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JORNALISMO COMO SEMIÓTICA DA REALIDADE SOCIAL 1

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JORNALISMO COMO SEMIÓTICA DA REALIDADE SOCIAL

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Ronaldo Henn2

Resumo: A produção jornalística possui caráter essencialmente semiótico. Seja

pela pretensão representacional intrínseca ao processo, seja pela oferta de sentidos sobre o mundo que ela opera ou, até mesmo, pelo fato de intervir neste mundo ao ponto de, de algum modo, constituí-lo, sua semioticidade transborda em várias nuances. Pretende-se, neste artigo, o levantamento destas nuances e seus possíveis vínculos com algumas perspectivas teóricas projetadas para o jornalismo ao longo do século XX. Pensam-se, em um primeiro momento, as práticas jornalísticas a partir de uma semiótica que dê conta não só dos aspectos constitutivos da linguagem propriamente dita, mas também de toda a processualidade disparada na produção de qualquer sistema de signos. Em um segundo, postula-se o jornalismo com um dos atores da construção da realidade social e das operações de enquadramento que delimitam o espaço chamado de semiosfera.

Palavras-Chave: Jornalismo. Semiose. Realidade social.

1. Jornalismo e semiótica

A natureza semiótica da notícia já foi pensada, sob alguns ângulos, em trabalhos anteriores (HENN, 1996, 2002). Neste texto, em particular, o que se quer, além da revisão de conceitos anteriormente propostos, é o estabelecimento de conexões mais densas com algumas linhas de pensamento que permitam o desenho de uma epistemologia do jornalismo. Muitas são as possibilidades de aproximação entre as áreas do jornalismo e da semiótica. Boa parte deste namoro que, via de regra, apresenta bons índices de satisfação mútua, ocupa-se da metodologia construída pelas diversas teorias semióticas na interpretação de produtos jornalísticos. Sentidos que normalmente escapam a uma leitura convencional ganham a cena em análises desta natureza, em que operações ideológicas, textuais, as que se dão na intersecção entre diferentes sistemas de signos e outros processos de desconstrução sígnica,

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Estudos de Jornalismo”, do XVII Encontro da Compós, na UNIP,

São Paulo, SP, em junho de 2008.

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são acionados para que melhor se entenda os efeitos de sentido produzidos nestes ambientes. Outra direção deste encontro é bem menos partilhada. Trata-se de pensar a semiótica como fonte de uma possível fundamentação epistemológica da processualidade do jornalismo.

Entre a diversidade de conceitos semióticos construídos ao longo do séc. XX, os advindos da Teoria Geral dos Signos de C. S. Peirce são os que mais se prestam a este tipo de articulação. Na verdade, a maneira prodigiosa como Peirce entendia a semiose, processo que, simultaneamente, opera uma dimensão representativa e outra interpretativa, leva quase que compulsoriamente a um raciocínio semiótico que sai do problema da significação sirito senso e se lança a pensar sobre seus modos de constituição. É nesta ambiência que questões históricas do jornalismo podem ser revisitadas.

Robert Henry Srour (1978) entendia que todo o processo de conhecimento constitui uma operação trabalhosa, uma atividade ininterrupta. Destacava quatro premissas que suportam a obtenção de conhecimento: o mundo existe independente de seu conhecimento; o mundo natural e social sofre determinações reais sendo que a estruturação interna de seus fenômenos e a lógica de sua estruturação interna produzem efeitos substanciais; as determinações reais podem ser conhecidas, previstas e, numa certa medida controladas, ou mesmo apropriadas cognitivamente para uma possível intervenção; e o conhecimento resulta de uma produção na medida em que a obtenção do conhecimento se comporta como uma prática ou um processo de transformação-apropriação do mundo. “Pensar é um modo particular de intervir na realidade” (SROUR, 1978, p. 33), destaca o autor, para quem as atividades dos agentes coletivos não são concebidas como uma prática única e homogênea. A prática social é uma unidade complexa de práticas diferenciadas.

