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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em História Regiane Luzia Lopes

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação em História

Regiane Luzia Lopes

Capoeira é Liberdade!

A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora

na Cidade de São Paulo (1976-2004)

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação em História

Regiane Luzia Lopes

Capoeira é Liberdade!

A Experiência Político-Cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora

na Cidade de São Paulo (1976-2004)

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social, sob a orientação da Profª Drª Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

_____________________________________

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AGRADECIMENTOS

“E aprendi que se depende sempre de tanta, muita, diferente gente, toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar. É tão bonito quando a gente pisa firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos. E é tão bonito quando a gente vai à vida nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração. O coração!”

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Ufa! Consegui! Depois de pouco mais de dois anos, cheguei a reta final dessa etapa da minha vida, que por vezes, julguei que não seria possível concluir. Embora o processo de pesquisa e principalmente de escrita, seja um caminho solitário, sempre tive a certeza de estar acompanhada por bons amigos. Esse momento é deveras especial para mim, o momento de compartilhar o mérito dessa empreita com todos que me ajudaram, me iluminaram, me inspiraram e torceram por mim.

Gostaria de agradecer aos meus pais Eliezer José Lopes e Sebastiana Luzia Teixeira a quem devo a firmeza do meu caráter. Pelas orações constantes de minha mãe e pela ajuda de meu pai. Ao meu querido irmão Luis Fernando, de quem tenho o privilégio de ser amiga e a quem devo o apoio financeiro e humano, sem os quais não teria podido trilhar esse caminho. Obrigada!

Ao meu amor Júlio de Souza, que me incentivou intensamente a continuar os estudos, garantiu financeiramente a minha permanência no mestrado e esteve comigo em todos os momentos. Obrigada pela tolerância, paciência e pelo carinho.

Às minhas irmãs Angelica, Marta e ao meu irmão Aron pela torcida. À tia Lizete pelas orações e risos. À Cassilda, minha mãe emprestada pela força e à Silvana pelo apoio. À Dona Dirce e ao seu José pelo carinho.

Agradeço carinhosamente à minha orientadora Profª Maria do Rosário da Cunha Peixoto por ter acreditado no meu projeto e ter me ensinado a importância da experiência dos sujeitos com quem estamos dialogando. Obrigada pela atenção, orientação e carinho.

Agradeço à Comissão de Bolsas do Programa de História por ter selecionado meu

projeto quando eu não tinha mais condições de me manter no curso. Ao CNPq por ter apoiado esse projeto, assegurando sua conclusão.

À Viviane e Marcelo, que de longe e de perto participaram de todo o processo, incentivando, me ouvindo, lendo e revisando tudo o que escrevia. Sem vocês eu não teria chegado até aqui. Aos amigos que a PUC me deu: Marcelo, pela alegria e companherismo que fizeram da PUC um lugar muitas vezes divertido; Conceição, minha parceira e meus queridos Adriano, Luciano, Rafael e Felipe.

Ao Junior, meu amigo na vida, obrigada! Aos amigos que da Unesp continuaram a me inspirar: meu preto Jason, o apaixonado Cristiano e o querido Zé. E aos que sempre torceram por mim: Cassilda, Mali, Bel, Cris, Lu e Hugo: vocês continuam no meu coração.

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Às professoras que me acompanharam no mestrado e muito me ensinaram, Maria Antonieta Antonacci, Maria Odila e Vera L.Vieira. À paciência e dedicação da professora Estefânia Canguçu, obrigada!

Aos profissionais que tive a honra de conhecer e aprender e me inspiram sempre: Elisabeth Gonçalves, Irene Gerassi e Alexandre Fernandes - LeLê. À Denise Amaral que por todos esses anos permitiu que a Fazendinha fosse um apoio seguro.

Quero agradecer à direção e coordenação da E.E Prof. Dr. Laerte Ramos de Carvalho pelo apoio sem o qual tudo teria sido mais difícil. Aos meus colegas de trabalho pela compreensão e, principalmente, aos meus alunos que me lembram a todo o dia que preciso sempre aprender para melhor compartilhar com eles.

Bom, meu carinho e agradecimento a quem deu vida a essa pesquisa: os narradores. À Mestre Eufraudísio e Magnólia um agradecimento sem fim por ter compartilhado conosco a experiência pessoal, familiar e da Associação com tanta consideração e generosidade. Obrigada! À Emerson pelo carinho e prontidão na entrevista, conversas e produção das ilustrações. À Rosana, Luciene, Michel, João, Sombra e Marcelo. Sem a disponibilidade e generosidade de vocês esse trabalho não teria sido possível. Obrigada!

Aos outros narradores que nos bastidores colaboraram muito nesse trabalho: Doge, Lucas, Rogério e a todos os alunos e amigos da Corrente Libertadora, os de ontem, os de hoje e os de sempre. Agradeço a Marcos Veltri e Laura Carvalho por terem me cedido parte significativa das fontes aqui utilizadas e pelo apoio indispensável e à Ms. Moreira que em parceria com Ms. Maurício nos deu a música-título desta dissertação.

À pessoa que inspirou esse trabalho, Mestre Tigrão. Trago comigo a absoluta certeza de que após ter me tornado sua aluna sou uma pessoa, uma profissional e uma cidadã imensamente melhor. À você devo tudo o que de melhor aprendi e ainda estou aprendendo sobre respeito, postura política, educação e generosidade. Esse trabalho é seu! E como grande educador que é, espero que considere os equívocos desse trabalho como passos do meu processo de aprendizagem. IÊ, VIVA MEU MESTRE!

Sobretudo, quero agradecer a meu amigo mais íntimo, sem o qual não teria as

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RESUMO

A presente dissertação busca dar visibilidade a aspectos da experiência político-cultural da Associação Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo entre os anos de 1976 a 2004. Atuando, sobretudo, na periferia da cidade a partir da prática da capoeira, a Associação fez desta, um instrumento de articulação, mobilização e intervenção social junto a comunidade. Enfrentando cotidianamente as dificuldades financeiro-administrativas de uma

Associação de cunho popular, os irmãos Modesto – Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio, Ms.

Tigrão e Magnólia – vivenciaram as tensões e conflitos em torno da concepção e técnica da

capoeira, mediante a urgência em responder ao movimento contínuo de novas demandas sociais. A participação junto aos Movimentos Populares nos anos 70 e 80 contribuiu para a construção do posicionamento político da Associação. Porém, a aproximação nas discussões, ações e lutas concernentes à garantia de direitos - principalmente no que tange o atendimento à crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social nos anos 90 - acirrou as diferenças internas, incorrendo em rompimentos e definição de novas diretrizes na Associação. Essa conjuntura ocasionou o fortalecimento da posição de Ms Tigrão e tornou o processo de aprendizagem da capoeira o cerne da atuação político-cultural da Associação. Concentramos nossas preocupações no processo de aprendizagem da capoeira como instrumento de formação do indivíduo e nos aspectos culturais e políticos que contribuíram para que a Associação escolhesse o caminho de parcerias com a Sociedade Civil Organizada e com o Poder Público enquanto estratégia de ampliação, acessibilidade e gratuidade de seu atendimento, tendo em vista contribuir para a construção da cidadania.

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ABSTRACT

This statement intends to highlight the cultural-political experience of the ‘Associação

Cultural Corrente Libertadora’ (Cultural Association: Liberation Movement) in the city of São Paulo, from 1976 to 2004. Being particularly involved with the practice of Capoeira in the city outskirts, this Association used it as an instrument for the articulation, mobilization and intervention in the social sphere of the community. While facing administrative and financial

difficulties resulting from the popular appeal of this group, the brothers Modesto – Ms.

