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Entre História e Mito: a dinâmica da literatura espírita no Brasil

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Academic year: 2021

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Resumo: este artigo analisa, em primeiro lugar, a trajetória da literatura espírita – que

é indissociável do desenvolvimento histórico do próprio espiritismo, no país e no exterior. Em segundo lugar, recorrendo a categorias do pensamento de E. Cassirer, faz-se uma reflexão sobre a reapropriação mítica que a nova literatura espírita realiza de acontecimentos marcantes da história recente do país. De forma semelhante ao mito, a êxegese dos romances mediúnicos contribui para o surgimento de um novo e inusitado sentido para a realidade.

Palavras-chave: Espiritismo. Literatura Espírita. Religião. Literatura. História do Brasil.

E

m 1847, os acontecimentos de Hydesville (estado de Nova Iorque) foram a raiz do movimento religioso chamado Modern Spiritualism e acarretaram a mas-sificação de fenomenos “extraordinários” que já tinham sido documentados na Europa, como o demostrou a historiadora Edelman (1995) no livro que ela produziu sobre o tema. Naquele momento foi criado um código para decifrar as mensagens vindas, supostamente, do Além Túmulo e cujo suporte eram socos fortes dados contra as paredes e nos moveis. Essse “alfabeto tiptológico” era baseado sobre a correspondência entre o número de golpes contados e o lugar que uma letra ocupa no alfabeto romano utilizado pela maioria das línguas ocidentais3. Por motivo prático, fácil de imaginar, esse alfabeto foi rapidamente abandonado a favor de uma relação direta com essas entidades desencarnadas, Marion Aubrée**

ENTRE HISTÓRIA E MITO: A DINÂMICA DA LITERATURA ESPÍRITA NO BRASIL*

–––––––––––––––––

* Recebido: 03.04.2012. Aprovado: 28.05.2012. Esse texto é a versão atualizada e aumentada de um artigo publicado no livro de J.B. Martin, Le défi magique. Esotérisme, occultisme,

spiritisme (1994).

** Professora visitante na Universidade Federal do Ceará (2011). Antropóloga, CRBC/CEIFR--EHESS Paris.

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as quais começaram a “controlar as vozes dos médiuns” (BRAUDE, 1989, p. 18) e, assim, a se expressar pela boca daqueles (e sobretodo daquelas) que de-veriam servir de intermediários entre esse outro mundo e o mundo dos vivos. Segundo Braude (1989), já desde 1848 a irmã mais velha das duas adolescentes – Kate

e Margaret Fox – com as quais se originaram os fenômenos mencionados, descobria sua própria mediunidade e produzia em estado de hipnose discursos que os observadores, aderindo na sua maioria à nova causa, concordaram em considerar como marcados por “um raciocínio bem filosófico” e que, segundo eles, só poderiam proceder de um Espírito bem superior ao de uma simples e modesta dona de casa. Paralelamente, os Espíritos barulhentos continuavam a se manifestar. A mesma autora data de 1852 a primeira “publicação mediúnica”, atribuída à pena de Isaac Post, um ex Quaker convencido desde a primeria hora. E isso é o advento em grande escala da “psicografia”, uma modalidade de escrita própria dos médiuns, cuja mão é “irresistível e involutariamente” levada por uma força estranha que desenha as mensagens, fora da consciência da pessoa. Esses fenômenos seguem o mesmo caminho na Europa, onde também se difundiram bem

cedo e encontram, particularmente na França, o humus espiritualista fertilizado por decênios de prática do magnetismo mesmeriano e da hipnose (MÉHEUST, 1999). No Brasil, apesar de se ter conhecimento desde 1853 de todas essas no-ticiase do empolgamento que provocaram nos Estados Unidos e na Europa, é somente em setembro de 1859 que terá lugar, em Salvador da Bahia, a primeira sessão que conclama publicamente sua adesão ao espiritualismo, na sua versão kardecista (DIÁRIO..., 1853).

