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Da Ética ao ethos originário : um diálogo com Heidegger

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA. Da ética ao ethos originário um diálogo com Heidegger. Luciana da Silva Mendes Ferreira Brasília 2008.

(2) Luciana da Silva Mendes Ferreira. Da ética ao ethos originário um diálogo com Heidegger. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação scritu sensu em Filosofia da Universidade de Brasília para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Julio Cabrera.

(3) Com admiração e carinho, para o mestre e amigo Maximino Basso, sem o qual o meu feliz encontro com a filosofia jamais teria acontecido..

(4) Agradecimentos A produção de um texto é sempre o resultado do rico encontro com diferentes pensamentos e pessoas. Um texto é sempre escrito por muitas mãos. Agradeço, de coração, a todos que direta ou indiretamente contribuíram para que este trabalho pudesse acontecer. Em especial, Ao professor Julio Cabrera, por ter acolhido o meu tema, abrindo o espaço para que eu explorasse as minhas inquietações filosóficas, e pela constante provocação crítica no decorrer da orientação deste trabalho. Ao professor Gerson Brea, pela leitura sempre atenta e pela discussão séria e dedicada do meu texto, o que exigiu a constante revisão, aprofundamento e amadurecimento das minhas idéias e da minha compreensão. Ao querido professor Maximino Basso, pela disponibilidade sempre demonstrada, pelas observações precisas e pelas conversas iluminadoras. Por ter facilitado, sensível e generosamente, a descoberta do meu amor pela filosofia. Ao professor Mario Fleig, por aceitar o convite para participar da banca de defesa da dissertação, contribuindo com a reflexão e a discussão do meu texto. Ao professor Norberto Abreu, pelas suas importantes contribuições no exame de qualificação. A Rainri Back, pela constante leitura e discussão crítica do meu texto. Pelo incansável apoio amoroso. Ao querido Hilan e ao “grupo da diferença” – em particular, aos queridos Rudhra e Leonel – pela alegria da convivência e por tantas, tantas descobertas. Agradeço, com especial carinho, pela descoberta do prazer de filosofar – e de filosofar junto! Ao grupo de estudos de Heidegger, da Universidade Católica de Brasília, espaço de reflexão aberta e de amadurecimento intelectual. Aos professores Cláudio Reis e Miroslav Milovic, pelas reflexões provocadas em sala de aula que, de forma significativa, contribuíram para a compreensão e o amadurecimento do meu tema. Às amigas Telma e Andréa, pela torcida e afeto. A Cássia, pelo grato reencontro que me trouxe leveza, confiança e coragem. Ao meu pai, pelo apoio sempre presente, solo que possibilitou todos os meus vôos. A Clara e ao Mingau, pelo amor incondicional..

(5) Resumo Esta dissertação tem como tema a investigação das possíveis relações entre a filosofia de Heidegger e a ética, posto que, apesar da recusa do filósofo alemão de pensar uma ética e das críticas tecidas por outros filósofos ao limite da ontologia fundamental quando se deve pensar a consideração do outro, observamos uma tendência atual em favor da defesa de uma ética implícita ou relacionada à sua ontologia. Com o intuito de preparar o enfrentamento da questão, iniciamos o nosso percurso com uma explanação a respeito do pensamento metafísico, tal como o entende o filósofo alemão, a fim de contextualizar o nascimento das éticas. Em seguida, apontamos para a necessidade da desconstrução dessas éticas a partir da superação da metafísica defendida por Heidegger. Apresentamos, então, a perspectiva de Loparic no que concerne à desconstrução das éticas, cuja dimensão ontológica permaneceu impensada pela tradição precedente. Essa dimensão, por sua vez, foi esclarecida a partir da ontologia fundamental, descortinando, em diálogo com a interpretação de Heidegger do ethos grego, o que definimos como um “habitar ético originário” ou “eticidade”. Uma vez que esclarecemos o sentido desse habitar ético originário,. diferenciando-o. daquilo que convencionalmente chamamos ética, indagamos, em diálogo com alguns filósofos contemporâneos, sobre a possibilidade de um outro passo: pensar uma ética filosófica não metafísica haurida da ontologia de Heidegger. Defendemos, por fim, que a ontologia fundamental, embora possa ser assumida como o solo impensado das éticas, não pode servir de parâmetro suficiente para orientar eticamente a nossa existência. Essa conclusão encontrou o seu fundamento no que denominamos “ambigüidade essencial”, sugerida como a condição fundamental do nosso ser-no-mundo e, portanto, da nossa eticidade. Suspeitamos que, se o ser pode ser tido como o solo fenomenológico da nossa moralidade, não obstante isso, não se define critério para a elaboração ou a interpretação de uma ética filosófica. Nesse contexto, todavia, a nossa moralidade seguramente encontrará outros critérios, reafirmando-se como uma das experiências fundamentais da existência humana. Palavras-chave: Heidegger, ética, eticidade, ontologia fundamental, superação metafísica..

(6) Abstract This dissertation investigates the possible relations between Heidegger’s philosophy and ethics, given that, in spite of his refusal to develop an ethics, and other philosopher’s criticisms towards the limit of the fundamental ontology when thinking about the consideration of the other, there seems to be a trend nowadays towards an implicit or related ethics in his ontology. In order to address this issue, the dissertation begins with an explanation of metaphysical thought, as understood by Heidegger, so as to contextualize the birth of ethics. It then points out the need for a deconstruction of these ethics based on the overcoming of metaphysics defended by Heidegger. It then presents Loparic’s perspective regarding the deconstruction of ethics, whose ontological dimension remained unconsidered by the previous tradition. This dimension was, in turn, clarified by the fundamental ontology, unveiling, in dialogue with Heidegger’s interpretation of the Greek ethos, what is defined as a “genuine ethical dwelling” or “ethicity”. Once the meaning of this “genuine ethical dwelling” has been clarified, differentiating it from what is conventionally called ethics, it considers, in dialogue with some contemporary philosophers, the possibility of a step further: that of thinking a non-metaphysical philosophical ethics drawn from Heidegger’s ontology. Finally, it is argued that the fundamental ontology, though it may be assumed as an unconsidered ground of ethics, cannot be used as a sufficient parameter to ethically guide our existence. This conclusion found its underpinning in what is refered to as “essential ambiguity”, suggested as a central condition of our being-in-the-world and thus of our ethicity. It seems that even if the being may be considered as the phenomenological ground of morality, nevertheless, the criteria for the development or the interpretation of a philosophical ethics has not been defined. In this context, however, our morality will surely find other criteria, reaffirming itself as one of the fundamental experiences of human existence. Key words: Heidegger, ethics, ethicity, fundamental ontology, overcoming of metaphysics..

(7) SUMÁRIO Introdução. 01. Capítulo 1 - Do esquecimento do ser à ética. 05. 1.1. Metafísica e superação 1.1.1. A physis, o pensamento originário e o início da metafísica 1.1.2. A onto-teo-logia e a época da consumação da metafísica 1.1.3. A superação da metafísica. 05 07 16 25. 1.2. Ética e desconstrução. 42. Capítulo 2 - A diferença ontológica e o habitar ético originário. 50. 2.1. O passo de volta: nos rastros do ethos grego. 51. 2.2. Sobre a “eticidade” 2.2.1. Um habitar, outro habitar: diferença ontológica e ambigüidade 2.2.2. Círculo hermenêutico e finitude 2.2.3 Acerca da eticidade e da ética – uma tentativa de esclarecimento. 54 54 70 75. Capítulo 3 - Ética existencial?. 87. 3.1. Algumas propostas éticas fundadas na filosofia de Heidegger: perspectivas e 87 problemas 3.1.1. Loparic e a defesa de uma ética “implícita” na ontologia fundamental 88 3.1.2.Vattimo e a proposta de uma ética “a partir” da ontologia fundamental 111 3.2. Sobre a (im)possibilidade de uma ética existencial. 122. Considerações finais. 130. Bibliografia. 137.

