UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
CLAUDIA ROBERTA BORTOLETTO
JOHANN JOACHIM QUANTZ E A ARTE DE ORNAMENTAR: O ARIOSO E MESTO
DO CONCERTO PARA FLAUTA E ORQUESTRA EM SOL MAIOR (QV 5: 174),
ORNAMENTADO COM BASE NO VERSUCH EINER ANWEISUNG DIE FLÖTE
TRAVERSIERE ZU SPIELEN.
CAMPINAS
2015
JOHANN JOACHIM QUANTZ E A ARTE DE ORNAMENTAR: O ARIOSO E MESTO
DO CONCERTO PARA FLAUTA E ORQUESTRA EM SOL MAIOR (QV 5: 174),
ORNAMENTADO COM BASE NO VERSUCH EINER ANWEISUNG DIE FLÖTE
TRAVERSIERE ZU SPIELEN.
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Música, na Área de Concentração Música: Teoria, Criação e Prática.
ORIENTADORA: PROFA. DRA. HELENA JANK
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA CLAUDIA ROBERTA BORTOLETTO, E ORIENTADA PELO PROFA. DRA. HELENA JANK.
CAMPINAS
2015
Aos meus pais e irmãos, cujo
apoio
incondicional
foi
essencial para a minha carreira
como musicista.
A Deus, em primeiro lugar, por ter me proporcionado alegria, força e
disciplina para a conclusão desta dissertação.
À querida Profa. Dra. Helena Jank, minha orientadora e uma das grandes
incentivadoras da minha carreira acadêmica, por todos os ensinamentos, carinho,
apoio, confiança e oportunidade de trabalhar ao seu lado.
À Livia Lanfranchi, por me ajudar a descobrir o prazer na interpretação do
repertório barroco.
Aos Profs. Drs. Esdras Rodrigues, Hermes Coelho e Áurea Ambiel, pelo
incentivo, disponibilidade e conselhos valiosos durante o exame de qualificação.
Aos Profs. Drs. Esdras Rodrigues, Hermes Coelho, Emerson De Biaggi e
Lucia Carpena, pela disposição em participar da banca de defesa.
À Aci Taveira Meyer, por ter me acolhido em sua casa durante quase todo
o período de graduação e mestrado. Pelo exemplo de força, amizade e altruísmo.
Aos meus pais João Carlos Bortoletto e Nilva Aparecida da Silva
Bortoletto, pelo carinho e apoio incondicional aos meus estudos.
Aos meus irmãos João Carlos Bortoletto Júnior e Antonio Carlos
Bortoletto, grandes amigos e modelos de excelência nos estudos e profissão.
Ao meu amado esposo Rodrigo da Silva Rodrigues Lermes, pela revisão
das traduções, confiança, presença constante e pelo apoio durante toda a
elaboração da pesquisa.
À querida amiga Guilhermina Maria Lopes de Carvalho, pela revisão das
traduções, sendo grande companheira de pesquisa e da vida.
Aos amigos Pedro Estevão Quental e Wesley Moraes, pelo
comprometimento e participação no recital de mestrado.
À Daniela Becker Carpena, pela revisão das traduções.
A todos os funcionários da secretaria de pós-graduação em Música da
Unicamp, em especial à Letícia Machado, pela prontidão e auxílio nos momentos de
avaliações e processos burocráticos.
CAMBIO DE ACTITUD
MIGUEL ÁNGEL VILLANUEVAObjetivamos com este trabalho o estudo da prática da ornamentação para
movimentos lentos em obras do período barroco. Tal estudo foi norteado pelas
propostas de ornamentação (italiana e francesa) especificadas no Tratado Versuch
einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen, escrito pelo compositor e flautista
Johann Joachim Quantz (1697-1773) e publicado no ano de 1752. A peça escolhida
para a elaboração dos ornamentos foi o segundo movimento (Arioso e Mesto) do
concerto em Sol maior para flauta, dois violinos, viola e baixo contínuo (QV 5:174) do
próprio Quantz. Além dos ornamentos, outros elementos foram constantemente
observados durante a pesquisa de edições e no processo de interpretação do Arioso
e Mesto. São eles: tessitura, dinâmica e articulação. Por meio da revisão destes
elementos, conseguimos obter ferramentas para o aprofundamento teórico,
necessário a uma boa interpretação do repertório barroco. Adicionalmente,
almejamos oferecer uma discussão dinâmica aos intérpretes da música barroca que
tocam instrumentos antigos e/ou modernos, em ambos os casos, visando uma
interpretação historicamente informada.
It is the aim of this work the study of the practice of ornamentation in the slow
movements of baroque compositions. This study was based on proposals of Italian
and French ornamentation, as specified in the Versuch einer Anweisung die Flöte
traversiere zu spielen treatise, written by the German composer and flautist Johann
Joachim Quantz (1697-1773), published in 1752. As example we present an
ornamentation proposal for the second movement Arioso e Mesto of the G major
concerto for flute, two violins and continuo (QV 5: 174) by the aforementioned
author. Besides ornaments, other pertinent elements are also observed during the
research and interpretation process of the Arioso e Mesto, namely: range, dynamics
and articulation. We believe that revision of these elements can provide the
necessary theoretical knowledge for a historically informed performance by
interpreters of baroque music, whether they use early or modern instruments.