Maurício, Ms. Eufradísio, Ms. Tigrão and Magnólia, experienced the pressure and conflicts related to the Capoeira concepts and techniques, aware of the need to respond to a continued

movement of social demands. Participation in these popular movements in the 70’s and 80’s

contributed to the development of a political positioning of this Association, but the closer contact from mutual talks, actions and struggles concerning the guarantee of rights, mainly as

to the care of children and adolescents in personal and social risk situations in the 90’s,

intensified the inner differences, which resulted in disruption and in redefinition of the rules and regulations of the Association. This context led to the strengthening of Ms.Tigrão and made the learning process of Capoeira the central point of the cultural-political performance of the Asssociation. We have focussed our attention on the learning process of Capoeira as a tool for character formation as well as on the cultural and political aspects which directed us towards building partnerships with the Organized Civil Society and the Public Sector as a strategy for expansion and accessibility to services that are free of charge - contributing to the formation of citizenship.

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SUMÁRIO

Apresentação...01

Capítulo I

“Da sombra da Barriguda aos Movimentos Populares”

1. Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora ...26

1.1.Trabalho e Cultura no Processo de Migração da Família Modesto...29

1.2.Cultura e Política na Prática de Capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora...50

1.3.O Processo de Reestruturação Administrativa e Pedagógica da Corrente Libertadora...75

Capítulo II

“Meu Aluno É Meu Mestre”

2. A Vivência de Capoeira de Mestre Tigrão...92

Capítulo III

“Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações”

3. Projetos e Parcerias da Associação Cultural Corrente Libertadora...135

3.1. Das Parcerias com o Poder Público...140

3.2. Das Parcerias com a Sociedade Civil...156

4. Considerações Finais...185

5. Fontes...189

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APRESENTAÇÃO

“Um dia desses, comecei imaginar, que força é essa, que nos faz continuar. Parece que corre nas veias, não consigo explicar. Força que traz energia pra cantar e pra jogar. Que força é essa, que está no ar?É dança, é arte, é cultura popular. É a força da capoeira, essa arte milenar. Na roda da capoeira, na vibração do instrumento, o cantador com sua voz, faz ecoar o sentimento. Então que surge essa força, que acompanha o jogador, que está em cada um de nós, dentro do nosso interior. Que força é essa, que está no ar?É dança, é arte, é cultura popular. Força que vêm de uma luta, que é patrimônio cultural. É brincadeira que se dança e hoje é esporte nacional. Já foi arma para o negro conquistar a liberdade, pra hoje, nós capoeiristas jogarmos com felicidade.

Diógenes Argueles Francisco, 20091

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Quando me vi diante da responsabilidade de escrever essa apresentação entrei inesperadamente em um diálogo com as lembranças do processo inicial da pesquisa que agora aqui é apresentada. Estava muito preocupada em demonstrar o caminho metodológico que desenvolvi durante a pesquisa: as perspectivas históricas, as dificuldades teóricas e conceituais que encontrei, o diálogo com as fontes, as especificidades de trabalhar com a História Oral, etc. No entanto, ao participar de um evento promovido pela Secretaria Municipal da Cultura do Município em Agosto de 2010, me dei conta das razões pelas quais iniciei esse processo de pesquisa.

Na ocasião, fui convidada pelo Ms. Tigrão da Associação Cultural Corrente

Libertadora para fazer uma palestra sobre a capoeira no século XIX, juntamente com outros palestrantes que discorreriam sobre a História do Berimbau e sobre o Candomblé. O público

presente no evento era majoritariamente de capoeiristas jovens – crianças e adolescentes – da

periferia de Santo Amaro (distritos de Capela do Socorro e Parelheiros, distritos de Cidade Ademar e Jd. Ângela, entre outros).

Como expectadora ouvi os demais palestrantes e interagi nas atividades propostas. No

decorrer das atividades o aluno da Associação Cultural Corrente Libertadora, Diógenes A.

Francisco cantou a ladainha Força citada em nossa epígrafe e respondendo ao refrão que

força é essa que está no ar?É arte, é dança, é cultura popular, pude por um momento ver personificado o meu objeto de estudo.

O objeto de estudo, entretanto, não era um objeto. Eram pessoas, sujeitos históricos que vivenciam cotidianamente a prática da capoeira e que através e pela prática desta desenvolvem trabalhos dentro de uma perspectiva pedagógica pautada na acolhida, respeito e construção conjunta do conhecimento.

O monitor Diógenes A. Francisco personifica essa proposta pedagógica desenvolvida

por Ms Tigrão, bem como o trabalho de intervenção sócio-cultural que a Associação Cultural

Corrente Libertadora empreende há mais de trinta anos na Zona Sul da cidade de São Paulo, que na pesquisa que segue busco apresentar e analisar, propondo uma reflexão sobre essa experiência na cidade.

A apresentação de Diógenes é significativa para a pesquisa desenvolvida porque, de

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é um multiplicador e/ou monitor de capoeira. Dentro do trabalho desenvolvido pela Corrente

Libertadora, isso significa que ele ministra oficinas de capoeira, embora não tenha uma graduação de instrutor, professor ou contra-mestre, como é comumente aceito no mundo da capoeiragem e/ou definido pela Federação Paulista de Capoeira.

Outro aspecto relevante é que o aluno comanda a roda de capoeira puxando (cantando) sua própria composição, ladainha, sem a necessidade que o Ms. Tigrão, mestre representante da Associação Cultural Corrente Libertadora, intervenha. A atuação de Diógenes no Projeto São Paulo é Uma Escola indica o processo de profissionalização do aluno e, por outro lado, a garantia de gratuidade para as crianças e adolescentes atendidas pelo projeto, visto que o projeto é subsidiado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Esses três pontos fazem parte de uma perspectiva pedagógica mais ampla, mas que nos ajuda a compartilhar aqui, as razões que motivaram o desenvolvimento dessa dissertação. Estamos pontuando os aspectos pedagógicos, pois foram eles que motivaram e nortearam a pesquisa no primeiro momento.

No contato com a Corrente Libertadora por 15 anos, sempre nos chamou a atenção o

fato de se aprender a jogar capoeira, tocar os instrumentos musicais – berimbau, pandeiro,

atabaque e agogô -, dançar maculelê, samba de roda e ainda se envolver em outras atividades de formação, sem obedecer necessariamente a uma sistematização de aula e treino, como comumente ocorre na maioria das academias e grupos de capoeira.

Outro aspecto que nos chamava a atenção era a convivência entre alunos e entre alunos e mestre. Nesses anos, participando de aula no mesmo espaço e ao mesmo tempo com

meninos e meninas em situação de rua, portadores de necessidades especiais – principalmente

auditivos e mentais – alunos de faixa etária diversificada (de crianças de 6 anos a senhores e

senhoras com mais de 70 anos), jovens em conflito com a lei, jovens estudantes, profissionais liberais, enfim, muitas pessoas e portanto, uma gama infinita de possibilidades de estabelecer relações afetivas, culturais e profissionais, presenciamos uma convivência pautada na inclusão e respeito à pluralidade.

Esses aspectos do trabalho desenvolvido pela Associação Cultural Corrente

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cantando sua ladainha em um espaço público da região: o Paço Cultural Júlio Guerra, popularmente conhecido como Casa Amarela, cravada no coração do Largo 13 de Maio.

A imagem do aluno que ensina e o mestre que aprende em um movimento de circularidade de saberes que com a prática da capoeira pode se transformar em conhecimento e possibilitar que jovens alunos como Diógenes possam atuar profissionalmente como educadores sociais é, provavelmente, um dos elementos mais particulares da proposta da

Associação.

