PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP
Leonardo Palazzi
O Caráter Preventivo do Processo Penal nos Delitos Empresariais
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Leonardo Palazzi
O Caráter Preventivo do Processo Penal nos Delitos Empresariais
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Processual Penal sob a orientação do Professor Doutor Cláudio José Langroiva Pereira.
SÃO PAULO
LEONARDO PALAZZI
O Caráter Preventivo do Processo Penal nos Delitos Empresariais
Dissertação de Mestrado apresentada à banca examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Processual Penal.
São Paulo, ____/____/2013.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________ Prof. Dr. Claudio José Langroiva Pereira – PUC/SP (orientador)
_________________________________ Profa. Dra. Eloísa de Sousa Arruda – PUC/SP
_________________________________ Prof. Dr. José Raul Gavião de Almeida – USP
Suplentes:
Prof. Dr. Marcelo Augusto Custódio Erbella – PUC/SP
AGRADECIMENTOS
Dedico esta dissertação a todos aqueles que se empenham na difusão da
justiça social, passando pelos caminhos do conhecimento e da evolução do
pensamento.
Eterna gratidão e respeito à minha família e amigos. Em especial, agradeço
aos Professores Doutores Marco Antonio Marques da Silva e ao meu orientador
Cláudio José Langroiva Pereira, com destaque à dedicação de ambos nos
ensinamentos da Ciência Penal.
À colega de trabalho Doutora Fabíola Emilin Rodrigues, pelo apoio e
incentivo.
“Não é, portanto, por acaso, mas por uma necessidade profundamente fixada na essência do direito, que todas as formas substanciais do processo e do fundo do direito se ligam às leis”.
RESUMO
A presente dissertação busca fazer a leitura das proposições criminológicas,
dogmáticas e político-criminais sobre as propostas processuais preventivas quanto
aos crimes econômicos, especialmente na figura dos delitos empresariais, sem
deixar de delimitar o seu conteúdo. Para tanto, são abordadas de maneira seletiva –
e somente dessa forma seria viável a presente dissertação –, algumas
particularidades jurídico-processuais no tratamento preventivo dos delitos
econômicos. Após a introdução do tema, o Capítulo 2 cumpriu situar o objeto de
estudo no contexto criminológico em que se desenvolve o crime empresarial,
propondo-se, diante da omissão legal, uma definição baseada nas suas
características. Ainda no Capítulo 2, passou-se ao tratamento jurídico-penal
conferido pela ordem jurídica interna e internacional à ordem econômica, bem como
a demonstração dos direitos e garantias fundamentais que devem ser observados
ao controle da criminalidade econômica. O Capítulo 3 trata da justificativa da
intervenção penal e as interações dogmáticas, constitucionais e político-criminais
contemporâneas, especificamente dos métodos desenvolvidos pelo funcionalismo,
com vistas à precaução no Direito Penal. O Capítulo 4, como ponto chave da
dissertação, aborda seletivamente o tratamento processual destinado à
criminalidade econômica, como perspectiva decisiva para delimitação dos fins
preventivos do Direito Penal Econômico.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to examine criminal, dogmatic and
political-criminal statements on preventive procedural proposals regarding economic crimes,
especially entrepreneur offenses, however narrowing its content. To do so, some
legal procedural specificities of the preventive treatment of economic offences are
addressed in a selective manner, as this is the only method that makes this paper
viable. After the introduction, Chapter Two places the subject of this paper in the
criminal context in which the entrepreneur crime is committed, and in view of legal
omission, proposes a definition based on its characteristics. Still, on Chapter Two, it
has been verified legal criminal treatment under domestic and worldwide juridical rule
towards economic order, and shows the fundamental rights and guarantees that
must be observed under economic criminal control. Chapter Three deals with the
justification for criminal intervention and dogmatic interactions both constitutional
and criminal-political, – specifically of methods devised by functionalism with a view
to precaution through the Criminal Law. Chapter Four, key point of this paper, rely
broadly on procedural treatment towards economic crimes, seen as decisive
perspective for preventive purposes of the Economic Criminal Law.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 OS DELITOS EMPRESARIAIS E A CRIMINALIDADE ECONÔMICA NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 12
2.1 A caracterização dos delitos empresariais como componentes da
criminalidade econômica moderna 12
2.2 A dimensão conceitual: conceitos objetivo e subjetivo do delito empresarial 21
2.3 Tratamento Jurídico Penal da Ordem Econômica 33
2.3.1 Constituição Federal e proteção jurídico-penal da economia 33
2.3.2 A economia como bem jurídico constitucional 37
2.3.3 Direitos e garantias individuais e a ordem econômica 43
2.3.4 Dignidade humana, criminalidade econômica e tutela constitucional 49
2.4 Legislação e tendências internacionais 54
3 A LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL QUANTO AOS DELITOS
EMPRESARIAIS 63
3.1 Legitimidade da prevenção nos delitos empresariais 63
3.1.1 A periculosidade como fundamento dogmático 64
3.1.2 As interações político-criminais como fundamento político-criminal 68
3.1.3 O princípio da proibição da proteção deficiente 71
3.1.4 A insuficiência do conceito de bem jurídico e o dever de garantia 79
3.1.5 O juízo de reprovação ético-social como fundamento da pena 84
4 A CRIMINALIDADE ECONÔMICA, PROCESSO PENAL E AS PRÁTICAS
PREVENTIVAS 93
4.1 A criminalidade econômica e o processo penal 93
4.2 A criminalidade econômica e as estratégias processuais diferenciadas 98
4.3 A prevenção criminal no âmbito do processo penal 101
4.4 Esvaziamento do estímulo econômico e outras penalidades 104
4.5 As medidas cautelares reais na criminalidade econômica 108
4.6 A aquisição das provas e a lógica probatória nos crimes econômicos 117
4.7 Responsabilidade penal no âmbito das empresas e a responsabilidade penal
da pessoa jurídica (pessoa jurídica como sujeito penalmente responsável) 127
4.8 A reparação da vítima e vitimização difusa 135
4.9 A criminalidade econômica e o devido processo legal 140
5 CONCLUSÃO 147
1 INTRODUÇÃO
A Criminologia, a Dogmática Penal e a Política Criminal vêm desenvolvendo
esforços para estabelecer a devida conceituação e tratamento dos delitos
empresariais, inseridos na criminalidade moderna como espécie da criminalidade
econômica.
Não obstante, a perspectiva processual é decisiva para a delimitação da
criminalidade empresarial e definição das estratégias, tanto no plano do Direito
Penal quanto do Processo Penal, com vistas à efetiva prevenção destes delitos e à
devida correção da seletividade criminal.
O processo penal apresenta-se como elemento essencial à compreensão da
criminalidade econômica, além da Criminologia e da Política Criminal, bem como se
coloca na posição de demonstrar a recorrente necessidade de adaptação dos
aspectos dogmáticos diante das transformações sociais.
