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Academic year: 2021

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The handle http://hdl.handle.net/1887/32581 holds various files of this Leiden University dissertation

Author: Rodrigues, Walace

Title: O processo de ensino-aprendizagem Apinayé através da confecção de seus instrumentos musicais

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Considerações finais

Esta tese teve como objetivo tratar de “desvendar” as formas de ensino-aprendizagem ancestrais da confecção de instrumentos musicais, tais formas remetem a uma pedagogia tradicional que leva em consideração a importância de um saber cultural (ancestral) acumulado por gerações e as práticas deste saber. Tais fazeres e saberes culturais ajudam a definir os Apinayé enquanto grupo social e étnico único.

Nos caminhos percorridos por esta pesquisa coloquei, em um primeiro momento, algumas informações relevantes sobre a historiografia das representações do indígena na sociedade brasileira e informei sobre o povo Apinayé; em seguida, busquei compreender o campo da Etnomusicologia e dos instrumentos musicais indígenas, principalmente aqueles dos Apinaye; depois, tentei, pelas vias da antropologia da arte, compreender as criações artísticas indígenas e a performance na arte atual e como funciona o evento ritual-musical para os indígenas; daí, foquei no processo de ensino-aprendizagem tradicional indígena e Apinayé; e, finalmente, tentei levantar pontos para pensar algumas considerações específicas sobre o processo de ensino-aprendizagem Apinayé na confecção dos seus instrumentos musicais.

Posso dizer, ainda, que a pedagogia tradicional Apinayé se mostra no interesse dos mais velhos em ensinar os saberes e fazeres tradicionais aos mais jovens e na liberdade e desejo de aprender destes jovens. Somente aprendem aqueles que se interessam em aprender. Parece muito óbvia esta constatação, porém, ela difere da visão da pedagogia institucional ocidental das escolas regulares, onde o estudante está “trancado” dentro de uma sala de aula (em um quadrado ou retângulo) e ali ele é obrigado a seguir os conteúdos da disciplina apresentada. Não há, nas instituições escolares tradicionais brasileiras, uma individualização humanizadora do saber, pois os conteúdos devem ser dados um após o outro e cumulativamente e, muitas vezes, seguindo a ordem de livros “didáticos” que cerceiam a liberdade de criação, o caráter crítico e a inventividade dos educandos.

Nas sociedades indígenas o saber tradicional é como um presente que é dado a quem quer se tornar um indivíduo pleno dentro da cultura de seu povo. Os saberes ancestrais são um diferencial que fortalece o lugar do sujeito em sua sociedade

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tradicional. Aquele que aprende a cantar as cantigas tracionais e o faz bem será reconhecido como cantor e terá seu lugar social demarcado pela importância do que faz e do que é. O mesmo acontece com os artesãos que confeccionam objetos musicais, pois eles são reconhecidos pelo grupo através de sua especialização técnica e criativa dentro daquela cultura e daquele grupo cultural.

A noção de que os saberes tradicionais são ensinados a todos os indivíduos de sua determinada sociedade já não cabe para todos os grupos indígenas brasileiros, pois o contato com a sociedade envolvente trouxe outros interesses aos jovens. Este contato apresentou o capitalismo de consumo como forma de ser alguém, valendo, enquanto indivíduo, pelo que se tem. Em oposição a esta visão oriunda do contato, os mais velhos lutam por preservar as tradições do grupo, apesar de toda influência nociva a isto, mostrando que “mais vale” aquele indígena que ainda é culturalmente indígena.

Também, o período de reclusão dos jovens, que servia, no passado, como período de aprendizado intenso dos saberes e fazeres tracionais, já não existe entre os Apinayé e outros grupos em constante contato com a sociedade envolvente. Mesmo alguns ritos de passagem já não são mais executados, como, por exemplo, a cerimônia de furar as orelhas dos meninos Apinayé, uma cerimônia que marcava a maturidade do jovem.

Ainda, entre os Apinayé, o dualismo concêntrico e diametral marca, ainda hoje em dia, a vida ritual e social do grupo e interfere diretamente no ensino de saberes e fazeres tradicionais. No caso dos instrumentos musicais, objetos de confecção masculina, o menino ou jovem aprende dentro de casa a arte da criação e da significação cultural de tais instrumentos. Ele aprende, primariamente, no seio de sua família nuclear ou estendida, o que significa dizer: com seu avô materno, seu pai e seus tios maternos (algumas vezes com os esposos de suas tias).

Na pesquisa de campo notei que este ensino acontece, geralmente, através dos parentes da família nuclear consanguínea, principalmente pelos avôs e pais. Portanto, podemos concluir que uma das funções da música tradicional tocada com instrumentos musicais próprios, durante as performances rituais, na sociedade Apinayé, é dar suporte ao sistema social e cultural deste povo. Assim sendo, podemos afirmar a centralidade e importância da música (vocal, instrumental e do choro cerimonial) na vida dos Apinayé.