O Mestre de capoeira é um mediador. Compartilhar, talvez seja a palavra mais adequada para caracterizar o mecanismo de acolhimento e aprendizado que ocorre nessa

relação de aprendizagem, que não nos parece unilateral – mestre, aluno –, mas que se vivencia

em um diálogo constante e contínuo entre quem ensina e quem aprende.

Não obstante, o fato de tratar-se de um diálogo intrínseco à prática cotidiana da capoeira, acaba por configurar-se em uma proposta pedagógica aberta, passível de transformações, de alterações, mediante as novas demandas, novas perguntas, inquietações, interesses e necessidades dos alunos. Nesse processo todos aprendem, por que não se está preso a um ideal de tradição ou modelo pedagógico, mas antes, à realidade cultural e social dos indivíduos envolvidos na prática da capoeira.

Como se desenvolve esse processo de aprendizagem foi o que nos motivou a pesquisar

a experiência de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora e foi através desse

desejo que chegamos ao processo seletivo da Pós-Graduação em História da PUC-SP, com o apoio da profª Drª Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

O projeto inicial, intitulado Capoeira, Pedagogia da Inclusão, surgiu com muita

clareza porque pareceu-nos ser o elemento que particularizava a capoeira praticada pela

Corrente Libertadora.

Entretanto, a pesquisa ampliou essa percepção inicial através de temas que se

entrecruzavam e que pormenorizavam características da experiência da Associação, que no

primeiro momento não ponderamos como eixos temáticos, principalmente por chamar atenção o aspecto pedagógico. Dessa forma, o título da pesquisa ganhou substantividade ao

denominar-se definitivamente como Capoeira é Liberdade! A Experiência

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A alteração da primeira parte do título, Capoeira é Liberdade! é o resultado em parte de preocupações conceituais observadas pela banca de qualificação e, por outro lado, revela o interesse em evidenciar o sentido de luta por transformações sociais através da cultura, o que

nos remete à trajetória política da Associação. Utilizamos três versos da música Capoeira é

Liberdade (Ms. Maurício e Ms. Moreira, 1981) como epígrafes dos capítulos com a pretensão de deixar registrados esses significados e como uma modesta homenagem ao precursor da

Corrente Libertadora, Mestre Maurício.

Estarmos no curso de pós-graduação estudando um tema, uma experiência da qual, em muitos momentos, fomos sujeitos, protagonistas, foi e ainda é complexa, porque o nosso olhar está embebecido da prática. No entanto, esse conhecer através da prática também possibilitou ao longo da pesquisa desconstruir, discutir e reafirmar aspectos dessa experiência.

Nossa preocupação premente era de não nos distanciarmos demasiadamente do objeto tornando-o abstrato e, concomitantemente, não incorrer em um trabalho tendencioso e parcial. Entretanto, a escolha do tema por si só já era parcial e foi uma escolha política, obviamente permeada por muita afetividade, mas comprometida com o interesse de fazer uma reflexão histórica sobre aquela prática e colaborar para a visibilidade dessa experiência popular.

Acreditamos que o aspecto parcial que a pesquisa poderia ter assumido foi minimizado pelo próprio fazer histórico: a pesquisa, as fontes, as leituras, a orientação e a reflexão foram fundamentais nesse processo, não apenas assegurando os princípios metodológicos do trabalho, mas permitindo realizar com coerência a escolha do que queria se apresentar na dissertação.

Desde o início percebemos que nossa fonte primária seria as entrevistas com os

fundadores, alunos e colaboradores da Corrente Libertadora.2 Tomar os depoimentos orais

como fonte primária e a experiência político-cultural da Associação como tema central da

pesquisa ia de encontro com as preocupações e produções de pesquisadores de parte significativa do corpo docente do programa de Pós-Graduação em História da PUC e, paralelamente, contemplava o objetivo de pesquisar em diálogo com os protagonistas diretos dessa experiência.

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Perseguindo o desejo de dialogar com os sujeitos de nossa pesquisa e ao mesmo tempo marcar a presença do historiador no processo de análise, problematização e considerações, os

trabalhos de Alessandro Portelli nos foram fundamentais3. O respeito, as especificidades, a

ética, a subjetividade e a historicidade inerentes à produção das fontes orais são elementos, aos quais, o pesquisador deve sempre estar atento. Estamos certos de que o caminho de aprendizagem nesse campo ainda é longo para nós, mas acreditamos que para esse primeiro exercício nosso objetivo foi alcançado.

O contato com as fontes nos fizeram perceber que a proposta pedagógica desenvolvida por Ms. Tigrão que tanto nos interessava estava alicerçada em uma vivência política e cultural da Associação desde sua fundação em 1976. Pensando nisso, o recorte temporal inicialmente delimitado em 1989-2008 recuou para 1976-2004.

A alteração no recorte temporal se deu no próprio processo de construção da dissertação e responde a necessidade de compreendermos o movimento de construção da

perspectiva de trabalho político-cultural da Corrente Libertadora.

Com o caminhar da pesquisa pudemos ter clareza que o recorte temporal inicial estava carregado de afetividade, visto que, como acima mencionamos, participamos desse processo como sujeitos ativos, quer dizer, como aluna que vivenciou na prática da capoeira o desenvolvimento da pedagogia proposta.

A Associação Cultural Corrente Libertadora fundada em 1976,4 na Vila São José, Distrito de Capela do Socorro, permaneceu com sua Sede nesse bairro da periferia de Santo Amaro até 1988, ano em que num domingo frio assistimos pela primeira vez uma

apresentação de capoeira da Corrente Libertadora.

Entretanto, a prática da capoeira aconteceu mais tarde e de maneira inusitada no início dos anos noventa, quando reencontrei Mestre Tigrão ministrando aulas de capoeira na Casa de Cultura de Santo Amaro.

3 Ver: Referências Bibliográficas, p. 195.

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Ali comecei de fato a treinar e na minha detraída percepção nada indicava que se tratava de um trabalho diferenciado. Somente alguns meses depois, estreitaram

definitivamente meus laços de respeito, camaradagem e trabalho com a Corrente Libertadora.

Convidada por Ms. Tigrão para participar de uma apresentação de capoeira em um

domingo chuvoso e triste do ano de 1994, tive a experiência que me ligaria afetivamente à

Associação. Naquela tarde, fomos a uma casa de recuperação para dependentes químicos, onde um adolescente integrante do grupo estava em tratamento.

Jogamos capoeira, os internos brincaram capoeira conosco, dançamos e cantamos com samba de roda, mas a figura mítica do mestre que comandava a roda não estava presente: o mestre era ali mais um que compartilhava a alegria daquele momento. Distanciada a alguns anos desse acontecimento pude recuperar as sensações e a importância dessa memória para minha vida pessoal e profissional.

O vínculo com a capoeira e com a Associação Cultural Corrente Libertadora se deu

de maneira natural, quase imperceptível na prática cotidiana dos treinos e encontros culturais. Quase não atentei para o fato de que, à medida que aprendia, também ensinava e quando ensinava também aprendia. Só tive a consciência exata dessa condição quando em função da capoeira fui convidada a ministrar aulas de capoeira em um projeto sócio-cultural subsidiado

pela extinta Secretaria do Menor, o Projeto Circo Escola.