Figura 2: Consort de Flautas
... 26
Figura 3: Consort de Flautas
... 26
Figura 4: Flautas com a chave de Ré#
... 27
Figura 5: Corps de Réchange
... 29
Figura 6: Corps de Réchange
... 30
Figura 7: Semitons
... 31
Figura 8: Tuning Slide e Sistema de Rolha
... 32
Figura 9: Capa do tratado de Quantz
... 36
Figura 10: Erros descritos por Quantz
... 37
Figura 11: Principium Musicum
... 38
Figura 12: Executio anima compositionis
... 38
Figura 13: Proporção dos 6 temas gerais do Versuch de Quantz
... 54
Figura 14: Ritmos trocaicos
... 72
Figura 15: Tabela XVII
... 73
Figura 16: Tabela XVII
... 74
Figura 17: Uníssono
... 88
Figura 18: Intervalo de Segunda
... 89
Figura 19: Intervalo de Terça
... 90
Figura 20: Intervalo de Quarta
... 91
Figura 21: Intervalo de Quinta
... 92
Figura 22: Intervalo de Sexta
... 93
Figura 23: Intervalo de Sétima
... 94
Figura 24: Mais alguns intervalos
... 95
Figura 25: Arioso e Mesto ornamentado pela autora
... 99
Figura 26: Cadência
... 101
Figura 27: Edição de Horst Augsbach
... 120
Figura 28: Edição Wilhelm Barge
... 126
Figura 29: Manuscrito de Dresden
... 128
Tabela 1: Título, Dedicatória, Prefácio, Introdução
... 48
Tabela 2: Capítulos
... 49
Tabela 3: Referências sobre os estilos italiano e francês no tratado de Quantz
... 58
Tabela 4: Os ornamentos segundo Quantz
... 59
Tabela 5: Catálogo dos Concertos de Quantz por Augsbach
... 78
Tabela 6: Movimento harmônico resumido
... 105
Tabela 7: Ornamentos
... 112
Tabela 8: Fonte A e Manuscrito
... 131
Tabela 9: Fonte A e Augsbach
... 131
Tabela 10: Fonte A e Barge
... 133
Tabela 11: Manuscrito e Augsbach
... 134
Tabela 12: Manuscrito e Barge
... 135
INTRODUÇÃO
... 1
CAPÍTULO 1
... 9
1. Os estilos nacionais e a ornamentação no barroco tardio
... 9
1.1. Os ornamentos de acordo com: Tartini, Carl Philipp Emanuel Bach e Leopold Mozart.
... 18
CAPÍTULO 2
... 23
2. Johann Joachim Quantz: Biografia
... 23
2.1. A flauta de Quantz
... 25
CAPÍTULO 3
... 34
3. O tratado Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen: repercussão e influência
... 34
3.1. Características Gerais do tratado de Quantz
... 43
3.2. A arte de ornamentar segundo Quantz
... 55
3.2.1. A arte de ornamentar o Adagio
... 66
CAPÍTULO 4
... 77
4. Concerto em Sol maior para flauta transversal, violinos 1 e 2, viola e baixo contínuo QV 5:174
... 77
4.1 O Arioso e Mesto: edições
... 84
4.2 O Arioso e Mesto: ornamentação
... 87
CONCLUSÃO
... 102
REFERÊNCIAS
... 107
ANEXOS
... 111
Anexo I: Ornamentos
... 112
Anexo II: Partituras
... 120
Anexo III: Edições comparadas
... 131
Anexo IV: Originais dos textos de Quantz
... 137
INTRODUÇÃO
O período barroco é caracterizado por grandes transformações em
relação à prática musical. Podemos destacar: a consolidação do sistema tonal; o
florescimento de gêneros musicais tais como a ópera, o oratório, a cantata, a fuga, a
suíte, a sonata e o concerto; o crescimento e desenvolvimento da orquestra
(BENNETT, 1986, p. 35). Além disso, foi importante a influência da classe burguesa
para a propagação musical na Europa, como ressaltam Jean e Brigitte Massin:
O crescimento do público burguês amante da música no século XVIII teve uma consequência importante para a vida musical: multiplicaram-se as apresentações públicas de música, asseguradas pelos diversos concerts (sociedades de concerto ou academias). Na França, academias organizadas como sociedades de concerto, sobretudo de amadores, mas com a participação cada vez maior de profissionais, existiram desde a primeira metade do século, em Paris, Marselha, Bordeaux, Nîmes, Lyon, Lille e noutros pontos. [...]. (MASSIN, J; MASSIN, B, 1997, p. 417).
Neste período, a ornamentação e a improvisação eram recursos
interpretativos amplamente conhecidos pelos músicos. De acordo com Harnoncourt
(1993, p 36), os instrumentos eram divididos em dois grupos: instrumentos
fundamentais (cravo, virginal, órgão, harpa, alaúde, dentre outros) e instrumentos
ornamentais (de arco, sopros, harpa e alaúde quando usados melodicamente). Aos
primeiros, cabia a execução do baixo contínuo, sendo que todo desenvolvimento
harmônico era improvisado. Sobre os segundos, Harnoncourt afirma:
O papel dos instrumentos ornamentais é atualmente motivo de controvérsia. Alguns testemunhos do século XVII indicam que o nível de instrução dos músicos profissionais era tão elevado que se lhes podia confiar completamente a improvisação de movimentos polifônicos (sem dúvida com imitações simples e uma harmonia sem complicações, com pequenos erros sendo tolerados). Em todo caso, os esboços e partituras, juntamente com eventuais gestos do maestro al cembalo eram suficientes para que as pequenas orquestras de ópera tocassem de maneira ordenada. (HARNONCOURT, 1993, p. 37).
Somado a isso, alguns autores como Laura Rónai, Thurston Dart e Hans
Martin Linde apontam em seus escritos a recorrente prática da ornamentação e
improvisação na interpretação da música barroca: Dart (2000, p. 104) destaca que
no adagio típico italiano, esperava-se que o intérprete improvisasse com bastante
liberdade; Linde (1979, p. 5) ressalta que a maioria dos compositores do período
barroco esperava que o intérprete ornamentasse sua obra; Rónai (2008, p. 238)
afirma que no século XVIII, improvisar fazia parte da rotina de qualquer músico e a
ornamentação dava vida às composições. Johann Joachim Quantz, Leopold Mozart,
C.P.E. Bach e Giuseppe Tartini dedicam grande atenção à ornamentação,
apontando em seus tratados publicados no decorrer do século XVIII, as principais
características que envolvem a ornamentação e improvisação de uma obra musical.
Como interpretamos hoje a música barroca? Os bons músicos dos
séculos XVII e XVIII dominavam as regras de composição e improvisação, o que
fazia com que a forma final de uma obra se definisse sempre durante a sua
execução (HARNONCOURT, 1993, p. 13). Porém, com a consolidação da classe
burguesa e a formação dos conservatórios de música por influência desta classe, a
improvisação foi saindo de cena e o foco voltava-se cada vez mais para o ensino
nos conservatórios, ou seja, excelência na leitura e técnica do instrumento. De
acordo com Rónai (2008, p. 235) “[...]. A ornamentação improvisada, que depende
da orientação direta de um mestre, deixa de ser assunto prioritário”. Ainda segundo
esta autora:
[...] o músico do século XIX só parece um improvisador razoável se comparado ao do século seguinte, e suas habilidades empalidecem ao serem confrontadas com as do músico barroco. Enquanto no século XVIII todos os compositores eram intérpretes e virtualmente todos os intérpretes sabiam compor (até mesmo sua Majestade, Frederico II, o Grande, da Prússia!), os intérpretes de música clássica do século seguinte se tornaram altamente especializados. Eram instrumentistas que estudavam horas por dia, num esforço hercúleo para dominar textos compostos por outros músicos. A técnica era cultuada acima de outras qualidades, e apesar de serem altamente capazes de reproduzir peças com perfeição, não tinham mais qualquer treinamento ou estudo que capacitasse a inventar seu próprio repertório! Felizmente o nosso século está presenciando um resgate da arte de ornamentar e improvisar, não apenas nos campos da música popular e folclórica como também no âmbito da chamada música de concerto. (RÓNAI, 2008, p. 239 - 240).
O estudo de tratados, livros, gravações, notações, manuscritos, dentre
outros, torna-se de extrema importância para o resgate da prática musical barroca.
Laura Rónai ressalta:
[...] os métodos e compêndios do Barroco que sobreviveram até os nossos dias são mais do que curiosidades históricas, empoeirados volumes de reduzido valor acadêmico. Devem ser vistos, isso sim, como ferramentas de primordial utilidade para o intérprete consciencioso, que gostaria de aproximar ao máximo de uma interpretação viva e autêntica, tão fiel quanto possível às intenções do compositor. (RÓNAI, 2008, p. 209).
Consideramos adequado tomar como principal base teórica para a nossa
pesquisa o tratado Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen (1752),
uma das mais importantes obras do século XVIII. No prefácio, o autor Johann
Joachim Quantz (1697-1773) deixa claro que as regras ali descritas por ele não se
destinam somente aos flautistas, mas também a cantores e instrumentistas em
geral, ou simplesmente a todos aqueles que desejam cultivar uma boa interpretação
musical.
É relevante destacar que, em relação à interpretação da música barroca,
devemos expressar nossas conclusões em termos da nossa própria era, pois não
vivemos no século XVIII ou XV (DART, 1990, p. 7). Por isso, o uso de instrumentos
modernos, não excluindo a importância e relevância dos antigos em nossa época,
pode oferecer uma nova visão quanto à performance musical barroca, refletindo
assim a interação da prática e teoria do passado com o que temos na atualidade.
