A história e o horizonte
dopensar-entrevista com Denise Bernuzzi de 5
ant'Anna
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Apresentação, entrevista e notas: Antonio Luiz M acêdo e Silva Filho!
Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(pUC-SP), a historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna tem desenvolvido, ao
longo dos últimos anos, diversas pesquisas em torno de questões como
embelezamento, higiene, saúde e alimentação, cujo ponto de convergência
reside na preocupação em lidar com o corpo humano como um objeto do
conhecimento histórico. Para tanto, busca tratá-Ia nos termos de um feixe
de relações tecidas em culturas e épocas específicas, e não como um dado
natural e auto-evidente. Trabalho que exige problematizar continuamente
as condições de possibilidade que fazem emergir imagens, práticas e
valo-res cuja preponderância é resultado de confrontos e tensões entre os mais
diversos atores sociais; perspectiva que requer, ainda, o entendimento do
espaço - nesse caso, das cidades - como expressão concreta das projeções,
sentimentos e receios experimentados em determinado tempo e lugar.'
Nesta entrevista se buscou enfatizar a cidade e as formas pelas
quais o historiador pode abordá-Ia, seja no curso de suas investigações,
seja na elaboração de uma crítica do tempo presente - faces diversas de
um mesmo movimento: o de tecer possibilidades de compreensão sobre
modos de vida ligados à condição urbana, no passado como em nossos
dias. Pois, menos que uma definição estável e transparente, menos que
um conceito posto em causa de quando em vez, a cidade constitui, para
a reflexão historiográfica, um campo de problemas cujo encaminhamento demanda, sempre, rigor na análise dos documentos e clareza quanto aos
seus princípios teóricos. Em meio a todas essas exigências, a ética, como
veremos, exerce um papel indeclinável no vislumbre do alcance e dos limites
do conhecimento produzido.
Se uma entrevista supõe, de partida, inclinação ao diálogo, abertura
r .alçar um pormenor que acentua a disposição invulgar dessa interlocutora
para a seara do debate: o fato, trivial somente em aparência, de haver aceitado
tornar parte numa conversa que, ao contrário do usualmente praticado e em
razão de circunstâncias bastante específicas, aqui se efetuou por escrito. O
tempo da fala, mais ágil, descontraído e célere, precisou ceder à cadência
morosa da letra, demandando rigores e certa paciência de ordinário pouco
cultivada nessa forma de exercício acadêmico.
Na maneira corno discorre sobre as questões formuladas, Denise
Bernuzzi favorece um reencontro com seus trabalhos já publicados, de onde
reverberam ponderações e comentários sobre ternas diversos e
entrecruza-dos com sutileza - a cultura material, o viver urbano, a politização do saber
histórico, representações e práticas do corpo, aspectos da subjetividade
contemporânea, os encantos da lentidão e os apelos da velocidade - todos
assinalados por urna marca comum: a lucidez. Parece sugestivo que, lendo
a entrevista, sejamos igualmente reenviados aos textos dessa historiadora,
capturando neles nuanças de um entendimento que, por vezes,
afigurava-se até então menos explícito. Dessa maneira é possível obter um registro
oportuno acerca de procedimentos da pesquisa histórica que, muitas vezes,
cintilam discretamente na superfície da escrita, e agora aparecem com maior
realce. Pois urna entrevista não é nunca ponto de chegada, mas baliza, sempre
provisória e movente, a partir da qual se desenha um horizonte capaz de
aco-lher nossas idéias e questionamentos; ciente de suas limitações, ela pretende
incentivar outras incursões do pensamento que, partindo desse contato mais
ameno e direto, conduzam a indagações outrora impensadas.
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5uas reflexões têm constantemente se dedicado ao .·orpo como um campo de III/I"J/('~(/rilo bistôrica. Ao me.rmo tempo, percebe-se o cuidado de não concebê-ia nos
11'01/(1.1' (k ton o~jeto autônomo, isolado e auto-referido, e sim integrá-Io numa rede que
IIIdl/i, também, o que se apresenta exterior ao corpo, como o ambiente construido, o.r
,1/.1/1'11I11,1 II!mim.\', a cultura material. De que modo, e a partir de quando, aspreocupações
hi,l/o/'ir!Wrí/im.r em torno da experiência social e material no e.rpaFo urbano pa.rJaram a
11'1'maior «ssidnidade nas suas pesquisas?
Iknisl' Bcrnuzzi - Corno você sabe, toda cultura possui urna
ine-gável ins ri ao material. Enquanto alguns pesquisadores ingleses
compreen-diam os objetos corno "formas de cultura" e utilizavam a expressão material ctllture pelo menos desde 1875, na França foram sobretudo os antropólogos
e sociólogos que estudaram primeiramente os gestos técnicos
caracterís-ticos da fabricação de objetos diversos. No âmbito da história, Fernand
Braudel preferiu falar em termos de "civilização material", mas considerou
os objetos corno catalisadores da longa duração histórica.! Leroi-Gourhan"
destacou urna continuidade importante entre a tecnologia e a sociedade e,
principalmente depois da década de 1970, a expressão cultura material se fez presente no campo de pesquisas de historiadores em diferentes países.
Para mim, foi essencial ter entrado em contato com duas obras
totalmente diversas uma da outra: a primeira é aquela do filósofo Gilbert
Simondon.: Antes disso, eu nunca havia pensado que fosse possível ir tão
longe no entendimento sobre o vínculo entre gesto técnico e condutas
éticas. A segunda é a do poeta Francis Ponge/' cujo trabalho me ensinou
a cultivar urna espécie de paciência para com as "coisas". Com a ajuda de
uma bibliografia sobre corpo e técnica, além das indicações do historiador
Hermetes Reis de Araújo, pesquisador das relações entre técnica, natureza e
cultura material, pude perceber o quanto a historicidade dos objetos era um
campo de pesquisa promissor. Eu estudava a história da antiga (e tão atual)
busca do embelezamento das aparências, tema de um doutorado defendido
em 1994/ sob a orientação da professora Michelle Perrot." A busca de urna
aparência bela me levou a pesquisar a história da indústria de cosméticos
posterior à década de 1920, a invenção de aparelhos e técnicas de beleza
inimagináveis antes dessa época. Cada instrumento ou cada produto criado
para embelezar o rosto da mulher, por exemplo, vinha acompanhado de
gestos, atitudes e posturas até então inexistentes. A banalidade e a
frivolida-de do universo de cosméticos estudado me levou a perceber a riqueza das
conexões entre sensibilidade e cultura material. Além disso, naquela época
havia um verdadeiro florescimento de estudos sobre os possíveis
prolon-gamentos entre corpo e técnica, especialmente nos Estados Unidos e na
França. Urna nova geração de sociólogos insistia na importância do legado
de \'(!alter Benjamin, enquanto diversas feministas buscavam inspiração nos
trabalhos de Donna Haraway? e Bruno Latour.'" Fiz um pequeno curso com
o Latour e, na mesma época, eu e Hermetes entramos em contato com
Paul Virilio,IIque nos concedeu urna entrevista na qual foram discutidas as
implicações políticas da endocolonização tecnológica do final do século XX.