Distanciada no tempo entre a minha atuação na Corrente Libertadora e a decisão em

cursar o mestrado em História Social, a capoeira se colocou como proposta de projeto de pesquisa; entretanto, mais do que a capoeira enquanto manifestação cultural, a experiência de

capoeira da Corrente Libertadora na cidade de São Paulo me pareceu irresistível mediante a

observação de algumas características específicas da Associação: sua fundação pautada em

elementos da organização familiar e comunitária, a relação estreita com os movimentos populares da década de 1970, a atuação político-cultural na periferia da cidade e o desenvolvimento de uma proposta de ensino de capoeira tendo em vista a inclusão de grupos sociais comumente excluídos desta, por questões sociais, limitações físicas e psicológicas.

Assim, a vida acadêmica se fez uma extensão da roda de capoeira: um jogo apertado, um diálogo constante, um prazer ressabiado, uma malícia no corpo. Tomar a capoeira

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social, exigiu escolhas metodológicas e políticas, inclusive, recuar no recorte temporal e definir eixos temáticos que possibilitassem um olhar não apenas sobre a capoeira, mas sobre

as estratégias desenvolvidas pela Associação para a continuidade de seu trabalho.

Esse deslocamento de preocupações – da proposta pedagógica para a atuação

político-cultural da Associação – é fundamental para entendermos a disposição e construção dos

capítulos da dissertação que aqui são apresentados. A dissertação não é, pois, um estudo ontológico ou etnográfico sobre a capoeira. Não faz parte do nosso campo de discussão nesse trabalho a origem da capoeira, uma definição de capoeira, uma descrição dos estilos de

capoeira, etc. Esses temas permeiam nossa reflexão a partir da experiência da Associação na

cidade de São Paulo como questões que colaboram para a problematização e a compreensão dessa experiência, não como objeto de estudo ou eixos temáticos.

Nossa preocupação com a capoeira nesse trabalho, diz respeito a forma como ela foi

apropriada pela Associação Cultural Corrente Libertadora como instrumento de intervenção

social. Mais do que um olhar antropológico sobre a capoeira, nossa intenção foi a de trazer à cena as possibilidades políticas que a capoeira propicia através de sua linguagem plural, que agrega musicalidade, destreza de luta, performance e tradição oral.

Nossa atenção com a formação política e cultural dos fundadores da Associação, com

a prática pedagógica para o ensino da capoeira e as estratégias da atuação e manutenção da

Associação, se colocaram no diálogo com as fontes e no caminho metodológico que tentamos trilhar.

Pressupomos para isso, quatro esferas de estudo e análise integrada: bibliografia especializada para sustentação teórica e histórica sobre a capoeira e sobre o período estudado (1976-2004); análise dos documentos institucionais relacionados aos projetos desenvolvidos

pela Associação Cultural Corrente Libertadora em parceria com as Secretarias do Estado e

do Município de São Paulo: Esporte e Lazer, Cultura, Saúde e Assistência social; entrevistas

com os fundadores, colaboradores e alunos da Associação e experiência prática da capoeira,

em uma vivência junto ao núcleo de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora.

O limite de tempo e os percalços do processo de pesquisa delimitou o número de

entrevistas realizadas, ao todo 10, entre os fundadores da Associação – Mestre Eufraudísio,

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de Mestre Tigrão com o qual realizamos duas conversas (entrevistas), os demais concentraram-se em uma entrevista.

Buscamos construir um roteiro de perguntas para as entrevistas, mas o diálogo com os entrevistados mostrou que muitos temas surgem inusitadamente e que por mais que tentemos roterizar, os sujeitos narram o que de fato foi significativo para eles. Portanto, nesse movimento, o roteiro se fez presente e importante, mas cuidamos para que o entrevistado tivesse autonomia para registrar o que lhe era relevante e que não fora perguntado.

Ao passo que a pesquisa ia se concretizando, percebemos que era necessário

recuperarmos o período de formação da Associação nos anos 70 para incorporarmos na

reflexão a formação político-cultural de seus fundadores. Da análise e diálogo com as narrativas nos deparamos com os temas que poderiam estabelecer uma dimensão de problematição e reflexão.

Nesse sentido, acabamos por identificar dois períodos distintos, porém, interligados

através do fazer cultural da capoeira e político da Associação: um primeiro período de

1976-1988 e o segundo período de 1989-2004 .

No primeiro período (1976-1988), os quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Tigrão e

Magnólia – constroem conjuntamente um conhecimento acerca da capoeira e das

manifestações culturais que com ela dialogam e no qual cada um dos irmãos contribui para esse conhecimento mediante seus referênciais culturais e políticos anteriores. Entretanto, é

marcante a liderança de Ms. Maurício no que tange a prática da capoeira5 e a influência de

Ms. Eufraudísio no posicionamento político assumido pela Associação no sentido de

participação nas lutas populares e a afirmação da capoeira como cultura popular.

O segundo período (1989-2004) configura-se no movimento paulatino de afastamento dos irmãos. O ano de 1989 tornou-se para a pesquisa, um referencial: significou que a partir desse ano, a coordenação do núcleo de capoeira, bem como a administração e a responsabilidade de viabilizar novas estratégias de trabalho estava concentrado na pessoa de Ms. Tigrão, embora este, contasse com o apoio dos irmãos Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Magnólia.

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A partir dessa reestruturação da Associação e respondendo as demandas sociais e

culturais de seus alunos, Ms. Tigrão deu início à construção da proposta pedagógica rompendo com práticas pedagógicas anteriores e redefinindo metas e estratégias de ação

adotadas pela Associação no período anterior.

Mediante as especificidades desses períodos, portanto, das transformações que ocorreram no seu fazer cultural e não obstante, a permanência reiterada do compromisso

político-cultural da Associação para com os grupos sociais economicamente marginalizados,

pudemos dar corpo e vida aos nossos capítulos.

Assim, pensando na complexidade das relações sociais dessa família migrante que através da capoeira passou a intervir ativamente nas lutas políticas na cidade de São Paulo e da relevância desses aspectos para a definição das particularidades da capoeira proposta pela

Associação é que o recuo temporal se fez necessário e se desdobrou no primeiro capítulo

dessa dissertação, intitulado I. Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares:

Capoeira e Política no Processo de Formação da Associação Cultural Corrente Libertadora

(1976-1988).

Para a construção desse capítulo utilizamos como fonte primária as entrevistas de três dos quatro irmãos que compartilharam essa experiência de fundação e estruturação da

Associação Cultural Corrente Libertadora: Ms. Eufraudísio, Ms. Tigrão e Magnólia. Ms. Maurício, responsável por trazer para o cotidiano dos irmãos a capoeira e por ter fundado o grupo por volta de 1975, faleceu em 2005 deixando apenas um pequeno depoimento no

documentário Quilombo da Memória de 1993,6 utilizado aqui como fonte.

Nossa preocupação nesse primeiro capítulo foi dar visibilidade às especificidades da

prática de capoeira da Associação Cultural Corrente Libertadora, recorrendo à reelaboração

dos referenciais culturais e da tradição familiar dos protagonistas dessa experiência a partir das implicações sociais desencadeadas pela condição migrante.

Também discutimos a reestruturação da Associação entre os anos de 1989-1994,

período que identificamos como sendo uma transição na experiência da Corrente Libertadora:

diretrizes, parcerias, estratégias, tendo em vista as implicações da gestão da mesma, centrada

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na figura de Ms. Tigrão, diferentemente do período anterior, quando a gestão era compartilhada entre os quatro irmãos.

Nesse sentido, buscamos compreender a fundação da Associação como uma estratégia

desenvolvida por esses protagonistas em resposta à condição social a qual estavam submetidos: precariedade estrutural de serviços públicos, violação de direitos civis, sociais e políticos e marginalização do seu fazer cultural.