Isso inclui os instrumentos que tiveram um desenvolvimento ou adaptação posterior
ao século XVIII e que estão ainda sujeitos a mudanças em sua constituição no
tempo presente. Dart ainda acrescenta:
A interpretação deve ser idiomática e ter estilo, não importa que sonoridades empregue. Cada instrumento e cada versão da obra vai exibir uma faceta diferente da música para o ouvinte, e o executante deve ter o cuidado de iluminar essas facetas de modo brilhante e seguro. As execuções devem ser idiomáticas: cada instrumento deve ser verdadeiro em si mesmo e não deve tentar arremedar os outros. (DART, 1990, p. 212).
Neste trabalho, visamos auxiliar intérpretes da música barroca que tocam
instrumentos modernos, porém, se preocupam com a interpretação historicamente
informada. Apresentamos uma possibilidade de ornamentação no Arioso e Mesto do
concerto
1em Sol maior para flauta, violinos 1 e 2, viola e baixo contínuo (QV 5:174)
1
Dentre os concertos para flauta de Quantz, este é o mais conhecido. BONNEMA, Feike. Listen to Quantz music. Disponível em: <http://jjquantz.org/index.php/youtube-test>. Acesso em: 5 jun. 2015.
de Quantz. De acordo com este autor em seu tratado, Capítulo XIV, tópico 1, um
músico pode distinguir-se de outros, demostrando disciplina e domínio técnico,
através da execução de um movimento lento. Quantz afirma também que as regras
para a ornamentação descritas por ele servirão principalmente para o Adagio, já que,
por se tratar de um movimento lento, há mais tempo para a aplicação dos
ornamentos e variações.
Sobre a organização desta dissertação, dividimos o trabalho em 4
capítulos:
Capítulo 1
Neste capítulo discorremos sobre três estilos nacionais de composição e
interpretação da música (Século XVIII) que tiveram importância para o
desenvolvimento da ornamentação e improvisação. São eles: italiano, francês e o
galante. Vale ressaltar que delineamos o século XVIII para o estudo destes estilos,
por se tratar de um período representativo em relação à bibliografia sobre
ornamentação, por exemplo, o tratado para flauta de Quantz. Segundo Laura Rónai
(2008, p. 210) os compositores barrocos franceses tinham por hábito escrever todos
os ornamentos que julgavam necessários à interpretação de suas obras, já, os
italianos, deixavam ao intérprete a função de acrescentar os ornamentos a suas
composições. O estilo galante foi muito cultivado na Alemanha e alguns autores são
considerados representantes, tais como: Johann Joachim Quantz, C. P. E. Bach,
Leopold Mozart e Marpurg (DART, 2000, p. 116).
A ornamentação não era um recurso interpretativo unicamente utilizado
nos países França e Itália. Linde (1979, p. 5) destaca que na Inglaterra, havia forte
influência do estilo francês e na Alemanha, a influência era de ambos estilos (italiano
e francês). Compositores franceses também compunham música italiana e
vice-versa, ou seja, havia contatos e influências mútuas entre os compositores
pertencentes a tais estilos: ornamentos poderiam ser introduzidos em uma
composição francesa (improvisados) e nem toda peça em estilo italiano deveria ser
necessariamente ornamentada.
Recomendamos também para a compreensão do processo de
ornamentação as seguintes obras: Leopold Mozart, Versuch einer gründlichen
Violinschule (1756); Carl Philipp Emanuel Bach, Versuch über die wahre Art das
Clavier zu spielen (Parte I - 1753/ Parte II - 1762); Giuseppe Tartini, Traité des
Agrémens de la Musique (1771), publicados no mesmo período que o Versuch de
Quantz. Susan Murphree Wallace afirma,
A maioria dos professores de instrumentos da época ensinava a ornamentação à maneira francesa, que seguia as instruções específicas do compositor. O Traité des Agrémens (Tratado da Ornamentação), contribuição de Tartini, era um manual de instruções para o estilo italiano. Esta obra foi altamente ofuscada pelo trabalho mais compreensível de Johann Joachim Quantz, e recebeu, comparativamente, pouca atenção tanto na história do violino como na história da ornamentação. Leopold Mozart (1756), Francesco Geminiani (1749) e Carl Philip Emanuel Bach (1753, 1762) também deixaram tratados que dedicaram muita atenção aos ornamentos e que realçaram a sua expressiva significância. (WALLACE, 2003, p. 33, tradução nossa)2.
Para a apresentação e organização de alguns dos ornamentos discutidos
por estes autores em seus tratados, decidimos pela produção de tabelas. Desta
maneira, o conteúdo estaria mais claro para consulta e aplicação dos ornamentos:
apojatura, trinado, mordente, grupeto, tremolo, vibrato, battements, cadência.
Vale ressaltar que a produção de todas as tabelas ao longo desta
dissertação tem como objetivo: a praticidade e facilidade para consulta e aplicação
do material.
2
Most of the instrumental tutors of the period taught ornamentation in the French manner, which followed the composer’s specific instructions. Tartini’s contribution, the Traité des Agrémens (Treatise on Ornamentation) was an instruction manual for the Italian style. This work has been largely overshadowed by the more comprehensive work of Johann Joachim Quantz, and has received comparatively little attention, either in the histories of the violin or in histories of ornamentation. Leopold Mozart (1756), Francesco Geminiani (1749) and Carl Philip Emanuel Bach (1753, 1762) also left behind treatises that devoted a great deal of attention to ornaments and stressed their expressive significance.
Capítulo 2
Discorremos sobre a biografia de Quantz e sua importância e contribuição
para a história da flauta (desenvolvimento e luteria). Quantz inicia seu aprendizado
musical ainda quando criança, através do tio Justus Quantz e de seu tutor (logo
após a morte do tio) Adolf Fleischhack. Apesar de ter aprendido vários instrumentos,
como violino, trompete, violoncelo, dentre outros, a dedicação maior de Quantz foi
para a flauta transversal. De 1741 até o fim de sua vida (1773), trabalhou na Corte
de Frederico II, rei da Prússia, sendo que suas atribuições nesta Corte incluíam o
dever de dar aulas de flauta para o rei, reger orquestras, participar de concertos e
também de compor novas peças.
Apresentamos as transformações e inovações realizadas na flauta
transversal por Quantz. Por exemplo: acréscimo da segunda chave no instrumento;
utilização do tuning slide e do sistema de rolha no bocal da flauta. Além disso, em
1739, Quantz passa a fabricar flautas e nos indica no Capítulo 1 de seu tratado as
madeiras utilizadas para a fabricação e meios de manutenção do instrumento.
Capítulo 3
Ressaltamos a importância do tratado de Quantz para a interpretação de
obras do período barroco, além de sua repercussão e influência na Europa do
século XVIII. Seu tratado foi traduzido e publicado em diversos idiomas, por
exemplo: o francês, o italiano, o inglês e o holandês. Autores como Friedrich Wilhelm
Marpurg (1718-1795), Johann Samuel Petri (1738-1808), Johann Friedrich Agricola
(1720-1774), lançaram mão do Versuch de Quantz para a elaboração de seus
trabalhos teóricos.
Construímos as Tabelas 1 e 2 com as principais características do
Versuch, percebendo assim a relevância do tratado não só no aspecto interpretativo,
mas também no aspecto técnico em ralação à flauta transversal (embocadura,
articulação, postura, som, respiração). O tratado está dividido da seguinte maneira:
Título, Dedicatória, Prefácio, Introdução (onde a numeração começa), 18 Capítulos,
Índice Remissivo. Na tradução em espanhol de Rodolfo Murillo e na tradução em
inglês de Edward Reilly, os exemplos musicais são mantidos juntos aos capítulos.
Na versão em alemão, tais exemplos são colocados no final do tratado.
