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BIANCA CRISTINA SILVA DE MORAES ASSUMINDO EM FAMÍLIA: HOMOSSEXUALIDADE E FAMÍLIA DE ORIGEM NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

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Academic year: 2022

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

BIANCA CRISTINA SILVA DE MORAES

ASSUMINDO EM FAMÍLIA: HOMOSSEXUALIDADE E FAMÍLIA DE ORIGEM NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Cuiabá 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIASOCIAL

BIANCA CRISTINA SILVA DE MORAES

ASSUMINDO EM FAMÍLIA: HOMOSSEXUALIDADE E FAMÍLIA DE ORIGEM NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Cuiabá 2019

Versão para defesa de Mestrado em Antropologia Social na Linha de Pesquisa Sociabilidades, Identidades e Subjetividades oferecida pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT.

Orientador: Prof. Dr. Flávio Luiz Tarnovski

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -Cuiabá/MT

Tel : (65) 3615-7389/7386 - Email : ppgas@ufmt.br

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO : "Assumindo em família: homossexualidade e família de origem no Brasil contemporâneo."

AUTOR : Mestranda Bianca Cristina Silva de Moraes

Dissertação defendida e aprovada em 04/04/2019.

Composição da Banca Examinadora:

_____________________________________________________________________________

____________

Orientador Doutor(a) Flávio Luiz Tarnovski Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinador Interno Doutor(a) Marina Veiga França Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Examinador Externo Doutor(a) Leandro de Oliveira Instituição : Universidade Federal de Minas Gerais

Presidente da banca/Examinador Suplente

Doutor(a) Clark Mangabeira Macedo Instituição : Universidade Federal de Mato Grosso

CUIABÁ,04/04/2019.

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Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

S586a Silva de Moraes, Bianca Cristina.

Assumindo em família : homossexualidade e família de origem no Brasil contemporâneo / Bianca Cristina Silva de Moraes. -- 2019

123 f. ; 30 cm.

Orientador: Flávio Luiz Tarnovski.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Departamento de Antropologia e Museu Rondon, Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social, Cuiabá, 2019.

Inclui bibliografia.

1. homossexualidade. 2. família de origem. 3. etnografia. 4.

sexualidade. I. Título.

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Agradecimentos

A Capes/Fapemat pela bolsa de estudos que possibilitou esta pesquisa.

Ao meu pai e minha mãe por me possibilitarem trilhar um caminho em busca de uma carreira.

Ao meu orientador Flávio Luiz Tarnovski pela gentileza, presteza e paciência em me orientar.

Agradeço à minha banca, Leandro de Oliveira e Marina França pela gentileza de aceitarem ao convite.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso.

A todos/as interlocutores/as que aceitaram participar desta pesquisa e a fizeram possível.

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RESUMO

Esta dissertação busca compreender como se dá a relação entre homens e mulheres que se autoindentificam enquanto homossexuais ou bissexuais e suas famílias de origem, tendo como ponto de partida as cenas de revelação da sexualidade, abordando os rearranjos das relações familiares, a construção e manutenção de um pertencimento na dinâmica familiar. Ao tentar compreender essas dinâmicas familiares e sua complexidade, a pesquisa buscou apreender o conteúdo das relações a partir da revelação da orientação sexual, dividindo entre dois momentos: a reação no momento da revelação da sexualidade e a reação após o momento da revelação, quando as relações familiares são reatualizadas. Tendo como alicerce os estudos de gênero e sexualidade, proponho uma reflexão sobre as estratégias de revelação e manutenção do pertencimento familiar, assim como os rearranjos que acontecem nessas trajetórias de vida. A pesquisa se baseia em pesquisa de campo etnográfica realizada em São Paulo e Cuiabá.

Palavras-chave: Homossexualidade; Bissexualidade; Família de Origem.