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Pude verificar, através do Megrẽ Môx, que a música domina toda a vida ritual Apinayé e que não há cerimônia que não tenha, pelo menos, um cantor e seu maracá (ou bastão de ritmo). A força da música na cultura Apinayé pode ser vista em todos as cerimônias tradicionais ainda vigentes, sendo cultivada cotidianamente cada vez que se faz uma “festa de cultura”, como eles próprios o dizem.

Além do já exposto, o contato próximo com a sociedade urbana não-indígena trouxe uma boa quantidade de casamentos mistos e a presença de religiões não indígenas em determinadas aldeias Apinayé, o que fortificou, em algumas destas aldeias, a proliferação do Português como língua de uso diário em detrimento da língua mãe. Esta situação de “afastamento cultural” traz problemas em relação à preservação de uma cultura tradicional. Até a língua, o elemento mais marcante da cultura Apinayé, parece vir sofrendo forte pressão em algumas aldeias. Isto foi verificado na aldeia Apinayé de Mariazinha pelo professor Francisco Edviges Albuquerque (2007):

Na aldeia Mariazinha, há um número elevado de casamentos mistos e a presença constante de religiões não indígenas. Portanto, em função do contato permanente com os não-índios, a influência da língua portuguesa na língua Apinayé é bem mais expressiva na aldeia Mariazinha, o que vem resultando num alto índice de empréstimos do português, além de mudanças sobretudo de natureza fonológica. (ALBUQUERQUE, 2007, p. 174).

O linguista Willem Adelaar (2000), citando Michael E. Krauss, nos deixa ver que a extinção de uma língua começa no momento em que os mais jovens deixam de utilizá-la. Coloco aqui a passagem do professor Adelaar sobre este ponto:

É evidente que a quantidade aproximada de 5.000 a 6.000 línguas existentes no mundo, cifras mencionadas frequentemente na literatura linguística, vem perdendo vigência com grande rapidez. Segundo uma estimativa apresentada por Michael Krauss, na ocasião do XV Congresso Internacional de Linguistas, Quebec 1992, aproximadamente 95% das línguas do mundo se encontram em perigo de desaparecer (Krauss 1993). Krauss considera que a extinção de uma língua é iminente e inevitável no momento em que a geração dos mais jovens deixa de utilizá-la e que o número de línguas que se encontram em tal situação pode alcançar até a metade da totalidade das que existem atualmente. (ADELAAR, 2000, p. 29, tradução minha).

Felizmente, o pouco uso da língua mãe entre os mais jovens não ocorre com os Apinayé, já que as crianças falam a língua Apinayé como primeira língua, são

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alfabetizados primeiramente em Apinayé e somente depois em Português. Nota-se que os adolescentes Apinayé já dominam bem a língua portuguesa, porém não deixaram de utilizar, entre eles, a língua Apinayé como primeira língua.

Vale informar que não se buscou, nesta tese, analisar o quão tradicional é esta ou aquela aldeia Apinayé. Os indígenas têm todo o direito de transformarem suas culturas da maneira que desejarem, porém se verifica que quanto mais próximos se colocam da sociedade não-indígena, mais se afastam da ancestralidade cultural de seus grupos, esquecendo seus saberes e fazeres tradicionais e valorizando uma modelo cultural completamente diferente do seu. Ou, em caso oposto, alguns indígenas, mais críticos com relação a este processo de contato, desejam entender, valorizar e perpetuar os aspectos de cultura material e imaterial tradicional como forma de resistência a um processo de enculturação que os pressiona de fora para dentro.

Assim sendo, a pesquisa sobre o processo de ensino-aprendizagem dos instrumentos musicais Apinayé, objetos tradicionalmente culturais, nos serve, entre outros pontos, como termômetro do interesse dos mais jovens em aprender o que é culturalmente tradicional em oposição ao que lhes vem da sociedade de consumo. Os instrumentos musicais, apesar de sua aparência simples, representam objetos culturais que ajudam a estreitar laços sociais e rituais, seja na família nuclear onde se aprende a fazê-los, seja nas cerimônias da aldeia onde serão utilizados, demarcando lugares sociais específicos dentro do grupo.

Além disto, nunca presenciei os Apinayé cantando enquanto trabalhavam ou para ninar um bebê, mas somente durante suas festividades. Neste sentido, a música dos Apinayé está relacionada, principalmente, à sua vida cerimonial. Porém, vi os mais jovens ouvindo, com seus celulares, músicas sertanejas ou forrós. Até fui convidado para assistir à apresentação de um grupo de forró que iria tocar na aldeia Patizal.

Ainda, podemos dizer que o sistema musical Apinayé está diretamente relacionado à esfera do sobrenatural. Somente se utilizam de música e instrumentos musicais nas festas culturais tradicionais, onde os espíritos (karõ) se fazem presente. A cerimônia do Megrẽ Môx é um exemplo claro de ritual onde a performance musical tem forte caráter sobrenatural, já que os cantos e danças remetem à vida da pessoa falecida, evocando seu espírito e exaltando-o nas letras das cantigas.