Também tive a oportunidade de conhecer Francisco Varela," e seus textos
sobre a ética marcaram profundamente minha maneira de ver o mundo.
Na verdade, os anos vividos na França me possibilitaram obter um grande
acúmulo de informações e de contatos fundamentais para o
desenvolvi-mento da vida acadêmica e, em particular, para perceber a importância da
ética no questionamento da ciência e da técnica.
No entanto, antes disso, durante o mestrado.!' certos aspectos da
cultura material, intimamente relacionados àexpressão corporal, já faziam
parte, de algum modo, dos estudos realizados em torno do lazer urbano.
Aqui, encontrei ressonâncias interessantes entre os corpos dos habitantes
da cidade que estudei (São Paulo) e a maneira de funcionar ou de não
fun-cionar desta megalópole. Nessa época, ao estudar a campanha "M exa-se",
foi inevitável perceber a conexão cotidiana entre os equipamentos urbanos
e a promoção de um corpo repleto de qualidades para o regime militar
vigente, pois, na divulgação da "M exa-se" pela televisão, os conselhos para
utilizar escadas, entre outros equipamentos capazes de colocar o corpo
em movimento, ocupavam o centro da cena. Além disso, a bibliografia
relacionando corpo e cidade era bastante rica. Por exemplo, bem antes de
Richard Sennett publicar o livro
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Carne e pedra, havia o clássico de LewisM umford sobre a cidade na história," no qual o espaço urbano deixava
de ser concebido unicamente como paisagem. As contribuições de M arcel
M auss, outro exemplo, sobre as técnicas corporais," também forneceram
pistas importantes sobre a modelagem dos corpos segundo as culturas e
os ambientes. E a via é de mão dupla: a cidade também diz muito sobre as
particularidades corporais de seus habitantes.
M ais tarde, com o trabalho que realizei para a livre-decência,"
so-bre a história dos usos da água pela população paulistana durante o século
rL ,pude aprofundar intuições e estudos anteriores. Pois os
equipamen-tos urbanos de salubridade, higiene e abastecimento funcionavam como
lima espécie de testemunho dos limites e também dos sonhos humanos.
IgUlls desses equipamentos foram esquecidos, tanto quanto os oficios a
eles relacionados: carros de madeira com pipas de água, conduzidos por
a!'Uadclros; pontes, também de madeira, administradas por fiscais;
chafari-zes c s -us zeladores; barcos e seus barqueiros que marcavam presença nos
rios da cidade (a maior parte deles soterrada ou transformada em esgoto
depois da República).
Sua fala indica como eJJaJmudanças no universo do trabalho, resultando em desapanção de várias atividades e artefatos comuns à vida cotidiana de sociedades cio passado.fornecem indiaos sobre os vínmloJ entre o e.rpaFourbano, a natureza e aspráticas
corporais. No entanto, essa investigarão também aponta para ritmos e sensibilidades inusuais em nossos dias;fica a impressão de que a imaginarão do historiador estaria portanto Jujeita a um ngor metodológico mais acossado pelos nJCOSdo anacronismo ou
me.rmo a incompreensão de comportamentos e oalores correntes em outra época.
D. B. - O risco do anacronismo pode parecer um tormento,
mas é graças a sua presença que o historiador se esforça cada vez mais
para questionar a historicidade de seus próprios valores e sensibilidades.
Quando me deparei, por exemplo, com concepções de limpeza vigentes
em diversas moradias do século XIX (hoje consideradas sinônimos de
sujeira), não foi fácil abandonar idéias preconcebidas, ou melhor, perceber
que elas eram preconcebidas e que o rigor da higiene em outras épocas
não estava, ainda, pautado pelo intenso uso da água. M ais complicado do
que isto foi entender o quanto diversos moradores de São Paulo, durante
a primeira metade do século XIX, talvez não desejassem ser tratados
como "sujeitos de uma história", com suas liberdades, direitos e deveres.
E que, mesmo assim, eles exerciam um certo domínio soberano sobre seus
modos de vida. Da mesma maneira, não foi fácil pensar que as mulheres
pobres, habitualmente encarregadas de buscar água nos rios e chafarizes,
não eram, necessariamente, recatadas e arcadas pela vergonha, tal como
escreveram alguns cronistas. Eu sabia que elas não eram igualmente tão
debochadas quanto a polícia as descrevia. Daí a necessidade de cruzar
vários comentários sobre um mesmo grupo de pessoas (e, também, sobre
ambientes, objetos ete.) e perceber, por exemplo, que, em certo sentido, a
voz da mulher pobre incomodava na medida dos interesses e valores de
quem a ouvia. O volume dessa voz poderia ser aumentado ou diminuído,
dependendo de quem estivesse escrevendo a seu respeito. Além disso,
mui-tas dessas mulheres andavam cobermui-tas com mantilha menos por um pudor
tecido com os valores do nosso tempo do que pelo constrangimento de
exibirem as marcas deixadas pela varíola em seus rostos. M as, em outros
momentos, o manto do pudor, diante de algum estrangeiro, também podia
funcionar ... ou, ainda, o frio paulistano, hoje bastante reduzido, contribuía
Há sempre uma gama de razões e sentimentos para explicar, em
parte, um gesto e um objeto. O difícil é dosar o peso de cada explicação,
per-ceber em cada momento as razões do predomínio de uma sobre as outras
e, igualmente, as maneiras pelas quais elas eram vistas, por olhos que
cer-tamente não são mais os nossos. Há, portanto, sempre uma certa distância
entre nós e "eles", nós e nossa paixão pela democracia, por exemplo, pelo
desvendamento completo, nós e nossa sensibilidade relacionada à
descontra-ção corporal do tempo presente, ciosos de nossas liberdades individuais.