De fato, no seu traslado dos Estados Unidos para França, o fértil movimento espiritualis-ta que, na época se auto-qualificava de “religioso”, encontrou seu Codificador na pessoa de um pedágogo de inspiração rousseauiana, Hyppolite Léon Rivail, aliás Allan Kardec. Kardec, formado no espírito da Ilustração, iria formalizar as múltiplas manifestações oriundas do movimento numa doutrina codificada, na qual ele integrou elementos diretamente ligados à dinâmica cultural francesa da época. Assim pode-se perceber, em nível filosófico – além de uma visão educa-cional inspirada pelo Emile de J.J. Rousseau – algumas influências positivistas e evolucionistas oriundas do pensamento de Auguste Comte. Percebe-se ainda um aporte totalmente alheio ao movimento norte-americano, ou seja a tese da reencarnação, provavelmente inspirada pela ideia sobre a palingenesia de P.S. Ballanche, reelaboradas por Charles Fourier, e que eram na época objeto de muitas discussões nos ambientes intelectuais parisienses4. Por outra parte, o Livro dos

Espíritos, primeira obra publicada por Kardec sobre esse tema em 1857, é muito

didático, tanto na sua forma (perguntas/respostas) como no seu conteúdo. Por fim, tanto Kardec quanto seus discípulos emfatizam o fato que o seu espiritismo “é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas como toda e qualquer

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filosofia espiritualista”5 e afirmam sua dimensão “ciêntífica”. Fazendo isso, eles se diferenciam claramente do movimento de cunho religioso surgido dez anos mais cedo no Estado de Nova Iorque, no noroeste dos Estados Unidos.

É nessa nova versão francesa que vai se moldar a primeira militância brasileira a favor do espiritismo. Rapidamente vai surgir uma diversidade de formas mediúnicas, entre as quais a psicografia, que adquiriría imediatamente uma grande impor-tancia. Porém, as primeiras manifestações de escrita “espirítica”, como se dizia na época, estão no Brasil ligadas à dimensão taumatúrgica. Elas correspondem, muito particularmente no Rio de Janeiro dos anos 1870, a receitas ou mensagens recebidas por médiuns que se consideravam encarregados pelos Espíritos da missão de aliviar os sofrimentos físicos ou morais dos seus concidadãos. Por consequência, essas primeiras mensagens foram mandadas do Além-Túmulo por médicos, tais como João Vicente Martins e Benoît Mure, propagadores falecidos, respectivamente português e francês, da homeopatia no Brasil ou ainda, pelo Dr. Dias da Cruz (pai), famoso médico brasileiro morto pouco antes. Os outros escritos de teor moral, político, filosófico ou literário publicados nesse perío-do pelos espíritas e seus simpatizantes, eram assinaperío-dos com o nome de quem os havia escrito de sua mão, sem que seja mencionada a intermediação de um Espírito exterior. Assim, o Dr. Bezerra de Menezes – médico psiquiatra que iria unificar o movimento kardecista brasileiro nos anos 1880 e impulsionar a dimensão religiosa muito cristã que o marca até hoje – escreveu e publicou sob seu nome vários ensaios de análise doutrinal, assim como um tratado relativo à doença mental, de maneira a apoiar “cientificamente” as teses de Kardec sobre a origem palingenésica da loucura e fazer propostas para seu tratamento. Me-nezes publicou também alguns romances com o objetivo de ajudar a difusão da visão de mundo kardecista, à qual tinha aderido.