Migrantes do Sul da Bahia, da pequena cidade de Ibicaraí, nordeste brasileiro, a família Modesto chegou a São Paulo no início da década de 1970 e se estabeleceu na periferia de Santo Amaro. Uma família de oito irmãos comandados pela matriarca Elvina Araújo Modesto, que na periferia da cidade de São Paulo teve que enfrentar as dificuldades econômicas, sociais e culturais para se ver inserida no mundo do trabalho e construir uma

história de sobrevivência digna.7

A trajetória da Associação iniciou-se em 1974, com o filho mais novo da família

Modesto: José Maurício Neto - mais tarde Mestre Maurício - que se envolveu com a capoeira, transitando em grupos da região e frequentando as rodas de capoeira da cidade. Em 1976, Ms.

Maurício, então, convenceu três de seus irmãos – Eufraudísio Modesto filho, Magnólia Mª

Alves e Eufrásio Modesto Alves – não apenas a praticar capoeira, mas a coordenar junto com

ele o grupo.

Durante esse período, as atividades da Associação estavam estreitamente ligadas aos

Movimentos Populares da região e da cidade de São Paulo como um todo. A partir de 1977

estreitou relações com o Movimento de Moradia Unificado e marcou sua participação nos

movimentos grevistas do período.

Essas ações se construíram na articulação entre forças da Igreja Católica, das Comissões de Greve e da Cultura Popular, nesse caso, da capoeira. Essa atuação

político-cultural aproximou a Corrente Libertadora de lideranças locais que organizaram o núcleo

regional do que viria a ser o Partido dos Trabalhadores (PT), tendo na sede provisória da

Associação um dos primeiros espaços de encontros para discussões e organização do partido

na região.8

7 Entrevista V: Eufraudísio Modesto Filho- Mestre Eufraudísio, 09.10.09.

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12

A capoeira utilizada como elemento de mobilização social e política nesses Movimentos, certamente conviveu com tensões na relação entre cultura e política, mas em contrapartida, desencadeou a construção de perspectivas culturais, pedagógicas, políticas e

sociais que influenciaram na formação dos fundadores da Corrente Libertadora e nortearam

as diretrizes dos trabalhos por eles desenvolvidos, temas discutidos nesse capítulo.

Entendemos, pois, que a cidade de São Paulo nessa experiência se faz como o campo que possibilita vir à tona o conflito, não obstante, como o espaço que viabiliza a construção de redes de comunicação e articulação entre diferentes grupos sociais para a definição de metas e estratégias de participação política no espaço urbano, através de uma teia tensa de relações em constante diálogo, disputa e negociação entre os sujeitos envolvidos nessas ações reivindicatórias e contestatórias, bem como na relação com o Poder Público.

A capoeira enquanto manifestação cultural assumiu na atuação da Associação Cultural

Corrente Libertadora de seus fundadores um caráter profundamente político, à medida que agregou a essa manifestação cultural elementos de resistência e de luta por garantia de direitos. Ela está intimamente relacionada com o universo dos seus fundadores, com as preocupações culturais e sociais que permeiam sua prática e com o público que pretende

atender. O lugar político em que a Associação se posicionou é que nos faz compreender a

capoeira por eles praticada como cultura popular.

Não nos remetemos aqui a uma concepção carregada de unilateralidade estática e de autenticidade inalterada de cultura popular, concernente a uma idealizada classe trabalhadora ou a grupos sociais marginalizados, mas ponderamos apoiados às reflexões de Stuart Hall de que

O termo popular guarda relações muito complexas com o termo classe... Os termos classe e popular estão profundamente relacionados entre si, mas não são absolutamente intercambiáveis. A razão disso é evidente. Não existem culturas inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas, numa relação de determinismo histórico... As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta. O termo popular indica esse relacionamento um tanto deslocado entre cultura e as classes. Mas precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que constituem as classes populares. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é

a área à qual o termo popular nos remete... 9

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13

Isso posto, trabalhamos nessa perspectiva de cultura popular para melhor

compreendermos a experiência da Associação nos dois períodos que anteriormente

distinguimos e que optamos metodologicamente em termos como referência temporal 10 para

análise.

O olhar sobre a experiência da Associação no período de 1989-1994 nos permitiu

identificar pontos de tensão e conflito gerados pelo posicionamento pedagógico e político assumidos por Ms. Tigrão a partir de então. Por outro lado, apontou para permanências no modo de pensar e se colocar politicamente no espaço público através da capoeira.

A análise do processo pelo qual essas questões se deram e o que a experiência dos sujeitos históricos envolvidos nessa trajetória nos diz sobre as práticas culturais e políticas de grupos populares formaram o núcleo central da problematização dessa dissertação. Norteados

por essas preocupações desenvolvemos o eixo temático do capítulo II . Meu Aluno é Meu

Mestre A Vivência de Capoeira de Mestre Tigrão.

Entendemos que o desenvolvimento da proposta pedagógica de capoeira criada por

Ms. Tigrão e assumida pela Associação Cultural Corrente Libertadora a partir de 1989

tornou-se o cerne de suas atividades sócio-culturais e está intimamente relacionado com a

experiência anterior da Associação.

Além disso, marca a transformação de estratégias de intervenção social, bem como com a concepção de capoeira. A partir do trabalho de Ms. Tigrão, a capoeira não é mais o instrumento de mobilização social, mas o próprio instrumento de transformação social através da proposta pedagógica vivenciada, tendo em vista colaborar para a integração, inclusão social e colaboração positiva na formação da cidadania de seus alunos e colaboradores.

Nesse capítulo, trabalhamos com as narrativas de Ms. Tigrão, Ms. Eufraudísio e de

alunos em diálogo com os documentos institucionais da Associação – projetos, relatórios,

histórico social. Esse entrecruzar de fontes foi fundamental para compreendermos o processo de construção da proposta pedagógica e de como ela se desdobrava em ações; os significados elaborados pelos alunos que experimentaram essa proposta no cotidiano e os embates em torno da concepção e técnica acerca da capoeira.

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14

A proposta pedagógica está centrada, na nossa percepção, em duas premissas: a acolhida e a musicalidade. A partir dessas duas premissas, os elementos e os traços da tradição da capoeira foram adaptados, reelaborados ou abandonados pela prática do Ms. Tigrão.

O que estamos chamando de acolhida refere-se à forma como os alunos em qualquer situação social são recebidos, acompanhados e encaminhados no processo de aprendizagem da capoeira.

A acolhida pressupõe a individualidade e as necessidades particulares de cada aluno, no entanto, diferentemente do que podemos supor como um mecanismo sistematizado e passível de estigmas sociais, essa acolhida se dá de forma subjetiva e através de estratégias pedagógicas da capoeira que privilegiam o coletivo.

Esse processo de acolhida está intimamente relacionado com a musicalidade inerente à capoeira, que permite trabalhar as sensibilidades individuais, o ritmo, a lateralidade, o movimento através da dança da capoeira. A musicalidade da capoeira personificada nos

instrumentos percussivos que comandam a roda de capoeira, a começar pelos berimbaus –

gunga, médio e viola -, seguido pelo atabaque, pandeiro e agogô, é o que a diferencia de outras lutas e artes marciais.

A capoeira embora não possa ser considerada uma arte marcial, visto que essa

conceituação considera apenas tipos de lutas empreendidas em guerras,11 apropriou-se de

golpes de lutas marciais como o Karatê e o Jiu- Jitsu, adaptando-os em sua variante de

Capoeira Regional. Não obstante, a capoeira é uma luta. Uma luta de combate indireto que

compreende movimentos de ataque, defesa e esquiva. Esses movimentos corporais estão

presentes em todo jogo de capoeira e, reafirmamos tratar-se de golpes, pois a sua utilização está inserida em uma lógica estratégica de combate.