De forma reflexa, a Dogmática Penal alinhada com as interações
criminológicas e político-criminais confirma a necessidade de estruturação de um
sistema processual eficiente, adequado à realidade social subjacente e às
exigências de justiça material.
A presente dissertação faz a leitura destas questões contidas no Direito Penal
Econômico, abordando de maneira seletiva os pontos pertinentes aos delitos
empresariais.
A eleição do Processo Penal como objeto de estudo exige sua análise dentro
do conhecimento etiológico do crime e do sistema criminal apresentado, partindo
para as considerações processuais mais significativas que conduzem a uma
intervenção capaz de se antecipar ao resultado criminoso, impedir a continuidade de
delitos, ou proporcionar a reparação, com vistas às medidas de precaução penal.
A dissertação, com fundamento nos valores da igualdade e solidariedade
presentes no Estado Democrático de Direito, propõe a racionalização da tutela de
direitos coletivos, difusos e supraindividuais mediante a intervenção processual
Assim, a Ciência Penal não pode manter concepções drasticamente
disfuncionais, em especial no âmbito do Processo Penal, sob pena de manter
ilegítimos favorecimentos do passado, decorrentes do poder econômico.
É forçoso convir que, mais cedo ou mais tarde, discussões quanto ao Sistema
Penal e Processual Penal também no âmbito empresarial dependerão de algum tipo
de revisão, cabendo-nos, sem dúvida, dar a nossa contribuição para que, no devido
momento, tomem-se as opções entendidas como corretas para o desenvolvimento
econômico e social, vistos e definidos como fins constitucionais e aptos a garantir a
2 OS DELITOS EMPRESARIAIS E A CRIMINALIDADE ECONÔMICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
2.1 A caracterização dos delitos empresariais como componentes da criminalidade econômica moderna
O Direito Penal clássico centrado na responsabilidade penal individual revela
grandes dificuldades em lidar com delitos inseridos na estrutura organizacional
empresária, bem como aqueles crimes que tenham uma sociedade empresária no
cerne de sua execução.
Sucede que não se conseguiu ainda estabelecer com nitidez o seu conceito,
tampouco o tratamento dos delitos empresariais.
Não obstante essa indefinição, tipos penais atuais têm ampliado o controle
formal sobre práticas realizadas dentro das empresas qualificando-as como crimes
econômicos.
De forma genérica, como uma das representações da criminalidade moderna,
os delitos empresariais são considerados espécie da denominada criminalidade
econômica que, conforme descrito por Jesús-María Silva Sánchez, possui como
principal característica a organização:
Com efeito, do ponto de vista estrutural, são duas as características mais significativas da criminalidade da globalização. Por um lado, trata-se de criminalidade, em sentido amplo, organizada. Vale dizer, nela intervêm coletivos de pessoas estruturadas hierarquicamente, seja nas empresas, seja na forma estrita da organização criminal.1
Os crimes praticados por estruturas organizadas foram inicialmente definidos
pela Convenção de Palermo das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional (promulgada no Brasil pelo Decreto n.º 5.015, de 12 de março de
2004), que estabeleceu o conceito de grupo criminoso organizado como sendo um
grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando
1
concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou
enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou
indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.
A Lei n.º 12.694, de 24 de julho de 2012, definiu o conceito de organização
criminosa em seu artigo 2º como sendo a associação, de três ou mais pessoas,
estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer
natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a
quatro anos ou que sejam de caráter transnacional.
Todavia, os delitos empresariais, embora considerados espécie da
criminalidade econômica, não estão inseridos nos conceitos de grupo criminoso
organizado e organização criminosa. Ou seja, não fazem parte da definição legal da
criminalidade organizada, que do ponto de vista estrutural, presume o propósito de
cometer crimes, com a intenção de obter vantagens ilícitas de qualquer natureza.
Em razão dessa exclusão quanto à finalidade da organização, já que a
empresa realiza uma atividade lícita, afastou-se da concepção de criminalidade
organizada aquelas condutas consideradas nocivas ou abusivas praticadas no
âmbito empresarial, pois estariam separadas da atuação eminentemente criminosa.
Na verdade, a gênese da organização, que é lícita para as sociedades
empresárias, constituiu fundamento para a separação conceitual e tem sido alicerce
para a afirmação de que eventuais práticas nocivas ou abusivas no âmbito
empresarial não constituem crimes.
Essa indiscriminada afirmação, realizada prontamente em razão da intenção
criminosa da organização, proporcionou a exclusão do estudo aprofundado de
condutas lesivas praticadas no centro da estrutura também organizada empresarial.
Consequentemente, o sistema legal perdeu a capacidade de lidar com essa
modalidade de criminalidade moderna, considerada como especial,2 criminalidade
não convencional,3 criminalidade da globalização.4
2
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de resistência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 62.
3
GOMES, Luiz Flávio. Breves considerações sobre a impunidade da criminalidade não convencional.
Como afirma Michael Woodiwiss, no estudo criminológico da sociedade
americana
a atenção foi desviada da criminalidade empresarial e da falência do governo em fazer respeitar as leis da moralidade, passando a concentrar-se numa distração divertida explorada com maior sucesso por Mario Puzo e Francis Ford Coppola nos livros e filmes da série O poderoso chefão.5
Neste contexto, formou-se um ambiente propício para a prática de atos
criminosos altamente complexos e lucrativos proporcionados pela própria
organização empresarial.
Essa criminalidade passou a apresentar-se num cenário em que a chave para
seu entendimento é a constatação da oportunidade. Com a ausência de controles
formais, os delitos empresariais se manifestaram na exploração racional da
oportunidade conferida pela organização empresarial, aproximando-se daquela
criminalidade organizada em razão do idêntico objetivo de obter lucros ilícitos.
Importante verificar que a pecha da legalidade da atividade empresarial
confunde a identificação dessas condutas não convencionais. A dificuldade
encontra-se exatamente na confusão entre lícito e ilícito da organização como
método para atingir o impróprio objetivo lucrativo.
Pelo que se verifica a denominada criminalidade empresarial trata de
violações complexas que usufruem das estruturas organizadas da empresa e por
meio do exercício da atividade empresarial proporcionam o alcance indevido de
objetivos tão nocivos quanto aqueles visados pela criminalidade estritamente
organizada.
Neste sentido, verifica-se que os delitos empresariais produzem efeitos
diretamente na economia, pois decorrentes de atividades empresariais. Da mesma
forma, geram efeitos difusos e prejuízos de ordem política e social, inclusive de
ordem governamental. Neste esteio, Marco Antonio Marques da Silva observa que
4
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. V. 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.
5
A criminalidade organizada, no mundo globalizado, se direciona à economia, formando um mercado mundial relativamente homogêneo, aparecendo condições específicas para a sua prática. De um lado, fundamentalmente econômica em razão de seu conteúdo e marcantemente empresarial; de outro, os fatos delitivos que tem lugar neste contexto estão relacionados com atividades econômico-empresariais [...]. O importante é ressaltar que este tipo de criminalidade atinge as próprias estruturas políticas e sociais, com sérias consequências para a economia destes países.6
Como consequência do potencial de tais condutas, ocorre profunda
intromissão na vida individual de inúmeras pessoas, com larga extensão de seus
efeitos, além de interferência nos objetivos públicos dos governos, com quem as
sociedades empresárias compartilham investimentos de grandes capitais, nas mais
diversas áreas de produção, infraestrutura, saúde, etc.