No segundo decênio do século XX o espiritismo no Brasil começa a ter uma ascensão numérica que só fez aumentar até hoje. É naquele momento que aparecem na literatura oficial do movimento, ou seja os livros publicados pela Federação Espírita Brasileira (F.E.B.), fundada em 1884, alguns escritos literários (ro-mances e poesias), que eram chamados na época de “medianímicos”, nos quais aparecem tanto o nome do medium/instrumento como o nome do(s) Espíríto(s) considerado(s) pelos espíritas como autor(es) verdadeiro(s) da obra criada. Os livros em questão são, de um lado, quatro antologias de textos em verso ou prosa, publicadas entre 1912 e 1919, nas quais aparecem sem ordem precisa os nomes de autores tão conhecidos como Eça de Queiros, Littré, Tolstoï, Victor Hugo, Antero de Quental, Michelet ou Teresa de Ávila. Todos esses escritores se expressaram pela mão do médium Fernando de Lacerda, funcionário da po-lícia portuguesa e espírita, que tinha aportado recentemente no Rio de Janeiro em decorrência dos tumultos políticos provocados em Portugal pelo

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estabe-lecimento da República, e que foi acolhido de braços abertos pela Federação Espírita Brasileira.

Quase simultaneamente apareceu um romance, também editado em 1917 pela FEB, no prefácio do qual Zilda Gama, a autora carnal da obra, dá explicações detalhadas sobre a forma como ela “recebeu” o dito romance. Primeiro, ela afirma que recebeu um grande número de mensagens e conselhos de parte de entes queri-dos faleciqueri-dos (seu pai, uma irmã etc.), até que começou a perceber entidades com as quais não tinha o menor laço de parentesco. Dessa forma, ela recebeu mensagens moralistas ou religiosas, no final das quais ela tinha a surpresa de traçar involuntariamente os “nomes gloriosos” de Allan Kardec ou Pedro de Alcântara.6

O romance (Na Sombra e na Luz) que aqui nos interessa, é assinado postumamente por Victor Hugo. O autor francês, falecido, descreve nele os problemas políticos e afetivos que um amigo jovem foi lhe contar, no tempo em que o próprio Hugo se encontrava exilado em Jersey, e de que maneira tinha confortado o jovem, ao mesmo tempo em que tentava achar uma solução para esse destino trágico. Após ter perdido o contato em vida, o autor espiritual conta como se cruzaram de novo os dois, desencarnados, naqueles lugares celestes onde, sem sofrimentos, vão se resolvendo – segundo os espíritas – muitas situações do-lorosas de antes. O romance de 265 páginas continua com a volta para a vida terrestre do mais jovem dos protagonistas, já que Victor Hugo –considerado como “Espírito Superior” na hierarquia espírita7 – não deveria mais reencar-nar, a menos que fosse para cumprir uma tarefa da mais alta importância para a Humanidade. O autor francês gratificou com sua autoria mais outros quatro romances psicografados pela mesma medium.

Fora esses dois casos primícios, dos anos 1920, quando em Paris a psicanálise comen-çava a levantar o véu do insconsciente e quando os surrealistas inauguravam seu mergulho na “bouche d’ombre”8, encontramos no Brasil alguns bem poucos “romances mediúnicos”, nos quais só aparece o nome de quem os escreveu com a própria mão. É realmente a partir dos anos trinta que começa a grande onda de aparição de autores “desencarnados” e que os médiuns-instrumentos começam a proliferar. Em 1935 o mais célebre entre eles, Francisco Cândido Xavier, chamado Chico Xavier, vai começar sua carreira de escritor “automá-tico”. Após seu falecimento, no ano de 2002, ele continua sendo portador do maior fenômeno mediúnico conhecido no mundo. Escreveu em estado de transe mediúnico mais de 450 obras, traduzidas em cinquenta línguas – contando o esperanto – e com um total de 50.000.000 de exemplares9. Voltarei mais adiante ao conteúdo de sua produção.