O aspecto de combate remonta à historicidade da capoeira como meio de luta e resistência de escravos e afros-descendentes, mas que na contemporaneidade, responde a outras demandas sociais, culturais e políticas, tornando-se instrumento de intervenção em vários campos da sociedade civil: a educação, o esporte e a cultura.

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Dessa forma, essa reflexão nos levou a considerar que o problema conceitual não está na noção de golpes, mas em associá-lo ou não às artes marciais. Nessa dissertação optamos, então, em considerar a capoeira como cultura popular como anteriormente mencionamos, mas sem ignorar sua dimensão de luta. Luta de combate indireto, mediado pela musicalidade.

Na proposta de Ms. Tigrão, com objetivo de incluir e não de diferenciar hierarquizando, deu-se ênfase à musicalidade, deslocando a função de luta dos golpes para a dança, priorizando os componentes rítmicos que a capoeira possibilita.

Nesse sentido, ganha visibilidade a capoeira como performance do corpo: o corpo que toca instrumentos, que canta, que forma a roda, que bate palma, que tem marcas, que traz uma vestimenta que o particulariza, que se expressa através de movimentos e improvisações. Enfim, o corpo que joga capoeira.

É relevante pontuar esse aspecto que buscamos problematizar no capítulo em questão, pois, capoeira concebida como luta no âmbito do esporte prevê a competitividade, a formação do atleta, baseando-se na força, flexibilidade, habilidade, destreza do atleta em busca de resultados positivos que inevitavelmente distinguem o melhor do pior atleta.

Essa concepção vai na contracorrente da postura da Corrente Libertadora, pois

impediria a inclusão das pessoas que a Associação busca atender: de diversas faixas-etárias

em situação de risco social, situação de rua, conflito com a lei, portadores de necessidades especiais, dependentes químicos ou simplesmente moradores da periferia da cidade. O objetivo, portanto, não é a formação de atletas, mas a promoção da cidadania.

Compreendemos que, no jogo de capoeira desenvolvido pela Corrente Libertadora a

partir de então (1989) os elementos e procedimentos considerados tradicionais pela capoeiragem no Brasil foram reelaborados e reapropriados por Ms. Tigrão.

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16

Mestre como um mediador que compartilha com os alunos a aprendizagem da capoeira, traz a dimensão de uma construção de conhecimento circular (ensinando-aprendendo-ensinando) e aberta, está pois, baseada no diálogo com o outro, que é sempre diferente.

No entanto, assumir esse posicionamento, bem como defender essas transformações na prática da capoeira implica em lidar com os conflitos suscitados: descaracterização da capoeira? Negação da tradição? Favorecimento dos aspectos sociais em detrimento dos culturais?

Na tentativa de observar e analisar esses conflitos vivenciados pela Corrente

Libertadora fomos convidados a debruçar sobre nosso objeto de pesquisa, o olhar político a

que nos intima Beatriz Sarlo em sua obra Paisagens Imaginárias.12 O sentido de resistência

cultural, atribuindo à capoeira um caráter político, nos levou ao universo cotidiano e urbano no qual essas experiências políticas se deram.

As demandas sociais imposta por esse viver urbano exigiu da Corrente Libertadora a

disposição em refazer-se continuamente, buscando nas brechas do cotidiano e do fazer político-cultural, as estratégias para o encontro da capoeira com o aluno, o capoeirista, o cidadão.

Assim, reconhecendo a proposição de alterações e reelaborações na prática da capoeira

desenvolvidada pela Corrente Libertadora como estratégias de intervenção social, chegamos

ao capítulo III. Da Roda de Capoeira à Roda de Negociações: Projetos e Parcerias da

ACCL.

Nesse capítulo, buscamos entender os processos de construção de parcerias entre a

Associação Cultural Corrente Libertadora com a sociedade civil organizada e com o Poder Público.

A identificação dessas parcerias como um possível capítulo ocorreu durante a

pesquisa, visto que a temática permeava as fontes institucionais – projetos desenvolvidos pela

Associação Cultural Corrente Libertadora em parceria com as Secretarias do Estado e do Município de SãoPaulo: Esporte e Lazer, Cultura, Saúde e Assistência Social –, documentos

administrativos da Associação, assim como, entrecortavam as narrativas dos entrevistados.

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17

Trabalhar em parceria era uma condição que estava posta para a Associação desde sua

atuação junto aos Movimentos Populares da cidade na segunda metade dos anos 70, mas o processo de redemocratização do país e a nova conjuntura social, política e econômica nos

anos 90 exigiu da Associação o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção social.

Nesse período em que os Movimentos Populares se reconfiguravam, formando o que se

popularizou como Terceiro Setor, a lógica e as metas para o estabelecimento de parcerias se

transformaram.

Para o desenvolvimento desse capítulo tivemos em nosso horizonte histórico os desdobramentos da elaboração e a aprovação da Carta Constitucional de 1988, O Estatuto da

Criança e do Adolescente – ECA de 1990, a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS de

1993, que são de certa maneira conquistas das lutas sociais e políticas da sociedade civil desde a segunda metade dos anos 70.

A Associação Cultural Corrente Libertadora a partir de 1989 vislumbrou nessas parcerias a possibilidade de manutenção e ampliação de suas atividades sócio-culturais. Considerando a precariedade estrutural-financeira da Entidade e a reorientação pela qual

passava, as parcerias tornaram-se estratégias não apenas de manutenção da Associação, mas

de garantia da efetivação de sua proposta e de suas metas de trabalho.

Nesse sentido, as parcerias garantiriam a gratuidade e a diversidade do serviço

prestado a comunidade e por outro lado dava condições à Associação de dialogar com outras

realidades sociais, compartilhar experiências com os parceiros, unir forças para construção de novos espaços públicos e para os enfrentamentos políticos, principalmente, no que diz respeito ao atendimento a crianças e adolescentes.

Compreendemos que as parcerias com a sociedade civil organizada ocorreram pautadas não apenas na necessidade de recursos financeiros, mas antes, em afinidades políticas, pedagógicas e culturais. Afinidades que aproximaram parceiros, que diversificaram as ações culturais e pedagógicas e que desencadearam mecanismos de participação política

para os adolescentes envolvidos nos projetos desenvolvidos pela Associação.

Para compreendermos o processo e a natureza das parcerias e suas implicações, a

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18

profissionais especializados e os projetos em parceria com o Poder Público foram indispensáveis.

O Transe Essa Rede colocou a Associação diante dos dilemas e proposições das questões referentes à sexualidade, prevenção e tratamento da AIDS e das DSTs, no universo

da adolescência. Mas do que uma prevenção médica, o Projeto Transe Essa trazia a idéia de

compartilhar e de trabalhar no campo das vulnerabilidades, as quais os adolescentes estão expostos cotidianamente. Em uma prática de formação compartilhada entre educadores e

adolescentes, o Projeto trouxe a sexualidade para dentro da Associação e a Associação levou

para o Transe a capoeira, aprimorando consideravelmente a proposta da formação do adolescente multiplicador.

