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A insuficiência do conceito de bem jurídico e o dever de garantia

3 A LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL QUANTO AOS DELITOS EMPRESARIAIS

3.1 Legitimidade da prevenção nos delitos empresariais

3.1.4 A insuficiência do conceito de bem jurídico e o dever de garantia

Os crimes econômicos, como a manifestação mais importante da criminalidade moderna, trazem efeitos devastadores com alto grau de censura jurídica que, pela periculosidade social, o elevam à categoria de injusto penal.

Diante deste novo enfoque que é conferido à análise do crime econômico, Luis Gracia Martín questiona a posição do conceito de bem jurídico como critério único para justificar a intervenção penal, no sentido de que “é preciso renunciar à pretensão de definir o delito econômico, e o conteúdo do Direito Penal Econômico, mediante um único critério de validade geral”.100

Isso porque os inúmeros crimes que podem ser inseridos no âmbito da criminalidade econômica pela realização do fato punível em relação com uma atividade econômica, aproveitam-se das mudanças surgidas com a globalização, sendo que, neste cenário de evolução, qualifica-se uma definição dinâmica e material do crime econômico e não a estrita vinculação ao bem jurídico.

Não há dúvida de que o Direito Penal possui um caráter fragmentário e deve proteger somente bens jurídicos essenciais à convivência humana.

Porém, contemporaneamente, surgiram condutas que, regra geral, não se enquadram de forma objetiva no âmbito de proteção de um bem jurídico estritamente individualizado.

Todavia, são condutas juridicamente desvaloradas que só podem ser praticadas por pessoas que conduzem atividades econômicas lícitas, ou seja, com cursos causais na vida econômica, que abrem espaço às mais variadas práticas criminosas e que atingem variáveis bens jurídicos, dependendo do âmbito de atuação.

Essa possibilidade de afetação de mais de um bem jurídico é decorrência natural da complexidade das relações sociais e, consequentemente, de sofisticadas práticas criminosas.

100

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal

São condutas que se manifestam como indesejáveis por violarem interesses de natureza coletiva, difusa e supraindividual e compõem um novo quadro de comportamentos cuja caracterização como crimes ainda encontra sérias resistências por setores da dogmática tradicionalmente comprometidos com a proteção única e exclusiva de interesses individuais.101

A definição do Direito Penal Econômico pelo bem jurídico tutelado, especificamente a ordem jurídico-econômica em sentido estrito, restringe sobremaneira comportamentos criminosos que, do ponto de vista da Criminologia e da Política Criminal, e diante da sua característica de serem realizados em um contexto ou escala econômicos ou estritamente empresariais, devem ser alocados no conceito de criminalidade econômica.

A propósito dos bens jurídicos, Luis Gracia Martín expõe que o bem jurídico certamente continua sendo uma referência imprescindível do Direito Penal, “mas este deixou de ser já um critério decisivo, pois como demonstram investigações mais recentes, do conceito de bem jurídico só se pode deduzir uma ou outra conclusão com valor determinante para resolver a questão relativa à intervenção penal”.102

Dessa nova ótica, ainda que o bem jurídico não seja coletivo, difuso ou supraindividual, pode-se afirmar que há um contexto econômico, passível de intervenção do Direito Penal Econômico e suas regras e os instrumentos dogmáticos e processuais.

Por isso, a realização de delitos tradicionais no contexto econômico também pode justificar a intervenção penal com destaque nas medidas derivadas da precaução.

Sem dúvida, existem manifestações delituosas de natureza patrimonial que, pelas consequências que delas derivam e pela finalidade de lucro, admitem a intervenção do ponto do vista do Direito Penal Econômico.

101

STRECK, Lenio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o cabimento do mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista- clássico. Disponível em

http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=40&Itemid=2. Acesso em 04 de março de 2013.

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GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal

e para a crítica do discurso de resistência. Apresentação do Prof. Dr. Bernd Schünemann; tradução

Todavia, há que se observar que, ainda que o bem jurídico seja um critério de definição dos crimes econômicos – apesar de sua insuficiência existem condutas que se manifestam contrária e expressamente à proteção de outros bens jurídicos, o que propõe uma exclusão metodológica quanto ao tratamento da criminalidade econômica.

No tocante a esta exclusão metodológica de alguns delitos que impliquem repercussões econômicas, salienta Édson Luís Baldan que

também ficam excluídas da categoria dos delitos sócio-econômicos aquelas infrações penais que, embora portadoras de induvidoso conteúdo econômico, orientam-se à proteção de outros bens jurídicos. Tal é a hipótese de alguns delitos incluídos entre os crimes de funcionários públicos ou contra a Administração Pública (emprego irregular de verbas públicas), nos quais a criação de figuras híbridas aparece justificada pela confluência de um interesse jurídico ulterior que vem se somar ao puramente patrimonial e que reside na função pública como atividade de prestação aos administrados.103

Enfim, a ordem jurídico-econômica em sentido estrito como bem jurídico é um dos critérios para a legítima intervenção penal, porém, o conceito de delito econômico e de Direito Penal Econômico é definido a partir fundamentalmente da circunstância da realização do fato punível em relação com uma atividade econômica. Ou seja, a lesão ou ameaça pressupõe a atividade de produção, distribuição, e consumo de bens e serviços, na qual são praticados condutas ou riscos abusivos que, pela sua periculosidade, são considerados um injusto penal.