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SUMÁRIO

Introdução ... 6

1 Quando sexualidade e família se encontram: construção de uma problemática de pesquisa ... 12

1.1 A herança dos estudos de gênero e sexualidade ... 16

1.1.2 Os campos antropológicos: homossexualidade e família ... 19

1.2 As identidades sexuais e suas especificidades ... 22

1.3 A metodologia de pesquisa ao “estranhar o familiar” e suas implicações éticas ... 24

1.3.1 Por dentro da vida dos/as interlocutores/as ... 26

2 Previstos e imprevistos: o processo de revelação da sexualidade dissidente perante a família de origem ... 31

2.1 Descobrindo a homossexualidade ... 33

2.2 O quebra-cabeça da homossexualidade: as revelações, “sair dor armário” e outing 36 2.2.1 “Você pode ser o que você quiser desde que você não dependa das pessoas”: a “independência” como fator de sucesso na revelação ... 37

2.2.2 Pressionados a se assumirem: a vigilância familiar e a “desconfiança” ... 42

2.2.3 Outing em família ... 46

2.2.4 Sair do armário como ato político ... 63

2.3 A família chega às redes sociais ... 67

2.3 O que significa ser homossexual? ... 72

3 As reatualizações do pertencimento nas dinâmicas familiares ... 78

3.1 As reações pós-revelação da identidade sexual dissidente ... 80

3.1.1 A mudança como única saída: a identidade sexual e a imposição da mudança .. 81

3.1.2 A aceitação condicional da identidade sexual dissidente... 87

3.1.3 A plena aceitação da identidade sexual dissidente ... 90

3.2 “Misturando política com família” ... 95

Considerações Finais ... 108

Referências bibliográficas ... 114

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Introdução

Em um vídeo1 que circulou massivamente no período de eleição presidencial de 2018 pelo aplicativo de mensagens What’s App, um homem segura uma mamadeira com um bico em formato fálico, objeto que não é desconhecido para qualquer pessoa que já tenha ido a alguma festa de despedida de solteira/o, em que geralmente objetos como esse fazem parte da decoração. Em tom de indignação e denúncia, afirma que a mamadeira em questão é distribuída em creches “com a desculpa de combater a homofobia”, sendo autores da distribuição “o PT e Haddad, Lula, Dilma”, sendo a mamadeira “parte do kit gay”. A “mamadeira de piroca”2, como foi apelidado o objeto do vídeo, e o “kit gay”3, foram umas das fake news4 mais divulgadas antes, durante e após a eleição presidencial de 2018. Em um período de verdades fabricadas, as fake news que culpabilizavam o PT (Partido dos Trabalhadores) foram fundamentadas na aversão à homossexualidade e na urgência da proteção das crianças. O vídeo faz parte de um conjunto de rumores arquitetados para desqualificar o kit pedagógico Escola Sem Homofobia5, apelidado como “kit gay”, e que fazia parte do projeto Brasil Sem Homofobia. Fernandes (2011) em sua tese sobre a agenda anti-homofobia na educação brasileira entre 2003 e 2010 esclarece que “Escola Sem Homofobia” foi uma ação entre o Estado e ONGs representativas do movimento LGBT, tendo três eixos de ação: 1. a formação de um coletivo gestor de políticas anti-homofobia nos estados e municípios no âmbito da educação; 2. a realização de uma pesquisa qualitativa sobre “homofobia nas escolas”; 3. a elaboração e publicação com ajuda do MEC (Ministério da Educação) de

1 CARVALHO, Gil. Misericória! Absurdo isso! Mamadeira de pênis. (0:52s). Disponível em: <

<https://www.youtube.com/watch?v=dY_K2MrnfFY >. Acesso em: 26 nov. 2018.

2 “Mamadeira erótica de Haddad” – a fake news que viralizou nas redes sociais. 2018. Disponível em: < https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/10/mamadeira-erotica-de-haddad-fake-news.html >.

Acesso em: 26 nov. 2018.

3 TSE manda tirar do ar fake news de Bolsonaro sobre “kit gay”. Disponível em: <

https://veja.abril.com.br/politica/tse-manda-tirar-do-ar-fake-news-de-bolsonaro-sobre-kit-gay/ >. Acesso em 26 nov. 2018.

4 Notícias falsas que circulam pelas redes sociais.

5 SOARES, Wellington. Conheça o “kit gay” vetado pelo governo federal em 2011. Disponível em: <

https://novaescola.org.br/conteudo/84/conheca-o-kit-gay-vetado-pelo-governo-federal-em-2011>. Acesso em 26 nov. 2018.