Lúcia Santaella (1996, p. 60-61) percebeu na perspectiva de Srour sobre a aquisição de conhecimento questões muitos próximas às desenvolvidas exaustivamente por C. S. Peirce na medida em que sua Semiótica “não é apenas o levantamento classificatório de signos, mas o perscrutar acurado dos modos como a consciência-pensamento opera transformando qualquer coisa que lhe apresenta de modo que, no ato de apreender, o pensamento necessariamente o converte em signo”.

Na verdade, a ação do signo transmuta-se em uma operação fundamentalmente mediadora. “Ao mesmo tempo em que o signo é um mediador entre o homem e o mundo, o homem é um mediador entre um signo e outro signo. Nesta medida, o que se chama de

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consciência comparece como um locativo, lugar onde se opera a passagem que leva a mudança de um signo a outro” (SANTAELLA, 1996, p. 30). Peirce entendia que um signo representa algo para a idéia que provoca ou modifica. Um veículo que comunica à mente algo do exterior. “O ‘representado’ é o seu objeto; o comunicado, a significação; a idéia que provoca, o seu interpretante. O objeto da representação é uma representação que a primeira representação interpreta. A significação de uma representação é outra representação” (PEIRCE, CP 2:339).

Em outra instigante passagem dos seus escritos, Peirce apontava algumas prováveis causas do que ele considerava “aversão generalizada em reconhecer o pensamento como um fator ativo no mundo real” (PEIRCE, 1974, p. 102). Em primeiro lugar, “as pessoas acham que tudo o que ocorre no universo material é um movimento completamente determinado por leis invioláveis da dinâmica; o que não permite qualquer outro tipo de influência. Com tudo, as leis da dinâmica são muito diferentes das leis da gravitação, elasticidade eletricidade e similares”, (PEIRCE, 1974, p. 102). Peirce cria que as leis detectadas no universo físico são mutáveis, na medida em que a nossa percepção deste universo se transforma, transformando o próprio mundo. Isso acontece porque a semiose a cerca deste universo tem limites que vão sendo desbravados ao longo do tempo. Em outras palavras, nossa mediação com o mundo, seja ele de que natureza for (real, concreta, imaginária, onírica), só se viabiliza através dos signos que, ao mesmo tempo em que possuem caráter infinito, são circunscritos de um lado pelas codificações que organizam as linguagens, sem as quais as significações ficam excessivamente entrópicas e, por outra, pelo inextricável vínculo histórico de sua produção. Do ponto de vista do jornalismo, considerando-se a notícia como signo, esta perspectiva de Peirce introduz desdobramentos preocupantes nas práticas e linguagens jornalísticas, como veremos adiante.

Peirce também entendia que todo o estado de consciência é uma inferência, de modo que a vida não é senão uma seqüência de inferências ou um fluxo de pensamentos. “Portanto, a todo o momento o homem é um pensamento e como pensamento é uma espécie de símbolo” (PEIRCE, 1977, p. 306). Dito de outra forma, o homem, ao interagir com o mundo, sociedade e consigo mesmo se faz signo tornando-se ele próprio um signo.

Nesta configuração, a consciência é percebida como um veículo de passagem:

E aquilo que chamamos mundo ou objetos simples ou complexos do mundo exterior ou interior, reais ou ficcionais, diferenças que aqui pouco importam, só são compreendidos ou conhecidos porque mediados por signos, isto é, o homem só

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conhece o mundo porque de alguma forma o representa e só interpreta esta representação numa outra representação que Peirce chama de interpretante de primeira. Daí que um signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende o conhecimento de uma outra coisa – que chamamos mundo ou realidade, ou seja lá o que for. Daí que, para o homem, o signo é um primeiro, o mundo, e inclusive o próprio homem, é um segundo e o interpretante um terceiro. Para conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos. Mas perguntaríamos: qual o lugar da consciência nesse jogo todo? E eis-nos diante da fatalidade do homo loquens, faber, sapiens: a consciência não tem lugar no jogo, ela é o lugar do jogo. (SANTAELLA, 1996, p. 30-31)

2. Jornalismo e semiótica

Esta intrigante formulação advinda do universo de Peirce reitera uma idéia que já há algum tempo as ciências sociais consagra. Ou seja, os agentes sociais não se relacionam com as coisas que significam direta e imediatamente por si mesmas. A abstração não se reduz a um espelho do real. É muito mais do que isso. Dele se apropria cognitivamente e modifica de modo particular o objeto apropriado. Por conta disso, as idéias tornam-se tão reais quanto as coisas da natureza, embora com materialidades distintas.

