertara Levindo Gomes, o irmão de Cassiano Gomes. Com medo de Cassiano, fugiu para longe, sempre seguido de perto por Cassi- ano. A perseguição durou meses, espalhando-se en- tre as pessoas, pois todos estavam a par do duelo.

Cassiano se desesperou na infatigável luta, com seu coração começando a dar problemas. Turíbio sa- bia da doença do perseguidor e esperava que seu co- ração acabasse pifando. Turíbio acabou indo para São Paulo.

Cassiano partiu novamente em busca do fugitivo, mas sua doença piorou quando chegou ao arraial do Mosquito, onde ficou deitado e desesperado, queren- do arranjar um pistoleiro para cumprir sua vingança.

Cassiano tornou-se amigo de um Timpim chamado Vinte-e-Um, que teve três filhos. O primeiro morreu de ano, outro nasceu morto e o sobrevivente estava doente.

Cassiano deu dinheiro para o capiauzinho buscar médi- co para o menino. Vinte-e-Um ficou agradecido:

“— Deus há de lhe dar o pago, seu Cassiano Go- mes! Eu sim que não posso por causa que não tenho

prestígio nenhum…” (ROSA, João Guimarães. Op.

cit., p. 165.)

Veio o médico, veio o padre. Cassiano confessou- se e comungou. Depois deu o seu dinheiro para o Vin- te-e-Um. “Aí, tomou uma cara feliz, falou na mãe, apertou nos dedos a medalhinha de Nossa Senhora das Dores, morreu e foi para o Céu.” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 165.)

Turíbio ficou sabendo da morte por uma carta da mulher, que o chamava de volta para o lar. Regressou.

No caminho encontrou “um cavalinho ou égua, magro, pampa e apeguirado

3

[…] com um camarada meio-quilo de gente em cima.” Turíbio achou graça da figura do capiau. Muito alegre, Turíbio puxa pro- sa, aconselhando o outro a ir para São Paulo ganhar dinheiro. Vinte-e-Um responde:

“— Qual, seu Turíbio Todo… Com perdão da pa- lavra, mas este mundo é um monte de estrume! Não vale a pena a gente ficar alegre… Não vale a pena, não.” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 170.)

Sempre rindo, Turíbio Todo manda o outro cuidar da saúde, para não ficar com idéias ruins. Turíbio es- tremece ao ouvir a palavra do outro firme e crescida:

“— Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 170.) Vinte-e-Um invoca o nome de Cassiano Gomes, afirmando que jurara cumprir a vingança. Turíbio tenta subornar o capiau, mas Vinte-e-Um dá-lhe dois tiros de garrucha, arrebentando-lhe a cara.

O conto é uma espécie de alegoria do destino, pois a vingança será cumprida de maneira indireta. Ca- racterizado pela ação contínua e pelo suspense do confronto entre dois homens, o clímax do conto dá- se pelo crescimento de um “capiauzinho” insignifi- cante. Como o burrinho do primeiro conto, o Timpim Vinte-e-Um teve seu momento de grandeza. A epí- grafe mostra bem a temática da estória, o gimnoto (peixe pequeno de água doce cuja abertura anal fica abaixo da boca e cuja nadadeira anal vai até a cauda) é o Timpim Vinte-e-Um.

O Duelo procura representar a eterna luta entre o Bem e o Mal (maniqueísmo). Turíbio simboliza o mal, enquanto Cassiano, o bem. Entretanto, a pouca dis- tância entre o certo e o errado não justifica claramen- te a posição dos protagonistas. Ambos agem de maneira inadequada durante a narrativa.

MINHA GENTE

O personagem-narrador é um rapaz culto que re- solve passar uns tempos na fazenda de seu tio, Emí- lio, num lugar chamado Tucanos. Ao descer do trem

3 Pequeno.

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

encontra-se com José Malvino, empregado da fazen- da, que o fora buscar, e com Santana, inspetor esco- lar. O narrador gosta de jogar xadrez com Santana, um tipo curioso. Sua conversa com Santana é marca- da por termos culturais, principalmente literários, carregada de citações de Homero. Os três seguem juntos, até que Santana deixa-os para visitar um ar- raial, depois outros. Os dois seguem e chegam à fa- zenda. O rapaz é bem recebido pelo tio e pela prima, Maria Irma, sua antiga namorada.

Tio Emílio vê-se às voltas com a política local, por causa da proximidade das eleições. O narrador só tem olhos para prima, que procura sempre se esqui- var dele.

O narrador fica conhecendo Bento Porfírio, pes- cador tagarela, que é casado, mas continua apaixona- do por sua prima de-Lourdes, esposa de Alexandre (Xandão). Bento Porfírio acaba sendo morto por Ale- xandre durante uma pescaria. O narrador presencia o crime. Conta tudo ao tio, que protege o assassino para não perder mais um voto.