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Além disto, as performances musicais Apinayé têm um forte caráter de unificação social. Todos atendem às festas culturais e relacionam-se nestes eventos cerimoniais, conversam, comem juntos, veem os parentes e amigos que vivem em outras aldeias, etc. As festividades culturais, onde a utilização da música é parte central do evento, são cerimônias onde a música serve para reforçar laços sociais, naturais, sobrenaturais e cerimoniais.

Também, pude notar que o objeto musical Apinayé é, ainda, parte integrante das performances rituais e festividades desta sociedade, apesar do desinteresse dos mais jovens nas “festas de cultura” (para usar uma expressão própria deste povo). Os cantores Apinayé, personagens imprescindíveis nas performances rituais, somente fazem suas apresentações acompanhados de, no mínimo, um maracá.

Não se concebe, dentro da cultura Apinayé, em um cantor que não saiba utilizar um maracá. O maracá, enquanto objeto musical ritual, passa a ser parte integrante das experiências de cantos e danças nos festejos e cerimônias culturais Apinayé.

Os cantores Apinayé ajudam no estreitamento do elo entre o mundo natural e o sobrenatural. Eles são reconhecidos pelo grupo como figuras com papéis sociais necessários à perpetuação da vida cerimonial deste povo e são detentores de saberes ancestrais que devem ser preservados e repassados. Além disto, todos os cantores (homens puxadores de cantos e mulheres responsais) são pagos pelas pessoas que organizam a festividade.

Também, a produção especializada de instrumentos musicais constitui um aspecto importante da identidade grupal Apinayé, porém vem se restringindo a poucos artesãos pela falta de interesse dos mais jovens em aprender a confeccionar tais objetos. A ordem e o modo de vida dos antepassados não está conseguindo encontrar mecanismos de transmissão para as novas gerações. Conforme menciona o etnomusicólogo Luis Ricardo Silva Queiroz (2004), uma educação musical dentro das próprias sociedades indígenas se faz necessária para a perpetuação das tradições de tal povo:

Um acesso restrito a fenômenos como a música e demais manifestações de uma cultura proporciona uma percepção e uma formação estética limitada e restritiva, que tende a conduzir pessoas a uma única direção. Nessa óptica, a educação musical se torna fundamental, não como sendo a responsável por salvar a sociedade das manipulações estabelecidas pelos meios de comunicação de

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massa, lutando contra a mídia, mas sim como sendo uma alternativa de ampliação da visão musical dos indivíduos. (QUEIROZ, 2004, p. 102).

Além disso, a cabaça, principal elemento natural para a produção de vários instrumentos musicais, é escassa e só foi vista por mim, em minhas pesquisas, na Aldeia São José. Vale lembrar que a cabaça é a própria metáfora do Apinayé enquanto pessoa, de acordo com o mito da criação deste povo (cf. NIMUENDAJÚ, 1980, p. 124).

Assim, a cabaça, enquanto material de criação artística, vem carregada de valor mitológico, sobrenatural e simbólico que se intensifica quando esta é usada para a fabricação de objetos culturais. Utilizo aqui uma passagem da artista e pensadora Fayga Ostrower (1977) sobre a importância cultural dos materiais utilizados nas artes:

… o conceito de materialidade não indica apenas um determinado campo de ação humana. Indica também certas possibilidades do contexto cultural, a partir de normas e meios disponíveis. Com efeito, para o indivíduo que vai lidar com uma matéria, ela já surge em algum nível de informação e já de certo modo configurada – isso, em todas as culturas; já vem impregnada de valores culturais. (OSTROWER, 1977, p. 43).

A cabaça se coloca, portanto, como matéria-prima essencial para a confecção dos objetos tradicionais Apinayé. Sua escassez traz, assim, uma consequente diminuição dos materiais para a produção de objetos de cultura material para consumo próprio e para a venda de artesanato de cabaça, acarretando perdas, também, financeiras.

Podemos, então, verificar que nada é fortuito na construção dos objetos musicais. O material é importante, assim como as relações deste material com as crenças e saberes de determinado povo indígena, assim como suas funções e suas formas de utilização, entre outros pontos.

Além disto, “música” é um tema discutido e estudado por pesquisadores da arte musical, historiadores e antropólogos (apesar de ainda haver muito a ser pesquisado), abarcando pontos plurais como: o fazer musical, os documentos sonoros, as relações entre música e pertencimentos identitários, reflexões sobre as relações entre música, subjetividade e sociedade, etnografias de práticas musicais, estudos históricos ou etnográficos sobre educação musical, canto coral, estudos sobre situações de sociabilidade, festas e rituais envolvendo música, entre outros temas.

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Devemos mencionar, novamente, que os Apinayé não possuem um sistema de notação musical. Porém, isso não é condição necessária para que o sistema musical Apinayé (com seus cantos, cantores, danças, instrumentos musicais, etc) seja considerado sem importância ou inferior a qualquer outro sistema musical de outra sociedade, seja ela indígena ou não.