Na Tabela 4, elencamos alguns dos ornamentos descritos por Quantz no
Versuch e indicamos os capítulos em que explica tais ornamentos. Por exemplo:
apojatura (Capítulos VI, VIII, XI, XIII), trinado (Capítulos, VIII, IX, XI), battement
(Capítulos VIII, XI e XII), grupeto (Capítulos VIII e XI), mordente (Capítulos VIII e XI),
cadência (Capítulo XV), flattement (Capítulo XIV).
Introduzimos como Quantz nos orienta a ornamentar um Adagio. No
Capítulo XIV, tópico 2 de seu tratado, o autor afirma que existem duas maneiras de
ornamentar este movimento: francesa e italiana. Para a ornamentação francesa,
precisamos reconhecer e interpretar corretamente os ornamentos essenciais
(apojaturas, trinados, mordente, grupeto, dentre outros). Para a ornamentação
italiana, devemos ir além dos ornamentos essenciais, e para isso, o conhecimento
de harmonia torna-se indispensável. Vimos também a importância dos ornamentos,
da dinâmica e do ritmo para uma boa interpretação de um movimento lento.
Capítulo 4
Apresentamos o concerto em Sol maior para flauta, violinos 1 e 2, viola e
baixo contínuo (QV 5:174) de Quantz. Foi composto por volta de 1745 e contém três
movimentos: Allegro assai; Arioso e Mesto; Presto. Horst Augsbach catalogou as
obras de Quantz em 7 grupos e decidimos por utilizar sua catalogação para
especificar o concerto em Sol maior como QV 5:174. Os grupos estão divididos
desta maneira: (1) sonatas solo para flauta e baixo contínuo; (2) trio sonatas; (3)
solos, duos e trios para flauta sem o baixo contínuo; (4) concertos para flauta, dois
violinos e baixo contínuo; (5) concertos para flauta, dois violinos, viola e baixo
contínuo; (6) concertos com vários solistas; (7) obras vocais.
Pensando na importância do estudo de tratados, livros, gravações, dentre
outros, para a construção da prática musical barroca (como anteriormente
mencionado), decidimos por pesquisar edições do concerto em Sol maior de Quantz.
Encontramos muitas edições, no entanto, lançamos mão de apenas 4.
A primeira, do autor Horst Augsbach, é da editora Breitkopf & Härtel,
editora renomada. O fato de ser Urtext nos trouxe segurança quanto à reprodução
do texto de Quantz. A segunda, do autor Wilhelm Barge, também é da editora
Breitkopf & Härtel, sendo que nesta partitura, encontramos muitas ligaduras e notas
escritas uma oitava acima, se comparadas com as dos manuscritos estudados. Com
esta edição, percebemos diferenças e semelhanças com a escrita do século XVIII. A
terceira e a quarta versão são manuscritos da obra, e podem ser encontradas na
Biblioteca de Berlim (Staatsbibliothek zu Berlin - Preußischer Kulturbesitz) e na da
Universidade de Dresden (Saxon State and University Library Dresden - SLUB).
Nestas 4 edições, observamos alguns elementos: tessitura, dinâmica,
ornamentos e articulação, constantemente revisados no processo de interpretação
do Arioso e Mesto. Através deste estudo, conseguimos obter ferramentas para o
aprofundamento teórico, necessário a uma boa interpretação do repertório barroco.
Colocamos em prática as especificações de Quantz para a ornamentação
do Arioso e Mesto, através de exemplos descritos no Versuch: Capítulos XIII, XIV,
XV e XVIII. Além disso, a orientação com a Professora Doutora Helena Jank e as
aulas de flauta com a Professora Livia Lanfranchi foram imprescindíveis para um
melhor entendimento dos exemplos de Quantz e aplicação dos ornamentos.
Para a interpretação dos três movimentos do concerto, os elementos já
citados foram bem debatidos nas orientações e aulas. Na elaboração dos
ornamentos, todo cuidado foi necessário para não obscurecer a escrita de Quantz.
No Capítulo XIV, tópico 14, o compositor ressalta que não devemos acrescentar
ornamentos em excesso, de modo que as notas principais não sejam escurecidas e
nem a melodia principal resulte irreconhecível.
CAPÍTULO 1
1. Os estilos nacionais e a ornamentação no barroco tardio
O período da história da música denominado barroco
3compreende o
século XVII e grande parte do século XVIII. Neste último, a partir de 1750
aproximadamente, vemos o surgimento do estilo clássico de composição e
interpretação da música. No entanto, tal surgimento não significa que certos
procedimentos na interpretação da música barroca, como a improvisação e a
ornamentação, saíssem de cena completamente
4. Segundo Laura Rónai,
No século XVIII, improvisar era parte da rotina de qualquer intérprete, e parte do aprendizado de qualquer estudante de música. Instrumentos barrocos tinham possibilidades de articulação e de dinâmica menores do que seus descendentes, e o intérprete dependia mais da ornamentação para criar a variedade imprescindível para dar vida a uma composição. (RÓNAI, 2008, p. 238).
Seguindo o mesmo pensamento, Thurston Dart afirma:
Esta tendência para a improvisação habilidosa (e até mesmo inabilidosa) parece crescer em vez de diminuir, à medida que retrocedemos na história da música. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, presumia-se que qualquer suposto regente, organista ou tecladista fosse capaz de tocar com fluência a partir de um baixo cifrado num conjunto musical. [...]. A improvisação era tão apreciada no século XVI quanto no século XVII, e os tratados sobre o assunto que foram conservados sugerem que essa arte era altamente desenvolvida. [...]. (DART, 2000, p. 69 - 71).
Sobre o contexto social em que a música do século XVIII estava inserida
(elencamos resumidamente), os autores Jean & Brigitte Massin (1997, p. 411)
destacam:
“[...] O impulso tomado pela evolução social e cultural na Europa do
século XVIII fez-se sentir mais cedo nas regiões ocidentais do continente e no meio
urbano, onde a mobilidade social e as atividades culturais se desenvolveram mais
3
A palavra “barroco” é provavelmente de origem portuguesa, significando pérola ou joia de formato irregular. De início, era usada para designar o estilo da arquitetura e da arte do século XVII, caracterizado pelo emprego excessivo de ornamentos. Mais tarde, o termo passou a ser empregado pelos músicos para indicar o período da história da música que vai do aparecimento da ópera e do oratório até a morte de J. S. Bach. (BENNETT, 1986, p. 35).
4
[...]. A passagem do barroco ao clássico não se faz abruptamente. Bem antes da década de 1730, já havia sinais de mudanças, de modo que, de fato, o estilo clássico começou a desabrochar nos últimos anos do período barroco. (BENNETT, 1986, p. 45).
amplamente”. Dentre as regiões ocidentais apontadas, ressaltamos os países
França, Itália, Inglaterra e Alemanha, especialmente as cidades de comércio,
universitárias, portos marítimos e centros administrativos. A “Arte Monárquica
5”,
herdada do século XVII, continuou a exercer influência na prática musical do século
XVIII:
[...] a música de corte rodeava e glorificava os soberanos. As festas e as cerimônias também cumpriam função de relevo na vida da sociedade, sobretudo nos círculos em que se moviam os príncipes e a nobreza, tendo sempre a acompanhá-la a música apropriada às ocasiões mais diversas, como noivados, casamentos, funerais e recepções solenes. (MASSIN, J; MASSIN, B, 1997, p. 411).