Um rapaz chamado Ramiro visita Maria Irma. O narrador sente ciúmes da prima, que se defende di- zendo que Ramiro é noivo de Armanda, sua amiga. O narrador termina confessando seu amor pela prima.

Maria Irma não acreditava na palavras do primo. Apro- veitou para elogiar Armanda, que viria até a fazenda para ser apresentada ao rapaz. Desgostoso, o narra- dor parte da fazenda, indo passar uns tempos com tio Ludovico, em Três Barras.

Algum tempo depois, o narrador recebe duas car- tas. Numa delas, o tio convida-o para comemorar a vitória de seu partido nas eleições. A outra era de Santana que o convida para terminar a partida de xa- drez interrompida quando de sua chegada na fazenda do tio.

O narrador volta à fazenda de tio Emílio. Lá, é apresentado a Armanda (moça bonita, rica e educada com parente no Rio). Maria Irma deixa-os a sós.

“Nossas mãos se encontraram, de repente, e eu senti que ela também estremeceu.” (ROSA, João Gui- marães. Op. cit., p. 222.) O narrador casa-se com Armanda. Maria Irma, com Ramiro da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom.

A epígrafe conduz ao papel desempenhado por Ma- ria Irma na estória. A moça representa a feiticeira res- ponsável pelo encontro do narrador com Armanda (“Maria é feiticeira, / ela passa sem molhar”). Minha Gente é uma novela sentimental, narrada em primeira pessoa e ambientada no meio rural, cujas descrições tra- zem lembranças de passagens de Viagens na minha ter- ra, de Almeida Garrett. A novela traduz com fidelidade os hábitos e costumes do povo mineiro do interior e as lições sobre o viver sertanejo. Seu tema central é a pre-

destinação presidindo a vida do homem. Mais uma vez Guimarães Rosa apega-se à visão do destino humano como conseqüência de forças superiores à razão.

SÃO MARCOS

“Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros.” (ROSA, João Guimarães.

Op. cit., p. 224.)

O narrador-personagem é José, chamado de Izé, que faz pouco caso do feiticeiro João Mangolô. Izé acredita em superstições, mas não aceita os feiticei- ros. A estória se passa em Calango-Frito, um arraial entregue a superstições.

Sá Nhá Rita Preta costumava dizer ao narrador, Izé, de quem era cozinheira, que não abusasse da sua falta de fé.

E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato da Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se ria, acho que achando mesmo graça em mim.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 225.

Izé ia para seu passeio na mata, aonde não ia para caçar, apesar de levar espingarda, mas gostava de apre- ciar a natureza, os bichos e insetos. No caminho, en- contra a casa do feiticeiro Mangolô e zomba do preto:

— Ó Mangolô!

— Senhús’Cristo, Sinhô!

— Pensei que você era uma cabiúna de queimada…

— Isso é graça de Sinhô…

— … Com um balaio de rama de mocó, por cima!…

— Ixe!

— Você deve conhecer os mandamentos do negro…

Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro…”

— Oi, oi!…

— “Segundo: todo negro é vagadundo”.

— Virgem!

— “Terceiro: todo negro é feiticeiro…”.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 229.

João Mangolô ficou irritado e entrou, batendo a porta. José riu e seguiu seu caminho. Encontrou-se com Aurísio Manquitola, a quem disse algumas pala- vras da reza de São Marcos: “Em nome de São Mar- cos e de São Manços, e do Anjo-Mau, seu e meu companheiro…” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 232.) Aurísio pulou para a beira da estrada, bem para longe dele, fez o sinal da cruz e gritou que pa- rasse e não brincasse com aquelas coisas. Contou-lhe alguns casos sobre a reza. Despediram-se.

José aproveitou os grandes colmos dos bambus para escrever a lápis, debaixo de uma quadra gravada a canivete, um rol de reis leoninos, assírio-caldaicos:

“Sargon / Assarhaddon / Assurbanipal / Teglattphala-

sar, Salmanassar / Nabonide, Nabopalassar, Nabuco-

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donosor / Belsazar / Sanekherib.” (ROSA, João Gui- marães. Op. cit., p. 238.) No domingo seguinte, en- controu escrito embaixo: “Língua de turco rabatacho dos infernos”, terminando por aceitar o desafio e es- crever outra quadra. Izé respondeu. No outro domin- go, o estranho respondeu, vencendo assim o desafio ao esgotar o tema. Izé começou outra quadra com outro assunto.

Izé sentiu sono e encostou-se numa árvore.