Penso que sempre haverá uma gama de aspectos das vidas passadas
que não poderemos desvendar. E não se trata apenas da dificuldade de
obter registros sobre elas mas, também, de um limite nosso. Essa zona de
segredo que nos separa dos outros é salutar para o historiador. Ela funciona
como uma espécie de reserva contra uma suposta arrogância, ou talvez
ino-cência, em acreditar que se pode desvendar, esclarecer, tirar todos os véus
e mantilhas para finalmente encontrar o sujeito. Ocorre que esse vaivém
do presente para o passado e vice-versa ajuda a retirar alguns véus, tanto
quanto contribui para vislumbrar outros! E é nesse momento da pesquisa
que aprendemos de fato a respeitar, sem devoção nem piedade, um mundo
diverso do nosso; um mundo que poderá ser historicizado, pois ele nào
cessa de nos revelar algo antes desconhecido e, ao mesmo tempo, de ocultar
experiências cuja existência mal podemos imaginar.
Assim, a caminhada do conhecimento, revelando
constante-mente novas zonas de sombra, por vezes à beira da freqüentação de
histórias sem nome, não é, certamente, uma via de mão única, nem uma
vereda sem volteios. M esmo quando é forte a impressão de que uma
'tapa chegou ao fim e uma outra está sendo iniciada, talvez existam
mquictcs vaga-lumes no presente, lampejando histórias do passado e
ai 'ando nossas criações para o futuro. M as eu nem poderia dizer ao
cerro se seria exatamente uma caminhada. Essa palavra, por hábito
arraigado, tende a sugerir um movimento do corpo para frente. M elhor
Ht'na pt'nsar a imagem de uma dança; e é muito reconfortante saber que,
entre os vários ofícios existentes no mundo, este de historiador situa-se,
apt'sar de 10los os percalços, entre aqueles em que a evocação de belas
imagens 01110 esta da dança, por exemplo - não é ainda totalmente
an: rôni a ou s .m sentido!
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Esse cuidado na interpelação dos ve.rtígio.r de outras experiências, amiúd: arredias ao nosso anseio por estabelecer equivalênciaJ, requer, outrossim, certo deJpqja mento ou problematizarão de concepções herdadas. Ora, especialmente apó.r o advento da Revolução Jndustnal, ganhou forf"Cl,no imaginário das soaedades ocidentais, a identificação da cidade como o lugar por excelência onde o homem moderno deposita as marcas de sua conquista sobre asforças naturais e concretioa seu engenho criador. O mundo urbano representaria, sob tal ponto de vista, a quintessência do artifiáo, a pátria do avanço técnico, o reduto da ávilização - perspectioa que, em contra partida, fortalece a cisão natureza / cultura, igualmente cara ao pensamento moderno. No seu recente estudo sobre UJO.r
da água em São Paulo, como se deu o enfrentamento dessa antinomia? A inveJtigação histárica fauorece a dirposição de pôr em causa essas crútalizaçõe.r arraigadas? Até que ponto escolher um ol:jeto de pesquisa tão fluido quanto a água permite uma reuisãa de
e.rquemas abstrato.r e pouco questionados?
D. B. - Dividi o estudo sobre a água em dois grandes momentos:
"A visibilidade da água", título do primeiro, focalizou uma época de grande
presença dos rios no espaço urbano. São Paulo era uma cidade pequena,
intimamente vinculada a seus caminhos fluviais e às atividades da pesca, do
transporte feito por barcos, das lavadeiras às margens do rio Tamanduateí,
ou dos meninos que brincavam no meio do rio Pinheiros; assim como havia
separações entre os sexos em solo firme, havia uma divisão entre águas de
mulheres e águas de homens. O fundo e o meio do rio eram mais
propí-cios a eles, pois as mulheres precisavam ter os pés bem plantados na terra.
Portanto, elas lidavam preferencialmente com as águas das margens fluviais,
locais em que retiravam lama para a olaria, lavavam roupas e utensílios
domésticos, molhavam os pés e refrescavam a alma. Época de freqüente
crença nas forças das chuvas, temporais, enchentes ... supostos sinais da ira
divina, provas do quanto a cultura dos homens ainda podia ser submetida
às potências naturais e sagradas. Época, ainda, em que a água considerada
pura deveria ter odor suave e gosto agradável, ser clara, corrente e fresca.
Essa paisagem cultural e natural se modificou ao longo do século
e a segunda parte do trabalho, intitulada "Do visível ao invisível", mostrou
que; desde a década de 1880, aproximadamente, não era mais suficiente
atribuir à água as qualidades acima mencionadas. Além delas, o precioso
líquido precisava estar livre daquilo que na época muitos chamavam de
"monstros invisíveis", ou seja, os micróbios. Outras mudanças importantes
aquática: as águas até então expostas ao olhar de todos, ao brilho da lua e ao
calor do sol- em rios, regos abertos, caixas d'água sem tampa, moringas e
talhas abertas e bicas desprovidas de torneiras - foram metidas em canos,
ganharam a escuridão do subterrâneo urbano, deveriam ser controladas
por hidrômetros e, em muitos casos, passaram a ser vistas somente por
meio das descargas mecânicas e pela abertura de uma torneira. Esta
aber-tura, possibilitada pelo prosaico giro das mãos (hoje há outros gestos, pois
existem diferentes torneiras, algumas inclusive com vocação rninimalista:
economizam movimentos corporais), nos coloca em contato com uma
longa rede de caminhos percorridos pelo liquido, mas cuja paisagem não
conseguimos mais visualizar. Agora, a natureza se inclina na direção das
expectativas humanas em termos de conforto e salubridade. Em vários
locais da cidade, a água ganhou, assim, a forma circular dos canos, como
se contrariasse sem pudor seu antigo vício de correr sempre rente ao solo:
por meio das tubulações dentro dos edifícios ela pôde correr acima das
mais ilustres cabeças. Ao mesmo tempo, os poucos rios que restaram a céu
aberto tiveram suas funções reduzidas; e hoje eles servem apenas como
esgoto ou como matéria-prima para as hidrelétricas.
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Há pouco você mencionou algun.r dos autores cl!Ja leitura inspirou e influenciou suas rtflexões, assinalando quão coletivo é oprocesso do conbeamento. Em artigo publicado há algum' CIIIOJ,destinado a traçar 11m quadro geral da bistária urbana, afirma-se: "uma
boa parte da hútoliografia [braJileira] está mais preocupada em Jeguir os caminhos de Bel!jamin e Marsball Berman do que em fazer pe.rquúa bistôrica ':17Essa critica severa
exprime um desconforto preJente em outros campos do saber bistôrico, nomeadamente em torno da articulação entre teoria e material empinco. Gostaria que você comentasse o encaminhamento dado a essa relação fundamental e sempre problemática, no âmbito tlr snas pesquisas.