(8) Introdução Diante dos desafios contemporâneos, a discussão acerca da ética se impõe como fundamental. A desconstrução da metafísica pela ontologia de Heidegger conduz à problematização dessa discussão, uma vez que questiona alguns pressupostos metafísicos que são o fundamento da reflexão ética corrente. Além disso, da filosofia de Heidegger emerge uma nova compreensão da dimensão humana, o que pode inaugurar uma reflexão alternativa acerca da ética. A metafísica é pensada por Heidegger como o filosofar que identifica ser e ente, tendo seu início com Platão e alcançando seu ápice e consumação com Nietzsche e a era atômica. Promover esta identificação implica pensar o ser como presença, um objeto de conhecimento calculável e disponível ao domínio e ao controle. Desse ponto de vista, a existência, que é temporalidade e finitude não redutível ao cálculo, permanece incompreendida. Isso porque, uma vez identificado com. o. ente,. o. próprio. ser. foi. esquecido.. A. diferença. ontológica. (diferença. ser-ente) é anulada em função de um pensar calculante que, em busca do fundamento último, conduz ao humanismo e à técnica moderna, ou seja, ao uso instrumental dos entes. Dessa última interpretação, nasce uma prática ética e política que pensa poder reduzir a existência humana à objetividade e, portanto, manipulá-la tecnicamente. Em Diferir a Metafísica, Vattimo sustenta que o que motiva a filosofia de Heidegger, à medida que propõe a superação da metafísica, são questões ético-políticas. Afirmar, como pretendem alguns críticos, que o seu pensar leva ao isolamento, à neutralização da alteridade ou ao desinteresse social é precipitado e enganoso. Devemos, ao contrário, imediatamente perguntar pelas necessárias implicações ético-políticas desse modo de filosofar, porquanto uma filosofia. 1.

(9) que “enfraquece” o ser em uma proposta pós-metafísica pode significar uma abertura a um pensamento da redução da violência. Agamben será ainda mais radical do que Vattimo. Em Homo Sacer, sugerirá que, em uma existência compreendida como ser-aí, o poder parece não ter mais qualquer alcance. Porém, diferentemente de Vattimo, não enfatizará “as conseqüências” éticas e políticas da nova ontologia, mas irá ressaltar o seu próprio “caráter” político. Defenderá, então, que “o escândalo do século”, ou seja, o envolvimento de Heidegger com o nazismo, somente foi possível justamente porque o ser-aí é político. Pela facticidade, que Heidegger esclarece em Ser e Tempo, não mais se sustentam dualismos metafísicos como alma-corpo, vida-logos, natureza-política. A vida é política, argumenta Agamben, em sua própria facticidade. Porém, como o nazismo fixou a facticidade em uma determinação racial objetiva, terminou por negar a genialidade de Heidegger, que teria sido aquela de defender que a facticidade não poderia ser reduzida a um fato. E, portanto, permitiu a Heidegger confessar, como o fez em Introdução à Metafísica, o seu engano com o nacional socialismo, que, para o pensador, nada mais representava originalmente do que o confronto do homem moderno com o problema da técnica – propriamente uma das questões que provocavam o seu filosofar. Ora, se o ser-aí é político, como afirma Agamben, podemos suspeitar que também é ético. Mas o que significa tal suspeita? O próprio Heidegger recusou discutir a possibilidade de uma ética, ao sustentar em Carta sobre o Humanismo, que a ética, como disciplina, nasceu com a tradição metafísica e herdou os seus problemas. Não obstante, alguns pensadores contemporâneos insistem em defender uma ética implícita no pensamento heideggeriano. Em um olhar mais atento, notamos que o próprio Heidegger parece ser responsável por este tipo de interpretação, pois, enquanto demonstra preocupações quanto a qualquer discurso ético a partir da sua ontologia, afirma que esta pode ser entendida como uma ética originária em diálogo com o ethos 2.

(10) de Heráclito. Esta ética, todavia, já é sempre uma ontologia. Neste ponto, deparamo-nos com uma pergunta: afirmar que o ser-aí é ético é o mesmo que pensar a ética como disciplina ou teoria filosófica? Este estudo pretende desenvolver essa questão discutindo a ética a partir da filosofia de Heidegger e investigando se um debate sobre a ética ainda encontra espaço e expressão, caso se assuma a ontologia fundamental como esclarecimento do existir humano. Ou se, ao contrário, precisamos discutir as teorias éticas enquanto suspeitamos a eticidade do próprio ser-no-mundo como um habitar originário. Dentro desse propósito, no primeiro capítulo – Do esquecimento do ser à ética –, pretendemos apresentar a crítica de Heidegger à metafísica e ao esquecimento do ser nela implicado e indagar o nascimento das éticas nesse contexto. A partir dessa indagação, tencionamos explorar a noção de superação da metafísica proposta por Heidegger e refletir sobre a sua relação com uma possível desconstrução das éticas a partir da nova ontologia, em particular, em diálogo com Loparic. No. segundo. capítulo. –. A. diferença. ontológica. e. o. habitar. ético. originário –, empenharemos esforços para discutir, após a desconstrução das éticas empreendida no contexto de superação da metafísica, o “passo de volta” para o pensamento originário (não metafísico) por meio do ethos de Heráclito, em diálogo com a interpretação de Heidegger. Posteriormente, pretendemos analisar a possibilidade desse habitar ético originário a partir da ontologia fundamental, em especial, da consideração da diferença ontológica e do jogo contínuo que ela implica entre velamento e desvelamento, ôntico e ontológico, autenticidade e inautenticidade, quadratura e técnica, como o próprio habitar ético humano. Esclarecido o habitar ético originário, cuidaremos, no terceiro capítulo – Ética existencial? –, de examinar a possibilidade de se pensar a ética não mais como uma disciplina 3.

(11) filosófica dentro da perspectiva linear-metafísica, mas como uma ética existencial considerada a partir do círculo hermenêutico e da finitude humana, discutindo uma nova concepção ética. Em seguida, pretendemos questionar se essa possibilidade pode se sustentar a partir da ontologia de Heidegger, ou se é preciso afirmar o ceticismo quanto a uma concepção ética haurida da sua filosofia. O diálogo será desenvolvido também com autores que pensaram a ética à luz da ontologia do filósofo alemão – Vattimo e Loparic –, discutindo as suas propostas éticas e afirmando as nossas semelhanças e dessemelhanças quanto ao modo de compreender o tema a partir dessa filosofia. Gostaríamos de concluir com um esclarecimento. Como sugerimos, além de Heidegger, a discussão acontece com outros autores. O que gostaríamos de ressaltar é que discutimos com um filósofo quando o seu filosofar é instigante e abre questões significativas para a nossa reflexão. O elogio de um filósofo é a discussão das suas idéias. Certamente, sempre no melhor estilo filosófico de uma indagação crítica. A intenção, todavia, não é outra, senão o diálogo acerca das questões fundamentais aí encontradas. Assim, o nosso pensamento talvez possa se ampliar em direções sempre mais fecundas. A perspectiva, portanto, é positiva. Obviamente, essa discussão não se conclui aqui. Propomos apenas uma leitura possível que, como desejamos, possa abrir e, quem sabe, enriquecer o diálogo acerca das questões comuns que nos inquietam.. 4.