E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anu, um uru- bu, um golpe de noite… E escureceu tudo. Izé pensou ser eclipse total ou o fim do mundo, mas os pássaros canta- vam e o vento soprava. E, pois, se todos continuavam tra- balhando, bichinho nenhum tivera o seu susto. Portanto…

Estaria eu… Cego?… Assim de súbito, sem dor, sem cau- sa, sem prévios sinais?…

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 247-248.

Viu então que estava cego. Tentou acalmar-se, pen- sando que o melhor era esperar que o viessem buscar.

Passou toda a sua “atenção para os ouvidos”. Come- çou a distinguir os sons dos animais. “Tão claro e in- teiro me falava o mundo, que, por um momento pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta.” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 250.) Mas nada aconte- ceu. A sensação de perigo fez com que tomasse a deci- são de sair dali. Levantou-se e andou. Deixou-se guiar pelos sons e pelo vento. Gritou, mas ninguém escutou.

Rezou. Guiou-se pelo instinto. Caiu, bateu com a testa numa árvore. Izé guiou-se pelos cheiros. Percebeu que o instinto o fizera tomar o pior caminho.

Izé entrou em desespero, porque não conseguia seguir pelos sentidos que lhe restavam. Passou de- pois a rezar a reza brava de São Marcos, que sabia de cor. Começou a correr. Parava, sentindo medo. Final- mente, chegou ao final do mato. Ouviu os porcos de João Mangolô.

Sua fúria empurrou-o para a casa do negro e ata- cou-o, seguindo a sua voz, que pedia que não o ma- tasse. Já o estava estrangulando, quando tudo clareou.

João Mangolô explicou:

— Não quis matar, não quis ofender… Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do seu retrato, pra Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar… olho que deve de ficar fechado, para não precisar de ver negro feio […]

Izé pareceu ter aprendido sua lição. Estendeu uma nota de dez mil-réis, como uma bandeira branca.

— Olha, Mangolô: você viu que não arranja nada con- tra mim, porque eu tenho anjo bom, santo bom e reza- brava… Em todo o caso, mais serve não termos briga….

Guarda a pelega

4

Pronto!

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 254.

O conto é narrado em primeira pessoa e gira em torno das superstições do sertão, colocando o incré- dulo protagonista diante de um feitiço. A temática do conto não gira, entretanto, apenas em torno da bruxa- ria, mas da magia das palavras, da exuberância da natureza, da superstição e do castigo e, finalmente, da valorização dos outros sentidos além da visão. A pesquisa das possibilidades das palavras tem papel preponderante para o autor. A epígrafe é uma cantiga de espantar males.

CORPO FECHADO

Manuel Fulô, metido a valentão, mas militante de covarde, conta casos de homens valentes do lugar para o médico (narrador da estória). Fala de José Boi, Ade- jalma, Miligido, João do Quintiliano e de Targino, o valentão do momento. O médico diverte-se com as estórias, pagando cerveja para Manuel, que afirma ser filho de Nhô Peixoto, maior negociante do local.

Na verdade, pertence à família Veiga, bando de tra- paceiros fracassados. O médico fica encantado com a figura patética de Manuel, típico capiau do lugar, que diz ter aprendido a aplicar golpes com os ciganos e que chegou mesmo a enganá-los numa negociata com cavalos.

Manuel Fulô é inseparável de sua mula, a Beija- Flor, sábia e mansa. Essa mula era objeto da cobiça de Toniquinho das Águas, dono de uma sela cobiça- da por Manuel. Só que o negócio não passava da con- versa, um querendo a mula para colocar a sela, outro, a sela para colocar sobre a mula. Toniquinho era o curandeiro do lugar, homem de sabidas mandingas para “fechar corpo” (feitiço para impedir ferimentos de faca ou bala).

Quando Manuel estava a falar dos dois anos que passou entre os ciganos, entra o valentão Targino na venda, querendo um particular com ele. Mas todo mundo acaba ouvindo o particular.

“— Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor e venho visitar sua noiva amanhã… Já man- dei recado, avisando a ela… É um dia só, depois vo- cês podem se casar… Se você ficar quieto, não te faço nada… Se não…” (ROSA, João Guimarães. Op.

cit., p. 280.)

Manuel treme nas pernas. O doutor ainda tenta agir, mas era tudo inútil.

Manuel acaba dormindo na casa do médico e é visitado pelo Toniquinho das Águas. Os dois conver- sam e Manuel sai dizendo que podem entregar a sua Beija-Flor para o seu Toniquinho, que agora é dele.

Em troca, Toniquinho fecha o corpo de Manuel, que

4 Cédula de dinheiro.

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enfrenta Targino com sua faquinha e acaba vencen- do, para o espanto de toda cidade.

“Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!

Manuel Fulô fez festa um mês inteiro, e até adiou, por via disso, o casamento, porque o padre teimou que não matrimoniava gente bêbada.” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 286.)

Manuel ficou sendo um valentão manso e decora- tivo, apenas para manter a tradição e a glória do lo- cal, depois que veio polícia para a Laginha.

O conto é marcado pelo pitoresco e pelo cômico.

Sua temática gira em torno da valentia, da picardia e das superstições dos caipiras. Como em Burrinho Pedrês e Duelo, há um crescimento do protagonista no momento decisivo, entrando aqui um componente sobrenatural.

CONVERSA DE BOIS

O narrador reproduz, de forma enfeitada e aumen- tada a estória contada por um certo Manuel Timborna, que jura que os animais falam, principalmente os bois.

A estória foi contada a Manuel Timborna por uma ira- ra, chamada Risoleta, e que só contou em troca da li- berdade ao cair nas mãos de Manuel Timborna.

A estória gira em torno de uma tragédia que ocor- re com o carreiro Agenor Soronho que transporta o corpo do pai de seu guia, o Tiãozinho. O corpo do morto segue em cima do carro-de-bois sobre uma carga de rapaduras. O menino chora por causa da si- tuação vivida. Soronho mantinha um relacionamento com a mãe do menino, já que o marido há muito vi- nha doente, entrevado. Agenor só aceitou levar o cor- po para ser enterrado para aproveitar a carga de rapaduras.

Os bois conversam durante o trajeto. São quatro parelhas: Buscapé e Namorado, Capitão e Brabaga- to, Dansador e Brilhante, Realejo e Canindé. O boi Brilhante conta o caso do boi Rodapião, que morreu ao tentar buscar água em um lugar perigoso, dispon- do-se sempre a enfrentar a comodidade imposta pe- los homens e buscar o desconhecido. Tiãozinho segue triste. Os bois continuam a conversar. Tiãozinho cho- ra e sente raiva de seu Agenor Soronho, que não res- peitava o pai entrevado, indo à sua casa ver a mãe.

“Tiãozinho olhou, assim meio torto. Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida nele outra vez… Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a morte veio buscar?! Havia de ser tão bom!…” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 308.)

No caminho encontram João Bala, com o carro de boi acidentado no Morro do Sabão. Mas não podem ajudar e prosseguem seu caminho. Agenor dorme na cabeça do carro. Tiãozinho segue chorando ainda meio dormindo. Agenor vai escorregando, enquanto os

pensamentos do menino misturam-se com a conver- sa dos bois.

Mhu! Hmoung! Boi… Bezerro-de-Homem…. Mas, eu sou o boi Capitão? Não há nenhum boi capitão… Mas, todos os bois. Não há bezerro-de-homem! Todos Tudo…

Tudo é enorme… Eu sou enorme! Sou grande e forte…

Mais do que seu Agenor Soronho! posso vingar meu pai…

Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro… Seu Agenor Soronho é o diabo grande… bate em todos os meninos do mundo…

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 319.

Os bois perceberam que o homem corria perigo e combinaram derrubá-lo, se Tiãozinho gritasse. Tião- zinho acabou gritando.

Agenor Soronho foi esmagado no pescoço pela roda esquerda.

A epígrafe sugere a caminhada de bois e de ho- mens. O conto alude à sabedoria dos animais que cumprem a fábula da justiça e harmonia entre os se- res do cosmos. A narrativa é aberta pela presença da irara (cachorrinha-do-mato). O suspense é mantido, entremeando na ação a conversa dos bois marcada pela presença de onomatopéias, que se acabam con- fundindo com os devaneios do menino. Percebe-se, ainda, a humanização dos animais (antropomorfis- mo) e a aproximação dos sentimentos humanos com o mundo animal (zoomorfismo). Agenor Soronho personifica o Mal.

A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA Augusto Esteves Matraga, ou Nhô Augusto, é um homem valente e de má índole. Mora no arraial da Virgem das Dores do Córrego do Murici. Bebe muito e costuma judiar das pessoas. Certa vez, arrematou num leilão a prostituta Tomázia, apelidada por ele de Sariema, por cinquenta-mil-réis. Isto depois de es- pancar um capiauzinho. Levou a prenda, mas, depois de ver sua magreza, desprezou-a: […] “Vá-se embo- ra, frango d’água! Some daqui!” (ROSA, João Gui- marães. Op. cit., p. 327.)