D. B. - Eis aí uma questão que não consigo responder. Não sei
mats (l\1cm alimenta o quê. O arquivo me faz pensar teoricamente . .A
bi-bllografta me leva a questionar as fontes arquivadas ... Um sem o outro ...
S('rl;\ unpossfvcll
entre OJcorpos e o espaço urbano, há um prolongamento infinito, e em via dupla, entre
o guto humano e a marca 'em concreto' de suas ambzçõe.r e de JCIIS receios ':IX Como a
atenção a esse duplo câmbio tem repercutido nos seus trabalhos?
D. B. - Com os trabalhos sobre a água e a higiene na cidade de São
Paulo este duplo câmbio apareceu inúmeras vezes. Em processos criminais,
por exemplo, tive contato com descrições pormenorizadas sobre os objetos
circundando as situações suspeitas de crime e contravenção. Eles diziam
muito sobre o cotidiano e os sentimentos humanos, informavam sobre o
peso da labuta diária de cada um, indicavam os trajetos preferidos por cada
pessoa na cidade, os lugares de segredo ou de revelação da intimidade de
homens e mulheres. Quando trabalhei sobre a vida dos antigos
barquei-ros, outro exemplo, foi impressionante observar o quanto o uso do remo,
do varão e de outros instrumentos de trabalho não apenas marcava seus
corpos (fortalecendo mais certos membros do que outros, delineando uma
determinada postura da cabeça, dos braços e do tronco ...) como também
construía sem cessar um certo modo de ver o mundo, de sentir o próprio
corpo e os perigos ou agruras da vida. O mesmo ocorreu quando estudei as
moringas de barro (havia uma variedade delas!) utilizadas nas residências da
primeira metade do século XIX. As "moringas borbulhantes", por exemplo,
deixavam sair a água por um orifício bem estreito, o que sugeria um certo
vagar de apreciação do liquido. Seu uso, portanto, indicava momentos mais
contemplativos, avessos àpressa, diferentes da temporalidade sugerida pelo
uso dos jarros de boca larga. Tudo isso é,à primeira vista, muito simples,
detalhes que compõem a relação entre o homem e a materialidade por ele
construída. M as é por meio dessas pequenas coisas, do manejo habitual de
uma gama diversa de objetos, que podemos perceber algumas das
singula-ridades da vida no passado.
Um I olítica do corpo, você salienta: '.54.rcidades revelam OJ corpos de
sens 1IIIIIm/(Jrn 1\lais do que iJJO, elas afetam os corpos que as constroem e guardam,
em.rfll mlu/() rll' ser e de aparecer, os traços desta afecção. Há um trânsito ininterrupto
Há uma dlebre passagem, salvo engano de RouJJeau, que afirma: "Casas fazem um burgo, l'idadão.rfazem uma cidade". Parece qt-le temos aí uma retomada da
dútinção clássica entre urbs e civitas. Como tantas outraJ instituições, aspirações e projetos amplamente acalentados entre nós, muitas vezes esse apelo ao idearia da cidadania
qUCll/lo social - exógenoJ a nOJJaformação histórica. Na sua opinião, quais seriam 0.1'
elementos basilares para compor uma "cidade de cidadãos", à brasileira?
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D. B. - Essa questão deveria, antes de tudo, estar presente na cabeça
de todos os habitantes de uma cidade, mesmo quando ela já possui cidadãos.
Construção histórica, a cidadania necessita ser diariamente fomentada,
problernatizada, submetida à análise. Quando, ao contrário, ela é mínima
ou inexistente, talvez a primeira coisa a fazer é entender historicamente o
que existe em seu lugar. Somente a partir desse entendimento é possível
avaliar se a cidadania é possível, desejável, necessária, e qual cidadania seria
conveniente defender. M as, antes da cidadania propriamente dita, creio
que é preciso lutar por cidades capazes de acolher e exprimir as diferenças
humanas e não apenas aquilo que se tornou o seu padrão. Explico: pelo
menos desde a década de 1960 há um padrão urbano brasileiro
extrema-mente simplista e avassalador: as grandes cidades, por exemplo, são, em
geral, concebidas mais para o automóvel do que para o pedestre. Nelas o
automóvel é o centro das atenções e muitos bairros ou até cidades
intei-ras parecem feitos somente para a dita máquina: avenidas consideradas
sofisticadas na capital paulista, por exemplo, são margeadas por lojas de
automóveis, postos de gasolina com uma sociabilidade se!Frervú'e para seus clientes, grandes estacionamentos. Já em vários locais empobrecidos,
impe-ram as borracharias e casas cariadas pela poluição, sem contar as antigas e
modestas oficinas. Para poder "acontecer", as lojas,Jhoppings, escolas, clubes
precisam, necessariamente, prever estacionamento ou formas de convênio
junto aparkingJ das redondezas. Quem nunca saiu do Brasil ou não viveu em cidades brasileiras do passado pode achar essa paisagem perfeitamente
normal. M as ela foi historicamente normalizada entre nós e não no mundo
t do (apesar de não sermos os únicos a seguir tal sina).
Inúmeras residências brasileiras, outro exemplo, possuem um
formato no qual o espaço da sala ou da cozinha, na parte dianteira da
onstrução, fica exatamente ao lado da garagem. Ou seja, "comendo" um
l'Sp:l ( d que seria o interior de um dos cômodos, esta espécie de troféu Ianuliar quc éo carro possui seu nobre abrigo, às vezes, totalmente vizinho
~ sa1:t de visitasl Jlá situações em que o portão da dita residência chega a se
dobrar Iara [ora, formando um círculo no ar do espaço público das calçadas
pOf'(]lIt' o carr não cabe dentro da residência. Evidentemente não é o caso de re riminar essas m radias. O problema é mais amplo: quando não há
transporte público eficiente, acessível e farto, resta como única opção ter
automóvel..E, devido a seu valor de mercado e à pobreza reinante no país,
é preciso de fato cuidar para que ele não seja roubado. Assim, retomando
à questão, uma metrópole digna (que funcione como cidade e não somente
como aglomerado de carros) com toda a sua riqueza de possibilidades (ainda
nem estou falando em cidadania!) precisa oferecer a seus habitantes meios
de transporte diferentes e igualmente dignos, eficazes e que não
represen-tem grande ônus. Dessa forma, o automóvel particular seria não mais uma
verdade natural e imprescindível, e sim "uma opção" entre outras para se
locomover. Sem haver opção, como é que podemos usufruir da liberdade
de escolha, logo, da democracia e da cidadania? O imperativo do
automó-vel é apenas um aspecto da homogeneidade urbana mencionada acima.