Também, vale informar que a música indígena brasileira não segue nenhum sistema ocidental. Ela tem sua própria complexidade e não parece existir um sistema de notação estabelecido entre os autóctones nacionais. Além disto, encontramos pessoas capazes de tocar seus instrumentos musicais indígenas com perfeita precisão.

As criações dos instrumentos musicais e as negociações pedagógicas envolvidas na transmissão de conhecimentos entre as gerações diferentes exploram tópicos como representação, materialidade, reflexão, etnoestética, aspectos sobrenaturais, mitos e ritos tradicionais Apinayé.

Pude notar que valores das gerações mais jovens já não são os mesmos das mais velhas. Enquanto as gerações mais velhas estão envolvidas na conservação das tradições e costumes, apesar de todos os elementos trazidos pelo constante contato com a sociedade envolvente, as gerações mais jovens estão notadamente atraídas pelo ideal consumista do capitalismo. Os jovens Apinayé desejam ter acesso a produtos emblemáticos dentro da sociedade ocidental, buscando se vestir com roupas de marcas conhecidas, ter um aparelho de celular atual ou possuir uma moto.

Conforme a conceitualização do antropólogo François Laplantine (2007), parece haver um movimento de homogeneização das culturas tradicionais em direção a uma cultura industrial-urbana. Isto pude verificar, também, entre os jovens Apinayé. Coloco aqui uma passagem de Laplantine sobre este movimento:

...um movimento de homogeneização, a meu ver, sem precedentes na História – o desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que é a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias sucessivas entre os Berberes do Médio Atlas e entre os Baulés da Costa do Marfim, perceber realmente o fascínio que exerce esse modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar e levando a novos comportamentos que não decorrem de uma escolha). (LAPLANTINE, 2007, p. 28).

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Este modelo “ocidentalizado” de viver também chegou aos Apinayé em forma da eletricidade, do aparelho televisor e da internet, etc. Não que eles não devam ter todas as facilidades tecnológicas da vida atual, mas, acredito, que isto não deve alterar bruscamente suas vidas. Hoje os jovens Apinayé não têm coragem de participar de uma dança tradicional, ficando de lado, somente olhando (isto quando param para observar!).

Ainda, se a questão da identidade para um indígena se baseia no fortalecimento da tradição ancestral e étnica de seu grupo, a questão da agentividade (da música indígena, neste caso) se caracteriza como uma ação de reafirmação desta "etnicidade ancestral", através de performances rituais características de cada grupo, mesmo que este indígenas estejam em constante contato com a sociedade não-indígena.

Outro ponto que interfere nos processos agentivos de conservação e reforço étnico é a atual globalização do mundo (movimento externo às sociedades indígenas), algo que atinge a capacidade agentiva e a eficácia dos objetos indígenas em seu contexto original de confecção, transformando-as. A partir do momento em que as “coisas” indígenas perdem seus sentidos dentro da sua sociedade (dentro da teia de significados, para usar um termo de Clifford Geertz) elas enfraquecem a tradição cultural ancestral que a faz única e, por conseguinte, debilita a identidade grupal e individual enquanto indígena. Os indígenas devem ter um cuidado verdadeiramente crítico para não serem consumidos passivamente pelo que François Laplantine (2007, p. 28) chamou de "cultura industrial-urbana". Esta integração “passiva” das populações indígenas à "cultura industrial-urbana" é o rastro mais visível, vejo eu, do forte processo de globalização que vem ocorrendo pelos interiores do Brasil.

Lembro-me bem da revolta do mestre artesão Francisco Dias Apinagé, da aldeia Serrinha, quando falando dos malefícios das novelas para os mais jovens e o desinteresse destes jovens em aprender a confeccionar os objetos tradicionais da cultura Apinayé. Para ele, as novelas mostram formas de comportamento que os jovens tentam seguir, esquecendo-se de quem são.

Parece-me que é através de sua língua, da aprendizagem e da confecção de objetos tradicionais (que são regulados por sistemas simbólicos próprios), incluindo aqui os instrumentos musicais, que o sujeito Apinayé compreende o grupo em que está inserido culturalmente e se reconhece como parte integrante deste corpo social.

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Ainda, as mudanças bruscas na vida cultural e social das comunidades Apinayé, que espanta os mais velhos e fascina os mais jovens, devem ser pensadas em um sentido de pluralidade cultural, sem deixar de lado línguas, tradições, costumes, fazeres e saberes que fazem dos Apinayé um grupo único etnicamente. Deixo aqui uma passagem de François Laplantine (2007) sobre estas difíceis negociações culturais:

Urgência de análise das mutações culturais impostas pelo desenvolvimento extremamente rápido de todas as sociedades contemporâneas, que não são mais “sociedades tradicionais”, e sim sociedades que estão passando por um desenvolvimento tecnológico absolutamente inédito, por mutações de suas relações sociais, por movimentos de migração interna, e por um processo de urbanização acelerado. Através da especificidade de sua abordagem, nossa disciplina deve, não fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim formular questões com eles, elaborar com eles uma reflexão racional (e não mais mágica) sobre os problemas colocados pela crise mundial – que é também uma crise de identidade – ou ainda sobre o pluralismo cultural, isto é, o encontro de línguas, técnicas, mentalidades. (Idem, p. 31).