Mais recentemente, nos anos 1970 e 1980, a produção de romances mediúnicos só fez aumentar, e nota-se que os autores são mormente mulheres, entre as quais as mais

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célebres, pela amplidão de sua produção ou pela repercussão que tiveram seus escritos, são Yvonne A. Pereira, Zibia Gasparetto e Marilusa M. Vasconcellos. Uma vez que o peso do passado é constitutivo da estrutura reincarnacionista – pedra

angular da doutrina kardecista – todos esses romances ou novelas têm um con-teúdo histórico, mesmo que nenhum deles tenha pretensões de ser fruto desse tipo de pesquisa. De fato, na medida em que esses livros têm a fama de ser inspirados por Espíritos do Além Túmulo, os quais, por pertencer à categoria de “superiores”, são considerados como estando mais perto da Verdade do que os espíritos terrenos, as produções deles não podem de nenhuma maneira ser comparadas aos dados da História escrita pelos mortais, mesmo que esses mortais fossem especialistas da disciplina.

Alguns desses romances põem em cena a vida de indivíduos que não deixaram marcas na ciência histórica e podem, para um olhar exterior ao universo espírita, ser considerados como simples ficções ligadas a um imaginário individual e sem nenhum eco social imediato. Outros romances, ao contrário, tratam de perso-nagens ou acontecimentos bem conhecidos dos historiadores, para os quais apresentam uma versão “inspirada”, ou seja susceptível de suplantar aos olhos de alguns aquilo que a ciência histórica permite estabelecer. Mais ainda porque tais livros são vendidos aos milhares e contribuem, com isso, para uma parte importante na construção do “imaginário sócio-histórico” dos Brasileiros10. Minha intenção não é de confrontar aqui os elementos contidos nesses textos com os

dados históricos reconhecidos que, na maior parte dos casos, os espíritas dizem “completar” e, muito raramente, contestar ou querer modificar. Trata-se, antes de tudo, de pôr em evidência a eventual dinâmica de transformação que pode afetar certas figuras portadoras de símbolos ligados a um passado conhecido. De fato, a partir dos elementos apresentados acima, é possível fazer as seguintes perguntas: O que acontece com os acontecimentos da História e com as per-sonagens que deixaram nela uma marca? O que acontece com suas represen-tações já estruturadas? Para esclarecer melhor minha problemática, vou traçar rapidamente dois eixos sobre os quais se situa a dita literatura. Primeiro, o eixo das personagens históricas que aparecem enquanto atores ou signatários das obras poéticas ou romanescas, produzidas pelo movimento espírita brasileiro. Segundo, o conjunto dos temas e cenários abordados nos romances espíritas que fazem sucesso.

Victor Hugo é uma das mais importantes figuras desse universo, devido provavelmente às simpatias que ele teve em vida para com a doutrina em questão. Ele aparece como autor “espirítico” de numerosas obras (cinco sob a pena de Zilda Gama; oito pelo menos pela mão do médium Divaldo Franco, entre outros) assim como de uma multidão de mensagens poéticas ou morais espalhadas nas antologias de Fernando de Lacerda e de alguns outros médiuns.

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Porém, Victor Hugo não é o único dos europeus e nas antologias se encontra em compa-nhia de compatriotas ou de vizinhos continentais, como os que foram listados acima nas obras de Lacerda. No livro que escrevemos sobre o tema, François Laplantine e eu11, mostramos como existe uma certa divisão do trabalho entre os Europeus, conhecidos ou desconhecidos, cujos Espíritos vêm visitar as reuniões espíritas no Brasil. Assim, os Alemães aparecem muitas vezes como “médicos do céu”, enquanto os Italianos do Cinquecento se dedicam às mediunidades artísticas, particularmente na categoria pictural. Os Franceses, por outra parte, são particularmente bem representados entre os médiuns pintores, através da escola impressionista, e compartilham sobretudo com os Portugueses a autoria dos textos poéticos.