É nesse sentido que Lúcia Santaella (1996, p. 67) entenderá os sistemas de signos como espaços produtivos, “práticas vitais, relações que confrontam agentes coletivos, mediadas por meios materiais e inseridas num processo específico e relativamente autônomo”.

Esta matriz fortemente enraizada no pensamento peirceano permite que se pense o jornalismo em uma de suas perspectivas teóricas mais profícuas, ou seja, a idéia de que a produção de notícia participa da construção social da realidade.

Antes de tentar estabelecer esses nexos, profundamente expostos na cartografia de funcionamento dos signos projetada por Peirce, convém pensar de que maneira o jornalismo começa a se postular não só como uma prática que se esgotaria em sua ação na difusão disso que o senso comum chama de real, mas como alguma coisa que tenha estatura epistemológica na medida em que também cria um conhecimento sobre esse mundo sobre o qual atua e interage. Serão nas formulações pioneiras de Otto Groth que esse pensamento começa a ganhar consistência.

No início do século XX, Groth (2006) reclamava que a ciência do jornalismo tem que conquistar seu espaço, no que pese a luta pelo seu reconhecimento, mesmo que isso já acontecesse de forma relativa na Alemanha de sua época:

(...) no fundo, ela deveu esse tratamento preferencial, por mais importante e frutíferos que fossem os esforços praticantes e teóricos da época, à importância da

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imprensa periódica na sociedade atual e no Estado atual e às necessidades de conhecimento, assim despertadas, de círculos instruídos e participantes da imprensa periódica, e menos às exigências de formação da profissão jornalística e menos ainda aos resultados já obtidos pela pesquisa científica. Não foi sem razão que se chamou nossa época de a época ‘jornalística’. O espírito do ser humano é amplamente moldado e preenchido pelo jornalismo, entre outros fatores. O jornalismo determina, sobretudo, a direção do pensamento e da vontade das amplas camadas da sociedade, e não só destas: dele depende em grande parte, o patrimônio do conhecimento e, por conseguinte, a capacidade de julgamento de todo o povo. (GHROT, 2006, p. 184 )

Ghrot entendia que jornais e revistas são obras culturais, cultura entendida em termos abrangentes como conjunto de criações humanas de sentido que estão em constante crescimento e mutação. Se quisermos, indagava ele, uma ciência cultural própria dos jornais e das revistas, precisaremos perguntar primeiro a respeito dessa unidade interior assim determinada e constatar nossos problemas e conceitos de acordo com ela, mas não pesquisar, por exemplo, os conteúdos político-históricos ou os produtos literários dos jornais e revistas. “Esses objetivos já são perseguidos por outras ciências e deveriam ser perseguidos por elas, e para a ciência jornalística os resultados a serem obtidos só entram em cogitação secundariamente: neste sentido, aquelas ciências serão ciências auxiliares da ciência jornalística autônoma e particular” (GROTH, 2006, p. 188).

Berger e Luckmann (1983), no intuito de entenderem como a realidade é acessível ao senso comum dos membros de uma comunidade, postulavam que o mundo cotidiano não é tomado apenas como uma realidade certa, mas é um mundo que se origina no pensamento e nas ações dos homens comuns. É dessa perspectiva que Eduardo Meditsch (1998, p. 32) postula o jornalismo com forma de conhecimento, tanto no que diz respeito à sua fragilidade quanto à sua força. “É frágil enquanto método analítico e demonstrativo, uma vez que não pode se descolar de noções pré-teóricas para representar a realidade. É forte na medida em que essas mesmas noções pré-teóricas orientam o princípio de realidade de seu público, nele incluídos cientistas, filósofos quando retornam à vida cotidiana vindos dos seus campos finitos de significação”. E conclui: “Em conseqüência, o conhecimento do jornalismo será forçosamente menos rigoroso do que o de qualquer ciência formal mas, em compensação, será também menos artificial e esotérico”.