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material didático para ser distribuído nas escolas públicas, o então titulado “Kit de Combate à Homofobia”. As ações da agenda anti-homofobia suscitaram conflitos entre concepções cristãs referentes à sexualidade humana e movimentos sociais e o Estado, sendo o projeto “Escola Sem Homofobia” o principal bode expiatório, colocado como um “incentivo” do Estado à homossexualidade.

Buscando outras situações representativas do cenário brasileiro atual, temos o caso da perseguição à filósofa americana Judith Butler em São Paulo no ano de 2017.

Segundo Pereira e Miskolci (2018), os grupos conservadores projetavam na intelectual a personificação do que chamam de “ideologia de gênero”. Os autores nos guiam para uma das possíveis motivações do forte crescimento e fortalecimento desses grupos conservadores, o impeachment sofrido pela primeira mulher presidenta do Brasil, juntamente com a crise econômica e o desemprego, gerando “[...] um clima de frustração coletiva com políticos e com o governo, pavimentando o terreno para que a retórica da antipolítica se tornasse hegemônica” (PEREIRA e MISKOLCI, 2018, p. 2).

Esse contexto resultou na criação e no fortalecimento de grupos que passaram a se organizar contra as mudanças que têm alterado hierarquias de gênero e buscado maior visibilidade e conquista de direitos sexuais. Segundo Carrara (2012), esses direitos nem sempre tem a ver com a “sexualidade”, mas com o acesso a lugares públicos, que são compreendidos como “sexuais” porque as pessoas que são privadas desse direito tem a sexualidade como origem da discriminação sofrida.

Considero essencial contextualizar aqui o momento político da produção desta dissertação, visto que é uma produção intelectual realizada em um momento histórico marcado por importantes transformações. A tese de Saggese (2015) sobre homossexualidade masculina, geração e transformação social relativa à visibilidade da homossexualidade ao longo da vida, por exemplo, foi finalizada em um cenário mais positivo, na eleição presidencial de Dilma Rousseff. Em tom pessimista, Saggese afirma que (2015, p. 172) está convicto “[...] que a história não se constrói a partir de uma sequência progressiva e linear de acontecimentos, dando margem para que conquistas obtidas a duras penas possam ser revogadas”. É em um cenário como esse que se deram as eleições presidenciais de 2018 e a eleição de um presidente que possui um repertório extenso de discursos explicitamente anti-minorias. Em um contexto como tal, com um crescente conservadorismo que ameaça estilos de vida e até mesmo o direito a escolhas sobre quem amar e como viver, que esse trabalho se posiciona.

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Neste contexto, estudar a temática sexualidade e família nos coloca no alvo de muitos questionamentos, pois ainda se compreende esta parte de vida, a sexualidade, como uma área restrita ao privado. Como aponta Rubin (2003, p. 01), “[...] o sexo é sempre político”, sendo em umas épocas mais ou menos politizado, variando de acordo com o período histórico e o contexto. No contexto atual, a família é vista como um eixo de orientação moral da sociedade e a sexualidade como algo individual, privado, que não deveria ser debatido e muito menos “exposto” em sociedade.

Pânicos e gramáticas morais

Presenciamos na sociedade contemporânea brasileira um conjunto de elementos de pânicos morais relacionados à sexualidade, tendo como base concepções cristãs a respeito da sexualidade humana. Cohen (2011) utiliza a noção de “pânicos morais” para definir a opinião exagerada da mídia diante de “desvios” das normas sociais, sendo estes, por sua vez, encarados como fenômenos ameaçadores. Para Miskolci (2007), certos pânicos morais auxiliaram na “criação” da homofobia contemporânea, assim como se tratam de processos de transformação histórica e debate sobre limites morais marcados contra a “mudança social”, aspecto que pode ser facilmente encontrado nos discursos em circulação na sociedade brasileira contemporânea. Compreendem-se aqui, tal qual Natividade e Oliveira (2013, p. 118), os pânicos morais como uma “[...] intensificação local de regulações difusas pelo corpo social”. Portanto, como um movimento simultâneo entre discursos religiosos e

“mecanismos cotidianos de controle das condutas”.