Dona Dinorá é mulher de Matraga. Por ela fica-se sabendo dos repentes do marido, duro e doido e sem detença, como um bicho grande do mato. Não se im- portava nem com a filha. Dona Dinorá manda cha- má-lo por intermédio do Quim Recadeiro, mas o marido não atende e manda o Quim levar a mulher e a filha para o Morro Azul no outro dia.

Dona Dinorá tinha medo dele, caso contrário, fu- giria com Ovídio Moura, que gostava muito dela.

Matraga, que fora criado pelo avô para padre, tor-

nara-se um homem abrutalhado, mulherengo e cheio

de dívidas. Por causa disso, acaba sendo abandonado

pelos capangas, que não foram pagos, e passam para

o lado do major Consilva. A mulher também acaba

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fugindo com Ovídio Moura. Matraga foi até a fazen- da do major Consilva; depois iria atrás da mulher.

Ao chegar à fazenda do major, foi recebido com pancadaria pelos jagunços do inimigo, marcado com ferro quente e surrado até quase a morte. Tomado por morto, Matraga foi atirado do alto de um barranco.

Um casal de pretos velhos acaba salvando Augus- to Matraga. Cuidam dele. Matraga sofre muito e deli- ra. Chora feito menino desamparado. Os pretos chamam um padre para confessar o moribundo, aqui se dando a conversão de Nhô Augusto, que passou a seguir os conselhos do padre.

Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria… Cada um tem a sua hora e sua vez: você há de ter a sua.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 339.

Mais alguns meses e Matraga está bom. Parte para umas terrinhas distantes que possuía, levando consi- go o casal de velhos. Caminham pela noite, escon- dendo-se dos capangas do major, até chegarem ao povoado de Tombador.

Matraga trabalhava sem parar, da manhã à noite.

Aos domingos rezava o terço com os velhos. Evitava festas, sanfonas e violas. Sempre repetia: “cada um tem a sua hora e sua vez: você há de ter a sua”. O tempo foi passando, e ele não fumava, não bebia, não olhava para mulheres. Um dia passou pelo arraial o Tião da Thereza, que lhe contou sobre a morte herói- ca de Quim Recadeiro na fazenda do major Consilva e que a filha de Matraga tornara-se prostituta. Nhô Augusto irritou-se, mas agarrou-se à fé: “Para o céu eu vou, nem que seja a porrete”.

Chegou ao arraial, de passagem, seu Joãozinho Bem-Bem com seu bando de jagunços. Todos foram acolhidos por Nhô Augusto, que lhes deu pousada e comida, tratando-os muito bem. Tornaram-se amigos.

Matraga foi convidado pelo chefe para entrar para o bando, mas recusou o convite. No outro dia, parti- ram.

Com a chegada do verão e das aves de arribação, Matraga resolveu também partir. Agradeceu o jumento que lhe deram e se foi, sem saber para onde. Chegou ao arraial do Rala-Coco, onde a população estava agitada pela presença dos jagunços de seu Joãozinho Bem-Bem. Matraga encheu-se de alegria pelo reen- contro com o amigo.

O bando estava de partida, mas antes tinham que ajustar contas com a família de um rapaz que fugira, depois de matar Juruminho. Matraga lamentou a

morte do rapaz, a quem se afeiçoara. O chefe reno- vou o convite a Matraga, mas este recusou com seu riso de capiau que passou a perna em alguém.

Nisso chegou um velho trazido pelos jagunços do bando e que foi jogado aos pés de Joãozinho Bem- Bem. O velho implorou pela família do matador Ju- ruminho, justificando que não podiam pagar pelo mal que o rapaz fizera. O velho evocou Jesus Cristo. João- zinho Bem-Bem ficou intransigente, querendo ele mesmo cumprir a vingança.

Matraga interferiu em favor do velho, mas João- zinho Bem-Bem perguntou:

— Você está caçoando com a gente, mano velho?

— Estou não. Estou pedindo como amigo, mas a con- versa é no sério, meu amigo, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.

Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e ele nesse ponto era bem assistido, sabendo prever a viragem dos climas e conhe- cendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco excessivamente bronco, e cami- nhou para cima de Nhô Augusto, que grita:

— Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin!

5

Avança, cambadas de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!…

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 367.

Iniciou-se o combate entre Matraga e o bando. Nhô Augusto, possesso, gritava palavrões que há muito não proferia. Matraga liquida quase todo o bando, sobran- do apenas ele e seu Joãozinho para o duelo final:

— Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar…

— Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem…

— Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos pal- mos é que tem, do calcanhar ao cotovelo!…

— Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho para o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!…

— Úi, estou morto…

A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um mundo de cobras sangren- tas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 368.

Matraga já estava muito ferido quando foi socor- rido pelas pessoas do lugar. Matraga e Joãozinho Bem- Bem ainda acabaram como amigos:

“— […] Quero acabar sendo amigos…

— Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.