Esta última passagem de Laplantine representa bem o momento de mudanças pelo qual estão passando os grupos indígenas brasileiros em constante contato com a cultura industrial-urbana ocidental. As novas relações sociais com os não-indígenas das cidades requerem o aprendizado de novas formas de comportamento social.

Os casamentos entre pessoas de vários povos indígenas com os Apinayé, na década de 1980, quando da demarcação de suas terras, a grande mobilidade oferecida pelas novas estradas ajudaram na migração, a construção da BR-230, cortando o território Apinayé, entre outros pontos, marcam uma “urbanização” vinda de fora. Esses são alguns dos fatores, entre tantos outros, que acarretaram mudanças drásticas no modo de vida dos Apinayé e que pediram uma “adaptação” em relação às “novidades” que deles se acercavam.

Também, Cassiano Sotero Apinagé (2012) nos deixa ver que a implantação de escolas indígenas (que seguem modelos ocidentais) nas aldeias Apinayé foi causa de transformações de mentalidades e comportamentos:

Os Apinayé historicamente reconhecem a escola como algo muito estranho, uma impo-sição, que os não indígenas (homens brancos) trouxeram para o nosso meio. Com o passar do tempo, a escola vem causando gradativamente mudanças no aspecto socio-cultural dos Apinayé, uma vez que nós adquirimos novos conhecimentos da sociedade

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não indígena, e aos poucos nossos saberes tradicionais são substituídos por novos co-nhecimentos e com novas atitudes comportamentais. (SOTERO APINAGÉ, 2012, p. 19).

Figura 43 - Uma típica casa Apinayé na aldeia Patizal, 2014. Fotografia de Walace Rodrigues.

Ainda, pude constatar, através das pesquisas para esta tese, que o declínio cultural de um povo indígena ocorre juntamente o declínio de sua educação tradicional. Tal declínio fragiliza a cultura de um grupo indígena e a deixa mais vulnerável às influências externas, como me informou Francisco Dias Apinagé sobre o fascínio dos indígenas mais jovens pela TV e pelos padrões de moda e comportamento que este meio de comunicação nos traz.

A professora Líliam Barros (2009), em suas pesquisas com indígenas que vivem na cidade de São Gabriel da Cachoeira, nos deixa ver que a escola pública (principalmente aquelas nas áreas urbanas) também é colocada como uma das “culpadas” pela fragilização cultural dos povos indígenas. Ela nos relata a fala de um músico indígena sobre este ponto:

O nosso problema aqui é que nossos filhos aqui, nossos netos, cada vez mais esque-ceram nossa cultura, aí perdendo nossa cultura, nosso jeito de viver, como diz os nos-sos... Ibama, essa gente aqui...nós somos preservadores da nossa Amazônia, por isso

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daí ninguém vamos esquecer a nossa cultura, nosso trabalho, nosso mito. A gente vai esquecendo cada vez mais que o nosso filho vai atrás do estudo, 2º grau completo, vai pra universidade, faculdade, aí termina acabando, esquecendo a nossa cultura. (apud BARROS, 2009, p. 28).

Talvez um caminho para a revitalização cultural e a preservação de saberes e fazeres tradicionais seja a abertura do espaço escolar como lugar de transmissão de conhecimentos e práticas tradicionais, como já acontece entre os Krahô da aldeia José Manuel Pequeno39, no município de Itacajá (TO). Utilizo uma passagem de Ana Lúcia Vulfe Nötzold e Helena Alpini Rosa (2013) sobre o uso do ambiente escolar como lugar para repassar conhecimentos tradicionais:

A escola indígena é um meio de acesso à sistematização de saberes e conhecimentos tradicionais e é espaço de luta e diálogo para a garantia de direitos. É o lugar para a revitalização linguística, fortalecimento cultural, construção de projetos futuros, especialmente para a interlocução com o mundo fora da aldeia. Esta característica da escola indígena é muito diferente das experiências de escolarização realizadas na História do Brasil. (NÖTZOLD; ROSA, 2013, p. 2).

Também, incentivar as crianças e jovens a trabalharem com música, canto, dança, artesanato tradicionais, enfim, a arte de seu povo, pode ser um dos caminhos para reforçar os laços culturais através do fazer artístico, valorizando fazeres e saberes ancestrais e atuais na busca de uma identidade única enquanto grupo. Neste sentido as manifestações musicais indígenas materializam a relação entre artefatos de cultura material para fazer música e uma identidade cultural propriamente Apinayé.