Infelizmente há outros aspectos dessa pobreza cultural. M as, felizmente, a
invenção cultural das diferenças teima em brotar, e, muitas vezes, isto ocorre
em meio às avenidas, entre um estacionamento e outro!
A prifuJão do automóvel leva a penJar na crescente solicitação ao deslocamento e no temor ao desperdício de tempo - atitudes que pontuam o dia-a-dia das grande.!' cidades. Milton Santos i'hegou a advertir que, na metrópole dos nOSJOJdias, a força dos
desafortunados residiria na lentidão, como se sua limitarão de velocidade implicasse
maior agilidade de reflexão." Tratar-se-ia, portanto, não de uma perda de tempo e poder, mas de um ganho, sem alarde, em favor do pensamento.
É
possível, no confrontocom temporalidades de épocas passadas, apre(e)nder a potência e o valor da lentidão, sem para ÍJJO ter de convertê-Ia em triféu ou insígnia, como ordinariamente sefez ao glonjii'i1r o movimento acelerado?
D. B. - Creio que sim. Havia escrito que a lentidão não requer
degredo, não carece de lugar afastado da velocidade e das grandes cidades
para ser exercida. Ela pode ser um modo de sentir e pensar o mundo, e
não necessariamente se limitar aos movimentos dos nossos membros. Há
uma lentidão a ser conquistada em relação à respiração, por exemplo, ou
ao olhar, ao modo de ouvir o outro, de apreciar alguém ou alguma coisa.
Lentidão pensada como um meio essencial para possibilitar a reflexão.
Precisamos ter reflexos rápidos, mas, quando se trata de reflexão, a rapidez
não é necessariamente uma vantagem. Para refletir é preciso tempo. Uma
cidade que leva seus habitantes àreflexão e, sobretudo, a uma reflexão que
cotidianas, é, a meu ver, uma heterotopia, no sentido atribuído por M ichel
Foucault a este termo. Ela deixa de ser cenário ou algo do gual é sempre
preciso escapar
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ou,ainda, algo a dominar, para ser aguilo gue nospossi-bilita inventar nosso futuro. Ela não é nem utópica, nem unicamente se
limita ao gue vemos individualmente em nossos itinerários. Por isso, nela as
travessias dos habitantes pelas ruas, por exemplo, podem funcionar como
travessuras. Seria interessante recuperar o sentido histórico da palavra tra-uessura nesses tempos em gue impera a publicidade favorável, sobretudo,
à aventura. O mesmo eu diria em relação à palavra pe/~ja, justamente hoje guando se fala tanto emperformance. Felizmente há sempre cantos e lugares gue funcionam sem excluir a reflexão, a peleja e a travessura. Todavia, é
necessário contextualizar todos esses termos, caso contrário corre-se o risco
de transformá-Ios em novos clichês. E esse é um problema sério: depois
de tantos elogios à velocidade, assistimos a tendências gue vão do slow food
à voga da meditação. O risco é tornar a lentidão uma espécie de novo guia
da modernidade; ela, gue era considerada sinônimo de atraso, vira, assim,
um sinal de adiantamento na vida. Há ainda o risco de uma lentidão de
superfície, ou pior, de dissociar uma coisa da outra: lentidão e velocidade
são interessantes, importantes, desde gue não sejam interpretadas como
normas gerais, "imagens de marca" ou se tornem "a natureza" de uma
determinada classe social e de alguns países.
Num poema intitulado "Escritos com o corpo'; João Cabra! de Meio Neto alude a um parentesco entre dois sentidos: "porém de perto, ao olho perto, / sem in-termediárias retinas, / de perto, quando o olho é tato, / ao olho imediato em cima '110 Parece mesmo haver certas afinidades entre o olho e a pele, ver e tocar, movidos que são por um ímpeto de aproximar e pôr ao alcance o que está distante. A arquitetura costuma privilegiar ma dupla perceptiva no aperfeiçoamento dasformas e dos materiais. Os outros sentidosdo corpo, porém, tendem a receber pouca atenção. Ora, trabalhos de historiadores como Alain Corbin" e Richard 5 ennetr? argumentam que a supremacia da vi.rão !llio constitui um dado natural, mas resulta de um processo sociacultural que I/el/lseacentuando, no Ocidente, especialmente desde o século XVIII. Um tratamento 111111.Ieqllilibrado das diferentes sensibilidades, mediante intervenções no espaço urbano, ajilllal711fi instruir 0.1'indivíduos na elaboração de uma cultura sensível menos
coloniza-da pela ill1l(gemr Esse desafio é apanágio específico coloniza-da criação artística, ou a pesquisa histôrica aí desempenharia algum papel?
D. B. - M enos colonizada pela imagem? M as a relação entre visão
e imagem é milenar! M esmo naguelas culturas em gue a imagem religiosa é
proibida em benefício da palavra oral e escrita, eu perguntaria: gual palavra
não está envolta, constituída e comprometida com imagens? O problema,
creio, se coloca guando uma certa maneira de ver (pois disporíamos de
muitas!) se associa a determinadas imagens com tamanha assiduidade gue
acabamos acreditando na naturalidade e na fatalidade desta união. Por
exemplo, há guem pense desse modo ao fazer a associação entre a cidade
de São Paulo e a imagem do caos. São Paulo e caos parecem ter sido sempre
sinônimos um do outro, como se fosse da natureza de ambos tal associação,
e não o resultado de uma história. M as, quando se estuda a constituição
dessa cidade, o referido caos revela perfis específicos, nem sempre presentes
no cotidiano paulistano e, ainda, percebe-se gue sua fabricação resulta de
determinados interesses relacionados à especulação imobiliária, às
caracte-rísticas da nossa República, à presença da Light durante décadas na cidade
etc. E se submetermos a noção de caos àanálise histórica, seus significados
também deixarão de ser os mesmos! Há inclusive uma tendência defensora
da familiaridade entre caos e ordem.