Tecnicamente, o Direito Penal e o Direito Processual Penal não
acompanharam as mudanças da sociedade moderna, abrindo espaço para que a
criminalidade expandisse a sua atuação por meio de atos lesivos aos interesses
sociais no centro da atividade empresarial, também organizada.
A caracterização dos delitos empresariais como componentes da
criminalidade moderna é evidente quando se percebe que o Estado não foi capaz de
acompanhar a velocidade das mudanças estruturais propostas pela globalização e
pela complexidade nas relações econômicas, quando as organizações privadas
assumiram funções sociais e posições de evidência no desenvolvimento social.
A partir da ausência de padrões normativos de competência estatal, os
comportamentos criminosos no âmbito das empresas passaram a contar com um
terreno fértil às aspirações econômicas tão ilícitas quanto as intenções dos crimes
executados pela criminalidade organizada.
As divergências para a identificação dos delitos empresariais contam também
com técnicas de neutralização da culpa dirigidas a ocultar, dissimular ou justificar
certos comportamentos no âmbito empresarial.
Trata-se da tentativa de atribuir uma neutralidade ou irrelevância axiológica a
condutas abusivas praticadas no âmbito das sociedades empresárias, a fim de
6
eliminar o seu caráter criminoso, precisamente o elemento ético de censura quanto
ao fato de negligenciarem os padrões e princípios corporativos adequados.
As técnicas de neutralização da culpa, além de pretenderem dificultar a
identificação e justificar as práticas criminosas, são também formas de difusão de
comportamentos abusivos, fazendo com que os seus agentes, dentro da
organização empresária, não se considerem ou não sejam considerados por
terceiros como criminosos ao adotarem um comportamento ilícito, qualificado como
suposto “costume” ou “praxe” de determinado ramo de atuação.
Ainda, a criminalidade econômica deixa de ter a devida atenção diante da
excessiva divulgação da delinquência comum, que desvia o foco do problema.
Diariamente são noticiados crimes contra a vida e contra o patrimônio que mitigam a
apreensão da gravidade social dos comportamentos praticados por meios escusos
no cerne da atividade empresarial.
A política de repressão à criminalidade também se deu nesta mesma linha,
atacando prioritariamente os delitos clássicos, fundamentando-se no
encarceramento em massa dos criminosos mais pobres, em geral, envolvidos em
crimes de baixa danosidade social, conforme verificado pela teoria criminológica do
labbeling approach.
Todos esses fatores são finalmente agravados justamente pela ausência de
disciplina jurídica tecnicamente definida, quando certos interesses de caráter
coletivo dignos de proteção penal são esquecidos pelo legislador.
Quanto à ausência normativa, convém demonstrar a observação de Luiz
Flávio Gomes:
A deficiente disciplina jurídica da criminalidade moderna também é um fator de impunidade. A legislação é deficiente em todos os setores do Direito, mas particularmente no penal; a técnica legislativa muitas vezes é deplorável, a tipificação não é tão evidente, o bem jurídico é complexo e não é fácil criminalizar essa delinquência não convencional porque poderosos grupos procuram obstruir de toda maneira semelhante iniciativa.7
7
GOMES, Luiz Flávio. Breves considerações sobre a impunidade da criminalidade não convencional.
Além disso, os Códigos e leis atuais estão impregnados de ideologia liberal,
com enfoque nos interesses econômicos individuais, não na tutela dos interesses
coletivos e sociais. Isso explicaria, em parte, a carga punitiva que recai sobre as
classes menos favorecidas e, de outra forma, a ineficaz criminalização dos setores
com interesses preponderantes, seja em nível de seleção primária (legislativa), seja
em nível de seleção secundária (controle formal – polícia, Justiça etc.).8
Do mesmo modo, mais evidente é a falta de instrumentos e possibilidades de
realização da prova dessa espécie de delitos, bem como as dificuldades quanto à
valoração probatória, incluindo o princípio da irresponsabilidade penal das pessoas
jurídicas (societas delinquere non postest).
Do ponto de vista estrutural da Justiça Criminal, adicionam-se os problemas
de natureza material, humano e técnico, que concorrem para a impunidade da
criminalidade não convencional e a formação dos denominados paraísos
jurídico-penais.9
Finalmente, menciona-se o problema da corrupção, ao qual a
irresponsabilidade individual e corporativa no ramo empresarial está intrinsecamente
ligada.
Os delitos empresariais contam com o instrumento da corrupção para burlar a
fiscalização e manter de forma reflexa a sua própria estrutura, encobrindo as
práticas ilícitas dos meios formais de controle, além de conferir o implemento de
novas irregularidades e abuso de poder econômico.
Em razão desse ajuste de métodos de protelação e ofuscamento aos delitos
empresariais, o resultado é um sistema legal seletivo, a favor do violador
empresarial e contra suas vítimas.10
Pode-se dizer, então, que distintos comportamentos praticados no cerne das
sociedades empresárias são uma das representações da criminalidade econômica
8
GOMES, Luiz Flávio. Breves considerações sobre a impunidade da criminalidade não convencional.
In OLIVEIRA, Antônio Cláudio Mariz de. (coord.) Direito penal tributário contemporâneo: estudos de especialistas. São Paulo: Atlas, 1995, p. 77-84.
9
SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e Globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 149-150.
10
não convencional, que se utiliza da organização empresarial como a principal
estratégia para iludir os sistemas de controle formal.
Ainda que os delitos empresariais não se confundam com o tema da
organização criminosa, dúvida não há que se apresentam como uma nova
modalidade de crimes econômicos, dentro da criminalidade moderna.
Portanto – e conforme os dizeres de Luis Gracia Martín – impõe-se ao Direito
Penal do presente adquirir a condição de moderno, para que, só então, distinga
daquele liberal da Ilustração – não só por se estender a novos e distintos âmbitos ou
forma ademais dos já tradicionais, mas também “por importar uma ruptura
substancial com aquele, isto é, um desvio de pelo menos algum dos seus princípios
ou aspectos fundamentais”.11
Há um notável movimento mundial e no Brasil de exigência ética nas práticas
empresariais, uma vez que as sociedades empresárias ocuparam um lugar
importante na organização social.
Fala-se em retomada moral de princípios e valores, tanto de gestão das
entidades e instituições públicas, quanto privadas, que não podem ser assacadas
diante da criminalidade não convencional, em especial dos delitos empresariais.