Dito isto, seria de espantar que as mesmas técnicas tradicionais de confecção de objetos musicais, e outros objetos tradicionalmente étnicos, continuassem hoje como haviam sido há 50 anos atrás. Devemos lembrar que as culturas são dinâmicas e uma sociedade sempre estará em eterno movimento enquanto existir como tal. Lembro, também, que os Apinayé estão em contato dinâmico com a sociedade envolvente (através da cidade de Tocantinópolis, principalmente), entre os indivíduos das várias aldeias, com grupos indígenas da região, com visitantes (pesquisadores ou curiosos), entre outros constantes contatos. Todos esses encontros causam mudanças nas formas de pensar e de agir dos envolvidos. Mesmo a televisão, como um meio de informação e entretenimento, parece influenciar grandemente o modo de vida atual das sociedades

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indígenas, mostrando modelos a serem seguidos e orientando uma mudança em direção a uma sociedade “industrial-urbana”.

No entanto, os Apinayé continuam lutando para preservar todos os aspectos de sua cultura de forma o mais tradicional possível, porém buscando incorporar o “novo” trazido pelo não-indígena. O desinteresse dos mais jovens em aprender a confeccionar objetos tradicionais e de maneiras tradicionais parece dever-se à esta transição cultural atual, a este movimento em relação a uma cultura “industrial-urbana”, tomando-se as devidas proporções em cada grupo.

Ainda, vale deixar como informação para os que lerem esta tese, que, de acordo com Berta Ribeiro (1983), os Timbira conheciam a arte da tecelagem, algo que me surpreendeu, pois não vi e nem ouvi nada sobre tecelagem Apinayé em minhas visitas às aldeias, mesmo tendo conversando bastante (de maneira informal) com mulheres Apinayé. Coloco aqui uma passagem de Berta Ribeiro sobre esta arte Timbira:

O acesso aos livros de Koch-Grunberg e de Roth, com sua farta documentação iconográfica, poderia proporcionar aos índios das Guianas a oportunidade de um renascimento de suas artes milenares. O mesmo se pode dizer com relação ao trabalho de Dolores Newton (1970), ainda inédito, sobre a tecelagem de grupos Timbira. O levantamento e documentação fotográfica de antigas coleções, em museus nacionais e estrangeiros, feitos por essa pesquisadora constitui uma fonte preciosa de memória tribal a ser devolvida aos Timbira. (RIBEIRO, 1983, p. 19).

Também, pude verificar na leitura da bibliografia para este trabalho que os estudos sobre manifestações estéticas de culturas indígenas (aqui incluo também a música) têm buscado focar em grupos específicos ou técnicas artísticas específicas, onde cada estudioso se dedica à compreensão de determinado saber ou fazer. Isto mostra uma mudança de foco dos estudos indígenas das décadas de 1970 e 1980, onde os estudiosos buscavam informar ao Brasil sobre a existência e a importância dos indígenas para a sociedade nacional. Os trabalhos das décadas mencionadas focavam em informações mais gerais, como pude verificar nos trabalhos de Berta Ribeiro e Darci Ribeiro. Elizabeth Travassos (2003) nos deixa ver claramente este ponto na seguinte passagem sobre estudos na área de etnomusicologia:

Os trabalhos recentemente produzidos trilham caminhos próprios, mas são argumentações convincentes a favor da coerência entre concepções e práticas musicais, por um lado, e sociabilidades, visões de mundo e rituais, por outro. Eles

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aparecem num momento em que se discute a “crise” do conceito sistêmico de cultura... (TRAVASSOS, 2003, p. 79).

Pude, então, verificar que a função do objeto musical na sociedade Apinayé é mais do que ser usado em ritos e festividades, ele traz em si um saber tradicional aprendido e repassado pelas relações consanguíneas de parentesco, reforçando laços, funções e papéis sociais, trazendo as pessoas mais próximas, como nos diz John Blacking (2000, p. 99): “...the function of music is to reinforce, or relate people more closely to, certain experiences which have come to have meaning in their social life”.

A figura do artesão que confecciona e ensina a confeccionar estes objetos musicais tem papel relevante na sociedade Apinayé, sendo reconhecido socialmente como um possuidor dos saberes e fazeres culturais ancestrais deste povo, assim como o cantor que se utiliza do objeto musical e detêm os conhecimentos dos cantos.

Por conseguinte, como vista por John Blacking (2000, p. 55), a vida é mais um processo de tornar-se socialmente e culturalmente alguém do que um estágio no processo evolucionário das coisas. Assim sendo, vemos a importância das funções social e sobrenatural do objeto musical enquanto objeto cultural. Os instrumentos musicais participam de nossas vidas de forma “despercebida” e podem nos ajudar a compreender melhor a sociedade onde vivemos.

Além disto, a etnomusicóloga Rosângela de Tugny (1999), invertendo a lógica discursiva de poder entre a música de tradição europeia e a primitiva, nos coloca uma pergunta e uma resposta que valem a pena ter em mente:

Até que ponto as gramáticas musicais contemporâneas admitem elementos de linguagens nascidas de universos éticos totalmente diversificados?