(12) Capítulo 1 Do esquecimento do ser à ética. O nosso intuito é investigar as relações entre ética e ontologia a partir da consideração da filosofia de Heidegger. Entretanto, não podemos fazê-lo sem antes compreender a questão fundamental que nasce com esse filosofar. Para Heidegger, essa questão é a pergunta pelo sentido do ser ou a pergunta pelo ser como tal. Tal pergunta se justifica quando o pensador afirma que a filosofia, em vez de pensar o ser, concretizou o seu esquecimento, por mais que pretendesse, em tantos momentos, afirmar uma ontologia. Não apenas isso, mas esse mesmo esquecimento tem, como já sinalizamos, implicações éticas e políticas, o que justifica um olhar atento em sua direção. O porquê e o como desse esquecimento é o que devemos agora investigar, além de lançar o olhar sobre as suas implicações. A partir de tal investigação, poderemos, por fim, entender como a ética, na qualidade de disciplina filosófica, também é colocada em questão.. 1.1. Metafísica e superação O que é o esquecimento do ser? O que Heidegger quer nos dizer quando afirma que a metafísica, compreendida de Platão a Nietzsche, é a história desse esquecimento? De que modo o próprio Nietzsche – que arrogava para si a tarefa da transvaloração de todos os valores e o amor a terra, em uma forte crítica a toda a metafísica ocidental – pôde ser considerado, por Heidegger, o último metafísico? E o que dizer sobre toda a ontologia e a metafísica antiga e medieval em que estava em questão precisamente o ser? Como, nomeando o ser, a história da filosofia não fez senão esquecê-lo? Poderíamos ainda perguntar: a própria ontologia de Heidegger, por ser uma ontologia, não seria também metafísica? 5.

(13) Iniciemos pela última questão. A resposta é dupla: sim, a filosofia de Heidegger também é uma metafísica, e não, a sua filosofia não é nenhuma metafísica. Tudo depende de como entendemos esse termo. Portanto, certamente sim, se “metafísica” for compreendido a partir do seu sentido grego originário, ou seja, a investigação de algo que está além (meta) do ente (ta physiká), para compreendê-lo (o ente) como tal na sua totalidade. “O ente como tal em sua totalidade” é o que os pensadores gregos originários – os pré-socráticos – chamavam physis. Nesta investigação, ultrapassam-se todos os domínios do que hoje entendemos por natureza, quaisquer que sejam, para que seja aberta a compreensão do seu solo originário, que, entretanto, não é a sua “causa” no sentido de um fundamento. Esse entendimento somente se clarifica quando buscamos o sentido de physis. Mas a ontologia heideggeriana não é, certamente, “metafísica” se por essa palavra entendemos o esquecimento do ser por meio da sua identificação com o ente, o que, segundo o filósofo, é o que há de mais característico no pensamento ocidental a partir do platonismo. É esta metafísica que Heidegger pretende “destruir” e “superar”, no sentido estrito em que o filósofo emprega esses termos e que ainda será esclarecido. Para compreendermos, então, de que modo a metafísica esqueceu o ser e qual é a importância de se pensar a sua superação, devemos confrontar o seu primeiro significado, assumido pelos gregos, com o segundo, explicitado por Heidegger como um destino do filosofar ocidental. Dito mais claramente, devemos entender o que nos diz o pensamento da physis (pensamento originário) e como se encaminhou para o esquecimento do ser (metafísica). Nesse processo, também se mostrarão as conseqüências dessa transformação sofrida pelo pensamento, entre elas, o humanismo e a técnica, e, ainda, como discutiremos em um momento posterior (1.2.), a ética.. 6.

(14) 1.1.1. A physis, o pensamento originário e o início da metafísica. Para os pré-socráticos, aos quais Heidegger se refere como pensadores originários, o ente era a physis. Na sua origem, de acordo com a interpretação de Heidegger, physis diz “o vigor dominante que brota e permanece” (1999, p.44), como o desabrochar de uma rosa. A physis é o brotar da rosa, de si mesma, que se abre e se manifesta e, nesse brotar que desabrocha, retém-se e permanece.. Porém,. a. physis. não. se. identifica. com. a. rosa.. Tudo. é. physis – o céu, o mar, os animais, o homem, as matas, os deuses, a pedra, o nascer do sol e as tempestades. Porém, ela não reflete a natureza ou os entes como fenômenos naturais, mas, em verdade, fala do ser. Heidegger nos conta que “a physis é o ser mesmo em virtude do qual o ente se torna permanente e observável” (1999, p.45); portanto, é o vigor dominante “que brota, e o perdurar, regido e impregnado por ele” (1999, p.45). Notemos que a palavra grega, como a interpreta Heidegger, nomeia o brotar e o perdurar, mas não o que perdura. Physis, como desabrochar do vigor que no desabrochar se conserva, é o des-velar daquilo que estava velado (o ser) e que, todavia, des-velando-se, revela um outro de si (o ente), não sendo jamais apreensível no que des-vela. Se desejarmos porventura apreender o vigor (o ser) no desabrochar da rosa, não o encontraremos em lugar algum. Por mais que procuremos incansavelmente, veremos que não está na sua cor, nem na sua textura; não se define no aroma que exala; não diz respeito às suas folhas ou raízes; não está na seiva nem nos pistilos. Também não habita o seu tamanho ou a sua forma, nem mesmo o puro movimento que permite o desabrochar em si. Absolutamente nada que encontramos na rosa define o seu ser. Poderíamos desenvolver as mais sérias e dedicadas análises laboratoriais ou experiências empíricas – não encontraríamos o ser. Não obstante, a rosa é. Esse vigor inapreensível que em nada se define é justamente o que permite que a rosa perdure e se manifeste como um ente na totalidade. A rosa é sem que seu ser seja. 7.

(15) Esse é o sentido mais profundo de physis como o experimentou, na interpretação do filósofo alemão, o pensar grego originário. Contudo, a sua tradução latina por natura, segundo Heidegger, distorceu esse sentido e passou a apontar para a “natureza” como algo simplesmente dado. Essa foi a tradução que se tornou normativa para a idade média e moderna, mudando aquilo que originariamente a palavra nomeava e transformando o filosofar em uma filosofia da natureza. Desse modo, alcançou-se paulatinamente a concepção dos “fenômenos da natureza” como “fenômenos materiais”, o que culminou, por fim, na física moderna. Physis, então, anteriormente compreendida como “o ente como tal em sua totalidade”, passou a designar meramente o que é “físico”. Como se deu esse processo? Já acenamos para o problema da tradução latina. Porém, este foi apenas mais um elo em uma cadeia que se iniciara, por outros caminhos, com Platão. Para esse pensador grego, a physis é interpretada como eidos, idea, “idéia”, interpretação que prevalecerá no pensamento ocidental assumindo nomes diversos na história da filosofia. Idéia, como defende Heidegger, é o aspecto, o perceptível, o que é visto. Como tal, tem relação com a aparência, diz o aparecer do ente, o que aparece, o que se encontra presente. O que o ente é, o seu ser, passa a ser o seu aspecto. Ora, poderíamos questionar: mas a physis, como vigor dominante que brota e permanece, não é o aparecer? A physis grega não teria uma relação necessária com a aparência? Certamente que sim. A aparência revela, mostra, torna presente. O sol, por exemplo, aparece; podemos vê-lo. Sabemos da existência do sol porque percebemos o seu brilho, o seu calor. “O sol brilha” significa o sol está presente, o sol é. Mas, também, o sol que brilha parece girar em torno da Terra. O sol aparece assim, como se girasse em torno da Terra, mas esta aparência é ilusão. Esse segundo sentido da aparência não é igual ao primeiro; entretanto, que dele dependa, não se pode negar. Porque o sol brilha e aparece exatamente por isso. Ao acompanhar esse brilho que marca a sua presença, parece-nos que o sol que aparece gira em torno 8.