As concepções de jornalismo como ciência (GROTH, 2006; GENRO FILHO, 1989) ou como forma de conhecimento (PARK, 1940; MEDISTSCH, 1998) que, diga-se de passagem, nunca foram facilmente digeríveis no campo das ciências sociais e, muito particularmente, no

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campo da comunicação, ganharam um sabor irresistível com as formulações construcionistas que começaram a habitar o repertório dos estudos do jornalismo no final da década de 1970. Gaye Tuchaman (1993), em memorável artigo em que desconstrói a noção corrente de objetividade nos chamava a atenção de que há todo um aparato no circuito de produção da notícia o que faz ser ela muito mais do que uma simples “representação” da realidade. Há ali um processo de construção que uma série de investigações na esteira dos chamados

newsmking (WOLF, 1987; TRAQUINA, 2004) nos desvendaram em nuances das mais

diversas.

Parte da noção construcionista filia-se diretamente à perspectiva fenomenológica de Berger e Luckmann3 (1983), que pensam a realidade como produto de uma interação de saberes e institucionalizações que as práticas cotidianas vão instaurando. Na medida em que o jornalismo atua intensamente nestas práticas, vem dele força potente na configuração destes saberes. Há também uma perspectiva discursiva: o jornalismo é um produto de linguagem e, portanto, só consegue se objetivar no discurso. Sendo operação de linguagem, independente dos possíveis referentes aos quais se vincula, será uma construção.

Ambas as possibilidades são semioticamente relevantes e complementares. O homem em sua dimensão sócio cultural só existe na condição de signo e interage no mundo através desta irrecusável mediação. Desta forma, a noção de uma realidade construída socialmente e semioticamente é detentora de grande potência. Por mais que a idéia de representação é intrínseca a um processo semiótico qualquer, ele avança para outros dois vetores igualmente inalienáveis: gera interpretação sobre as coisas e o signo se converte em ponto indispensável para qualquer processo de mediação.

Os meios de comunicação introduzem complexidades inéditas a tais processos, pois, entre outros fatores, junto com o seu advento, emergem toda uma nova diversidade de sistemas de signos, no interior dos quais a linguagem jornalística se institui, se prolifera e se diversifica. Os avanços da industrialização ainda no século XIX, a consolidação hegemônica de um pensamento burguês liberal e a gradativa transformação dos bens simbólicos em mercadorias contam com a presença constitutiva do jornalismo (HOBSBAWM: 1981).

3 Cristina Ponte (2005, p. 97-98) entende que ainda que sejam raras as referências ao jornalismo na obra de

Berger e Luckmann, dela retiram-se conceitos fundamentais para a compreensão do jornalismo como forma de conhecimento singular, como vida cotidiana, linguagem e acervo social do conhecimento, reificação e legitimação.

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A informação neste cenário emergente concentra várias condições: de mercadoria altamente valorizada, de definidora de um novo espaço público, de acesso a um universo simbólico de outra ordem e de acesso à própria realidade social que a imprensa passa, sem dizer, a configurar. Convertendo-se numa espécie de centro nevrálgico de um sistema midiático que eclodia e que iria, mais de 100 anos depois, ingressar em frenesi que ainda nos assombra, o jornalismo arroga para si poderes que toda uma ideologia calcada nos princípios liberais do final do século XVIII até hoje ainda suaviza. Não é à toa que já no decorrer do século XIX autores como Balzac lançavam implacável ira contra o que consideravam atrocidades deste novo poder4.