Paralelamente à vida musical da corte e dos salões aristocráticos,
desenvolveu-se pouco a pouco uma vida musical nova, a da burguesia que, além de
retomar as práticas musicais supracitadas, criou em meados do século XVIII uma
cultura musical autônoma:
A música, aos poucos, foi se tornando parte da vida social, no círculo familiar e de amizades da casa burguesa, como outrora do salão aristocrático, nos espetáculos e nas festas. Sob a forma de frequentação dos concertos, saraus musicais a domicílio ou atividade musical de amadores, a música passou a ser, pouco a pouco, uma exigência social e um marco distintivo da família burguesa. (MASSIN, J; MASSIN, B, 1997, p. 413).
Dentro deste contexto social, que abarcava tanto as práticas musicais da
corte quanto as da burguesia, floresciam estilos nacionais de composição e
interpretação da música que tiveram importância no desenvolvimento da
ornamentação
6e improvisação, sendo os três principais: o italiano, o francês e o
galante.
O termo estilo no século XVIII, “[...] se refere aos modos de escrita
utilizados nos discursos verbais ou musicais. Essas escritas são variáveis e seguem
um critério de adequação segundo a matéria e a finalidade do discurso [...]”
(PAOLIELLO, 2011, p. 39). Adicionalmente, “[...] se trata de uma transposição por
5
Expressão utilizada pelos autores Jean & Brigitte Massin no livro “História da Música Ocidental”, p. 411.
6
A ornamentação melódica tem uma longa história, que remonta à Idade Média. É provável que a origem dos ornamentos tenha sido sempre a improvisação, e, embora numa etapa posterior tenham por vezes passado a ser total ou parcialmente escritos, ou então indicados por sinais próprios, [...], não deixaram de conservar um certo tom de espontaneidade. (GROUT; PALISCA, 2001, p. 410).
metáfora do termo stylus para modos de escrita, ou modos de compor, e se insere
dentro do contexto retórico” (PAOLIELLO, 2011, p. 46). Assim sendo, os estilos
italiano e francês seguem alguns critérios importantes. Tratamos de alguns
resumidamente e nos atentamos à ornamentação desenvolvida dentro destes dois
estilos. Dart problematiza:
Como podem então os dois estilos ser mais facilmente reconhecidos? Quais são os indícios mais evidentes, em cada peça? A resposta é: o título e certos traços da textura e da instrumentação. As suítes são francesas; as sonatas e concertos, italianos. As danças cujos títulos são pronunciados à francesa (allemande, courante, gigue, bourrée, sarabande, etc.) e as indicações francesas de andamento (vivement, lentement) pedem um estilo francês de interpretação; as danças com títulos italianos (allemanda,
corrente, siciliana, giga, sarabanda) ou com indicações italianas de
andamento (allegro, grave, presto, adagio) pedem um estilo italiano. As aberturas (overtures) são francesas; as sinfonias, italianas – e esses dois tipos de aberturas não são apenas formalmente distintos, mas também precisam ser tocados de maneira diferente. Ritmos ondulantes e uma orquestração usando instrumentos de sopro obbligato geralmente indicam um estilo francês; ritmos regulares “de maquina de costura”, ritmo lombardo e orquestração predominantemente de cordas são características do estilo italiano. (DART, 2000, p. 114).
O estilo galante foi muito cultivado na Alemanha e alguns autores são
considerados representantes, tais como: Johann Joachim Quantz, C. P. E. Bach,
Leopold Mozart e Marpurg. Segundo Paoliello,
Escritos musicais setecentistas, ao descreverem o estilo galante, fazem-no através da contraposição com outro modo de escrita: o estilo estrito, também chamado de estilo ligado ou fugal, que, como vimos anteriormente, se relaciona à ocasião sacra. O estilo galante é também chamado pelos autores setecentistas como estilo livre, e se destina à ocasião de câmara ou teatral. (PAOLIELLO, 2011, p. 63, grifo no original).
Existem algumas características importantes quanto à interpretação das
obras compostas no estilo galante, dentre as quais podemos destacar: sensibilidade
no tratamento dos ornamentos, andamentos e dinâmica; expressão (influência da
ópera italiana). Somado a isso, de acordo com o autor Heinrich Christoph Koch
7, o
estilo galante tem por qualidade: ser um estilo livre; com muitas ornamentações;
7
(Rudolstadt, 10 out 1749; idem, 19 mar 1816) Teórico alemão. Após servir como violinista (e mais tarde como Konzertmeister) na corte de Rudolstadt, dedicou-se a escrever. Sua obra principal,
Versuch einer Anleitung zur Composition (1782-93), o mais completo tratado de composição da era
clássica, exerceu influência especialmente pelo seu tratamento detalhado da forma musical. Também escreveu um dicionário de termos musicais, Musikalisches Lexikon (1802). (GROVE, 1994, p. 499).
alternância nos elementos rítmicos; harmonia menos complexa
8(KOCH apud
PAOLIELLO, 2011, p. 65). Dart ressalta:
[...] A música galante deve tender, frase por frase, àquelas cadências suspirantes, que são um traço tão importante de estilo: não são meros clichês mas clímax emocionais da linha melódica. A melodia, sua direção e pontuação, é o que importa. Os allegros e allegrettos mais suaves devem flutuar, sem pressa; os graves e os adagios devem ser delicada mas francamente emocionais; e os finales devem fluir e não se atropelar numa corrida sufocante para o fim. (DART, 2000, p. 116-117).
Muitos países lançaram mão da música italiana e francesa para a
composição de suas obras. Na Alemanha, por exemplo, tais músicas constituiram o
principal modelo responsável pela formação do gosto e maneira de compor dos
músicos. O compositor alemão Georg Philipp Telemann (1681-1767) foi um grande
representante dos chamados “gostos reunidos” presentes na prática musical
setecentista. Resumidamente, caracteriza-se pela:
“imitação e a mistura dos
modelos francês e italiano com o intuito de aprender, fazer igual e superar”
(PAOLIELLO, 2011, p. 13). Os gostos reunidos
9começaram a se consolidar na
música alemã nas primeiras décadas do século XVIII e, a partir deles, formou-se o
gosto alemão.
Quantz em seu tratado, Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu
spielen, Capítulo XVIII, tópico 53, destaca:
[...] Há dois povos em particular que têm alcançado estima considerável por sua melhoria do gosto musical, e que, conduzidos por suas inclinações naturais, têm percorrido caminhos diferentes para alcançar este fim. Estes dois povos são os italianos e os franceses. Outras nações têm aprovado o gosto desses dois povos, e procuram adotar e imitar o que lhe agradam mais em um ou em outro. Consequentemente, os dois povos têm se colocado como juízes soberanos do bom gosto na música; e como nenhum dos outros países tem sido capaz de contrapô-los, eles têm sido, em certo grau, os legisladores neste assunto por alguns séculos. A partir deles, o bom gosto tem sido transferido para outros povos. (QUANTZ apud PAOLIELLO, 2011, p. 72-73).
8
Ao contrário da escrita estrita, temos uma escrita de harmonia simples, não contrapontística, que permite ornamentação abundante e desvios da melodia (que se assemelhavam à variedade e aos desvios da direção das conversas de salão). (PAOLIELLO, 2011, p. 65).
9
[...] apesar de Couperin utilizar o termo Les Goûts Réunis em 1724, encontramos, no decorrer da pesquisa, o termo gemischten Goût na autobiografia de Telemann escrita em 1718 – seis anos antes do termo de Couperin. (PAOLIELLO, 2011, p. 103).