Portanto, é certo que a criminalidade econômica, pelas suas características criminológicas, impõe uma análise diferenciada quanto à teoria do bem jurídico, pois, como afirmado, os danos causados manifestam-se nos mais variados interesses coletivos, difusos e supraindividuais, que são objeto de tutela pelo Direito Penal.

Neste ponto, Paulo José da Costa Jr. e Cesar Pedrazzi afirmam que a tutela penal, além de coletiva, é indireta, assegurando interesses colaterais e instrumentais, além de referir-se também à tutela penal de terceiros:

103

BALDAN, Edson Luis. Por uma delimitação conceitual do direito penal econômico pela análise da ordem econômica como bem jurídico tutelado. 2001. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2001, p. 155.

[...] possui, portanto, afora a objetividade jurídica comum de natureza patrimonial, um objeto jurídico imediato e específico. Destina-se a tutela das normas penais societárias, antes de mais nada, a terceiros. No instante em que se permite aos sócios exercer uma atividade comercial com o respaldo da pessoa jurídica, limitando-lhes a responsabilidade, a lei se sente no dever de proteger, inclusive, penalmente, terceiros que entrem em contato com a sociedade. Desenvolve-se a tutela penal de terceiros em três direções diversas: Em primeiro lugar, preocupa-se a lei em assegurar aos terceiros informações amplas a respeito de todo o sucedido na sociedade, bem como da consistência patrimonial societária. A velha legislação brasileira, como ainda hoje as leis francesa e italiana, sancionava penalmente a inobservância das principais obrigações publicitárias. A lei vigente pune somente as mais graves violações do dever de informação, representadas pelas falsidades societárias. Ao mesmo tempo, a lei interfere para assegurar que a sociedade não se reduza a uma fachada ilusória, mas sim, ofereça, a quem quer que entre em contato com ela, efetiva garantia patrimonial. Tal finalidade é desempenhada pela tutela penal do capital social. Finalmente, a tutela penal se estende ao funcionamento correto do mercado de títulos societários, contra manobras capazes de perturbar a formação dos preços.104

Importa observar que os efeitos da criminalidade econômica, pelas suas próprias características, não se produzem, na maior parte das vezes, de forma imediata, com vítimas individualizadas e resultados prontamente verificáveis que permitam delimitar o bem jurídico atingido, não obstante a constatação da periculosidade.

Por isso mesmo, Luis Gracia Martín afirma que o conceito de bem jurídico teria no Direito Penal moderno um sentido apenas nominal ao se referir à proteção das condições ideais normativa e abstratamente definidas, e da capacidade de funcionamento e desenvolvimento adequado da sociedade, que é afrontado pela periculosidade da criminalidade econômica:

O protegido aqui – afirma-se – não seriam na verdade bens jurídicos, mas ‘funções’, isto é, instituições, modelos ou objetivos da organização política, social ou econômica, ou contextos, ambientes ou condições prévias à fruição dos bens jurídicos individuais; enfim, só objetos fictícios de tutela que servem de pretexto para uma ampliação da incriminação de comportamentos. O conceito de bem jurídico, por isso, teria no Direito penal moderno um sentido apenas ‘nominal’.105

104

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal societário. Cesare Pedrazzi. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Perfil, 2005, p. 14-15.

105

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do Direito Penal

e para a crítica do discurso de resistência. Apresentação do Prof. Dr. Bernd Schünemann; tradução

Dado que a proteção de bens jurídicos no moderno Direito Penal é cada vez mais uma proteção institucional, importa observar que às condutas abusivas ou perigosas no âmbito econômico corresponde sempre um dever de garantia inclusive por parte dos envolvidos na atividade econômica.

Nesta linha, cumpre propriamente à organização empresarial a proteção da regularidade econômica, como forma de garantia também institucional apropriada ao relacionamento pacífico entre interesses pessoais e coletivos, sociais, difusos ou supraindividuais.

Diante da tutela penal de perfil institucional, as pessoas que conduzem atividades econômicas lícitas e as organizações empresariais têm o dever jurídico de evitar o resultado (dever que decorre por imposição legal ou dever decorrente da ingerência da norma).

Deve-se observar que os riscos tratados no Direito Penal Econômico devem ser aqueles, conforme observa Jesús-María Silva Sánchez, de “procedência humana como fenômeno social estrutural”.106

Assim, a proteção transcende os deveres de proteção estatais e a figura tradicional dos bens jurídicos, recaindo aos próprios destinatários da norma penal como deveres de garantia, o que permite a sua configuração como agentes da criminalidade econômica, bem como o estabelecimento de critérios objetivos para a reprovação e responsabilização pela conduta nas normas jurídicas.

Os deveres de garantia completam os esforços, no setor privado, das diretrizes jurídicas estabelecidas em decorrência dos interesses coletivos, difusos e supraindividuais, com vistas a uma proteção institucional, de modo a exigir condutas socialmente responsáveis, em especial no âmbito empresarial que, ao optar por condutas abusivas e perigosas, expõe a sociedade a riscos não permitidos.

Por isto tudo, a posição defendida em relação à intervenção estatal quanto aos novos riscos é a da intervenção minimamente necessária para a garantia do desenvolvimento econômico regular e da sociedade, considerada em cada indivíduo e coletivamente, o que, não obstante a insuficiência do conceito de bem jurídico, mais uma vez legitima o Direito Penal no campo da precaução.

106

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. V. 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.