Neste tocante, acerca do envolvimento do Direito Penal na ética nos
negócios, anota Luciano Feldens:
Ao se proclamar uma missão ético-social a envolver o Direito Penal, impende esclarecer que não se está a cogitar, evidentemente, de uma proteção de valores puramente morais, que retratem particulares concepções de vida de ‘a’ ou ‘b’ ou do grupo ‘x’ ou ‘y’. Longe disso. Como veremos adiante, no Estado Democrático de Direito não há espaço teórico-discursivo para a promoção de uma confusão conceitual entre crime e pecado, vedação que se fundamenta na própria secularização do Estado e do Direito. O que estamos a perseguir, em realidade, é um Direito Penal em cuja agenda funcional faça-se destacar uma tarefa protetiva aos bens essenciais para uma vida digna em sociedade, entendida a dignidade do homem em sua comunidade como um valor que se reveste de inquestionável primariedade. Desta feita, a missão central do Direito
11
Penal residiria, em síntese, em proteger os valores elementares da vida em comunidade, assegurando la vigencia inquebrantable de estos valores de acto, mediante la comminación penal y el castigo de la inobservancia de los valores fundamentales del actuar jurídico manifestada efectivamente. Em assumindo essa postura notavelmente protetiva, lança-se o Direito Penal a compatibilizar seus fins ao desejado dever constitucional de protecção de valores fundamentais, no que se coloca, essa disciplina jurídica, a selar o seu compromisso com o Estado Democrático de Direito.12
Neste ponto, o Direito Penal não se restringe à função repressiva, possuindo
uma dimensão teleológica, com atributos promocionais, ou seja, as regras jurídicas,
incluindo as de caráter penal, têm a comum finalidade de influenciar o
comportamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir as ações a certos objetivos,
como uma peculiar forma de proposição, de função prescritiva e preventiva.
Essas prerrogativas são exercidas pela integração coletiva, que se utiliza da
sanção penal como instrumento de prevenção e, sobretudo, pelo cumprimento dos
compromissos éticos entre o indivíduo e o Estado, gerando, assim, o respeito às
normas jurídicas em razão de uma convicção da sua necessidade e justiça, e não
somente pelo receio de punição.13
Pelo que se vê, esse é o objeto das normas de caráter penal na modernidade,
que não se confundem com a perspectiva organizacional da empresa, ou seja, com
a regulação do comportamento do ponto de vista do cumprimento de políticas
internas, que, de certa forma, podem firmar um espírito de respeito à integridade
empresarial, porém, que não dispensam a intervenção penal.
Todavia, a maior parte da doutrina, liderada pela chamada Escola de
Frankfurt, sustenta a crítica ao Direito Penal moderno:
12
FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do ministério público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 40-41.
13
Segundo tal concepção, a nova legislação penal lesiona de modo múltiplo os princípios do Estado de Direito porque pretenderia reagir a desenvolvimentos sociais defeituosos, para os quais nenhum ser humano individual é portador de responsabilidade, mediante a atribuição de culpabilidade aos indivíduos; porque abusaria do Direito penal como simples meio de direção social sem limitação ao clássico grupo dos bens jurídicos individuais, e porque em virtude da renúncia à lesão de bens jurídicos individuais apreensíveis empiricamente ativaria uma antecipação de punibilidade intolerável em uma sociedade liberal. Por tudo isso, exige o reestabelecimento de uma limitação do Direito penal a um ‘Direito penal nuclear’ de acordo com os ideais do século XIX.14
São dois os maiores expoentes das propostas minimalistas ao Direito Penal:
Winfried Hassemer, que sugeriu o Direito de Intervenção15 e Jesús-María Silva
Sánchez, que sugeriu um Direito Penal de segunda velocidade.16
No Direito norte-americano, também com relação à criminalidade moderna,
foram assumidas diversas propostas que não de caráter penal para lidar com os
delitos empresariais.
A despeito das abordagens alternativas aos delitos empresariais, Russel
Mokhiber afirma que “um sistema criminal para indivíduos e um sistema cível para
empresas – funciona para minar a eficiência do sistema de justiça criminal”.17
Enfim, apesar dos inúmeros fatores de oposição e tentativas de
desvirtuamento das consequências jurídico-penais aos delitos empresariais, a
verdade é que a dimensão criminológica e a verificação dos efeitos na sociedade
levam à necessidade de estruturação conceitual, de forma a estabelecer elementos
objetivos à correta disposição de um controle formal, direcionando-se
funcionalmente e corrigindo a seletividade criminal do sistema.
14
GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal e para a crítica do discurso de resistência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 10.
15
HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo blanch, 1995.
16
SILVA SÁNCHÉZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
17
2.2 A dimensão conceitual: conceitos objetivo e subjetivo do delito empresarial
A criminalidade moderna apresenta novas formas de atuação, que não
guardam relação com as representações da criminalidade clássica. Uma delas
aparece na figura dos delitos empresariais, inseridos na espécie da criminalidade
econômica.
No âmbito da elasticidade conceitual da criminalidade moderna, os delitos
empresariais surgem em variadas denominações como criminalidade de colarinho
branco,18 criminalidade econômica, criminalidade de empresa ou criminalidade
empresarial, ou ainda criminalidade no mundo dos negócios.
Como construção de um ramo do Direito, apto a estudar este fenômeno,
utilizam-se denominações como Direito Penal Econômico, Direito Penal da Empresa
ou Empresarial e Direito Penal dos Negócios.
A denominação mais comum utilizada pela doutrina é o Direito Penal
Econômico, retirada da doutrina alemã (Wirtschaftsstrafrechts).
Para Klaus Tiedemann, maior expoente do Direito Penal Econômico, esse é o
ramo que engloba todas as infrações que atingem bens jurídicos coletivos ou
supraindividuais da vida econômica.19
Fato é que a chamada criminalidade econômica, que engloba a criminalidade
empresarial e corporativa, representa um fenômeno em expansão na sociedade
pós-moderna e contemporânea, na qual a empresa desempenha um papel essencial na
vida econômica.
Tal realidade é bem nítida na construção de Fábio Bittencourt Rosa:
18
“O conceito de ‘white collar crime’ foi cunhado em 1939, por ocasião de palestra homônima proferida pelo criminólogo norte-americano Edwin Hardin Sutherland na American Sociological Association. Nessa ocasião, Sutherland fez duras críticas à inexistência de punição na esfera penal para infrações praticadas no âmbito empresarial, apresentando um novo perfil de delinquência que entrava em rota de colisão com a Criminologia daquela época. Esta última tradicionalmente buscava explicar o fenômeno do crime através de relações de causa e efeito (teorias exógenas), a saber: a)
teoria da ecologia criminal [...]; b) teoria das subculturas criminais [...]; c) teoria da anomia social [...]. De acordo com Sutherland, nenhuma destas teorias explica de forma satisfatória o crime do colarinho branco, motivo pelo qual todas seriam equivocadas.” MALAN, Diogo Rudge. Considerações sobre os crimes contra a Ordem Tributária. Revista dos Tribunais. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, v. 865, 2007, p. 451.