A ornamentação era um recurso interpretativo amplamente utilizado em
todos os estilos nacionais. Segundo Linde (1979, p. 5, grifo no original), “[...] a
maioria dos compositores antigos esperava que o intérprete ornamentasse sua
obra”. Este intérprete poderia ser tanto o cantor, quanto o instrumentista: “[...]. Em
muitos métodos de ensino encontramos alusões ao fato de que cantores e
instrumentistas deveriam poder aprender uns com os outros e aplicar, no essencial,
os mesmos tipos de adornos” (LINDE, 1979, p. 15).
Com isso, os músicos do
período barroco tinham a liberdade de introduzir ornamentos na partitura escrita pelo
compositor, além de suprimi-los e realizar outras modificações quando necessário
(GROUT; PALISCA, 2001, p. 411).
De acordo com Laura Rónai (2008, p. 210) os compositores barrocos
franceses tinham por hábito escrever todos os ornamentos que julgavam
necessários à interpretação de suas obras, já, os italianos, deixavam ao intérprete a
função de acrescentar os ornamentos a suas composições. A execução dos
ornamentos padronizados (mordentes, trinados, apojaturas, grupeto, dentre outros)
representa o estilo francês de interpretação e a ornamentação de floreios (expansão
do texto escrito pelo compositor) o estilo italiano. No entanto, isso não significa uma
limitação rígida (quanto ao uso dos ornamentos) aos países França e Itália, pelo
contrário, com a imigração de músicos estrangeiros,
[...] se aprendeu a conhecer e apreciar também sua música com todas as peculiaridades. Os franceses colocavam em suas obras, nos locais correspondentes determinados símbolos para a ornamentação essencial e, frequentemente, também anotavam ornamentos livres. […]. Na Inglaterra era acentuada a influência da música francesa. […]. A Alemanha foi fortemente influenciada de igual maneira pelo estilo italiano e francês [...]. (LINDE, 1979, p. 5, grifos no original).
Apesar da rivalidade existente entre os estilos italiano e francês de
composição e interpretação da música, havia também contatos e influências mútuas
entre os compositores pertencentes a tais estilos: ornamentos poderiam ser
introduzidos em uma composição francesa (improvisados) e nem toda peça em
estilo italiano deveria ser necessariamente ornamentada. É importante ressaltar que
os compositores franceses compunham música italiana e vice-versa. Laura Rónai
acrescenta:
Ainda assim, as diferenças entre ambos [italianos e franceses] são notáveis e sem dúvida refletem as diferenças de temperamento entre os dois povos que dominaram estilisticamente a música do Barroco. Diz-se que os italianos, sentimentais, tocavam como quem canta. E que os franceses, racionais, tocavam como quem fala. A ornamentação italiana é derivada diretamente das divisões renascentistas, com uma ênfase maior nos ornamentos que têm função harmônica (aqueles capazes de criar dissonâncias) e em ornamentos conectivos (que preenchem escalarmente um intervalo). [...]. A música francesa era mais contida, menos “derramada”, mais sofisticada harmonicamente e mais fragmentada melodicamente. Ao invés de amplas frases apaixonadas, a escrita francesa é cheia de interjeições, exclamações, hesitações – como a própria língua falada. [...]. (RÓNAI, 2008, p. 211-212).
François Raguenet em sua obra Paralele des Italiens et des François en
ce qui regarde la musique et les opéra (1702) discorre sobre as diferenças entre a
música italiana e francesa. O autor destaca a rigidez da música francesa em relação
à liberdade da música italiana:
Os franceses se consideram arruinados se eles violam minimamente as regras; eles encantam, agradam, cortejam o ouvido e ainda assim são receosos do sucesso, apesar de tudo ser feito com uma ordem exata. O italiano, mais ousado, altera o tom e o modo sem nenhum temor ou hesitação; ele faz cadências duplas ou triplas de sete ou oito compassos juntos, em tonalidades que nós acharíamos incapazes de uma mínima divisão. [...]. Os italianos se aventuram em tudo o que é ousado e fora da regra, mas eles o fazem como quem tem o direito de ousar e está certo do sucesso. (RAGUENET apud STRUNK, 1998, p. 675, tradução Noara de Oliveira Paoliello)10.
Os autores franceses eram exigentes quanto à execução dos ornamentos
e utilização de sinais para a exemplificação dos mesmos. Segundo Laura Rónai
(2008, p. 212), nos volumes de peças publicados em Paris, havia uma espécie de
glossário que explicava a interpretação adequada para cada símbolo apresentado.
Porém, não existe uma homogeneidade francesa quanto à utilização destes
símbolos, “[...] muitos compositores se utilizavam de sinais peculiares, próprios.
Outros faziam uso de sinais gráficos iguais, mas com significados totalmente
10
The French would think themselves undone, if they offended in the least against the rules; they flatter, tickle, and court the ear, and are still doubtfull of success, tho’ ev’ry thing be done with an exact regularity. The more daring Italian changes the tone and the mode without any awe or hesitation; he makes double or treble cadences of seven or eight bars together, upon tones we should think incapable of the least division. […]. The Italians venture at ev’ry thing that is hasrh, and out of the way, but then they do it like people that have a right to venture, and are sure of success.
diversos. [...]” (RÓNAI, 2008, p. 212). A imagem
11abaixo (Figura 1) apresenta os
símbolos para o trinado utilizados por alguns autores:
Figura 1: Símbolos para o Trinado
Fonte: RÓNAI, 2008, p. 213
Thurston Dart nos aponta mais algumas informações sobre a
ornamentação desenvolvida dentro dos estilos italiano e francês. De maneira geral, o
estilo francês de composição e interpretação “[...] estava baseado nos traços
característicos da música francesa escrita entre 1650 e 1700 por Lully, seus
contemporâneos e sucessores” (DART, 2000, p. 93). Até meados do século XVIII tal
estilo permaneceu em evidência por toda França. Os ornamentos em música para
conjunto eram geralmente indicados pelo símbolo (+), sendo que este sinal deveria
ser interpretado como: uma apojatura, um trinado, um mordente ou qualquer outro
11
Laura Rónai afirma que esta tabela foi retirada do livro de Betty Bang Mather: Interpretation of
ornamento apropriado para a obra em questão. Seguindo as sugestões de Georg
Muffat
12, Dart exemplfica a interpretação dos ornamentos conforme o estilo francês:
a) mordentes invertidos para demonstrar tensão; b) trinados apenas quando puderem ser tocados como semitons diatônicos e nunca em notas iniciais nem (geralmente) em notas próximas de um salto; eles podem ser usados com maior liberdade em passagens de escalas descendentes, especialmente em notas pontuadas; c) apojaturas em notas próximas de um salto e (com ou sem mordente) nos tempos fortes em passagens de escalas ascendentes; d) coulements em notas precedidas de um salto de uma nota mais baixa; e) escalas rápidas para demonstrar veemência; os franceses as chamam de tirades e, como as tiradas, devem ser raras; f) coulés em intervalos decrescentes e em saltos descendentes, com um trinado na última nota. Os ornamentos devem ser suaves, bem escolhidos, não muito frequentes nem muito velozes, mais animados. (DART, 2000, p. 102-103).
Ainda segundo Dart, a notação utilizada pelos compositores italianos em
suas obras, quase sempre significa o que diz, porém, existem duas exceções: a
ornamentação de um Adagio e o tratamento dos ritmos pontuados. No adagio do
século XVIII, desenvolvido dentro do estilo italiano, esperava-se que o intérprete
improvisasse com bastante liberdade, ou seja, as notas escritas eram apenas um
esqueleto a ser vestido com ornamentos. Resumidamente,
No estilo italiano, portanto, os desvios em relação ao texto escrito caem nas seguintes categorias: ornamentação improvisada nos adágios; variações opcionais do material repetido; ornamentação adicional nas cadências, indo de um trinado a uma cadenza inteira, ligeiras alterações dos valores das notas, sempre associadas à ocorrência de ritmos trocaicos, anapésticos ou de tercinas, em qualquer outro ponto do mesmo movimento [...]. (DART, 2000, p. 108).