É dessa perspectiva que nas Primeiras Jornadas de Sociólogos Alemães entre 19 e 22 de outubro de 1910, em Frankfurt. Max Weber (2006) propôs aos seus colegas converter o jornalismo em objeto de análise sociológico, a partir de uma definitiva constatação “imaginem que a imprensa não exista, pensem em como seria então a vida moderna sem esse tipo específico de âmbito de público que a imprensa cria”. O sociólogo, em uma visão pioneira, lançava as bases de uma investigação de estudos em jornalismo:

É interessante perguntar que aspecto tem o público na atualidade e que aspecto terá no futuro, o que é que e o que não é que se tornar público através da imprensa? Se há 150 anos o parlamento inglês obrigava os jornalistas a pedirem perdão de joelhos pelo breach of privilege, quando informavam sobre a sessão, e se atualmente a imprensa, com a simples ameaça de não divulgar o discurso dos deputados põe de joelhos ao Parlamento; então evidentemente alguma coisa mudou, tanto na concepção do parlamentarismo como na posição da imprensa. De nossa parte, temos que investigar, antes de mais nada, as relações de poder criadas pelo fato específico de que a imprensa transforme em público determinados temas e questões. (WEBER, 2006, p. 35)

Décadas depois, entre outras propostas de se pensar uma ciência do jornalismo com bases próprias, para além da sociologia de Weber, como já havia formulado Otto Groth, desenvolve-se a chamada Escola de Munich que postulava a legitimação desta ciência “com método e objeto próprio de saber”. A partir da fórmula “o jornalismo é a conversação contemporânea da sociedade”, o convertem, para além de processamentos técnicos ou econômicos, como um fenômeno primogênito da comunicação social (BETH e PROSS, 1987, p.20-21).

4 Segundo José Miguel Wisnik (1992, p. 324), o que atualiza o romance Ilusões Perdidas de Balzac “é o fato de

que seus jornalistas manifestam uma escancarada consciência, cínica, de todos esses processos de uso e abuso do poder, como se lessem nas vísceras da incipiente e florescente imprensa de então dessa que, aliada à publicidade, fará e desfará monarquias com a mesma facilidade com que faz e desfaz contextos”.

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Acreditamos que nesta publicização reside a questão semiótica central das reflexões aqui propostas. As notícias funcionam como signo de natureza muito especial. Pensadas no mapa da semiose peirciana, elas acionam toda uma rede interpretante através da qual esta “conversação contemporânea” não só se instaura, mas se converte em realidade social ela mesma. Mas se considerarmos as operações anteriores, outras semioses, também engendradas nas tramas da sociedade, são deflagradas na constituição de acontecimentos traduzíveis em fatos. Em outras palavras, acontecimentos noticiáveis já são de natureza sígnica e, neste sentido, são engendrados como mecanismos de mediação.

Em Peirce, o signo ocupa o lugar de um objeto, classificado como dinâmico, e que se encontra, do ponto vista lógico, fora dele. Representa este objeto de algum modo e sob determinados aspectos. Representação essa sempre parcial, restrita a diversas circunstâncias e com a possibilidade de falsear o objeto em questão. Ao representar, o signo gera os interpretantes, outros signos, cujo motor processual reside no desvendamento do objeto inicial. Desta forma, novos signos podem agregar perspectivas não vistas deste objeto.

Se considerarmos os objetos da notícia como integrantes do universo sígnico, podemos pensá-la como ponto interpretante de uma extensa semiose, portanto já situada logicamente em uma essência interpretativa. Mesmo que o objeto da notícia seja alguma coisa da ordem da natureza, como um cataclismo, seu processamento no território da noticiabilidade atravessa complexa rede de mediações, que já se estabelece na percepção desta ocorrência como algo que mereça difusão. Existe toda uma codificação no jornalismo que foi se instituindo ao longo destes dois séculos no interior da qual se sobressaem os valores notícias e os critérios de noticiabilidade.

Por outro lado, entre o acontecimento (cuja constituição obedece a uma diversidade de tramas semióticas) e a notícia há todo um circuito de produção que se converte em processo interpretante. Da elaboração das pautas, na discussão interna entre editores, da ação efetiva dos repórteres na apuração de dados, nas escolhas das fontes e posteriormente das suas falas ou informações, na coleta de imagens e nos mecanismos de edição, tudo isso significa instâncias interpretativas nas quais os signos notícias vão sofrendo traduções e transformações.