19
Proliferou, então, nesse terreno nebuloso, uma criminalidade que afeta consumidores (monopólios, produção defeituosa que causa perigo, vendas fraudulentas, concorrência desleal), investidores e tomadores de empréstimos (manipulação do sistema financeiro), dano ao poder público (fraudes em licitações, sonegações fiscais), lesões ao meio ambiente, quebra de segredos e sigilos, informática, etc. É uma atividade poluidora da economia legal. O agravamento do problema veio com a globalização de uma economia de índole neoliberal. O controle estatal diminuído abre as veias em especial das economias mais fracas. Utilizam-se as empresas como meio para a consumação do ilícito, o que faz repensar a máxima societas delinquere non potest. Emergiu um direito penal que responde a essa parcela de ilicitude. A criminalidade econômica sente a presença das organizações criminosas, mas em geral os grupos que dominam esse setor do ilícito não têm as características das máfias. São pessoas que se unem com o fim de desenvolver práticas ou utilizam suas empresas com esse fim. As máfias organizam-se para desenvolver atividades criminosas, as mais variadas. Organismos que vivem do resultado do crime. No crime econômico algumas pessoas se unem, ou desenvolvem a ação individualmente, buscando algo definido, sem preocupação com a manutenção da ordem no grupo criado. Como se viu, nas máfias, a manutenção dessa ordem é vital para a sobrevivência da organização, e a clandestinidade constitui sua fonte de energia. Repise-se que o crime organizado, hoje, infiltrou-se na economia, porque aí são obtidos os lucros significativos.20
Existem características objetivas relacionadas ao fato que definem as novas
formas de criminalidade no âmbito estritamente econômico, em especial dos delitos
que se associam à atividade empresarial.
Essas características comuns mais consensuais tornam perceptíveis as
práticas criminosas e não podem ser descartadas para a dialética construção da
categoria dos delitos empresariais.
O pressuposto básico dessa criminalidade consiste na identificação de atos
praticados em atividades lícitas organizadas, com perfil corporativo, também
conhecido como perfil institucional, que vislumbra a empresa como instituição.
São atos que, do ponto de vista pragmático, pressupõem relações jurídicas
comerciais, financeiras e econômicas, em geral como objeto social da empresa.
São nestas atividades de empresa, nas quais se verifica a sofisticação, que o
delito empresarial se aproveita para duas finalidades: dissimulação das condutas em
meio à complexidade organizacional e potencialização dos lucros, já que são
20
maiores as quantias movimentadas e que podem ser percebidas tendo como
parâmetro a criminalidade clássica.
Assim ressalta José de Faria Costa apud Alberto Silva Franco:
a teia criminosa que se tece para que se consiga um fluxo criminoso que possa desencadear lucros fabulosos não é uma programação artesanal, mas antes um projeto racionalmente elaborado que passa, sobretudo, por três grupos, de certo modo, independentes, mas que, é evidente, têm também pontes ou conexões. Fundamentalmente os diferentes três grupos assumem-se funcionalmente da seguinte maneira: o grupo central ou nuclear tem como finalidade principal levar a cabo o aprovisionamento, o transporte e distribuição de bens ilegais. Ligam-se, aqui claramente, coação e corrupção para expansão do poder e lucro. Um outro grupo tem como propósito servir de proteção institucional a toda e qualquer rede ou teia. É a tentativa de chamar à organização, de forma sutil ou direta, a polícia, a justiça e a economia, as quais, através do estatuto dos seus representantes, permite criar bolsas ou espaços onde a atuação política se torna possível. Finalmente, surge um terceiro grupo que tem como fim primeiro estabelecer a lavagem de todo o dinheiro ilegalmente conseguido.21
Necessário destacar que no âmbito dos delitos empresariais há, portanto,
como pressuposto, uma organização formal lícita pré-constituída, a qual, via de
regra, do ponto de vista da execução, facilita a prática de condutas voltadas à
obtenção de lucros ilícitos, contando, para isso, com o amparo da empresa para
ocultação da atividade criminosa desenvolvida e a posterior lavagem daqueles
valores inicialmente obtidos.
Além disso, da formal constituição empresarial decorre a sofisticação delitual,
que permite à criminalidade certa confusão entre os atos lícitos e ilícitos, sendo,
sobremaneira, de difícil identificação e persecução das atividades criminosas.
Veja-se que na criminalidade empresarial é possível mascarar a prática
criminosa, permitindo a reiteração das condutas em prol do lucro desmedido,
inclusive propiciando a penetração e a migração das atividades criminosas em
novos mercados aos quais não há a devida atenção do Estado.
A sofisticação delitual aliada à grande especialização das corporações e o
conhecimento especializado do ramo de atividade e da legislação pode, assim,
propiciar o engodo contra as autoridades de fiscalização e investigação, ou seja, o
21
controle formal estatal, com a potencialização dos lucros legais, mediante as
práticas criminosas.
Dentro do critério de sofisticação delitual, convém ressaltar que a
criminalidade econômica apresenta-se com uma criminalidade organizada em
sentido amplo. Isso significa dizer que a criminalidade econômica e especificamente
a criminalidade empresarial se realiza por meio de uma associação de pessoas em
que há profissionalismo, hierarquia e disciplina, contando, em certos casos, com
divisão do trabalho criminoso, sendo que nos delitos empresariais, a organização, a
priori, é lícita.
O problema decorrente da sofisticação organizacional e operacional se dá
justamente pelo fato de que as complexas estruturas societárias dificultam a
individualização correta dos diversos autores e partícipes, até mesmo da real
intencionalidade criminosa.
Neste cenário, verifica-se que as condutas são caracterizadas por engano,
ocultação ou violação da confiança e não são dependentes, a princípio, da aplicação
ou ameaça de força física ou violência.
Justamente o engodo cumulado com a confiança e posição de
respeitabilidade são os fatores que beneficiam os autores dos delitos empresariais,
que, dessa forma, dispensam a violência na execução.
Na verdade, tais condutas somente podem ser praticadas por pessoas
integradas à execução de atividades lícitas para atingirem objetivos ilícitos. Assim,
são censuradas como práticas lesivas à confiança da organização empresarial.
A par disto, são gravemente violadoras das expectativas dos outros sócios,
acionistas, do próprio mercado e sociedade em geral, que são expostos, muitas
vezes, inconscientemente à qualidade de vítimas dos atos cometidos por indivíduos
e organizações para obter vantagem pessoal ou empresarial de forma velada.22
Essa mesma criminalidade não convencional, que prescinde a violência,
consegue esvaecer os limites entre atividades criminosas e atividades lícitas na
22
medida em que integra na sua organização a reciclagem dos lucros ilegais,
utilizando-se de instituições e localidades que acolhem capitais estrangeiros e que
são envolvidas no sistema bancário offshore e das holding.
Essa é uma característica que ostenta um pouco além dos comuns sinais de
ilicitude, porém, que não pressupõe imediatamente a ilegalidade na remessa de
valores ao exterior e reinserção do dinheiro na economia local, mas que se
apresenta como um dos caminhos mais comuns para a utilização do benefício
econômico da criminalidade organizada.