(16) da Terra. Assim, a aparência pode tanto significar o aparecimento, a presença de algo, quanto a aparência como ilusão. Dissemos que o sol aparece, é. O ser aparece. Heidegger defende que, para a experiência grega, “ser” significa aparecer, não sendo aquilo que aparece algo suplementar e acrescido ao ser, mas o próprio modo de o ser se dar. O ser aparece. Há, portanto, uma íntima conexão entre ser e aparência. O vigor imperante que brota e conserva é aparecer. Ou seja, o ser des-vela, des-oculta, des-encobre. Assim, o ente que é revela-se pelo des-velar do ser. O desencobrimento do ente nada mais é do que o desvelamento do ser. É o ser que se des-vela, mas que, todavia, inapreensível, imediatamente se retrai em um jogo contínuo em que velamento e desvelamento acontecem juntos. Não temos, portanto, uma pura abertura, mas, como defende Zarader, temos o desvelamento da ocultação (1990, pp.82-84). A abertura ou clareira não corresponde à luz, mas a um ambiente livre, como a clareira aberta em uma floresta, onde luz e sombra podem encontrar o seu jogo. A verdade para os gregos, em particular para os pensadores originários, mas também na primeira fase do pensamento de Platão1, é des-velamento (alétheia2). Dissemos que o sol aparece, é. Mas também dissemos que o sol parece girar em torno da Terra, o que é ilusão. O que tal fato tem a ver com o ser? Ora, se o ser, entendido como physis, significa o aparecer, ou seja, “oferecer aspectos”, pode ocorrer, como uma possibilidade, a oferta de um aspecto que oculta e encobre o ente na sua verdade, na sua dimensão de des-velado. A aparência pode apenas aparentar. Porém, a aparência assim entendida não é subjetivismo nem qualquer invenção arbitrária, mas está em íntima conexão com o ser. A experiência grega é 1. Em Ser e Verdade, Heidegger defende que a filosofia de Platão mostra justamente a transição entre a apreensão da verdade como alétheia para a verdade como correspondência. 2 O termo grego alétheia designa a verdade. “Lethe” significa “esquecer, esquecimento, velamento” e o “a” privativo permite a leitura de “alétheia” como “a-lethes”, “a-letheia”, ou seja, não-esquecimento, não-velamento. Assim, assume o sentido de “des-velamento”, implicando, porém, o próprio velamento como um dos seus momentos possíveis. Alétheia, portanto, não deve ser entendido como desvelamento simplesmente, mas como desvelamento cuja essência consiste em ser regida por um insistente velamento. Como pergunta Zarader (1990, p.86), por que o constante esquecimento do velamento no desvelamento?. 9.

(17) aquela de entender a possibilidade do aparentar como uma possibilidade conexa ao ser e assumir a tarefa de arrancar o ser da aparência e dela o proteger. Isso porque ao próprio ser pertence a aparência. E pertence de tal modo que não apenas faz aparecer o ente como ele não é, mas a aparência se encobre a si mesma como aparência, enquanto se mostra como ser. A ilusão é um dos modos possíveis ao homem no jogo do ser entre a aparência e a revelação. Essa possibilidade já era compreendida por Heráclito. No seu fragmento 123, afirma: physis kryptesthai philei, o que pode ser lido, de acordo com Heidegger, como: “o ser tem a inclinação para ocultar-se” (1999, p.140). Uma vez que o ser, como physis, significa emergir, sair do encobrimento, des-velar, o ser parte de uma dimensão de velamento, ocultação, que lhe corresponde. Ou seja, o ser tem a inclinação para retornar à dimensão da qual proveio, retirar-se, velar-se, ainda que na aparência. Ser, portanto, não somente aparece, mas faz parte da sua essência o esconder-se em um aparentar. Enquanto ser e aparência se pertencem mutuamente a ponto de se trocarem um pelo outro, abrindo a possibilidade do equívoco e da ilusão, surge o problema de separá-los e de dar primazia ao desencobrimento, o que para os gregos era fundamental. Em oposição aos pensadores originários, para os quais houve, segundo Heidegger, “uma única auto-afirmação criadora na turbulência do jogo de tensão muito intrincada entre as potências, ser e aparência” (1999, p.133), somente com os sofistas e com Platão a aparência é desvalorizada. Particularmente com Platão, o ser, então considerado como idéia, exclusivamente vinculado à revelação, é deslocado para a dimensão do supra-sensível e completamente separado da aparência, que passa a dizer respeito apenas ao mundo do sensível. O problema, para o pensador alemão, foi Platão tomar o des-velamento, que é apenas uma possibilidade ontológica, como o próprio ser, o que conduziu a conseqüências particulares e inaugurou o pensar metafísico. A questão, de acordo com Heidegger, não se refere tanto ao fato de o filosofar platônico 10.

(18) apresentar a physis como idea, mas de tê-la apresentado como a única interpretação válida do ser. Não apenas isso. Nessa significação, a aparência perde a sua dupla significância. A idea, como já havíamos sinalizado, pode ser lida como o viso, o aspecto, o que se apresenta à percepção sem a dimensão do vigor imperante, da emergência, como na physis. Esta última fala de um erigir a partir de si mesmo que consiste (faz consistir), enquanto a idea remete a uma superfície, ao aspecto do que já consiste. Portanto, ao passo que o erigir instaura, conquista e cria os seus espaços, o segundo sentido do aparecer, ao qual Platão reduz o ser, é tomado do já erigido, de um espaço já pronto e estruturado. Assim, o viso, que a coisa faz e apresenta, é que se torna o decisivo, e não a coisa em si mesma. O aparecer, no primeiro sentido (erigir, emergir), é o que, pela primeira vez, rasga e abre, i.e. instaura espaço. O aparecer, no segundo sentido, dá apenas os contornos e as dimensões do espaço já aberto (HEIDEGGER, 1999, p.133).. A idea, sendo o ser do ente, o verdadeiro ser no supra-sensível, degrada o ente, aquele do mundo sensível, antes tomado como physis, ao não-ser, na condição de mera cópia. O ente sensível, sendo cópia imperfeita, desfigura o ser ao realizá-lo no sensível. A idea, supra-sensível, o verdadeiro ser, determina-se como o modelo ideal. Assim, a idea passa a ser o ente propriamente, e se funda o abismo intransponível entre esse modelo exemplar e perfeito e os entes sensíveis, ou melhor, o não-ente na qualidade de mera cópia e imitação imperfeita. O sensível é o “exemplo” do verdadeiro, que é a idea. Assim, na interpretação de Heidegger, a aparência já não é a physis, o vigor imperante que brota, nem mesmo o aspecto, mas “o surgir da cópia”, do exemplo. O exemplo deve agora imitar o modelo perfeito. Nesse contexto, a verdade não é mais alétheia, des-velamento, mas “adequação” e está vinculada à percepção como “representação”. A verdade, a partir de então, não será mais o espaço para o des-velamento do ser em seu jogo com a aparência, mas o âmbito da correção, do verdadeiro e do falso e, posteriormente, da lógica. 11.