Estas operações são em grande monta legitimadas por uma espécie de autoridade sobre os acontecimentos que os jornalistas, como categoria profissional, sedimentam. Barbie Zelizer (2000) vale-se do conceito de comunidade interpretativa para descrever tais

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procedimentos. Segundo ela, os jornalistas unem-se criando estórias sobre seu passado através de diversos dispositivos de discursos, desde conversas informais até a publicação de memórias ou autobiografias. Em função disso, defende que “tomar o jornalismo como comunidade interpretativa dá uma imagem bastante diferente da que é dada pelo enquadramento da profissão e põe em evidência elementos ligados à prática jornalística, que são centrais aos próprios jornalistas” (ZELIZER, 2000, p. 39).

Molotch e Lester (1993, p. 40-41) entendem os jornalistas como formando uma segunda agência na produção de acontecimentos públicos. O fato de as necessidades de acontecimentos dos responsáveis pela montagem ajudarem a formar acontecimentos públicos dá a entender a importância das atividades organizacionais através das quais a notícia é produzida. “A natureza dos media enquanto organização formal, enquanto rotinas de trabalho nas salas de redação, enquanto padrões de mobilidade profissional para um grupo de profissionais, enquanto instituições de criação de lucros, está inextrível e reflexivamente ligada ao conteúdo das notícias publicadas”.

Alsina (1989) enfatiza mais diretamente este caráter ao mesmo tempo semiótico e construcionista do jornalismo. Os acontecimentos são conhecidos graças aos meios e se constroem por sua atividade discursiva, ou seja, "o processo de construção da realidade depende totalmente da prática da prática produtiva do jornalismo" (ALSINA, 1989, p. 30). Estariam conectadas a uma mesma rede semiótica que tem no poder de tematização ou agendamento a força constituinte de interpretantes que se estabelecem no cotidiano público.

3. Jornalismo e semiosfera

Em outro desdobramento do processo temos a geração de um ambiente interpretante nos quais as notícias ganham sentido público. Os interpretantes gerados pelos signos não são unívocos e sempre tendem a se constituir como “mais desenvolvidos”, no sentido de fazerem avançar a semiose. Também não são necessariamente verbais: apreciações meramente qualitativas, reações emocionais ou mesmo ações concretas na sociedade podem estar enquadrados, segundo a proposta de Peirce, na categoria de interpretantes.

As notícias, na condição de signos orquestrados em várias camadas de linguagem (texto verbal, diagramático, visual, ideológico e outros) estão aptas à produção de interpretantes de qualquer espécie. Mas há um fluxo hegemônico que se converte em uma espécie de ambiente

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temático em que uma série de sentidos é processada, que, por um lado dependerá das

operações de enquadramento em que as notícias são costuradas e, por outro, do contexto de recepção que Peirce entendia como experiência colateral e que Martin-Barbero (2004) situa no terreno das mediações sócio culturais.

É esse ambiente que a hipótese da agenda setting vai detectar no início dos anos de 1970. Ou seja, considerando-se também os processos produtivos, todas as instâncias estariam conectadas a uma mesma rede semiótica que tem no poder de tematização ou agendamento a força constituinte de interpretantes que se estabelecem no cotidiano público. A postulação original desta hipótese apontava que os sistemas noticiosos mais do que divulgarem acontecimentos, também estipulam as categorias através das quais os consumidores podem tematizá-los. Desta forma, as pessoas elaboram seus conhecimentos sobre o mundo a partir daquilo que a mídia inclui ou exclui do seu próprio conteúdo. Isso não quer dizer que exista um fluxo unidirecional. Este intepretante em grande escala, que seria a tematização propriamente dita, e os ambientes semióticos em que ela se delineia, geram interpretantes específicos provenientes de outras redes semióticas propiciando uma pluralidade de sentidos ou de apropriações de sentidos (HENN, 2005).