Seria necessário que a lógica da música, ou das músicas europeias, esta lógica da neutralidade, se transformasse em sua essência, em algo que liberasse o compositor para tratar internamente outros elementos musicais já assimilados a outras culturas. (TUGNY, 1999, p. 15).

Assim sendo, esta “lógica da neutralidade” de que fala Tugny é uma lógica do relativismo antropológico, onde a manifestação cultural do “outro” deve ser vista e entendida dentro da cultura do “outro” (seus costumes, hábitos, significações, saberes,

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fazeres, etc.). Coloco aqui uma passagem de Margarete Arroyo (2002) sobre este ponto em relação à música:

Então, de acordo com uma visão relativizadora e da compreensão de cultura como teia de significados que conferem sentido à ação dos grupos sociais, a música de, por exemplo, alguma população africana deve ser compreendida segundo a lógica da cultura desta população e não segundo procedimentos valorizados de outra cultura. Esta música africana não pode ser mais chamada de primitiva como o fora antes, aos olhos da cultura européia. Esta postura relativista foi propiciando à Etnomusicologia a superação de uma visão eurocêntrica de música, isto é, uma visão que tomava como referência de análise e valor a música européia de concerto, e o reconhecimento de que já não seria possível falarmos de música no singular. (ARROYO, 2002, p. 20).

Além disto, vimos que a educação tradicional que se processa nas sociedades indígenas brasileiras está relacionada com um ensino que acontece no decorrer das atividades da vida diária, de maneira informal, que foca em informações concretas e que busca reforçar os laços culturais, sobrenaturais e sociais dos povos indígenas. Esse processo de ensino-aprendizagem tenta focar na produção e reprodução dos fazeres e saberes tradicionais de interesse coletivo de um povo.

No caso específico desta tese, pude verificar, também, que a educação tradicional Apinayé, através do estudo da confecção dos instrumentos musicais nesta sociedade, é responsável por reforçar laços sociais consanguíneos e marcar certas distâncias sociais (piâm) dentro da casa materna.

Diferentemente de outros grupos indígenas, os Apinayé seguem a lógica social das substâncias (sangue materno e fluido seminal paterno) nos processos de transmissão de saber tradicional, ou seja, os laços de sangue dominam as relações dentro da casa onde se vive (cf. DAMATTA, 1976, p. 95). Por outro lado, as obrigações rituais são marcadas pelas relações de nominação e “apadrinhamento”, mais distantes dos laços de consanguinidade e mais próximos da lógica sócio-cerimonial do grupo.

Efetivamente, os objetos musicais são aprendidos na esfera da vida cotidiana da família nuclear para serem utilizados em um mundo público cerimonial. Essa dualidade entre vida privada e pública marca a rotina dos Apinayé, demonstrando, mais uma vez, que a simetria de valores sociais dada às coisas materiais e imateriais (como vista nos dualismos) marca a eterna busca de equilíbrio entre “opostos” da sociedade Apinayé.

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Em uma ótica etnomusicológica, os processos de ensino-aprendizagem Apinayé envolvidos na confecção dos instrumentos musicais somente reforçam a particularidade cultural deste grupo. Uso aqui uma passagem de Luis Ricardo Silva

Queiroz (2004) sobre esta unicidade que a linguagem musical própria de cada grupo pode

nos trazer:

...não estamos concebendo a música como uma “linguagem universal”, pois tal concepção seria errônea, tendo em vista que cada cultura tem formas particulares de elaborar, transmitir e compreender a sua própria música, (des)organizando os códigos que a constituem. Dessa forma, não nos é possível compreender universalmente todas as músicas do mundo, por ser a linguagem musical de cada cultura adequada ao seu sistema singular de códigos. O que nos é possível, e que a educação musical deve nos proporcionar, é a interação com música de diferentes contextos culturais, ampliando a nossa dimensão e percepção musical, fazendo com que a partir do contato com outras linguagens possamos inclusive ampliar o nosso próprio discurso musical. (QUEIROZ, 2004, p. 101).

Além disto, a educação tradicional indígena se pauta na livre escolha dos indivíduos em decidirem seus caminhos para o aprender e o ensinar, marcando um diálogo de simetria entre quem ensina e quem tem interesse em aprender. Este diálogo aberto socializa os indivíduos dentro de seus grupos e ancora-os em suas tradições ancestrais simbólicas de povo indígena diferenciado e único. Utilizo-me de uma passagem de Clifford Geertz (2008) onde ele deixa claro que aprender de forma tradicional implica em aprender específicos significados simbólicos:

… nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura – não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e classe baixa, acadêmica e comercial. A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico. (GEERTZ, 2008, p. 36).

Nesta tese sobre a confecção dos instrumentos musicais Apinayé, partindo do processo de ensino-aprendizagem, buscou-se compreender as especificas implicações socialmente significativas que este aprendizado representa para este povo.