Não obstante, nem todos os autores espirituais são figuras conhecidas. Muitos deles são Espíritos historicamente anônimos, que servem de “mentores” para um ou outro médium; ou seja, são protetores espirituais que permitiram aos médiuns chegar a essa forma de criatividade literária. Tais espíritos se chamam Lucius (Z. Gasparetto), Charles (Y. Pereira) ou Emmanuel (C. Xavier), por exemplo. Chico Xavier foi quem – como já foi dito – registrou um fenômeno de escrita automá-tica fora do comum, mesmo para um médium, e “recebeu” ao longo da sua carreira, fora muito raras excepções, espíritos lusófonos, sejam eles de origem portuguesa ou brasileira. Por esse motivo e alguns outros, o conjunto da sua obra publicada mereceria um estudo muito específico, tanto em nível dos con-teúdos simbólicos quanto dos Espíritos-autores12. Isso porque, além do mais, as recentes estatísticas (2008) fazem dele o escritor mais vendido no Brasil. Por outra parte, apareceu no ano de 1989 um tipo novo de escrita espiritualista: a

au-tobiografia de um desencarnado famoso. Esta não é mais produzida por um médium psicógrafo, inspirado por um “Espírito-guia” que faz parte dos que tiveram um papel de relevância na História; trata-se do testemunho dado em estado de hipnose por um “encarnado” considerado como a reencarnação de uma figura histórica. No caso, trata-se da obra Eu sou Camille Desmoulins, com o subtítulo: “a Revolução francesa revelada por um dos seus líderes”. A obra foi produzida por Herminio de Miranda, um parapsicólogo espiríta carioca, a partir dos relatos feitos em estado de hipnose por Luciano dos Anjos, jornalista, durante uma “terapia das vidas anteriores”. Essa hipnoterapia, inspirada pelas teses sobre reencarnação, foi primeiramente praticada nos Estados Unidos por um homem chamado Morey Bernstein; ele estava convencido de que tinha descoberto a história ante útero de uma paciente sua e publicou um livro sobre essa experiência (BERNSTEIN, 1956). Essa prática começou a se difundir entre os espíritas no Brasil a partir dos anos 1980. Tal experiência permitiria às pessoas que a vivenciam uma regressão psíquica, não somente até à pequena infância ou à vida intra-uterina, mas até a existências anteriores que elas teriam

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vivido ao longo dos séculos. Essa regressão lhes proporcionaria a capacidade de desvelar segredos íntimos de um ou outro personagem conhecido ou, também, alguns fatos históricos ocultados pelos protagonistas.

Em relação aos temas encontrados, há sempre histórias de amor, na maioria das vezes trágicas, mas que podem ter no final um desfecho feliz através das várias reen-carnações, que nos são contadas na sequência de várias obras, como por exemplo as que foram inspiradas a Yvonne Pereira. No caso, trata-se de três romances que se passam, todos eles, na França dos séculos XVI a XVIII e cujos respectivos títulos são: Nas voragens do pecado, O cavaleiro de Numiers e O Drama da

Bretanha. Assim podemos seguir as mesmas figuras através das várias

encar-nações e reencarencar-nações, cheias de aventuras e desditas, até a redenção final. Os contextos históricos mais recorrentes são a França e a Itália dos séculos XVII, XVIII

e XIX, assim como o Egito dos Faraós e a Roma dos Césares. O contexto na-cional estava menos presente até os anos 1990, mas nos dois últimos decênios se perfila uma dinâmica que tende a recentrar os Espíritos-autores e os temas históricos para o que é propriamente brasileiro. Porém, até hoje trata-se de uma simples tendência dentro de um universo simbólico, e cuja explicação implícita pode ser a reafirmação de que a Europa faz parte, ela também, das raízes constitutivas dessa cultura plural na qual se mesclaram tantos homens das Américas, da Europa e da África, cujos descendentes reivindicam cada vez mais suas distantes raízes identitárias.