De todo modo, as associações entre imagens e valores podem ser
tão reveladoras guanto enganadoras. E o estudo da história exerce agui
um papel fundamental. Ele é um estratégico antídoto contra a promoção
do clichê! Por meio da pesguisa histórica é possível alcançar as condições
sociais, culturais, subjetivas e políticas gue foram necessárias, a cada vez,
para tornar verdadeira ou falsa uma determinada associação entre aspalavms e as coisas. No entanto, é a arte gue cria condições para a percepção daguilo
gue ainda não virou história. Ela nos projeta para o impensável, ultrapassa
os limites da alteridade consciente. Por isso, creio gue ambas, a história e a
arte, são essenciais para perceber, ao mesmo tempo, o instante e o devir.
A
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desapanção programada dOJ espaços (largamente inJujiada pelo capital imobiliário) sebuscaria algum tipo de compensação no empenho em protelar nOJJa própria morte?
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D. B. - Concordo com você e ainda acrescentaria o seguinte:
soma-se ao desaparecimento cada vez mais rápido do espaço a redução
da utilidade ou vida útil dos objetos e equipamentos urbanos. Tudo
pa-rece funcionar no curto prazo. ão se faz mais um automóvel nem uma
geladeira para durar décadas. No entanto, nunca como em nossos dias o
ser humano buscou tào amplamente soluções para prolongar seu tempo
de existência, alargando infinitamente seu "prazo de validade". E, ainda, a
expectativa de vida em alguns países chegou a níveis inusitadamente altos,
a ponto de, na Alemanha, por exemplo, ter sido criado um mercado para
a quarta idade, capaz de atender exclusivamente quem possui mais de 85
anos. Há a procura, consciente ou não, de uma compensaçào, conforme
você mencionou. Busca-se protelar não apenas a morte mas, sobretudo,
o envelhecimento. Não faz muito tempo, a velhice era uma época da vida
inevitável e ela tinha seus sinais inegáveis: cabelos brancos, rugas, dentes
que caem (além de outras quedas hoje bastante desagradáveis até mesmo de
serem ditas). Como escreveu Paulo Leminski, "hoje, a morte está difícil".
E a palavra velhice ... virou uma espécie de palavrão. As rugas se tornaram
sinônimo de cansaço, tristeza ou negligência para consigo. Quando se
acredita que a velhice é menos um período da vida do que um "estado de
espírito" passível de ser combatido, não há mais desculpas para aparentar a
idade que se tem. A velhice perde todo sentido, assim como a dor,
especial-mente depois da descoberta da anestesia, foi desinvestida da propriedade
de provar alguma força do caráter de quem a sofria. Para não envelhecer, a
megaindústria voltada ao corpo oferece uma miríade de soluções: desde a
"prisão perpétua" dos radicais livres, garantida pela publicidade de alguns
osméticos, até a realização de implantes, preenchimentos ou cirurgias.
Assim, mais do que o medo da morte, o que rege as condutas parece ser () rned de parecer velho.
advento da metrópole moderna produziu uma experiência cotidiana cuja estuia de terruônos, mas também de ritmos e estímulos psicossomáticos - em muito
/I//m/'tI.r.ra as possibilidades de apreensão do indivíduo, dada a envergadura descomunal
dos ({~/olllerdrloJ urbanos. Ao mesmo tempo, conforme vod ponderou em Corpos de
passagem, uiue-se hqje uma espécie de solicitarão ao confinamento endêmico, como se
a cidade grande padecesse de encolhimento, sofresse compressão, deixasse de comportar ejpapo.rfavoráveú àpreJenra de JetIJ babitantes.? Como dar conta desse paradoxo - uma amplidão desmesurada em que o tOrpo parue mal caber?
D.B. - Certa vez um francês escreveu que os moradores da ca-pital paulista utilizavam com freqüência o diminutivo em seu vocabulário.
Supôs que seria esta uma maneira de amenizar a sensação de desamparo
recorrentemente lembrada por aqueles que vivem nessa espécie de cidade
sem rosto, capital do capital, onde tudo parece ser gigantesco, fugindo à
escala humana, incluindo sua pobreza e sua riqueza. Assim, seria possível
amenizar a desumana escala, na medida em que o detalhe, o pequeno e o
pouco evidente são acentuados. Os confinamentos podem, diferente
dis-so, ser simplesmente resultado do receio de viver o desamparo, ou, ainda,
um modo de se sentir minimamente seguro. M as é interessante observar
o quanto vem sendo recriada uma série de locais de acolhimento, lazer e
encontros urbanos dentro de espaços fechados: alguns clubes, escolas,
shopping.r, condomínios são, hoje, muito diferentes daqueles da década de
1980. Eles capturaram certos aspectos de uma cidade idealizada (seja aquela
que minguou para dar origem às cidades que se limitam a ser uma sucessão
de rodovias-bunkers-publicidade, seja a que nunca teve a oportunidade de
nascer), com suas praças, ruas, restaurantes, cafés, lojas, locais de descanso,
conversa etc. M as ainda há muito por fazer!
A última questão pretende eiucidar um dos vínculos entre a postura ética e o trabalho da reflexão. Num artigo recente, vod abordou a possibilidade de fazer da prática intelectual um exerci cio de dilapidarão do ego,para tal/to discorrendo sobre uma
entrevista anônima dada por Michel Foucault em 1980.24 O desuenalhamento entre a
formularão das idéias e seu enunaador; então proposto - epraticado -pelo filósofo frands, tencionava pôr em xeque o primado da figura do autor e, no limite, o apelo à identidade pessoal; contudo, esse ge.rtoprovocador não foi (e está longe de .rer) incorporado nas lides acadêmicas nem no mercado editorial, o que indica a dificuldade de renovar os modos de produrão do conhecimento. Outro indício desses procedimentos sancionados pela remissão
a uma autoridade de saber é nossa inclinarão a lidar com o pensamento enquanto algo análogo a uma propriedade, um objeto palpável que, como tal.fomenta o desejo de posse e a "tentarão da avareza '; inibe a partilha e a troca alheia ao senso de hierarquia. O
sim como umprocesso ou um percurso (o que sugere a contillgência e o ine.rperado) - ou mesmo uma ferramenta cujo manuseio afiançaria ou recusaria sua adequação ao fim proposto -, conseguiriafortalecer a reflexãocritica e mitigar omencionada apego que é,
1/0fundo, uma forma de auto-indulgência?