Percebemos, portanto, que a ornamentação é essencial para a
interpretação da música barroca. No entanto, Julie Anne Sadie problematiza o fato
de que, muitas vezes, não sabemos a dosagem correta de ornamentos a serem
utilizados durante a execução desta música, assim “os ornamentos interferem tanto
pela sua ausência, quanto pela sua abundância” (TOSI apud SADIE, 1995, p. 587).
Como perceber então estes excessos e/ou faltas? De acordo com Sadie,
12
(Mégève, bat. 1 jun 1653; Passau, 23 fev 1704) Compositor alemão de origem francesa (Savoy), pai de Gottlieb. Estudou com Lully e outros em Paris, 1663-9. Após um período como organista em Molsheim, fez muitas viagens e, em 1678, tornou-se organista e músico de câmara do arcebispo de Salzburgo. [...]. Eminente compositor de música instrumental, Muffat foi um pioneiro na introdução dos estilos francês e italiano na Alemanha, e nos prefácios de suas obras deu também detalhes sobre as práticas de execução de Lully e Corelli. [...]. (GROVE, 1994, p. 629).
Um músico, ao se ocupar desta música estará necessariamente confrontado com esses problemas e não podemos censurar o leitor por tentar encontrar aqui algumas soluções. Mas não faltam bons motivos para tentar outra coisa. Existe uma legião de manuais práticos de ornamentação barroca, mas mesmo os melhores deles oferecem apenas uma visão parcial de um assunto tão diverso como: gêneros e estilos musicais aos quais se aplica a ornamentação. O estudante se convence facilmente que a autenticidade consiste em identificar o trilo certo nos menores detalhes, mas a realidade é diferente. Em grande parte do repertório - como na ópera de meados do século XVII - não existe nenhuma informação direta, ao passo que, apesar dos muitos anos de pesquisa musicológica bem documentada, algumas questões ainda são controversas, tais como a maneira correta de interpretar o trilo [no repertório] francês. E mesmo dispondo do conhecimento necessário, como querer rivalizar com a maneira de cantar de alguém que já vinha desde a infância praticando os diversos ornamentos e para quem a correta impostação da voz havia se tornado uma segunda natureza, a ponto de poder utilizá-la espontaneamente como recurso expressivo? E como, com nossos ouvidos sobrecarregados com dois séculos de músicas inimagináveis à época barroca, podemos aprender a improvisar as cadências sem que as notas pareçam erradas, do ponto de vista estilístico? Assim também uma partitura esquelética não deve se revestir dos hábitos da moda. Para chegar lá, é necessária uma consciência clara, não só do abismo que nos separa dos músicos antigos e das condições de execução nos tempos passados, mas também das forças e fraquezas dos nossos conhecimentos históricos. (SADIE, 1995, p. 587-588, tradução nossa )13.
Sadie ressalta também que existem muitos modelos de improvisação que
chegam até nós, mas, precisamos avaliar com cuidado em qual momento estes
improvisos foram escritos, pois eles podem afetar o efeito desejado da
ornamentação (devemos ter em conta que tais modelos eram circunstanciais e não
13 [...]. À ces problèmes, un musicien s’occupant de cette musique se trouvera nécessairement confronté, et on ne saurait reprocher au lecteur de s’attendre à trouver iciquelques solutions. Mais les bonnes raisons ne manquent pas pour tenter autre chose. Les manuels pratiques d’ornementation baroque sont légion, mais les meilleurs ne donnent qu’une vue trés partielle d’un sujet aussi divers que les genres et styles musicaux auxquels s’applique l’ornementation elle-même. L’étudiant se persuade aisément que l’authenticité consiste à trouver pour le moindre signe le trille qui convient, mais la réalité est différente. Pour de vastes pans du répertoire, comme l’opéra du milieu du XVII siècle, on ne possède aucune information directe, alors que malgré des années de recherche musicologique, certaines questions bien documentées comme le mode d’interprétation du trille à la française restent matière à controverse. Et même en disposant des connaissances nécessaires, comment rivaliser avec la maniére de chanter de quelqu’un ayant pratiqué depuis l’enfance les différents ornements et pour qui le placement de la voix était devenu une seconde nature, au point de pouvoir l’utiliser spontanément comme ressource expressive? Comment, avex nos oreilles surchargées de deux siècles de musiques inimaginables à l’époque baroque, apprendre à improviser des cadences dont sur le plan stylistique les notes ne sonneront pas faux? Une partition squelettique n’en doit pas moins revêtir parfois des habits à la mode. Pour en arriver là, il faut une conscience claire, non seulement de l’abîme qui nous sépare des musiciens anciens et des conditions d’éxecution des temps passés, mais aussi des forces et desfaiblesses de nos connaissances historiques.
fixos compostos de acordo com a capacidade técnica dos músicos a quem se
destinavam as obras) (SADIE, 1995, p. 618).
A autora Laura Rónai destaca a importância da improvisação dentro da
música barroca:
Para o intérprete, a improvisação é assunto fascinante. Não apenas porque lhe dá a oportunidade de exibir sua própria personalidade, mas também porque o eleva ao status de co-autor, ao lhe possibilitar interferir na obra de outrem. Essa liberdade torna a música do Barroco particularmente simpática para um grande segmento de intérpretes, e explica em parte a atração que a música deste período musical tem exercido nos últimos anos sobre instrumentistas e cantores, cansados da interpretação literal prescrita para a maior parte da música dos últimos dois séculos. Para a pesquisa musicológica, este é igualmente um campo de suma importância. Desvendar os mistérios da improvisação é uma ótima via para se penetrar nos hábitos de interpretação musical do passado. (RÓNAI, 2008, p. 214).
1.1. Os ornamentos de acordo com: Tartini, Carl Philipp Emanuel Bach e
Leopold Mozart.
Giuseppe Tartini (1692-1770) escreveu o seu “Tratado sobre os
Ornamentos na Música” entre os anos de 1735-1750 (há indícios de que pode ter
sido escrito entre 1752-1756). A primeira edição, em francês, Traité des Agrémens
de la Musique, foi publicada em 1771 na cidade de Paris: a tradução foi atribuída a
P. Denis, mas acredita-se que Pierre La Houssaye (aluno de Tartini) tenha sido um
possível tradutor (WALLACE, 2003, p. 36-37). Apenas 4 cópias do manuscrito
original foram encontradas, sendo que em 1957, Pierluigi Petrobelli encontrou a mais
completa versão do tratado na biblioteca do conservatório de música Benedetto
Marcello. Esta versão vem assinada por Giovanni Francesco Nicolai (aluno de
Tartini) e foi disponibilizada ao público em 1960 (WALLACE, 2003, p. 37).
De maneira geral, de acordo com Sol Babitz
14, o tratado de Tartini,
É o primeiro livro a lidar integralmente com ornamentação; o primeiro livro a discutir em detalhes a raison d’être e a aplicação de ornamentos, oferecendo informações não disponíveis em qualquer outro livro da época; o único livro escrito na Itália acerca do assunto, em um tempo no qual toda a Europa copiava o modelo italiano de performance. Estranhamente, nunca chegou a ser publicado em italiano, embora circulasse amplamente em manuscrito; enquanto assim circulava, tinha, segundo seu tradutor francês, larga influência; foi provavelmente visto por C. P. E. Bach e mais certamente estudado por Leopold Mozart, que se apropriou de seções inteiras dele para o seu Violinschule, com a então habitual ausência de menções ao autor. (BABITZ, ed., Treatise on the Ornaments of Music, 1956, p. 75, tradução nossa)15.