No seu livro Le miroir d’Hérodote (1985)13 o historiador François Hartog enfatizava o fato que os historiadores estão passando de uma História das Mentalidades a uma História do Imaginário. Ou seja, como em outras disciplinas, o saber his-tórico passa por uma dinâmica nova, que faz do irracional o complemento do racional na apreensão da realidade e não mais, como foi o caso durante tanto tempo, seu adversário. No Brasil e particularmente no universo literário espírita, assistimos ao desenrolar de um imaginário sobre a História e, através dele, a uma reapropriação e reinterpretação por um grupo significativo de pessoas, de dados e personagens, brasileiros ou estrangeiros, que foram tratados pela ciên-cia histórica. Esse movimento em direção à História não é, contudo, específico dos kardecistas. O observador pode constatar que nos vinte últimos anos existe uma vontade quase generalizada de redescoberta do passado. Ela se expressa de maneiras diversas segundo os grupos implicados, mas parece representar para todos o contrapeso simbólico de um velho esquema positivista que impregnou a sociedade brasileira desde o século XIX e que foi retomado e repetido pelos militares durante mais de dois decênios, através de um discurso onde só o fu-turo parecia importante. Esse confisco do passado criou uma reação que vai no sentido de uma reapropriação imaginária da História que parece ter-lhes sido usurpada. Frente a essa dinâmica nacional, porém, a especificidade da

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reapro-priação espírita é que ela se afirma como a “revelação” – no sentido sagrado do termo – de uma Verdade histórica intangível e até então desconhecida.

No segundo tomo de sua Filosofia das formas simbólicas, que ele consagrou às formas míticas, Ernst Cassirer (2006) nota que é próprio do mito encenar figuras que são, obrigatoriamente, portadoras de uma crença. Por isso, eu postulo que no caso do espiritismo brasileiro estamos frente a uma reapropriação mítica da História. Esta reapropriação inverte a costumeira sequência que fazia do mito o termo primevo e da História o termo derivado. Esse exemplo se constitui, de fato, numa ilustração da tese de Cassirer, segundo a qual o mito, longe de ser a expressão de um estágio primitivo do pensamento humano, é um dos fatores básicos na dinâmica de formação das representações. No caso em questão, a reapropriação passa primeiro por um suporte escrito, cuja leitura e difusão posterior pode dar lugar a uma variedade de intepretações orais, cada vez mais precisas, que dão um sentido novo aos elementos do presente mais imediato e mais inesperado. Por outra parte, segundo Jung e Kerenyi (1980) a mitologia exerce – para quem a recebe – a missão de tornar inteligível, numa forma bem clara, o conjunto de uma situação (p. 18). Vamos ver, a partir de um exemplo particular colhido na literatura espírita brasileira e que vai ilustrar essa proposta teórica, de que maneira a exegese dos romances mediúnicos participa, igual que o mito, do surgimento de um novo sentido para a realidade presente, e como disso decorre sua “pregnância simbólica”, no sentido de Cassirer.

CONFIDÊNCIAS DE UM INCONFIDENTE. SÃO PAULO: EDICEL, 1985 Livro escrito por Marilusa Moreira Vasconcellos sob a inspiração do Espírito de

To-más Antônio Gonzaga, protagonista ele mesmo de acontecimentos históricos dos quais desvela a “face oculta”. Publicada em 1985, essa obra chegou em dezembro de 1986 à sua décima reedição, com mais de 45.000 exemplares vendidos.

Após ter traçado rapidamente alguns acontecimentos da História brasileira do século XVIII, o romance chega rapidamente ao que foi considerado, naquele tempo, como um movimento fracassado, mas que passou a ser ao longo dos anos e para uma maioria de Brasileiros, o ato fundador da Nação, através do qual o Brasil colônia se revoltou contra a tutela portuguesa e começou seu caminho até a Independência. Estou falando da Inconfidência Mineira, cujo alvo era a queda do poder colonial e que foi descoberta em 1789, por culpa de um traidor da dita causa, e duramente reprimida através do enforcamento e esquartejamento de seu chefe, Tiradentes, em 1792, e do exílio de grande parte dos conjurados para as possessões portuguesas na África. Tiradentes se tornou um símbolo nacional e o dia de sua execução, 21 de abril, é feriado em todo o país.