(19) No confronto entre a physis e a idea, falamos da separação entre ser e aparência. Esse, segundo Heidegger, é um dos marcos do surgimento do pensamento metafísico. Outras três separações fundamentais, como defende Heidegger, completarão o contexto do seu início: a separação entre ser e vir a ser, a separação entre ser e pensar e a separação entre ser e dever3. A separação entre ser e vir a ser foi convencionada e aceita como a oposição de ser a não ser, a nada. Porém, Heidegger interpreta o vir a ser como a “aparência” do ser, no sentido originário já esclarecido, e, assim, sugere a harmonia entre Parmênides e Heráclito. Ambos, para o pensador alemão, diziam o mesmo, porém, sob aspectos diferentes. O vir a ser, como surgir, pertence à physis. O ser, como a presença que surge e permanece, igualmente pertence à physis. Vir a ser e ser não são o mesmo, mas possibilidades do mesmo. O próprio não-ser, como ausência, pode ser lido como o ocultar, uma dimensão ontológica. Todavia, assim como ocorrido com o ser e a aparência, o pensamento metafísico separa ser e vir a ser e não consegue mais apreender a sua conexão intrínseca. Quanto. à. íntima. conexão. entre. ser. e. pensar. no. pensamento. originário,. remete-nos Heidegger à sua relação com a physis e o logos. O caráter do logos era o acolhimento e recolhimento da physis. Originariamente, o logos era a reunião do que brota e aparece na abertura do ente. O que assim foi reunido e acolhido podia ser preservado e repetido, constituindo a essência da linguagem. Ainda: se o ser é des-velamento, onde o ser impera (physis), também acontece a percepção, entendida, nesse contexto originário, como “o pôr-se em posição receptora daquilo que está em si mesmo constante e se mostra” (1999, p.163). À proporção que o ser vigora e aparece, dá-se também a percepção, a qual pertence à physis. A percepção, assim compreendida, não decide nada sobre a relação sujeito-objeto e a possibilidade do conhecimento. 3. Heidegger desenvolve essa discussão em Introdução à Metafísica.. 12.

(20) como tradicionalmente discutida pela epistemologia, mas apenas traduz “a tomada de uma posição acolhedora frente ao aparecimento do ente” (1999, p.189). Mas se a physis passou a ser interpretada como idea, o logos também perdeu o seu caráter de reunião, pois o ser não é mais surgimento, emergência e não há mais o que possa ser reunido e acolhido. O ser que não mais des-vela, mas que desde então apenas se define no “aspecto” que é copiado pelo “exemplo”, conduz a um novo entendimento do logos como “enunciado”. Na medida em que propõe ou diz algo sobre algo, o enunciado não mais reúne e recolhe a emergência da physis, mas passa a conferir atributos, na expectativa de determinar “corretamente” (pois a verdade não é mais alétheia, somente “adequação”) os modos em que alguma coisa é. O logos é, então, o lugar da verdade como adequação, correção, determinação do ser de alguma coisa através dos seus predicados. Ora, se o logos é enunciado, a linguagem é mera expressão denotativa por meio da emissão sonora, e não mais aquela que protege e conserva o recolhido, no des-velamento, pelo logos. Desse modo, a relação originária entre ser e pensar, que remetia à possibilidade de acompanhar e refletir a physis na alétheia, passa a designar o exercício de uma faculdade que prima pelo controle do enunciado, objetivando a exatidão da informação na apreensão correta do ente a ser expresso no discurso, este, por sua vez, reduzido à emissão fonética que denota. Essa transformação do sentido originário do pensar e a sua separação do ser possibilitaram, e até mesmo exigiram, o nascimento da lógica que terá por função regular os discursos filosóficos e garantir a retidão do pensamento. Segundo Heidegger, como exposição da estrutura formal do pensar e determinação das suas regras, a lógica somente poderia ter surgido depois da separação da íntima conexão que os gregos experimentavam entre o ser e o pensar. As conseqüências desse processo se fazem sentir de modo determinante. Afirma Heidegger: 13.

(21) Esse acontecimento da transformação da re-velação pela dis-torção em não-distorção e dessa em correção deve ser considerado conjuntamente com a transformação da physis em idea, do logos, como reunião, no logos, como enunciado. No fundo disso tudo se elabora, então, para o próprio ser, aquela interpretação definitiva que a palavra ousia solidifica e consolida. Ela pensa o ser no sentido da apresentação constante, da objetividade dada (Vorhandenheit). Em conseqüência, o ente, em sentido próprio, é então o sempre-ente, aei on. Constantemente presente, porém, é aquilo a que, de antemão, em toda apreensão e elaboração temos sempre de recorrer e retornar, o modelo, a idea. Constantemente presente é aquilo a que todo logos, (enunciar), temos sempre que remontar como o substrato já, desde sempre, subjacente, o hypokeimenon, subjectum. [...] O hypokeimenon é o precursor da interpretação posterior do ente, como objeto. A percepção, noein, é absorvida pelo logos no sentido de enunciado. [...] A percepção torna-se entendimento, a percepção se faz razão (1999, pp. 211-212).. Tanto o ente como o ser são, então, tidos como presença. O ente é algo objetivamente dado que deve ser descrito predicativamente, e o ser não dialoga mais com a aparência, que passa a ser considerada não mais como um caminho para o ser, mas como o “incorreto”. Assim, na separação entre ser e pensar, o pensar estende o seu predomínio sobre o ser e sobre o que a ele se contrapõe, voltando-se para a determinação essencial normativa. Nesse processo, o ser também é tomado como algo objetivamente dado, com Aristóteles, por meio da ousia. O ser do ente é então assim determinado. Como nos esclarece Heidegger, ousia significa “apresentação consistente”, o “estado de posse objetivamente dado” (1999, p.212). A ousia se transforma, depois, em “substância”, sentido que assumirá nas Idades Média e Moderna e também posteriormente. A separação entre ser e pensar prepara a quarta e última divisão a que Heidegger se refere e que também marca o surgimento do pensar metafísico – aquela entre ser e dever. Se o pensar estende o seu predomínio sobre o ser e, portanto, o funda, o dever, por outro lado, destitui o ser do seu posto. O ser não é mais o normativo. Mesmo tendo se considerado a idea o modelo, sustenta Heidegger que, justamente como “modelo”, o ser como idea não é mais a norma. De certo modo, sendo o ente (dado que tudo mais é cópia, exemplo e aparência), a idea, por sua vez, precisa de um modelo primeiro, de uma norma da qual dependa, a idéia suprema, a idéia do “Bem”, um além do ser que possibilita o ser mesmo, ou seja, possibilita todas as demais idéias. 14.

(22) hierarquicamente inferiores. Heidegger esclarece que o Bem não assume um caráter moral, mas determina o que “é” e o que “deve ser”. O ser, assim, fica contraposto a algo que ele não é e do qual depende, enquanto determina o que ele “deve” ser. Assim, o dever ser se separa do ser, pela primeira vez, com Platão. Essa distinção é aprofundada pelos modernos, nos quais o pensar predomina como razão independente e, portanto, desempenha um forte papel normativo, e é levada a termo com Kant, no seu imperativo categórico. A partir do século XIX, o ente – entendido no sentido kantiano como aquele experimentável pelas ciências naturais – impõe-se como o que é determinante para o filosofar. Segundo Heidegger, em decorrência dessa imposição, o dever ser se encontra ameaçado e obrigado a cavar um novo espaço para salvar a sua função de normatividade, impondo-se, então, como “valor”. Desse modo, os valores tornam-se o fundamento do dever ser, pois toda pretensão de dever ser apenas se justifica a partir de um valor. Os valores assumem, portanto, o estatuto de norma. Assim, os valores são considerados como algo objetivamente dado e sua discussão atinge o ápice com Nietzsche, ao propor a transvaloração de todos os valores como o que merece ser pensado. As separações entre ser e aparência, ser e vir a ser, ser e pensar, ser e dever, que marcam o início da metafísica, dão algo a entender. Enquanto para os pensadores originários havia uma íntima conexão interna entre essas possibilidades – apesar de ser admitida a sua distinção – para o pensar metafísico, que se inicia com Platão, afirma-se a absoluta dicotomia, sem nenhuma conexão possível entre os termos da relação. Tal característica, que pode parecer uma banalidade à primeira vista, é decisiva para todo o desenvolvimento posterior da filosofia, como já começamos a sugerir e iremos melhor demonstrar. O que observamos é o que se segue: o característico dos primeiros pensadores, os présocráticos ou pensadores originários, é o que Michelazzo chama de pensamento bipolar. Nesse 15.