Mas, agora, se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir jun- tos…” (ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 369.)

As pessoas do lugar anunciaram a morte do chefe dos jagunços e tentaram tripudiar sobre o cadáver.

5 Em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém.

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Nhô Augusto reagiu com energia, mandando que pa- rassem e enterrassem o corpo direitinho e com res- peito, porque era seu parente. As pessoas comemoraram a chegada de Matraga ao povoado para livrá-los do bando. A família do velho foi chamada para agradecer ao santo.

Antes de morrer, Nhô Augusto reconheceu e foi reconhecido por um parente, o João Lomba, e pediu a este que pusesse bênção em sua filha e dissesse à mulher que estava tudo em ordem.

“Depois morreu.” (ROSA, João Guimarães. Op.

cit., p. 379.)

A novela é uma verdadeira obra-prima, seja na com- posição dos traços psicológicos do protagonista, seja no enredo marcado pela ação constante. Percebe-se a composição do personagem a partir da contradição permanente do homem barroco, uma vez que Matraga abriga em seu corpo o anjo e o demônio. O processo de conversão do protagonista é claramente mostrado tanto pela ação quanto por suas mudanças de nome. A ação final culmina o processo de redenção, com o cres- cimento de Matraga para cumprir o papel do bem di- ante do mal, dando a ele seu momento de glória.

Finalmente, Matraga teve a sua hora e a sua vez.

4. ESTRUTURA DA OBRA

O livro Sagarana é uma coletânea de nove contos e novelas. Todos os textos apresentam a tendência de Guimarães Rosa à pesquisa permanente da lingua- gem regional, mantendo-se ligados ao instrumenta- lismo lingüístico. Todas as ações ocorrem, como pode ser comprovado pelo cenário, no interior de Minas, existindo farta nomeação de lugares e regiões. Essa verossimilhança serve de primeiro elemento catali- sador das narrativas. Mas há outras formas de agru- parmos as narrativas.

Em todos os contos, é comum a presença de epí- grafes (texto ou frase que serve de tema ou assunto), cujo sentido se mostra totalmente integrado ao texto.

O uso de epígrafes de sentido regional ou folclórico prende-se à intenção de desvendar o mundo regional e os costumes do interior mineiro.

A) Tempo: O tempo das narrativas é marcado pela indeterminação.

B) Espaço: O espaço da narrativa é Minas Ge- rais, mais especificamente o interior de Minas, des- tacando-se nomes de vilarejos, de povoados, de fazendas de criação de gado. Apenas circunstancial- mente são citados São Paulo e Goiás.

C) Foco narrativo: Os contos são narrados em terceira pessoa, com exceção de Minha Gente e São

Marcos, nos quais a narrativa se dá em primeira pes- soa. No conto Corpo fechado, a narrativa é feita pelo médico que acompanha a história de Manuel Fulô.

5. ESTILO DE ÉPOCA

Guimarães Rosa pertence à terceira fase do Mo- dernismo brasileiro, ou seja, Neomodernismo, inici- ado em 1945. Destaca-se como um dos mais importantes escritores de toda a nossa literatura. Sua obra Sagarana é um livro de contos inserido na ten- dência criada por Guimarães Rosa do regionalismo universalizante, uma vez que sua leitura do mundo regional se faz a partir de um prisma universal.

6.ESTILO INDIVIDUAL

Guimarães Rosa é um escritor ímpar dentro de nossa literatura, principalmente por causa dos recur- sos renovadores empregados em sua prosa regiona- lista, que dão vigor ao modernismo da terceira fase.

Renovou o conto e o romance por meio de uma lin- guagem criativa, fruto de suas constantes pesquisas do mundo regional mineiro e de seu conhecimento de vários idiomas. Recriou a língua literária através do uso de expressões lingüísticas nascidas no meio regional e colhidas por sua inventividade.

Ao refletir acerca do universal sob uma perspectiva regional, acaba expressando uma multivisão metafísi- ca da existência a partir do pitoresco. A crença no ma- niqueísmo de forma natural está presente em seus textos, simbolizada através de personagens que, algu- mas vezes, trazem em si a expressão do duo: Augusto Matraga, por exemplo. Assim, seus contos procuram traduzir conceitos filosóficos e refletem sobre amplas contemplações de uma mística cósmica manifesta de forma um tanto mais evidente em algumas passagens.

A linguagem é, sem dúvida, o ponto mais alto das conquistas roseanas. Sua linguagem ultrapassa o ma- terial da prosa para atingir a poesia mais pura.