Outro critério que delimita a criminalidade econômica em geral é a extensão
do resultado, especialmente pela ausência do locus delicti (lugar do delito) e a
separação do tempo espaço entre a ação e o dano social provocado.
De fato, os resultados são difusos, o que significa também dizer que é
atingido um número indefinido de vítimas e bens jurídicos coletivos, sociais e
transindividuais.
O fator vitimização difusa é característico da prática criminosa dos delitos
empresariais, diferindo-se da criminalidade clássica, na qual a relação se dá
diretamente entre sujeito ativo e sujeito passivo e o resultado danoso causado pela
conduta criminosa é, na maioria das vezes, de fácil identificação.
Na criminalidade econômica moderna, o resultado tem repercussão difusa,
atingindo um número indeterminado de vítimas e também os sistemas econômico e
financeiro, além do próprio ordenamento jurídico e consequentemente a democracia,
afetando a estabilidade e a governabilidade dos Estados.23
Mesmo que se considere não existir qualquer violência na execução, os
resultados são suficientemente prejudiciais, algumas vezes até violentos, que não
afastam a lesividade da conduta.24
23
CAIRES, João Gouveia de. O regime processual especial aplicável ao crime organizado (económico-financeiro): âmbito de aplicação da lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o regime do sigilo e do registro de voz e imagem. In PALMA, Maria Fernanda; DIAS, Augusto Silva; MENDES, Paulo de Sousa (orgs.). Direito Penal Económico e Financeiro: conferências do Curso Pós-graduado de Aperfeiçoamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 453-469.
24
Apesar do resultado da prática criminosa mostrar-se de forma difusa, dentro
da estrutura organizacional ele é determinado por critérios de pura racionalidade de
custos/benefícios econômicos.
Para este modelo de criminalidade, o crime é produto da consciência volitiva
do agente, que pesa os benefícios e prejuízos que a prática criminosa pode lhe
oferecer. Há, na maioria dos casos, a realização do cálculo custo/risco, o que
demonstra a nítida transposição da lógica e da racionalidade econômica para a
conduta criminosa.
Ao que se refere à lógica da criminalidade organizada em geral, José de Faria
Costa complementa que:
[...] à determinação do lucro – com os riscos inerentes a este tipo de actividade – não se pode opor qualquer outra lógica. O que se quis aqui salientar é que as próprias organizações criminosas [...] se assumem como autênticas empresas de alto risco cuja actividade fundamental é a prática organizada de actuações criminosas possibilitadora de lucros fabulosos. Neste sentido aqui, a relação capital/lucro é quase infinitamente favorável no sentido de lucro. Isto é: ao investimento de um capital relativamente pequeno há a forte expectativa de um lucro fabulosamente alto. O que acontece é que hoje o investimento – devido a uma forte concentração de capital neste campo como em tantos outros – é também, logo ele, à partida, enorme, o que impõe a nascença de um ciclo infernal ou vicioso de produção de capital.25
A incidência da ação criminosa tende a ter uma relação direta com as
oportunidades para a prática do delito, sendo que o agente verifica, em dada
ocasião, as possibilidades de maiores ganhos efetivos, que será inversamente
proporcional aos custos (baixo ou zero).
A oportunidade pode ser verificada quando convergem em tempo e espaço
alguns elementos destacados pela criminologia: a presença de um delinquente
motivado, um objetivo alcançável, a ausência de um guardião capaz de prevenir a
três níveis, reduzindo os elementos estruturais que criam oportunidades para a infração, inserindo os acertos organizacionais que diminuam a possibilidade de desrespeito pelas normas, actuando a nível psicossociológico no sentido de conscientizar o agente da necessidade de adoptar os meios legítimos. E eis como as teorias da oportunidade, cuja inserção à primeira vista nos parecia essencialmente estrutural, acabam por não prescindir de uma consideração integrada em que os elementos organizacionais e psicossociológicos sejam também o objecto da devida atenção”. Ibidem,
p. 280.
25
sua prática ou ausência de um denominado supervisor íntimo (pessoa próxima ao
infrator que neutraliza ou freia o seu potencial delituoso) e, por fim, um
comportamento do denominado gestor do espaço ou pessoas com competência
para controlar e vigiar alguns destes.26
Foi também neste contexto que Edwin Hardin Sutherland27 expôs a teoria da
associação diferencial, pela qual a principal forma de aprendizagem dos
comportamentos definidos como crimes do colarinho branco refere-se ao contato do
indivíduo com pessoas próximas que possuem a consciência quanto à
recomendação da prática criminosa, colocando o indivíduo a par de todas as
vantagens de cometer tais crimes e realizar o balanceamento com as desvantagens,
para a final obtenção do seu objetivo.28
Portanto, da análise do resultado, verifica-se que a finalidade da conduta que
parte de expedientes ilegais é o lucro direto ou indireto, ou a obtenção genérica de
benefícios indevidos. No âmbito de uma perspectiva psicossociológica, diversos
fatores podem influenciar a prática do crime do colarinho branco, que está
assentado no intercâmbio de estímulos e na oportunidade da prática criminosa.29
A rigor, trata-se de cometimento da prática criminosa para obtenção de lucros
econômicos, porém, pode ocorrer de certos sujeitos fazerem escolhas
independentemente de ganhos materiais propriamente ditos, mas que, ao final,
reverterão algum lucro ou status econômico ou social.
Por fim, a ação deve ter um juízo de reprovação ético social que mereça ser
elevado à categoria de injusto criminal.
Neste ponto, deve-se relembrar que nos crimes empresariais há aparente
licitude nas ações praticadas. Essa rede empresarial altamente intricada em que se
aloja o crime tem o poderio de abrigar um rol de operações disfarçadas, que,
26
A prevenção situacional foi elaborada sob o pressuposto da seletividade do crime, que afirma que o crime é "uma opção reflexiva, calculada, oportunista, que pondera os custos, riscos e benefícios em função sempre de uma oportunidade ou situação concreta". MOLINA, Antonio García-Pablo de; GOMES, Luiz Flavio. Criminologia. 2 ed. São Paulo: RT, 1997, p. 416-419.
27
SUTHERLAND, Edwin Hardin. 1883-1950. White collar crime. Yale: Yale University Press New Haven and London, 1983.
28
Claudia Maria Cruz Santos explica que “a teoria da associação diferencial assenta, pois, na consideração de que quer a motivação para a prática do crime quer o conhecimento dos procedimentos para o cometer são apreendidos através dos processos de comunicação no interior dos grupos”. O crime do colarinho branco: da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 44.
29
isoladamente consideradas, poderiam não evidenciar ilicitude alguma e serem
percebidas como legal business.
Dessa forma, ao verificar-se o contexto da conduta incorporada ao fim
lucrativo a ser alcançado, tais condutas não deixam dúvidas quanto à prática
delitiva, possibilitando a incidência do juízo de reprovação ético-social.
Postas as características objetivas, passa-se ao conceito subjetivo quanto à
criminalidade empresarial, denominada nestes termos de white collar crime.