Tartini não acreditava no uso mecânico da ornamentação, pelo contrário,
estimulava a improvisação na hora da performance musical. Em seu outro tratado,
Trattato di Musica, publicado em 1754, ele afirma:
Posso aprovar o uso apropriado de ornamentos musicais em muitas melodias, mas nunca fui capaz de entender o uso de exatamente os mesmos ornamentos em todas as melodias. Convenço-me firmemente que, cada melodia que realmente corresponde a um efeito de palavras, deve possuir a sua própria maneira individual e original de expressão e, consequentemente, os seus próprios ornamentos individuais e originais. (TARTINI apud WALLACE, 2003, p. 40, tradução nossa)16.
Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) publicou a primeira parte de seu
tratado, Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen, no ano de 1753. A Parte
II foi publicada em 1762. De acordo com Fernando Cazarini, tradutor do tratado para
o português (edição de 2009, p. 9), o Versuch de C. P. E. Bach é considerado o
tratado sobre teclado mais importante do século XVIII, além de “[...] um guia para
dedilhado, ornamentação, fundamentos estéticos, baixo-contínuo e improvisação”.
14
Tradutora para o inglês do tratado de Tartini. 15
It is the first book dealing entirely with ornamentation; the first book to discuss in detail the raison d'etre and application of ornaments, providing information found in no other books of the period; the only book written on that subject in Italy at a time when all Europe was copying the Italian model in performance. Oddly enough, it was never published in Italian but circulated widely in manuscript; while thus circulating it had, according to its French translator, wide influence; it was probably seen by C. P. E. Bach and most certainly studied by Leopold Mozart, who appropriated entire sections from it for his Violinschule with the then customary lack of acknowledgement.
16
I can approve of the proper use of musical ornaments in many tunes, but I have never been able to understand the use of exactly the same ornaments in all tunes. I am firmly convinced that every tune that truly corresponds to an affect of words must possess its own individual and original manner of expression and consequently its own individual and original ornaments.
No século XVIII houve outras edições do tratado: Parte I em Berlim
(1759); Partes I e II (1780) e Parte I (1787) em Leipzig. No século XX muitas outras
edições foram publicadas: em Leipzig (edição completa, 1906, 1917, 1920 e 1925);
Londres (edição completa sem as sonatas, 1949); Milão (Parte I, 1973); Paris (Parte
I com as sonatas, 1979). Sobre a ornamentação, C. P. E. Bach exemplifica no
Capítulo 2 as características gerais dos ornamentos e demonstra conhecimento
sobre os estilos italiano e francês de composição e interpretação da música.
Destacaremos alguns exemplos:
As cadências ornamentadas são também composições de improviso. De acordo com o caráter da peça, são tocadas livremente, sem levar em conta o compasso. Por isso, nas Lições, o valor das notas dessas cadências é aproximado17. Capítulo 3, tópico 30.
Por isso sempre agiram com mais segurança os compositores que indicaram claramente em suas peças os ornamentos que deveriam ocorrer, em vez de deixarem suas peças sujeitas ao discernimento de executantes desajeitados. Capítulo 2, Parte I, tópico 3.
A lição em fá maior é um esboço da maneira como se costuma hoje em dia variar a segunda das duas reprises dos Allegros. Por louvável que seja essa invenção, ela é muito mal utilizada. Minha opinião sobre isso é esta: não se deve variar tudo, pois se não surge uma outra peça. Muitas passagens de uma peça, principalmente as afetuosas e eloquentes, não se prestam a variação. [...]. Toda variação deve ser conforme o afeto da peça. [...]. Às vezes é bom variar as passagens mais simples acrescentando-lhes ornamentos, e vice-versa. [...]. Capítulo 3, tópico 31.
Também neste ponto deve-se fazer justiça aos franceses, por serem particularmente meticulosos na notação de suas peças. Os maiores mestres de nosso instrumento na Alemanha agiram da mesma forma, contudo, sem excesso de ornamentos, como os franceses. [...]. Capítulo 2, Parte I, tópico 4.
Os ornamentos podem dividir-se em duas classes. Na primeira coloco os que se costumam indicar por certos sinais convencionais, ou por algumas pequenas notas; à outra classe pertencem os restantes, para os quais não há sinais e que consistem de muitas notas curtas. Os ornamentos deste último tipo dependem particularmente do bom gosto na música, e são, consequentemente, suscetíveis de mudanças. Nas peças para teclado geralmente são indicados. Devido ao grande número de ornamentos do outro tipo, pode-se passar sem eles. Assim sendo, trarei pouco deles, no final, quando estiver tratando das fermatas. Antes, tratarei dos ornamentos da primeira classe, uma vez que estes já há muito tempo estão relacionados à própria essência de tocar teclado e, sem dúvida, continuarão sempre na moda. [...]. Capítulo 2, Parte I, tópicos 6 e 7.
17
Os franceses são minuciosos na indicação dos sinais de seus ornamentos; infelizmente, à medida que nos afastamos de suas peças e de sua maneira excelente de tocar teclado, também vai desaparecendo a compreensão exata dos ornamentos [...]. Capítulo 2, Parte I, tópico 16.
Vemos, portanto, que os ornamentos são mais usados em andamentos lentos e moderados do que em andamentos rápidos, e mais com notas longas do que com curtas. [...]. Capítulo 2, Parte I, tópico 21.
O gosto atual, influenciado sensivelmente pelo bel canto italiano, não pode se exprimir apenas com os ornamentos franceses: assim, tive que reunir ornamentos de mais de um país. Acrescentei-lhes ainda alguns novos. Creio que, tanto para o teclado como para outros instrumentos, a melhor maneira de tocar é a que reúne de forma correta a precisão e o brilho do gosto francês com a sedução do canto italiano. [...]. Capítulo 2, Parte I, tópico 25.
Leopold Mozart (1719-1787) publicou o seu Versuch einer gründlichen
Violinschule no ano de 1756. Alec Hyatt King, nas notas acrescentadas à tradução
para o inglês deste tratado (edição de 1985, p. vii), afirma que o Versuch de Leopold
é considerado o maior trabalho para violino do século XVIII, comparável ao tratado
para flauta de Quantz e ao tratado para teclado de C. P. E. Bach. Quanto às
edições, podemos elencar algumas de acordo com David D. Boyden (1949, p. 148):
em alemão, 1769, 1970, 1787, 1800; em holandês, 1766; em francês, 1770; em
inglês, 1948, por Editha Knocker. Vale destacar que Leopold lançou mão do Traité
des Agreméns de la Musique de Tartini para a elaboração de seu Versuch. Sol
Babitz acrescenta:
O manuscrito [Tartini] aparentemente não tem data, mas deve ter sido escrito antes de 1750, possibilitando sua circulação por vários anos e alcançando Leopold Mozart a tempo de ser incorporado a seu livro antes de sua escrita em 1754. (BABITZ, ed., Treatise on the Ornaments of Music, 1956, p. 75, tradução nossa)18.
O tratado de Leopold traz grande atenção aos ornamentos desenvolvidos
na França e Itália, ressaltando sua expressiva significância para a interpretação
musical do século XVIII. Vejamos alguns exemplos:
18
The manuscript [Tartini] apparently bore no date, but it must have been written prior to 1750 in order to allow several years for it to circulate and reach Leopold Mozart in time to be incorporated into his book before its writing in 1754.