Assim, vejamos alguns desses momentos e recur- sos poéticos:

PRESENÇA DO LIRISMO

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, sauda- de dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…

ROSA, João Guimarães. Op. cit., p. 23-24.

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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A passagem reflete também o emprego de ritmo poético, já que pode ser dividida em versos pentassí- labos (redondilhos menores):

As / an / cas / ba / lan (çam), 5

e as / va / gas / de / dor (sos) 5 das/ va / cas / e / tou (ros), 5

ba / ten / do / com as / cau (das), 5

Ou em versos hendecassílabos (onze sílabas):

As / an / cas / ba / lan / çam, / e as / va / gas / de / dor (sos) 11 das/ va / cas / e / tou / ros, / ba / ten / do / com as / cau (das) 11

Emprego de aliterações: “Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando… Dansa doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito… Vai, vem, volta, vem na vara, vai varando…” (p. 24)

Emprego de metáforas originais: Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas oscilava a mas- treação de chifres (p. 5); Silvino quer beber o sangue de Badu. (p. 17)

Outros recursos empregados pelo autor são:

• Ruptura da linearidade narrativa por meio de provérbios.

• Emprego de trocadilhos.

• Emprego de antíteses.

• Uso de onomatopéias e prosopopéias.

• Emprego de repetições binárias ou ternárias.

• Emprego de neologismos (o próprio título da obra é bom exemplo).

• Presença de arcaísmos (manteúdo, alembrei, amostro).

• Emprego da técnica de suspense.

• Presença de micronarrativas encaixadas na nar- rativa principal.

Outro aspecto que merece ser ressaltado é o em- prego de pontuação excessiva, principalmente vírgu- las, ampliando as pausas para aproximar a linguagem escrita da linguagem falada (oralidade), conferindo um ritmo poético à linguagem.

7. PROBLEMÁTICA E PRINCIPAIS TEMAS

Os contos podem ser separados de acordo com certas temáticas centrais ou ações:

• Contos nos quais ocorre o crescimento das per- sonagens: O burrinho pedrês, Duelo, Corpo fechado e A hora e vez de Augusto Matraga.

• Contos nos quais ocorre a humanização dos ani- mais: O burrinho pedrês e Conversa de bois.

• Contos de feitiçaria: Minha gente, São Marcos e Corpo fechado.

• Contos nos quais um instante parece valer por toda uma vida: O burrinho pedrês e A hora e vez de Augusto Matraga.

• Contos nos quais costumes dos capiaus ser- vem de temática: A volta do marido pródigo e Mi- nha gente.

• Contos onde está presente a idéia de travessia:

O burrinho pedrês, Duelo e A hora e vez de Augusto Matraga.

• Contos nos quais a natureza parece algo vivo (panteísmo): Sarapalha e São Marcos.

Cabe ainda ressaltar que o primeiro conto (O bur- rinho pedrês) e o último (A hora e vez de Augusto Matraga) fecham-se num círculo temático.

8.BIBLIOGRAFIA

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CANDIDO, Antonio. Tese e antítese. 3. ed. São Pau- lo: Companhia Editora Nacional, 1978.

COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978. (Ensaios.) GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

GARBUGLIO, José Carlos. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972.

HANSEN, João Adolfo. O o — A ficção da literatu- ra em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. 2. ed. São Paulo: FAPESP/EDUSP, 2001.

MIKETEN, Antonio Roberval. Travessia de grande sertão: veredas. 2. ed. Brasília: Thesaurus, 1982. (Sé- rie Literariedade)

NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 2. ed. São Pau- lo: Perspectiva, 1976. (Coleção Debates; Crítica).

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ROSENFIELD, Kathrin H. Os descaminhos do demo:

tradição e ruptura em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Imago, São Paulo: Edusp, 1993.

SANTOS, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996.

SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos. São Paulo:

Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tec-

nologia do Estado de São Paulo, 1976.

(12)

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Sobre João Guimarães Rosa, não é correto afirmar:

a) Sua obra recria a língua literária a partir da linguagem do homem sertanejo.

b) O emprego de neologismos e elementos da poesia dá a seus textos uma musicalidade incomum na prosa.

c) Suas personagens são escravas do meio regional por causa das circunstâncias e do destino.

d) Criou o regionalismo universalizante a partir de uma leitura universal do mundo regional mineiro.

e) Seus textos refletem a permanente luta entre o bem e o mal no sertão das gerais, mas refletem uma visão mís- tica mais profunda e uma perspectiva psicológica mais universal.

(Fuvest-SP) No conto A hora e vez de Augusto Matra- ga, de Guimarães Rosa, o protagonista é um homem rude e cruel, que sofre violenta surra de capangas inimigos e é abandonado como morto, num brejo.