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O que, afinal, está em jogo nem desafio? Estariamos dispostos a assumi-ia?D. B. - Penso que não. M as penso também que não dá para esperar
esta disposição aparecer ...É preciso inventá-Ia. E inventá-Ia para
poder-mos, o mais cedo possível, evitar que as idéias que achamos ser nossas
não se deitem em leitos muito confortáveis, locais em que o sono pesa e
o sonho é esquecido, quando uma noite fica igual a outra. Ora, pesadelos
e sonhos são alguns dos poucos instrumentos disponíveis para diferenciar
uma noite de sono de outra. Lembrando do que afirmara Nietzsche e, a
seguir, Deleuze e Foucault, o conhecimento nâo é algo natural. E se ele é
historicamente criado, poderá, também, ser historicamente enfraquecido,
destruído, descartado.
Há um pequeno romance intitulado Como me tornei estúpido no qual
se desenrola a narrativa sobre a vida de um rapaz que procura ser menos
inteligente na vida: prefere ser alienado, ignorante, pois assim, pensa ele,
sofreria menos. E então este surpreendente personagem produz uma
imensa mudança no cotidiano para se tornar estúpido (uma das primeiras
coisas que fez foi jogar seus livros no lixo). E, até certo ponto, ele percebe
que é possível cultivar a estupidez.
É
possível empreender uma "arte dereduzir as cabeças", título de um livro sobre a servidão do pensamento e
do corpo na época ultraliberal. Em suma, assim como é possível fomentar
o conhecimento, é totalmente viável fazer o contrário. E certamente eu não
me refiro apenas ao conhecimento de intelectuais. Creio que o exercício do
conhecimento permite o sonho e o pesadelo, abre espaço para a expansão
da vida a partir da finitude de nossos cotpos.
O que está em jogo é algo muito antigo, muito conhecido e sempre
difícil: coragem, ou melhor, uma certa bravura destituída de bravata. Para
(Iut· ? Para pensar as maneiras pelas quais pensamos! Um pensamento que
a -r xlitamos ser nosso, tal qual a unha sobre a carne, pode perder todo relevo
se nao for frequentemente exposto a outros pensamentos ... (de novo o risco
do c1ihê), 1\ r isso, é preciso estar atento, perceber em que medida uma
experi ên ia ~ um alimento para o pensamento ou para a ignorância. Esse
disccrnirncnro
já
é algo dificílimo. M as ele é fruto de um aprendizado, pois,como conhecer não é algo garantido pela natureza, aprende-se o próprio
caminho para poder distinguir quando uma idéia serve como jóia, pronta
para ser ostentada, e quando ela serve como ferramenta, digna de abrir
portas. Uma das questões a fazer sempre para nós mesmos poderia, talvez,
ser esta: como funcionam nossos pensamentos e idéias? Servem como jóia
ou ferramenta? Até o momento creio que sem essa questão primária é difícil
estranhar alguma coisa, desapegar-se de uma idéia, perceber a riqueza de
tantas outras e, ainda, ter a chance de rir um pouquinho dos nossos pequenos
apegos e limites (é mais fácil começar pelos pequenos!).
Contudo, pensando nisso tudo enquanto lhe respondo, tendo a rir
um pouco porque percebo nesse modo de pensar o quanto estou associando
o exercício do pensamento à idéia da transformação (mudança no modo de
pensar, questionamento de si). Ora, nem sempre foi assim na história!
Des-confio que o referencial aqui é uma espécie de gosto por processos sísmicos
da subjetividade, um certo desassossego, algo, portanto, bastante datado
historicamente! Como vê, o que penso tem certamente seus limites.
NOTAS
I Doutorando em História Social na PUC-SP, bolsista do CNPq.
2 Entre os trabalhos de Denise Bernuzzi voltados ao entrelaçamento dos corpos
com o espaço urbano, ver: O receio dos "trabalhos perdidos": corpo e cidade.
Projeto História, São Paulo, n. 13,jun. 1996;História do conforto na cidade de
São Paulo..Anos 90,Porto Alegre, n.14,dez. 2000 ;O corpo na cidade das águas:
São Paulo (1840-1910). Projeto História, São Paulo, n. 25,dez. 2002.
3 BRAUDEL, Fernand. Civilizaçãomaterial, economia e capitalismo(séculos XV-XVIII).
3.vo1. São Paulo: i\lartins Fontes, 1995-1996.
4 André Leroi-Gourhan (1911-1986) foi um eminente arqueólogo e etnólogo
francês, voltado principalmente ao estudo da assim chamada pré-história.
Le-gou pesquisas de grande relevo no campo da história das técnicas, em especial:
Évolution ettecbniques. 2.vo1. Paris: Albin M ichel, 1943-1945 [ed. porto Evolução etécnicas. 2.vol, Lisboa: Ed. 70, 1984];Le geste et Ia parole. 2.vol, Paris: [s.n.],
1964-1965 [ed. porto Ogesto e a palavra. 2.vol. Lisboa: Ed. 70, 1983].
5 Gilbert Simondon (1924-1989), reputado filósofo francês, deixou uma das
mais influentes contribuições teóricas relacionadas ao pensamento da técnica
e da tecnologia na segunda metade do século XX: Du mode d'existence des objets
6 Francis Ponge (1899-1988),poeta francês cujo grande projeto literário residiu
em construir uma abordagem própria para lidar com a banalidade das coisas
sem reduzi-Ias à função utilitária, investindo-lhes portanto de dignidade ética e
estética. Sua obra mais conhecida é:
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Le parti pns des cboses. Paris: Gallimard, 1942fedo bras. Opartido das coisas.São Paulo: Ilurninuras, 2000].O escritor Ítalo Calvino
observa, numa bela passagem, o ponto nodal da criação poética de Ponge: "pegar
um objeto dos mais humildes, um gesto dos mais cotidianos, e tentar considerá-Io
fora de todo hábito perceptivo, descrevê-Io fora de qualquer mecanismo verbal
gasto pelo uso. E eis que uma coisa indiferente e quase amorfa como uma porta
revela uma riqueza inesperada; de repente ficamos felizes por encontrar-nos num
mundo cheio de portas para abrir e fechar. E isso, não por alguma razão estranha
ao ato em si (como poderia ser uma razão simbólica, ideológica ou estetizanre),
mas só porque restabelecemos uma relação com as coisas enquanto coisas, com
a diversidade de uma coisa para outra, e com a diversidade de qualquer coisa em
relação a nós. Inesperadamente, descobrimos que existir poderia ser uma
experiên-cia muito mais intensa, interessante everdadeira do que aquele corre-corre distraido
com o qual se calejou nosso cérebro. Por isso Francis Ponge é, penso eu, um dos
poucos grandes sábios de nosso tempo, um dos poucos autores basilares do qual
partir para tentar não girar mais no vazio". (CALVINO, Ítalo. Porque ler os clássicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993,p.240-241 [grifos no original]).