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Porém, em 1985, ano de publicação do romance em questão, o Brasil viveu uma fortíssima comoção nacional com a doença, às vésperas de sua tomada de posse como novo presidente da República, de Tancredo Neves, e logo em seguida com sua morte. A escolha de Tancredo Neves tinha resultado de uma longa negociação entre os dois partidos políticos14 e foi pensada para acabar com os vinte anos de ditadura militar autoritária. Essa mudança representava para a maior parte dos Brasilei-ros uma esperança de reiniciar, através de um acordo nacional, o caminho até a democracia. A doença de Tancredo deu imediatamente lugar, entre as numerosas correntes mágico-religiosas que existem no Brasil, à colocação espetacular de todos os elementos materiais e simbólicos capazes de se opôr a esse destino fu-nesto. Nos meses seguintes, o desfecho fatal e a chegada no poder do seu suplente – José Sarney da ARENA – fizeram florescer em todos os ambientes uma série de interpretações, cujo objetivo era dar sentido a essa peça pregada pelo destino. Diante disso, alguns círculos espíritas apoiados no seu credo e no conteúdo do romance

de Marilusa Vasconcellos, forjaram aos poucos a sua própria interpretação dos fatos. Os diversos detalhes exegéticos me foram proporcionados por vários adeptos do kardecismo que encontrei entre 1987 e 1989, em São Paulo, Salvador e Uberaba,15 durante as pesquisas que realizei nesses locais sobre o movimento social espírita. Os vários relatos podem ser resumidos da seguinte maneira: Todas as infelicidades políticas atuais (anos 80) do Brasil tem a ver com a repressão

feita contra os membros da Inconfidência Mineira. Elas terminaram somente quando todos os protagonistas, ou seja os 12 conjurados, inclusive o traidor, passaram por uma nova encarnação.

Parece que, além do que está escrito no livro, o Espírito-autor (Tomás A. Gonzaga) teria dado a outros médiuns além de Marilusa Vasconcellos, alguns detalhes sobre a nova identidade dos espíritos que haviam reencarnado. Nesse ponto é possível registrar variações fortes de um intérprete para outro. Existe, porém, uma unanimidade em torno das representações daquilo que teria motivado a morte de Tancredo. Ele teria sido nada menos do que a reencarnação do traidor e tinha que pagar essa

in-fâmia na sua existência recente.

É pelas circunstâncias de sua morte que Tancredo, para os espíritas, teria se redimido: Entre o momento do anúncio da doença e sua morte, o futuro presidente passou por sete cirur-gias ineficazes. Acontece que os sete pedaços do corpo de Tiradentes, após o suplício, foram depositados ao longo da estrada que vai do Rio (lugar da execução) até São José del Rei, cidade onde tinha nascido e que hoje leva seu nome. Essa mesma estrada passa pela cidade natal de Trancredo Neves, São João del Rei, onde esse último está agora sepultado.

Outro elemento que veio confortar essa interpretação espírita e que também se insere na lei das correspondências, tem a ver com a escolha do seu vice-presidente, que foi feita, como se mencionou, após muitas consultas e negociações.

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Ele não tinha outra escolha – me disseram –, porque tinha na vida anterior se endividado simbolicamente com José Sarney. Esse último seria, por sua vez, a reencarnação do amigo maranhense em casa de quem o traidor, Silvério dos Reis, se refugiu na sua fuga até o Norte, para escapar da vingança dos seus ex-companheiros de inconfidência. Então era necessário que fosse resolvido na vida atual esse velho passivo de mais dois séculos.