Para Edwin Hardin Sutherland,30 que foi o pioneiro da definição subjetiva dos
delitos empresariais, o crime do colarinho branco é aquele praticado por pessoa de
respeitabilidade e alta condição social, no exercício da sua atividade profissional, ou
seja, é a criminalidade profissional das classes sociais elevadas.
Trata-se de conceituação que tem por base a qualificação por determinadas
condições pessoais, vale dizer, são delitos especiais que partem de pessoas
pertencentes a uma camada exclusiva da sociedade e estão relacionados à sua
atividade profissional.
Segundo Luis Gracia Martín,
[...] o fundamento material dos delitos especiais não pode ser vislumbrado na infração do dever jurídico específico que obriga os autores qualificados mas sim na posição especial e na capacidade de domínio (social) destes sobre o âmbito social no qual se encontram determinados bens jurídicos que só necessitam da proteção penal em face de determinadas ações típicas desses sujeitos com domínio social, e não frente àquelas próprias de quem carece desse domínio.31
Com efeito, tratam-se de delitos praticados por agentes com uma especial
característica, que é o poder, que advém de uma privilegiada posição social ou
situação econômica, notadamente, nos delitos empresariais, decorrente do exercício
da atividade.
A conceituação subjetiva do delito empresarial tende a demonstrar que essa
criminalidade tem um caráter fundamentalmente econômico e acentuadamente
30
SUTHERLAND, Edwin Hardin. 1883-1950. White collar crime. Yale: Yale University Press New Haven and London, 1983.
31
empresarial, visto que os fatos delitivos ocorrem num contexto relacionado com as
atividades tipicamente econômico-empresariais, que são condicionadas pela
necessidade de utilizar sólidas redes operacionais e eficientes estruturas
organizativas.
O exercício da atividade delitiva no âmbito da atividade institucionalizada não
se trata de um mero fenômeno isolado, mas sim de um fato que depende da
estrutura social, ou seja, dos elementos de organização do trabalho e do poder
econômico.
Assim, a noção do white collar crime é particularmente importante para
evidenciar a necessidade de considerar como infrações de caráter penal
determinadas práticas realizadas por indivíduos ocupantes de posições de poder e
não apenas como ofensas civis ou administrativas.
Portanto, os crimes do colarinho branco são condutas criminosas, o que
qualifica o ramo que deles se ocupa como Direito Penal de Empresa, inserido no
Direito Penal Econômico, contendo como agente da prática criminosa a figura do
empresário, sócio, administrador e todas as atividades, funções e cargos
relacionados à atividade empresarial, cuja lógica de funcionamento é incorporada à
dinâmica criminal.
Neste cenário, importa observar que as sociedades empresárias e as grandes
corporações tomam uma forma na economia moderna que interfere na organização
da vida social. Percebe-se que nessa conjuntura globalizada os Estados nacionais
acabaram por perder seus poderes econômicos face à atividade econômica
conduzida pelas empresas privadas, muitas vezes conglomerados transnacionais,
que, por sua vez, passaram a atuar como agentes do mercado global.
Igualmente, na sociedade contemporânea, a atividade empresarial,
especialmente a grande empresa, é a célula base de toda a economia em que se
efetua a maior parte das escolhas que comandam o desenvolvimento econômico e
Cuida-se, conforme diz Eugenio Raúl Zaffaroni, de um “nuevo momento de
poder planetario", em que o poder se encontra, em verdade, bastante pulverizado.32
A movimentação de capital pelas empresas, notadamente por corporações
multinacionais, combinada com a desregulamentação dos mercados, atrai de tal
modo a prática criminosa.33
Essa desorganização legal em meio a manifestações de poder econômico
relevantíssimas para o seio social gera resultados mais desastrosos do que se
imagina, além de demonstrar a todos os possíveis autores a imagem da impunidade.
Não se pode esquecer que a oportunidade movimenta a criminalidade
moderna, inclusive os delitos empresariais, tanto em termos quantitativos quanto
qualitativos.
Não deixa, pois, de verificar que, em última instância, de acordo com o
modelo econômico globalizado, o equilíbrio da sociedade depende da regular
atividade empresarial, que, por sua vez, depende da regulamentação impositiva e
dotada de abstração e generalidade, a fim de prevenir abusos decorrentes do poder
econômico.
Tais constatações nos levam à última observação – e talvez a mais
importante – no sentido de que deve estar presente a figura da sociedade
empresária, em todas as formas legalmente admitidas, como critério tanto objetivo
como subjetivo dos delitos empresariais.
Considera-se sociedade empresária aquela que tem por finalidade o lucro
lícito de uma atividade econômica complexa, de produção ou circulação de bens e
serviços, normalmente sob a forma de sociedade limitada ou sociedade anônima.
A esse respeito, Heloisa Estellita observa que na sociedade empresária o
“motivo da união das pessoas, nos crimes praticados por meio de sociedades
empresárias [...] é a prática de atividades econômicas lícitas, na forma da lei".34
32
ZAFFARONI, Eugênio Raul. apud. MASIERO, Clara Moura. Direito penal econômico: aplicabilidade dos procedimentos investigatórios previstos na Lei n.º 9.034/95. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2010, p. 22.
33
“Estamos asistiendo a la difusión de un capitalismo globalmente desorganizado, donde no existe ningun poder hegemônico ni ningun régimen internacional, ya de tipo económico ya de tipo político”.
BECK, Ulrich. Qué es la globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización.
Deve ficar claro que no âmbito em que os delitos empresariais se
desenvolvem há a exigência de uma organização permanente e estável, não
direcionada ao crime diretamente. Em outras palavras, a criminalidade empresarial
desenrola-se no contexto institucionalizado de uma atividade empresarial ab initio
lícita, ou seja, em relação com mercados em princípio legais e que diferem da prévia
desvinculação ao direito manifestada pelas figuras da criminalidade organizada.
Kai Ambos denomina essas estruturas ilícitas organizadas para a prática de
crimes como organizações criminosas de per se, ou aparatos organizados de poder
não-estatais, conceito do qual as sociedades empresárias estão excluídas:
Destinadas a manter ou incrementar o poder com sua estrutura rigorosa de organização e de mando. E como tais, dificilmente poderão caracterizar-se também as grandes empresas – junto a todas as críticas a muitas estratégias agressivas de mercado. As empresas não são per se criminosas, elas perseguem em primeira linha a obtenção legal de benefícios financeiros. Os fatos puníveis podem se converter, na verdade, em um fenômeno que as acompanham, mas em regra não constituem nenhuma parte fixa da política das empresas, são na verdade ‘acidentais’. Se isto for diferente, isto é, se as atitudes criminosas aumentam, tratam-se de organizações criminosas, e com isto estaremos no âmbito do ‘crime organizado de modo similar à máfia’ [...]. O domínio por organização pressupõe a existência de uma organização rigorosa e hierarquicamente estruturada e o domínio do fato por parte do homem que está por trás, sobre executores fungíveis.35
As organizações criminosas podem, e isso ocorre em regra, realizar
investimentos em atividades lícitas, justamente para proceder a lavagem do dinheiro
proveniente de práticas criminosas e reinseri-lo no mercado.