(23) modo de pensar, que Heidegger tenta resgatar na sua filosofia, um aspecto qualquer dos fenômenos somente se faz entender em relação ao seu complementar, sem hierarquias. Os termos da relação jamais podem ser tomados isoladamente. Há, na complementaridade bipolar, a “co-pertença” de “dois distintos”: uma diferença que não é dicotômica e, ao mesmo tempo, uma pertença que não é identificante. Nesse contexto, o ser só pode ser entendido na sua relação com o ente e vice-versa, a verdade é ao mesmo tempo velamento e des-velamento, abarcando o engano como um momento seu e assim por diante. O pensamento metafísico rompe com esse aspecto bipolar e propõe a “dicotomia” na qual os pólos da relação não mais interagem e um deles se impõe hierarquicamente e prevalece como fundamento, reduzindo todas as demais possibilidades à sua autoridade e jugo. É justamente a ruptura com o pensamento bipolar que torna possível à metafísica o seu discurso sobre o fundamento, o geral pensado que a tudo abarca e define, o pensamento da totalidade-totalitária do qual se queixa Lévinas.. 1.1.2. A onto-teo-logia e a época da consumação da metafísica. A metafísica é a procura pelo fundamento, uma procura que se dá de um modo particular. O pensamento ocidental se apóia na interdependência do fundamento e do fundado, de tal modo que, encontrado o fundamento último, o ente seja esclarecido de forma definitiva. Disso depende todo o problema do conhecimento, das ciências e da “segurança existencial” do homem. Dentro dessa “lógica”, o ser foi concebido como o fundamento do ente que, por conseguinte, encontra o próprio. fundamento. último. no. theos. (o. fundamento. supremo),. definindo. a. onto-teo-logia característica do pensamento ocidental. Na onto-teo-logia, a -logia traz também à tona a lógica, no sentido daquilo que tem o caráter enunciador, como já discutido, mas não apenas, uma vez que remete ainda ao seu caráter fundador, no qual todos os objetos são 16.

(24) “representados” a partir do seu fundamento. Por esse motivo, a ontologia e a teologia também são “logias”. Existe, em verdade, uma procura pelo permanente. Para garantir a exatidão, a verdade como adequação, o fundamento precisa mostrar-se firme, absoluto e inabalável4. O ser será o fundamento metafísico nas diversas formas que assumirá na história da filosofia, da já referida “idéia” de Platão à “vontade de poder” de Nietzsche, passando pelo “Deus” medieval e o “sujeito” moderno. Porém, esse modo de fazer do ser fundamento acaba por ocultar o próprio ser. O ser como fundamento metafísico é um ser entificado, presente, permanente, apreensível, passível de submissão ao cálculo e ao controle. Do ser como physis, nada mais há. A separação dicotômica do ser da sua relação com o logos, com a aparência, com o vir a ser, a sua concepção como idea, criaram o solo propício para a cristalização da dimensão ontológica em uma forma fixa fundadora, conduzindo a uma interpretação do ser como presença, como um novo ente. A metafísica é pensada por Heidegger, portanto, como o filosofar que identifica ser e ente. Essa leitura do ser, todavia, apenas reflete o seu esquecimento. Por isso Heidegger pôde afirmar que a metafísica, tendo discorrido sobre o ser, em verdade nomeou apenas o ente. Essa passagem, de todo modo, apenas ficará clara quando trouxermos à tona a diferença ontológica e o entendimento do ser como retiro5. Por enquanto, devemos ainda persistir no esclarecimento da metafísica e das suas implicações. E, para tanto, devemos nos deter mais profundamente no princípio do fundamento. “Nada é sem fundamento” – nihil est sine ratione, reza o princípio. Heidegger destaca “nada” e “sem” para ressaltar que “tudo tem um fundamento”. E nós, de algum modo íntimos a este princípio, naquilo que nos circunda e vem ao nosso encontro, perguntamos pelo fundamento. 4. Segundo Michelazzo, essas são as três adjetivações do fundamento que dizem respeito a uma postura central da metafísica (1999, p.41). 5 Esses pontos serão esclarecidos no item 1.1.3. deste estudo.. 17.

(25) Exigimos o fundamento. Queremos saber o porquê de um acontecimento, de um comportamento, de uma transformação e evoluímos nessa indagação até o fundamento último de todas as coisas. “Nada é sem fundamento”! Uma versão comum desse princípio é “nada acontece sem uma causa” – nihil fit sine causa (HEIDEGGER, 1990c, p.168). Não obstante a nossa constante procura pelo fundamento, o seu princípio “nada é sem fundamento” precisou de dois mil e trezentos anos – desde o século IV antes de Cristo – para ser expresso. e. amplamente. legitimado.. Leibniz,. no. século. XVII,. foi. o. primeiro. a. reconhecê-lo como um princípio determinante. O período anterior foi, segundo Heidegger, o período da sua incubação. Leibniz considera o princípio do fundamento “o princípio magno, poderoso, da mais elevada nobreza”, e o demonstra sustentando que todos os demais princípios, na qualidade de princípio, nele se fundam: “nada é sem fundamento”. Heidegger afirma que o que legitima essa interpretação é a caracterização do princípio do fundamento como principium reddendae rationes sufficientis, que pode ser lido assim: “o principium rationis é principium reddendae rationes”, onde rationem reddere significa “devolver o fundamento” (1990c, p.168). Então, pergunta: para que, por que e para onde é devolvido o fundamento? E Leibniz responde sobre o “para quê”: “uma verdade sempre é uma verdade, quando o fundamento lhe pode ser devolvido”. Então, esclarece-nos Heidegger que a verdade é, para Leibniz, um “juízo certo”, e a ratio é o fundamento da verdade do juízo, ou seja, o que “dá a conta” para a verdade do juízo (1990c, p.168). E acrescenta, em resposta à segunda questão: o porquê de o fundamento ser devolvido é justamente esse “dar conta”, no sentido de calcular, contabilizar a legitimidade do juízo que, em si mesmo, não é a verdade. O juízo somente é verdadeiro quando a ratio, a conta, é prestada. Mas para onde é devolvido o fundamento? Para o homem que julga os objetos como objetos, visto que, desde Descartes, o homem é aquele que se opõe ao mundo e o representa (o faz presente 18.