Fica claro que os espíritas não são os únicos no Brasil a utilizar a “lei das correspondên-cias” nas suas interpretações da realidade. Observa-se porém, nesse universo

simbólico particular, a criação do que Cassirer chamou um “espaço mediano”16,

lugar de construção de uma explicação coerente com os elementos fundamentais da doutrina (a sequência reencarnacionista e a dinâmica evolucionista que a acompanha). Isso põe em evidência a forma como o mito pode, numa sociedade histórica, assumir para certas pessoas um papel novo de protetor contra uma realidade angustiante e complexa.

Para fechar essa análise fazendo um corte para o presente, eu diria que em vista da mudança para melhor das condições políticas do Brasil desde então, pode-se supôr que “todos os Inconfidentes já reencarnaram” e que o peso dessa História mítica dificilmente poderá servir de explicação aos espíritas para qualquer acon-tecimento que surja em forma inesperada. Parece que esse ciclo fechou de vez.

BETWEEN HISTORY AND MYTH:

DYNAMICS OF SPIRITUALIST LITERATURE IN BRAZIL

Abstract: this article examines, first,the trajectory ofspiritist literature-which

isinsepa-rable from thehistorical development ofspiritualismhimself, at home andabroad. Secondly, using thecategories of E. Cassirer´s thought, it makes an analisys of the mythical reappropriationthat the new spritualist literatureperforms of significant eventsin Brazil´s recent history. Similarly to themyth, some recent spiritualist novelscontribute tothe emergenceof newand unexpected meanings forreality.

Keywords: Spiritualism. Spiritist Literature. Religion. Literature. History of Brazil. Notas

1 Assim um golpe correspondía à letra A, dois à letra B, quinze golpes à letra O etc...

2 Durante uma palestra sobre esse tema dada na PUC de Goiânia em novembro de 2011, um

professor presente levantou a possibilidade que o Léon Rivail fosse buscar essa ideia da reencarnação no trabalho de Platão. Não soube responder no momento porque carecia dos elementos que me permitissem inferir essa influência filosófica lontana. Hoje, após ter revisitado os elementos históricos parece que a influência foi mesmo de autores bem mais próximos.

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4 Ver o prefácio de Na Sombra e na Luz (GAMA, 1925, p. 10-2). Importante dizer que esse

livro foi reeditado incessantemente pela FEB até hoje.

5 Essa hierarquia comporta, segundo os livros de referência e a maioria dos entrevistados, três

níveis: os Espíritos inferiores, que se encontram no começo do ciclo das reencarnações e por isso são ainda imperfeitos; os Espíritos medianos, que estão desenvolvendo suas capacidades de melhoria e os Espíritos superiores que não mais se reencarnam porque cumpriram o ciclo e entraram na Luz. Em certas passagens do Livro dos Espíritos Kardec os classifica como Espíritos “imperfeitos”, “bons” e “puros”.

6 De autoria de Victor Hugo, o poeta cunha essa fórmula nas Contemplações para expressar

o incomensuravel; ela será retomada mais tarde por André Breton para falar dos mistérios dos “campos magnéticos”.

7 Cifras informadas pela FEB no seu site <www.febnet.com>. 8 Sobre essa noção, ver Castoriadis (1975).

9 Cf. Aubrée e Laplantine (1990; 2009).

10 O atual desenvolvimento dos estudos universitérios sobre o espiritismo, já rendiram

algu-mas análises novedosas tais, por exemplo, os trabalhos de: Stoll (2003), Lewgoy (2004) e Fernandes (2008).

11 Versão brasileira: O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo

Horizonte: Ed. da UFMG, 1999.

12 ARENA, aliada dos militares, e PMBD que representava os setores de oposição à ditadura. 13 Cidade de residência de Chico Xavier e considerada, na época, como a Roma do espiritismo

brasileiro.

14 Ou seja um espaço próprio do mito, flutuante e por isso susceptível de ajudar na compreensão

das dinámicas complexas (CASSIRER, 2001; 2006). Referências

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Referências

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