Todavia, a característica que separa a criminalidade de empresa da
criminalidade organizada é a organização quanto à prática do crime, quando a
34
ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, Quadrilha e Organização Criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 30. Heloísa Estellita distinguiu o tema da criminalidade econômica e dos crimes praticados no exercício da atividade empresarial de três formas diversas: a) criminalidade na empresa, b) criminalidade de empresa, c) empresa ilícita. Essa distinção, não obstante seja de suma importância, não será objeto de ampla exposição, porém, segundo ainda verificado por Stellita, é clara a diferença entre criminalidade de empresa e a empresa ilícita, “aplicando a cada uma as devidas consequências jurídico-penais previstas no direito positivo, limitando a imputação de quadrilha ou bando à empresa ilícita”. O fato é que todas essas formas de criminalidade exigem uma maior prevenção, visto que, post factum, os resultados são amplamente devastadores.
35
criminalidade organizada possui uma estrutura organizacional com tarefas a priori
ilícitas, que apresentam as seguintes características: se coagir o agente,
pode-se usar de circunstância decisiva para a autoria como fator causal cego; ou o
executor, que não é nem coagido e nem enganado, pode ser de qualquer forma
substituível.36
Outra clara descrição que encerra o conceito da criminalidade organizada é
exposta por João Gouveia de Caires:
[...] caracteriza-se pelas ideias de agregação e associação de delinquentes; vontade deliberada de cometer actos delituosos; organização rigorosa, estratégica e profissional; racionalização empresarial; actuação nos grandes domínios da criminalidade organizada de violência, dos tráficos ilícitos e da criminalidade económica e de negócios; procura de lucros significativos; e organização estruturada em rede, nos planos nacional e internacional. [...] poder-se-ia resumir em quatro características: a
permanência (de tal modo que o grupo possa sobreviver ao desaparecimento do ‘chefe’); a organização estruturada (divisão por famílias/células); a hierarquia (divisão por patentes/classes); e o
segredo (‘lei do silêncio – caráter secreto da organização).37
Por último, não se pode esquecer brevemente de caracterizar a
macrocriminalidade ou a denominada criminalidade altamente organizada,
constituída pelo terrorismo, narcotráfico, tráfico de armas, mulheres e crianças, etc.
Disso tudo, decorre a necessidade de se tratar tecnicamente, com a devida
diferenciação entre as modalidades de criminalidade moderna, estabelecendo-se
instrumentos compatíveis à sua persecução.
Dentro dessas sutilezas, que caracterizam a criminalidade econômica
moderna, deve-se procurar dar o devido tratamento legal aos delitos empresariais,
que vislumbram na atividade empresarial e na figura específica do empresário, em
sentido lato, a necessária intervenção penal, quando fatos delitivos apresentem as
características mencionadas.
36
AMBOS, Kai. Direito penal: fins da pena, concurso de pessoas, antijuridicidade e outros aspectos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006, p. 49.
37
2.3 Tratamento Jurídico Penal da Ordem Econômica
2.3.1 Constituição Federal e proteção jurídico-penal da economia
Como visto, a criminalidade contemporânea caracteriza-se como uma
criminalidade não convencional, apresentando-se sob as mais diversas formas de
manifestação, dentre elas os delitos empresariais, o que tem exigido também novas
formas de tutela penal e processual penal, notadamente contra os ataques a novos
bens jurídicos coletivos, difusos ou supraindividuais, como a economia.
Conforme afirma Luis Gracia Martín:
Os Estados expandiram sua atuação para a dimensão social das relações de convivência e iniciaram assim o processo de conversão das democracias liberais, puramente formais, em verdadeiras sociedades democráticas no sentido real ou material.38
No cenário do neoliberalismo ou social-liberalismo contemporâneo, em que as
empresas são detentoras de amplo poder na organização da Economia, o Estado,
como agente normativo e regulador da atividade econômica, passou a considerar
valores notadamente sociais na sua agenda de atuação, em especial mediante
previsões constitucionais.
Em outras palavras, apesar da necessária preservação da livre-iniciativa, que
estimula o desenvolvimento, o Estado passou a atuar materialmente junto à ordem
econômica com o intuito de evitar as mais variadas formas de abuso do poder pelas
organizações privadas (domínio de mercado, eliminação da concorrência, aumento
arbitrário de lucros, etc.), de modo a garantir o interesse coletivo.
Eduardo Reale Ferrari aponta que a intervenção do Estado na Economia não
é questão nova na doutrina:
analisando historicamente a evolução do Direito Penal Econômico em face das Constituições Federais ao longo do tempo, verificamos que o tema da tutela a Economia teve como fim proteger o
38
patrimônio do povo em geral, ameaçado pela ganância dos que pretendiam se locupletar com a exploração das necessidades fundamentais de toda a coletividade, tentando reprimir a especulação gananciosa.39
A verificação de condutas lesivas aos interesses coletivos, cumulada com
vários princípios constitucionais reitores da ordem econômica, influenciou o
tratamento constitucional, estipulando inclusive a necessidade de intervenção penal
“em comportamentos que buscam lesionar o sistema jurídico, com potencial de
afetar núcleos vitais de mercado”.40
Luiz Regis Prado, por sua vez, verifica que no tocante à Constituição
brasileira de 1988 estão consagradas as ideias de liberdade de iniciativa, as
condições de consumo, de emprego e saúde, e ainda, a ideia de que o Estado
possa intervir sempre que a liberdade de iniciativa não estiver sendo exercida em
proveito da sociedade ou em desconformidade com os anseios sociais.41
Na mesma linha, Luciano Feldens explica que – embora seja elevada a carga
de sensibilidade de que se reveste o trato do tema –, atualmente, a intervenção do
Estado na economia mostra-se como uma necessidade imperiosa, ficando reduzida
a discussão aos limites de extensão e profundidade dessa atuação estatal. A
Constituição Federal de 1988 – assevera o autor – , no tocante à ordem econômica
em sentido estrito (Título VII), admite expressamente esta intervenção, ainda que
sob função regulatória ou de planejamento, estabelecida precipuamente para o fim
de controle e correção dos abusos decorrentes do exercício da atividade econômica
(artigo 173, caput e parágrafo 4º e 5º, e 174).42
Dessa forma. a ordem econômica prevista na Constituição Federal de 1988 é
fundada na livre iniciativa, mas não de forma desregrada. Conforme o artigo 170,
39
FERRARI, Eduardo Reale. Legislação Penal Antitruste: Direito Penal Econômico e sua acepção constitucional. In COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 581.
40
PEREIRA, Cláudio José. O Direito Penal pós-moderno e a expansão econômica supranacional. In
COSTA, José de Faria, SILVA, Marco Antônio Marques (coord.). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 807.
41
PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 30.
42