A formação do adolescente multiplicador estava na proposta da Associação Cultural

Corrente Libertadora, mas as parcerias com o Transe e concomitantemente com o Centro de Referência DST/AIDS de Santo Amaro foram fundamentais para o aperfeiçoamento dessa

prática pedagógica e para a inserção dos adolescentes nas lutas políticas. 13

A parceria com o Centro de Referência de Santo Amaro é significativa, pois traz para nossa discussão, no mínimo, duas dimensões desse processo de rearticulação das forças sociais nos anos 90. Primeiro a parceria ocorreu através das inquietações e atuação de profissionais que buscavam soluções para a debilidade dos serviços oferecidos para as crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social. Significou que profissionais

como, por exemplo, Marcos Veltri (coordenador e orientador de prevenção do CR –Santo

Amaro), voluntariamente passassem a colaborar sistematicamente com a Associação para a

formação dos adolescentes e, essa atuação se fortaleceu através da prática, desdobrando-se em ações que passaram a envolver não apenas o profissional Marcos Veltri, mas o próprio serviço público, o Centro de Referência.

13Muitas dessas lutas políticas se deram em espaços construídos coletivamente pela articulação de parceiros civis e públicos como o do Fórum de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Amaro – FDCA. A Associação Cultural Corrente Libertadora participou desde o início dessa articulação e manteve participação intensa através de alunos e mestres no Fórum. Ver: GERASSI, Maria Irene. Resignificando Sujeitos: A Trajetória de Formação de Sujeitos Políticos no Fórum de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes de Santo Amaro. Dissertação de Mestrado em Serviço Social: PUC – SP, 2007.

(29)

19

A aproximação de profissionais das ONGs com profissionais de serviços públicos da região de Santo Amaro possibilitou a afirmação das parcerias com o Poder Público com uma possibilidade real de intervenção social. Entretanto, as parcerias com o Poder Público, pautado em propostas financiadas pelo mesmo, trouxeram no bojo de sua efetivação a complexidade do diálogo com o Estado: os limites e contradições dessa negociação.

No capítulo III, tentamos dialogar com essas questões tendo em vista a participação

efetiva da Associação Cultural Corrente Libertadora nessa articulação entre as ONGs e

Serviços Públicos para ampliar e otimizar o atendimento a crianças e adolescentes em

situação de risco pessoal e social – muitos em situação de rua e em conflito com a lei, e

paralelamente compreender o processo de parceria com o Poder Público através de projetos de intervenção social financiados pelo mesmo.

Conceitualmente, acreditamos que analisar a capoeira como cultura, mais que como

esporte, permitiu uma reflexão mais de acordo com a experiência da Associação, à medida

que politicamente, cultura popular confere à capoeira legitimidade e visibilidade através da

ação dos sujeitos históricos – os capoeiristas. Foi a trajetória desses sujeitos que garantiu

sobrevida à capoeira no mundo contemporâneo, mediante a um processo orgânico de valorização do seu conhecimento, construído de forma coletiva e amparado nos saberes populares com ou sem o reconhecimento das instituições normativas do Estado.

O trabalho de Raymond Williams em Marxismo e Literatura (1971) nos trouxe uma

contribuição muito significativa em torno do conceito de cultura, principalmente por apontá-lo como um processo social constitutivo, que cria modos de vida específicos e diferentes, atrelados diretamente ao processo social material, portanto, às condições materiais as quais os sujeitos históricos estão inseridos.

Ao estudar o conceito de tradição contrapondo-se ao posicionamento dos folcloristas que atrelaram o conceito a idéia de conservadorismo (como sobrevivência do passado inalterado e manutenção de uma origem pura), Williams nos fez refletir sobre uma das problemáticas da pesquisa: a questão da tradição da capoeira. Os procedimentos empreendidos por Ms. Tigrão rompem com a tradição da capoeira?

Nos preocupamos em não incorrer na concepção de tradição como práticas e saberes

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20

processo contínuo de seleção, por parte de um determinado grupo social, no qual certos significados e práticas são escolhidos e outros excluídos, mas que as permanências os atrelam a um passado que lhes permitem construir identidades e sociabilidades.

A capoeira é, pois, entendida nesse trabalho como uma manifestação cultural, que agrega elementos da música, dança e golpes de lutas marciais. A capoeira desenvolvida pela

Corrente Libertadora parece estar longe tanto da visão estática apresentada pelos nossos folcloristas quanto da normativa defendida pela Federação Paulista de Capoeira. A tradição reinventada ganhou novas cores, novos modos, novas expectativas e propôs outras experiências.

Entretanto, a capoeira continua a ser um jogo, indireto, um jogo que só acontece através do diálogo corporal com o outro, que prescinde da musicalidade dos seus instrumentos característicos (berimbau, atabaque, pandeiro e agogô), do mundo codificado na roda de capoeira e do passado africano-escravo que lhe dá historicidade e a vincula com um movimento de resistência cultural e político.

Essa posição conceitual diante do objeto de pesquisa só se tornou possível a partir do diálogo com a produção historiográfica referente à capoeira. Nesse caminho, a produção de

Carlos Eugênio Soares nas obras A Negregada Instituição: Os Capoeiras Rebeldes no Rio de

Janeiro (1808-1850), de 2002, além do artigo Da Flor da Gente à Guarda Negra: Os Capoeiras na Política Imperial14 são de suma relevância para historicizar a atuação dos capoeiristas, assim como para refletir sobre a metodologia aplicada à pesquisa do tema.

Os trabalhos de Carlos Eugênio traçam o perfil dos capoeiristas e de sua participação política e cultural na cidade do Rio de Janeiro por todo o século XIX. Para tanto, o autor lançou mão de uma vasta documentação até então não utilizada por historiadores na pesquisa sobre a capoeira, tornando-se uma leitura obrigatória para os pesquisadores do tema.

Porém, os dois trabalhos centrados na cidade do Rio de Janeiro, em um recorte que tem início nos últimos anos da Colônia e percorre todo o período imperial, implica em uma limitação da contribuição desses trabalhos à pesquisa aqui realizada. O autor, entretanto, nos indica a ação autônoma dos capoeiras, a reinvenção de símbolos e comportamentos africanos

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produzidos a partir da vivência da diáspora e da luta dos capoeiras naquele contexto histórico por visibilidade social e política.

Esses aspectos da experiência dos capoeiras dialoga com nossa pesquisa à medida que reafirma a posição dos capoeiras em desenvolver estratégias de manutenção e de luta político-cultural frente às dificuldades postas pela realidade social na qual estão inseridos. A capoeira, portanto, se transforma à medida que dialoga e responde aos problemas postos pela sempre dinâmica realidade social, mas se reatualiza continuamente para marcar suas especificidades e resistências.

O levantamento de dissertações e teses de doutorado produzidas na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, entre 1993 e 2007,15 permitiu a ampliação da discussão

acerca da concepção de capoeira. Em sua maioria, os autores fizeram a opção de conceber a capoeira como prática esportiva, embora não ignorassem suas características culturais como a música, a instrumentalização, a gestualidade do jogo.

É inegável a possibilidade de se considerar a capoeira como esporte, já que os seus movimentos compreendem golpes de ataque e defesa, assim como em diversas lutas marciais. Entretanto, a transformação da capoeira em um desporto reconhecido pelo Estado brasileiro faz parte de um processo político de maior amplitude, do qual a disciplinarização das manifestações populares e a modernização e civilidade do espaço urbano são intrínsecas.

Esse processo de desportização da capoeira foi largamente discutido por Letícia Vidor

em seu livro O Mundo de Pernas Para o Ar, A Capoeira no Brasil 16 e é uma contribuição

importante para pesquisadores do tema. Por se tratar de um estudo antropológico, a autora se

preocupou com a linguagem corporal e simbólica da capoeira, o que ela chamou de “dialética

da mandinga”.