Recolhido por um casal de matutos, Matraga passa por um lento e doloroso processo de recuperação, em meio ao qual recebe a visita de um padre, com quem estabelece o se- guinte diálogo:

— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?

— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum… […] Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito.

a) A linguagem figurada amplamente empregada pelo padre é adequada ao seu interlocutor? Justifique sua resposta.

b) Transcreva uma frase do texto que tenha sentido equi- valente ao da frase “não regateia a nenhum coração contrito”.

A humanização dos animais e a aproximação com a fábula estão presentes em alguns contos de Sagarana. Com- prove a afirmação com os títulos dos contos e explique de que maneira confirmam a posição do autor.

Em determinados contos de Sagarana, a temática cen- tral pode ser resumida por um momento que vale por toda uma existência. Cite os títulos dos contos e explique a si- tuação central que comprova a temática.

A presença da feitiçaria e das crendices populares tor- na o conto São Marcos uma verdadeira obra-prima da in- tegração de linguagem e cenário dentro de Sagarana. Que tipo de crítica fica patente no conto? Que experiência vi- venciada pelo protagonista muda sua maneira de pensar?

No conto Duelo a vingança se cumpre de maneira indi- reta. Explique essa afirmação a partir do enredo do conto.

Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepi- dam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas.

— Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar boni- to p’ra gente deitar no chão e se acabar!...

É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.

ROSA, João Guimarães. Op. cit. p. 139-140.

O trecho transcrito faz parte de um conto que procura re- fletir na natureza os males da sezão (maleita). Qual o título do conto? O que leva um dos protagonistas à constatação da beleza do lugar no final do conto?

Respostas

1.

c. As personagens de Guimarães Rosa não são escravas do meio regional, porque sua psicologia e sua condição exis- tencial refletem perspectivas universais.

2.

a) Sim, porque procura adequar-se à linguagem coloquial do interlocutor Augusto Matraga.

b) A frase de sentido equivalente é: “Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum…”

3.

O conto “O burrinho pedrês” deixa clara a humanização do animal. O burrinho pedrês é humanizado porque é capaz de pensar e evita o perigo representado para o cavaleiro Badu na travessia de um córrego tomado pela enchente. Sua visão de mundo também é humanizada, porque parece influenciada pelo estoicismo, doutrina fundada por Zenão de Cício (335- 264 a.C.), e que se caracteriza por uma ética em que a imper- turbabilidade, a estirpação das paixões e a aceitação resignada do destino são as marcas fundamentais do homem sábio, o único apto a experimentar a verdadeira felicidade. Em “Con- versa de bois”, Guimarães Rosa cria uma fábula moderna.

Os animais são capazes de falar e pensar com clareza e parti- cipam da narração e do destino do protagonista Tiãozinho.

4.

Os contos são O burrinho pedrês e A hora e vez de Augusto

Matraga. No primeiro conto, o velho burrinho é levado a acom-

panhar uma boiada e conduzir seu cavaleiro por um momento do destino. No final do conto, ele salva dois vaqueiros, Badu e Francolim. No segundo, Matraga transforma-se de um homem mau em um indivíduo bondoso e solidário. O protagonista luta contra um bando de jagunços chefiado por Seu Joãozinho Bem- Bem para salvar a vida de um velho e de toda a sua família e tem seu momento de glória e redenção.

5.

O conto critica o desrespeito às crenças alheias. Izé é um ho- mem descrente que zomba de um feiticeiro ou macumbeiro cha- mado João Mangalô. Certo dia, Izé fica cego no meio da mata e deixa-se conduzir pelos demais sentidos para voltar até a casa do feiticeiro e ameaçar matá-lo caso não volte a enxergar. De- pois desse dia, Izé passa a respeitar as superstições dos outros.

6.

Turíbio Todo resolve vingar a traição da mulher com Cassiano Gomes, mas acaba matando o irmão do perigoso militar, Le- vindo Gomes. A partir daí, Turíbio foge todo o tempo de Cas- siano Gomes, que está sempre próximo do assassino do irmão, mas nunca se encontram. Cassiano acaba morrendo num pe- queno povoado onde ajudou a salvar o filho de um timpim chamado Vinte-e-Um. A vingança é cumprida pelo agradeci- do Vinte-e-Um quando Turíbio está voltando para casa.

7.

O título do conto é Sarapalha. O protagonista que constata a

beleza do lugar é Ribeiro, que acaba de expulsar de seu sítio

o seu primo Argemiro, porque este confessou que amara em

silêncio a mulher do primo antes de ela fugir com outro ho-

mem. Ribeiro sente-se sozinho e percebe a aproximação da

tremedeira causada pela maleita.

Referências

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