(26) para si), entregando-o a si mesmo em juízos corretos. Porém, o fundamento deve ser rattio sufficiens, o que quer dizer “trazer um objeto na totalidade do seu estado para qualquer perspectiva e qualquer pessoa”, ou seja: Só a perfeição dos fundamentos a serem entregues, a perfectio, garante que algo seja segurado para o representar humano como objeto, no sentido literal <<veri>>-ficado no seu estado. [...] Nada é sem fundamento. O princípio diz agora: cada um é válido então e apenas então como ente, quando ele está assegurado como um objeto calculável para o conceber (HEIDEGGER, 1990c, p.168).. O conceber é dependente e assegurado pela razão. O princípio do fundamento é o princípio da razão suficiente. Os fundamentos são racionais. Pelo menos foi o que, com maestria, ensinou-nos a modernidade. Tudo o que a partir de então é importante passa a ser mensurado com o metro do princípio do fundamento entendido como princípio da razão suficiente. Tal processo não teria outro destino senão desembocar no advento da técnica. A técnica moderna se destina à obstinada busca da maior perfeição possível, esta entendida como a garantia da integridade da calculabilidade dos objetos ou, o que quer dizer o mesmo, o uso instrumental dos entes. Poder contar com os objetos e poder calculá-los, eis o que pretende a técnica. Sua pretensão não se sustentaria sem que a mesma técnica contasse com o cálculo do fundamento que a legitima e que, certamente, é assegurado, por sua vez, pela legitimidade do principium rationis. O advento da técnica moderna implica um modo completamente diverso de lidar com o mundo. Enquanto, noutro tempo, o camponês, por exemplo, cuidava e tratava a terra e, na semeadura, “confiava a semente às forças do crescimento, encobrindo-a para seu desenvolvimento” (HEIDEGGER, 2002b, p.19), por meio da técnica moderna, a agricultura transforma-se em uma “indústria motorizada de alimentação” (HEIDEGGER, 2002b, p.19). A técnica moderna dis-põe da natureza no sentido da sua exploração. Aquilo que a técnica explora são as energias da natureza. E o faz primeiro “abrindo” e “ex-pondo”, para então promover o 19.

(27) máximo de rendimento com o mínimo de custo. Neste processo de dis-posição – o pôr, no sentido de explorar –, a própria natureza emerge como um dis-positivo. De que forma? Para esclarecê-lo, Heidegger nos traz o exemplo de uma usina hidroelétrica construída no rio Reno. Esta usina, ao dis-por o rio a fornecer pressão hidráulica, a qual, por sua vez, dis-põe as turbinas a girar e estas, ao girar, impulsionam um conjunto de máquinas, que, por fim, produzem corrente elétrica, fazem do Reno um produtor de pressão hidráulica. Evidencia-se, assim, uma inversão: o rio é que está instalado na usina, e não o contrário. Quer dizer: o rio encontra o seu significado por meio da usina, em função da sua utilidade técnica. Exatamente neste sentido, o rio, que passa a valer em função do cálculo, torna-se um dis-positivo técnico. O que, de certa forma, se perde com a técnica moderna é a relação com o rio em um sentido não instrumental, por exemplo, aquela que com ele tinha uma ponte de madeira antiga que, durante séculos, ligou as suas margens. No caso da ponte, o que se tem não é um dis-por técnico, mas uma reunião integradora. Nas palavras de Heidegger: A ponte pende “com leveza e força” sobre o rio. A ponte não apenas liga margens preexistentes. É somente na travessia da ponte que as margens surgem como margens. A ponte as deixa repousar de maneira própria uma frente a outra. Pela ponte, um lado se separa do outro. As margens também não se estendem ao longo do rio como traçados indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte traz para o rio as dimensões do terreno retraída em cada margem. A ponte coloca numa vizinhança recíproca a margem e o terreno. A ponte reúne integrando a terra como paisagem em torno do rio. A ponte conduz desse modo o rio pelos campos. Repousando impassíveis no leito do rio, os pilares da ponte sustentam a arcada do vão que permite o escoar das águas. A ponte está preparada para a inclemência do céu e sua essência sempre cambiante, tanto para o fluir calmo e alegre das águas, como para as agitações do céu com suas tempestades rigorosas, para o derreter da neve em ondas torrenciais abatendo-se sobre o vão dos pilares. Mesmo lá onde a ponte recobre o rio, ela mantém a correnteza voltada para o céu pelo fato de recebê-lo na abertura do arco e assim novamente libertá-lo. A ponte permite ao rio o seu curso, ao mesmo tempo em que preserva, para os mortais, um caminho para a sua trajetória e caminhada pela terra (2002d, pp.131-132).. De modo diverso, no explorar técnico, a energia da natureza, antes escondida, é extraída, o extraído é transformado, este é estocado, o estocado é distribuído e, por sua vez, reprocessado. Todo esse processo deve se dar enquanto se assegura o controle.. 20.

(28) Com o advento da técnica, a humanidade abre o caminho para a Era Atômica. Heidegger cita o título de um livro que ilustra o problema: “Viveremos através dos átomos”. E então sustenta que, “pela primeira vez na história, o homem interpreta uma época da sua existência histórica a partir do afluxo e preparação de uma energia da natureza” (1990c, p.174). Esta é a energia atômica. A existência humana assume o metro dessa energia. Para entender a fundo o problema, devemos trazer para a discussão a sua relação com o princípio do fundamento. Este fala de eficiência, perfeição e conduz ao produzir, ao fazer. As ciências se movem a partir desse princípio, na pesquisa incessante do seu domínio. Dominadas pela técnica, as ciências trabalham com a pesquisa e a liberação da energia atômica. Faz-se mister salvaguardá-la na sua calculabilidade para, por fim, afirmar novas seguranças. Trabalha-se cada vez mais pela segurança que, de todo modo, será também garantida pelo princípio do fundamento. Nessa corrida pela segurança, a palavra-guia é informação: Nós devemos ouvir a palavra na sua pronúncia americano-inglesa. Information exprime por um lado a comunicação, que informa o homem contemporâneo o mais rápido, o mais abrangente, o mais inequívoco, o mais produtivo possível sobre a salvaguarda das suas carências, das suas necessidades e da sua satisfação. [...] A informação, contudo, ao informar, comunica, forma simultaneamente, isto é, ela institui e transmite. A informação é, como comunicação, também logo o instituir, que coloca ao homem todos os objetos e existências numa forma que é suficiente, para salvaguardar o domínio do homem sobre a totalidade da Terra e até sobre aquilo exterior a este planeta. Na configuração da informação, o poderoso princípio do fundamento suficiente a ser entregue governa todo o conceber e define, assim, a presente época do mundo como aquela para a qual tudo depende da entrega da energia atômica (HEIDEGGER, 1990c, p.177).. Dissemos que o fundamento é devolvido para o homem, que julga os objetos como objetos por meio da representação. A consistência do objeto está na perfeição do seu fundamento. Contudo, diz Heidegger, mal podemos falar ainda de objetos. A dis-ponibilidade técnica assume o status de “categoria” que nomeia “o modo em que vige e vigora tudo o que o em face do homem como um objeto. Nada mais possui autonomia, nada pode afirmar-se por si e em si mesmo, mas tudo se define exclusivamente pela sua dis-ponibilidade. Assim, já nos movemos, de. 21.