Mais tarde, os proponentes da agenda setting iriam pensar também em termos de enquadramento (McCOMBS E SHAW, 1993), ou seja, além de lançarem os temas sobre os quais a sociedade se ocupa, as notícias também sugerem um pista interpretativa de acordo com os enfoques e critérios editoriais com que são enquadradas. Nelson Traquina (2005: 16-17) chega a sustentar que a teoria do agendamento sublinha uma forte mudança no paradigma dominante da teoria dos efeitos dos media e significa uma redescoberta no poder do jornalismo “não só para noticiar estes acontecimentos e/ou temas mas também para enquadrar estes acontecimentos e/ou temas”.

A palavra enquadramento comparece em outros ambientes teóricos como no interacionismo simbólico (GOFFMAN, 1974) e também nas teorias da memória coletiva (HALBWACHS, 1990). Se pensarmos como Rebeca Nunes (2001), que postula que a memória da mídia é constituída por memes que se replicam, pudemos supor que os enquadramentos que a mídia estabelece desde sempre tendem de alguma forma a se perpetuarem. E nessa proposição entra-se em outra dimensão desta complexa semiose que o jornalismo dispara: a configuração de memórias coletivas já previamente enquadradas. Ou seja, esse conhecimento do mundo que as perspectivas teóricas pioneiras supunham portar o

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jornalismo, possui uma extensão e uma perpetuação de conseqüências ainda a serem exploradas.

Esse ambiente interpretante em larga escala formado pelas notícias formata, em grande medida, aquilo que o semioticista russo Iuri Lotman conceituou como semiosfera (HENN 2005 e 2006). A noção de semiosfera figura entre as principais propostas formuladas pelo autor que liderou a chamada Escola de Tártu5. Ela descreve o espaço produzido por todos os processos de semiose e traz, para o plano da cultura, dinâmicas isomorficamente próximas ao que acontece no plano da vida, cujos processos constroem a biosfera. Isso significa que a semiosfera comporta-se como sistema não linear, sujeito a flutuações tanto pequenas como estrondosas e que está em contínuo processo de mudanças que podem culminar em transformações radicais. Como a semiosfera engloba o conjunto das dinâmicas culturais, é neste espaço conflitante e ruidoso que se dá a produção de sentido e a de memória coletiva, operação na qual o jornalismo assume grande protagonismo.

No noticiário sobre crimes, esta dinâmica de enquadramento atinge tons sinistros. Padrões repetidos de textos, fontes oficiais e de endereçamento, geram uma gama de estereótipos que tendem a se fixar no tempo. Através deles, extratos inteiros da cultura são condenados, a priori, a uma zona de silenciamento (POLLAK, 1989): não têm demandas, não têm memória.

Reitera-se, à guisa de conclusão, que existe uma epistemologia da notícia de base semiótica que se processa através de ramificações e tramas de diversas ordens. Desde os processos de produção propriamente ditos, nos quais se incluem a constituição dos acontecimentos, até a conversação pública que gera e a formatação de uma memória coletiva, estamos às voltas com sistemas de signos e operações de transmutações. Operações estas que terminam por constitui o próprio mundo. Os interpretantes tendem, por conta de hegemonias midiáticas e reiteração de enquadramentos, a circunscrições redutoras. Como se pensa na fixação disso em uma memória, as conseqüências em termos de uma semiose in futuro são bastante densas. As próprias noções tanto de semiose como de semiosfera, por outro lado, acenam para a possibilidade de rupturas inventivas que permitam conhecimentos novos ou silenciados. Forças qualitativas na produção de signos e disputas fronteiriças no território da

5 Nos fins da década de 1950, o professor de literatura russa da Universidade de Tártu, Estônia, Iuri Lotman,

organizou ali encontros com diversos semioticistas e passou a publicar os trabalhos que originariam a vertente conhecida como Semiótica da Cultura (SCHNAIDERMAN, 1979).

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semiosfera podem fazer eclodir outras séries culturais. Uma luta que envolve produtores de linguagem, pesquisadores e a própria sociedade.

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Referências

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