7 SAl T.-\ A, Denise Bernuzzi de. La recbercbe de Ia beauté: une contribuition à
l'histoire des pratiques et representations de I'embellisemenr au Brésil- 1900 à
1980. 2vol. Tese de doutorado - Univer idade Paris VII, Paris, 1994.
8 Michelle Perrot (1928-), historiadora francesa, notabilizou-se por trabalhos
voltados àhistória social das prisões, do proletariado e das mulheres, alguns dos
quais bastante conhecidos do público brasileiro, em especial: Histoire de Ia vie
privée, -/.:de Ia Révolution àIa Grande Guerre (Org.). Paris: Seuil, 1987 fedo bras. Histôria da vida privada, 4: da Revolução Francesa àPrimeira Guerra (Org.). São
Paulo: Companhia das Letras, 1991];Os excluidos da bistána: operários, mulheres,
prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988;Femmes publiques. Paris: Texruel,
1997 fedo bras. Mulherespúblicas. São Paulo: Ed. Unesp, 1998].
!) 1 onna I Iaraway (1944-) é bióloga e filósofa norte-americana. Seus trabalhos
11.1 arn reflexões em torno do feminismo, dos estudos culturais e da tecnociência,
om profunda influência sobre escritores de ficção científica e pesquisadores das
Il'LI<;Ol'Sde gênero. Seu texto mais conhecido é: A cyborg manifesto: science,
Illhnology, and socialist-feminism in rhc late twentieth century. In: o
.rl/l/lam , ry/Jor.~J and women: tbe reinuention of nature. New York: Rourledge, 1991 [cd h,a,. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final
do século •.•• , ln: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Antropologia do áborglle: as
v '1IIgl'ns do pos humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000].
10 Bruno Latour (1947-) é sociólogo francês e um dos m.aiores expoentes
con-temporâneos nos estudos relacionados à história das ciências. Entre seus tra~
balhos publicados no Brasil, encontram-se: l\TOIIJ n 'auons jamais é/é modernes: essai
d'anthropologie symétrique. Paris: La Découverte, 1991 [ed. bras. [amaisfomos
modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994];Srience in action: how to follow scientists and engineers through society. Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1987fedo bras. A aêntia em ação: como seguir
cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Ed. Unesp, 2000];Pandoras
bope. essays on the realiry of science srudies. Cambridge, Iass.: Harvard
Uni-versity Press, 1999 fedo bras. A esperança de Pandora: ensaio sobre a realidade dos
estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001].
11 Paul Virilio (1932-),filósofo e urbanista francês, há mais de três décadas vem
discutindo, com vigor e originalidade, as mudanças nas relações entre espaço
e politica, tempo e tecnologia, guerra e mídia. Suas obras, algumas das qu~s
contempladas em edições brasileiras, incluem: T/itesse et politique. Paris: Galilée,
1977 fedo bras. Velocidade epolitica. São Paulo: Estação Liberdade, 1996];Pure
li/ar. Nova Iorque: Semiotex(e), 1983 fedo bras. Gl/erra p/lra: a militarização do
cotidiano (entrevista a Sylvere Lotringer). São Paulo: Brasiliense, 1984];L'espaoe
critique. Paris: Christian Bourgois, 1984 fedo bras. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993]. Sobre a entrevista mencionada por Denise Bernuzzi, ver: Os
motores da história. In: AR..-\
ÚJ
O, Hermetes Reis de (Org.). Tecnoaênda e cultura:ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
12 Francisco Varela (1946-2001), biólogo e filósofo chileno, deixou trabalhos
importantes sobre o fenômeno cognitivo e os sistemas vivos, tendo
desenvol-vido conceitos como o de autopoiesis, para afirmar a complementandade entre
função e estrutura. Uma de suas contribuições decisivas consistiu na crítica aos
esquemas dualistas (mente-corpo, espírito-matéria, homem-meio ambiente) que
fundamentaram boa parte do conhecimento científico, em benefício de uma
perspectiva segundo a qual a mente não está situada na cabeça, mas enraizad: no
corpo como um todo e incontornavelmente relacionada ao contexto especifico
que envolve o organismo vivo. Entre suas obras, cabe mencionar: The tree of
kllowledge: a new look at the biological roots of human understanding (co-autona
com Humberto Marurana). Bosron: Sharnballa; New Science Library, 1987fedo
bras. A árvore do canbeamento: as bases biológicas do conhecimento humano.
Campinas: Psy, 1995];Un know-b01/J per l'ettica. Roma: La Terza, 1992 fedo port,
Sobre a competência ética. Lisboa: Ed. 70, 1996].
13 S.-\ TA 1 A, Denise Bernuzzi de. O prazer jllstificado: lazer em São Paulo
(1969/1979). Dissertação de mestrado - Pontifícia Universidade Católica, S~o
Paulo, 1988. [Oprazer justificado: história e lazer (São Paulo, 1969-1979). Sao
14 MUMFORD, Lewis.
yxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A cidade na história: suas origens, transformações e pers-pectivas. 2. vol. Belo Horizonte: I tatiaia, 1965.15 l'vL\USS, Marcel. As técnicas do corpo. In: '_.Sociologia e antropologia. 2.
vol. São Paulo: EPU; Edusp, 1974.
16 S.\ T'ANN.\, Denise Bernuzzi de.São Paulo das águas. Tese de livre-docência - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2004.
17 RAM1NELLI, Ronald. História urbana. In: C\RDOSO, Ciro Flamarion; VAINE\S, Ronaldo (Orgs.).Dominios da bistâna: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 202.
18 S.\NT'ANN.\, Denise Bernuzzi de. Apresentação. In: (Org.). Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995,p. 17.
19 S.\NTOS, Milton. Metrópole: a força dos fracos é o seu tempo lento. In: o Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
20 l\IIELO NETO,João Cabral de.Seria/. In: oObra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
21 CORBIN, Alain. Oterritório do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
22 SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.
23 SANT'ANN.\, Denise Bernuzzi de. Coisas do outro mundo. In: o Corpos de passagem: ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
24 SANT'A 1A, Denise Bernuzzi de. Fugir do próprio rosto. In: R.\GO, Mar-gareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006 [no prelo). A entrevista dada por Foucault foi publicada no
jornal francês Le Monde em 6 de abril de 1980, com o título "Le philosophe