(29) certo modo, em um mundo da des-ob-jetualidade, que, todavia, não é ainda o sem-objetos. Na realidade, o objetual recua defronte uma outra consistência genérica, o próprio princípio do fundamento, que, entregue para a segurança e estabilidade de tudo, alcança, então, o seu máximo desenvolvimento. A tecnologia e os seus múltiplos sinais – funcionalização, perfeição, automatização, burocratização, informação (HEIDEGGER, 1990a, p.190) – caracterizam a metafísica da era atômica. Para Heidegger, esta é a época da consumação da metafísica, entendida não como o seu fim e a eliminação de qualquer pensar metafísico, mas como o período em que as suas possibilidades se esgotam, chegando ao máximo da sua expressão. Essa situação se faz sentir no chamado “obscurecimento do mundo”6, por meio da “devastação da terra” na exploração técnica desenfreada dos seus recursos; da “massificação do homem”, que passou também a ser submetido ao cálculo da dis-ponibilidade, sendo tomado como fundo de reserva e matéria-prima de consumo e produção, parte integrante do processo de uniformização e contabilidade do real; e da “fuga dos deuses”, indicando a falta do divino e do esplendor na história do mundo, instaurando, por fim, a ausência de sentido. A fuga dos deuses remete à filosofia nietzschiana, sendo uma variação da “morte de Deus”. Participa, portanto, desse processo, o niilismo, que foi experimentado pela primeira vez, em seu sentido atual, na filosofia de Nietzsche – segundo Heidegger, o último pensador metafísico. O niilismo nietzschiano pode ser esclarecido a partir do seu dito “Deus morreu”, que sugere uma leitura negativa em que se evidencia o total desamparo humano em relação aos antigos valores e à segurança que ofereciam, a partir da estabilidade garantida pelo suprasensível. Nesta primeira leitura negativa, quando Deus morre, tudo é reduzido a “nada”.. 6. Cf. Michelazzo em sua interpretação de Heidegger, Do um como princípio ao dois como unidade, pp.163-171.. 22.

(30) Mas há ainda a possibilidade de uma segunda leitura. Nietzsche inverte o platonismo. Para este filósofo, com a morte de Deus, o que nos resta é a “transvaloração de todos os valores” com a conseqüente afirmação do amor a terra e o predomínio da vontade sobre a razão. Assim, o niilismo de Nietzsche mostra a sua face positiva, na medida em que implica um novo início de uma nova humanidade representada pelo “super-homem”. Porém, na ruptura com a idéia de Deus e na afirmação da vontade de poder, o que Nietzsche, em verdade, sustenta é, na visão de Heidegger, uma forte antropologia em que se leva a termo o sujeito moderno como o artífice de todos os valores e da nova história humana. O ser, também reduzido a nada com a inversão do platonismo, passa a assumir, então, a forma da “vontade de poder”, a máxima afirmação da subjetividade, que, por meio do “eterno retorno”, confirma a si mesma afirmando a total prevalência do homem sobre os demais. O ente humano, sem mais nenhum apoio supra-sensível, encontra seu norte na afirmação dos valores que ele mesmo, a partir de então, criará. Portanto, assim como a vontade de poder passa a ser a nova essência do ser humano, os valores, inventados pelo novo homem, constituem o seu ser. Os valores são para Nietzsche a referência para a vida e o devir. Com a vontade de poder e a transvaloração de todos os valores – o que quer dizer o mesmo que a instauração de valores novos, porém, agora, com a relevante condição de que estes são inventados pelo homem –, o filósofo propõe um “niilismo ativo”, no seu entendimento, justamente aquele capaz de transvalorar e de realizar o super-homem. Desde Nietzsche, qualquer interpretação do mundo e dos entes passa a ser calcada em uma axiologia, havendo a instauração de uma verdadeira metafísica dos valores. Há também, como já sugerido, uma radicalização do subjetivismo moderno, enquanto o homem é o fundamento de todos os valores e a referência do mundo. Acerca dos valores, assere Heidegger:. 23.

(31) Ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado é apenas admitido como objeto de avaliação pelo homem. Mas aquilo que é algo em seu ser não se esgota em sua objetividade e, sobretudo, de modo algum então, quando a objetividade tem o caráter de valor. Todo valorar, mesmo onde é um valorar positivamente, é uma subjetivação. O valorar não deixa o ente ser, mas todo o valorar deixa apenas valer o ente como objeto do seu operar (1987, p.75).. Portanto, ao considerar algo como valor, rouba-se-lhe a sua dignidade ontológica ao passo que se evidencia a subjetivação do ente e a sua conseqüente redução a mero objeto. Segundo Heidegger, a dependência de Nietzsche do pensamento moderno o impediu de superar o niilismo e, com ele, a metafísica, uma vez que não permitiu a experiência da essência do niilismo que traduziria a dimensão ontológica, levando apenas à radicalização da subjetividade em um tipo de “humanismo” que terminou por acentuar ainda mais o esquecimento do ser. Neste sentido, Nietzsche seria ainda um pensador metafísico, levando a metafísica filosófica ao seu termo. Ora, o humanismo mesmo é uma expressão da metafísica ocidental, enquanto procura assegurar a posição central do homem em meio ao mundo e aos entes. Para este fim, propõe valores sociais, culturais, religiosos, políticos e ideológicos, afirmando a supremacia do homem e garantindo a sua segurança existencial, último recurso para um mundo sem outras garantias. Sua origem, segundo Heidegger, remonta à República Romana e sua incorporação da paidéia grega, traduzida por humanitas. Assim, em Roma encontramos a primeira manifestação do humanismo, que, depois de haver recebido uma roupagem cristã, será fortalecido e renovado na Renascença italiana e assumirá, até os dias atuais, diversas formas. O que se observa, de todo modo, é que, como sustenta Heidegger, todas as formas de humanismo estão fundadas em uma compreensão fixa da natureza humana, da história, do mundo, ou seja, do “ente” e, assim, traduz-se sempre em uma manifestação da metafísica ou do fundamento dessa metafísica. O humanismo é, também, a história do esquecimento do ser.. 24.

(32) 1.1.3. A superação da metafísica Na nossa reflexão sobre a metafísica e a época da sua consumação, falamos a todo o momento do esquecimento do ser sem a preocupação imediata de esclarecê-lo mais cuidadosamente. O que fizemos, no máximo, foi sinalizar esse acontecimento apontando o seu percurso e alguns aspectos gerais. Mas, afinal, o que esse esquecimento significa? O esquecimento do ser é o esquecimento da diferença ontológica, que, para Heidegger, aponta a diferença entre ser e ente, impedindo a leitura do ser a partir do ente e a sua conseqüente identificação com os modos do ente, como ocorreu na metafísica. Porque foi sempre lido a partir do ente, o ser como tal foi esquecido. A consideração da diferença ontológica possibilita, portanto, a abertura para pensarmos o ser como tal. Para entender o sentido da superação da metafísica, devemos, em primeiro lugar, esclarecer a diferença ontológica. Ao recorrer à etimologia, vemos que: A palavra Differenz, do latim differo (lit. carregar, levar lado a lado, apartado um do outro), implica que os entes e o ser se levam apartados um do outro, separados e, ainda assim, relacionados um com o outro – e isso espontaneamente, não meramente na base de um “ato” de “distinção” [“Unterscheidung”] (NII, 209/niv,155). Heidegger também fala, porém, de Unterscheidung entre ser e entes. Em seu sentido literal, differo é próximo do alemão austragen, “carregar para fora, entregar, lidar com, arranjar”. Austrag é o “arranjo, resolução [p.ex., de uma disputa]”. Portanto, a Differenz de ser e entes é também uma Austrag deles, que os reúne, ao mesmo tempo que os mantém separados (cf. ID, 63ss/65ss) (INWOOD, 2002, p.42).. O que podemos notar é que, para o entendimento da diferença ontológica, é fundamental a consideração de dois momentos – não apenas a diferença entre ser e ente, mas o comumpertencer de ambos. O primeiro momento é esclarecido, entre outros textos, em Introdução à Metafísica, no qual Heidegger afirma que “o ser não é nada do ente, nem entidade constitutiva de algum ente” (1999, p.114). Em outro texto, sustenta que “o ser nunca é causa para o ente e jamais. imediatamente. um. fundamento”. (2000a,. p.34).. Nessas. passagens,. 25.

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