15 MELLO, André da Silva. Capoeira para Adolescentes Internos na FEBEM Um Estudo Sobre a Consciência. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1999.

OLIVEIRA, André Luis. Os significados dos Gestos no Jogo de Capoeira. Dissertação de Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1993.

ROCHA, Maria Angélica. A Capoeira Como Ação Educativa nas Aulas de Educação Física. Dissertação de Mestrado em Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1994.

STOROLI, Fernanda Quevedo. Inclusão Social e Esporte: Os Significados – Sentidos da Capoeira Para Adolescentes em Situação de Pobreza. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007.

VIEIRA, Sergio Luiz de Souza. Da Capoeira Como Patrimônio Cultural. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.

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Letícia Vidor ao trazer o “jeito negro e popular de jogar capoeira”, muito ligado às

propostas desenvolvidas por Mestre Pastinha e Bimba na Bahia que se espalharam com o grande fluxo migratório de nordestinos para a região sudeste do Brasil na segunda metade do século XX, nos possibilitou entrar em contato com argumentos que subsidiassem a ideia de

que a desportização da capoeira no Brasil fez parte de um programa nacional,17 que entre

outros objetivos, visava enfraquecer e desmobilizar as manifestações populares da primeira metade do século XX, politizando consideravelmente nosso posicionamento frente a essa problemática.

A desportivização da capoeira é sem dúvida um caminho possível para a visibilidade social da capoeira, como defendem os associados da Confederação Brasileira de Capoeira, fundada em 1992 e reconhecida pelo Comitê Olímpico Brasileiro. Nessa percepção, a capoeira como esporte deve obedecer a uma normatização técnica em relação aos golpes, aos ritmos, a luta da capoeira, bem como a uma uniformização das graduações e o processo de avaliação da mesma.

Embora os defensores da desportivização reconheçam a matriz africana da capoeira (como por exemplo, a importância do conhecimento dos mestres de capoeira que produzem e transmitem um conhecimento profundamente popular e baseado na oralidade), o processo de desportivização tende a transformar a tecnicidade em elemento propulsor da capoeira e, acreditamos que ao fazê-lo, desencadeia um movimento de profissionalismo formal que pode acarretar na marginalização do conhecimento popular.

Essa discussão perde em parte seu vigor à medida que a capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro no dia 15 de julho de 2008, em Salvador, pelo Conselho

Consultivo do Patrimônio Cultural do IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional, indo de encontro com e a lei de regulamentação da profissão de professor de capoeira em trâmite no Congresso Nacional do Brasil (2009).

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23

A produção acadêmica, a descriminalização, o mérito da internacionalização e o tombamento da capoeira como patrimônio cultural no Brasil se configuram como estratégias de visibilidade cultural e política da capoeira, no qual o Estado, através de instituições atreladas a ele, reconhece, legaliza e atribui valor a uma manifestação popular. Pressupõe-se nessa ação a esquemática divisão entre cultura erudita e cultura popular, na qual a primeira se sobrepõe à segunda e os sujeitos históricos que a produzem são comumente ignorados. Nesse

sentido nos chamam atenção Nestor Canclini em sua obra Culturas Híbridas:18

O patrimônio cultural funciona como um recurso para reproduzir diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que conseguem um acesso preferencial à produção e a distribuição dos bens.

E ainda:

Para refutar as oposições clássicas a partir das quais são definidas as culturas populares não basta prestar atenção em sua situação atual. É preciso desfazer as operações científicas que levaram o popular à cena.

A capoeira se manteve como uma manifestação cultural ao longo de sua história necessariamente devido à ação empreendida por diversos sujeitos históricos, sobretudo capoeiristas, que em suas histórias individuais e vivências comunitárias através da prática da capoeira mantiveram e reelaboraram os saberes e fazeres inerentes a essa manifestação cultural. Os conhecimentos produzidos por esses sujeitos, marcados fortemente pela tradição oral e pela constante revificação do saber mediante à prática comunitária, colabora para entendermos a capoeira como um instrumento de resistência político-cultural de grupos populares.

Essas reflexões sugeridas por Nestor Canclini nos impelem ao reencontro com a

experiência da Associação Cultural Corrente Libertadora para que possamos assim, a partir

da prática cotidiana dessa Associação, reforçar o seu caráter de cultura e não obstante, seu

caráter popular. É a experiência social dos fundadores, mestres, colaboradores e alunos da

Corrente Libertadora que nos interessa nessa discussão em torno da capoeira.

Compreendemos que a realização dessa dissertação só foi possível pela participação desses sujeitos políticos: fundadores, colaboradores e, sobretudo, as crianças, adolescentes e

jovens participantes dos projetos da Associação que compõem o cerne deste trabalho, pois é

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na experiência vivenciada da capoeira por eles, que a Corrente Libertadora se faz espaço de

sociabilidades, cultura e de intervenção social.

Durante a pesquisa e o processo de escrita da dissertação buscamos trabalhar na

perspectiva de ouvir, aprender e refletir com as experiências desses sujeitos históricos, compartilhando com eles, a partir do sentido de igualdade e respeito às especificidades das narrativas desenroladas durante as entrevistas, a construção de um olhar sobre essa experiência político-cultural na cidade de São Paulo.

Nesse sentido, pensamos o resultado da pesquisa, agora configurado nas páginas que seguem como um trabalho comunitário, no sentido de que foi através da observação, diálogo e vivência com esses sujeitos e através da experiência desses, narradas nas entrevistas concedidas, que a dissertação se fez.

Temos ciência dos limites dessa dissertação, visto que a experiência da Associação

Cultural Corrente Libertadora permite lançarmos vários olhares sobre sua prática. Entretanto, nos propusemos a dar visibilidade às estratégias que possibilitaram a formação e continuidade de seu trabalho político-cultural.

Assim, pensamos a cidade enquanto espaço de construção de sociabilidades e vivências intrínsecas às demandas sociais, as quais pressupõem relações muitas vezes conflituosas entre Estado e sociedade civil, sobretudo no que concerne a garantia de direitos: civis, sociais e políticos.

Compreendemos a cultura, pois, como modos de vida abrangendo todas as suas dimensões, inclusive a política. Nesse sentido, a cultura também pode ser tomada como instrumento de luta por muitos grupos sociais economicamente marginalizados nos embates por visibilidade política, cultural e social. Através de manifestações culturais constroem e revivificam cotidianamente uma pluralidade de conhecimentos, geralmente baseados em um caráter comunitário, através dos quais produzem estratégias de reconhecimento de suas tradições e afirmação de seus direitos.

Retomamos aqui a imagem inicial descrita nesse texto de apresentação para aludirmos

às Considerações Finais dessa dissertação. Ouvindo o aluno Diógenes cantando sua ladainha

e vendo a Associação ali presente, jogando capoeira, contribuindo para a organização do

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25

palestrantes, pudemos reafirmar que a produção dessa dissertação é parte constitutiva do

trabalho da Corrente Libertadora, que não se pretende definitivo, mas ser reconhecido como

mais um instrumento para produção do conhecimento, através da apreensão, discussão e quiçá, desconstrução de seu conteúdo.

Nossas Considerações Finais caminharam no sentido de refletir sobre a experiência de

intervenção político-cultural da Associação através da capoeira, com o intuito de contribuir

para a ampliação acerca da discussão sobre cultura popular e da atuação de grupos sociais em luta por visibilidade política.

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Capítulo I

Da Sombra da Barriguda aos Movimentos Populares

Capoeira e Política no Processo de Formação da

Associação Cultural Corrente Libertadora

“Capoeira é liberdade, também quero aprender, Lutar pela liberdade, pra meu povo defender!

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