As operações e processos de confeccionar objetos musicais são o resultado de um jeito particular de ser e de pensar, específico de uma determinada cultura e cheio

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de complicadas relações e nuances sociais. Os saberes relativos aos objetos musicais, seus efetivos processos de confecção e de ensino-aprendizagem materializam redes complexas de interação social, reforçando laços, emoções, ações, sentidos e significações. Os Apinayé são conhecidos pelos outros povos Timbira como sendo mais “fechados” em sua cultura, daí a importância fundamental em compreender melhor estas redes significativas e como elas operam na vida diária deste povo.

Além disto, todos os processos e situações de aprendizagem pelos quais passa um artesão iniciante na confecção de instrumentos musicais são consolidados fundamentalmente durante a prática (vivência) da confecção e durante a utilização de tais instrumentos. A música produzida com tais artefatos sonoros é, portanto, uma forma significativa na rede de relações e estruturas sociais e simbólicas dos Apinayé. De acordo com Sonia Chada (2011), para entender o campo da música é preciso lidar com outros domínios da cultura, como o social, o espiritual, o artístico, etc, como mostra a passagem abaixo:

Para a Etnomusicologia, a música é algo que porta uma verdade que não se encontra exclusivamente na sua dimensão sonora, não sendo, portanto, passível de uma definição meramente como arte de organizar os sons; se assim fosse, um aprofundamento da Musicologia poderia dar conta de reter todo seu significado. O sentido da música aponta, no entanto, para outros domínios da cultura; seu significado opera em vários níveis de consciência. (CHADA, 2011, p. 17).

Como já bem nos informou John Blacking (2000, p. 25), o que é relacionado à música não é sempre estritamente musical. Assim sendo, a confecção dos instrumentos musicais dos Apinayé se utiliza de um sistema de relações sociais próprio que ajuda a reforçar a rede de significações de relações e de estruturas sociais. Os saberes em relação à confecção de um simples maracá foi transmitido através de relações de substâncias essenciais e simbólicas para este povo, mostrando-nos que há mais na criação e execução de música do que questões estritamente musicais.

Ainda, na performance Apinayé, as músicas (vocais e instrumentais), as danças, as encenações, os papéis cerimoniais, o contato com os sobrenaturais, enfim, todos os aspectos envolvidos nas festas de cultura trabalham na direção de reforçar significações rituais, reatualizando a experiência dos eventos míticos que ajudam a definir a identidade deste povo indígena.

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Pude verificar, também, que o preciosismo na confecção dos objetos musicais já não existe mais entre os Apinayé. Se comparo os objetos confeccionados hoje aos objetos vistos na bibliografia especializada, verifico uma forte mudança (diminuição) na quantidade de aspectos “decorativos” dos objetos atuais. Daí a aceitação e a demanda desta tese pelo povo Apinayé, já que este estudo retornará aos Apinayé como fonte de informações aos seus anseios de salvaguarda de um conhecimento ainda possível de ser recuperado e utilizado.

Concluindo, a música tem, portanto, na sociedade Apinayé, um caráter altamente socializador, sendo um elemento fundamental no processo de construção do mundo social e significativo deste povo, e não se colocando somente como um reflexo de um complexo e rico mundo social. Assim, as relações sociais Apinayé podem ser assinaladas a partir dos saberes ligados à música, delimitando, por exemplo, faixas etárias, status social, estados afetivos, papéis de gêneros, individualidades e grupos.

Também, o sistema musical Apinayé é parte de um mecanismo que está sempre buscando o equilíbrio das metades que compõem a vida deste povo. Pude notar que a música tem função importante na ligação dualista entre o mundo natural (social) e o sobrenatural (dos espíritos), sempre ajudando na busca de equilíbrio.

Mais ainda, que cada sociedade indígena desenvolve metodologias e processo culturais próprios de ensino-aprendizagem. No caso deste estudo, verificou-se que os Apinayé baseiam sua metodologia tradicional de ensino nos laços de consanguinidade, reforçando os valores simbólicos e sociais das substâncias (sangue e esperma, por exemplo) para seu grupo. A compreensão e apreensão de significados, especificidades e valores étnicos marcam o âmbito da transmissão de saberes e fazeres culturais. Assim, no caso da confecção dos instrumentos musicais Apinayé, o lugar social de ensino e aprendizagem tradicional Apinayé é, portanto, a família nuclear onde exista a presença de artesãos masculinos e parentes de sangue.

Também, os instrumentos musicais Apinayé, principalmente o maracá (gôhtàx), tem poderes “sobrenaturais” na medida em que se fazem indispensáveis na realização das performances rituais onde os espíritos (karõ) estão envolvidos, ligando o mundo natural ao sobrenatural, harmonizando-os. Portanto, verifica-se que o sistema musical Apinayé tem, também, importante papel sobrenatural e social.

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Ainda, a agentividade do objeto musical (principalmente do maracá) acontece somente durante as performances rituais (onde a música sempre se faz presente), auxiliando no fortalecimento da unicidade étnica deste povo em meio às transformações vindas de fora das aldeias. Assim, a música se reafirma como chave desencadeadora da performance ritual, onde o som é a forma primariamente simbólica da experiência de uma performance indígena.

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