De acordo com Pereira e Miskolci (2018), os pânicos morais podem gerar novas “gramáticas morais”, um conjunto de regras e prescrições que fazem uso de uma visão de mundo dualista. Esse dualismo estaria dividido entre os que representariam o

“Bem” e os que representariam o “Mal”, assim como a associação de problemas sociais concretos a inimigos imaginários, como homossexuais, comunistas e feministas. É durante disputas como essas sobre comportamentos sexuais que, como explica Gayle Rubin (2003), ocorrem deslocamentos de ansiedades sociais e intensificação emocional.

Aspirando contribuir com o debate atual, creio ser necessário pontuar desde o início que as violências tratadas nesta dissertação estão enquadradas no que Sarah Schulman (2012) chama de a “homofobia familiar”. De acordo com a autora, é um

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fenômeno que pode gerar variados “graus de exclusão”, são distintas das usualmente midiatizadas, visto que são violências expressas, em sua grande maioria, verbalmente e psicologicamente. Embora as dores não sejam físicas, esses atos fazem parte do que Natividade e Oliveira (2013) apontam como um grupo de fenômenos que podem ser categorizados como “discriminação” e “preconceito”, indo desde silêncios, julgamentos morais até à violência psicológica. Esses eventos deixam marcas na subjetividade, na autoaceitação, na relação com o próximo e consigo mesmo, sendo causa expressiva também nos casos de suicídio entre jovens, visto que a homofobia pode ser vista, como mostra Teixeira-Filho e Rondini (2012), como um dispositivo de controle que gera discursos que têm como finalidade “oprimir”, promovendo também uma imagem

“negativa” e “homogeneizada” da homossexualidade, e tornando os jovens vulneráveis à depressão e aos pensamentos suicidas. Apesar de citar aqui as violências, nem todas as relações estão situadas nestas perspectivas, há as que são perpassadas por afinidades, cumplicidade e “plena aceitação”.

A representatividade das sexualidades não-heterossexuais

As identidades sexuais que fogem da heteronormatividade, assim como a questão da identidade de gênero, vêm ganhando espaço na grande mídia, seja para o bem ou para o mal. As pessoas entrevistadas pela pesquisa, com idade entre 23 e 27 anos, apontaram a falta de personagens “claramente gays” em produtos culturais durante suas adolescências. Como dito por um interlocutor, filmes como “Com Amor, Simon”

(Love, Simon) (2018), ajudam a “naturalizar” a homossexualidade, desmistificando e dissolvendo a imagem da homossexualidade trágica, como em filmes que retratam a HIV/Aids ou o “amor proibido”. Lançado em 2018, “Com Amor, Simon” conta a história de um jovem de 17 anos que lida com questões como assumir sua homossexualidade perante sua família e seus amigos, e sua primeira paixão por um rapaz. Tendo um desenvolvimento típico dos filmes do gênero de comédia romântica, o filme reproduz o que o interlocutor caracteriza como “uma história de amor possível com uma família ok”, podendo servir de alento para os adolescentes que estão se descobrindo, além de mudar a visão dos heterossexuais que assistam ao filme, pois verão que não há um abismo que separa homossexuais dos heterossexuais, dividindo dilemas similares e anseios comuns. Ainda que alguns produtos culturais tragam a

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esperança de um diálogo e representatividade mais democrática, nem sempre o grande público reage com positividade a produtos culturais que abordem a temática. A esperança do interlocutor era que, ao trazer um personagem com profundidade, aconteceria, como descreve Schulman (2012), uma “universalização das pessoas gays”, como um projeto de igualdade.

O filme Bohemian Rhapsody (2018), que conta a história da banda de rock Queen, focando na história do vocalista Fred Mercury, foi lançado em novembro de 2018 no Brasil, logo após as eleições presidenciais. Vários relatos6 nas redes sociais mencionam vaias às cenas de “beijo homossexual”. Por curiosidade, fui assistir a uma sessão do filme em um cinema em Cuiabá e fiquei atenta para as cenas referidas, não houve vaias, mas ouvi um grupo de mulheres sentadas ao meu lado, que na referida cena, expressaram seus descontentamentos com a frase: “Eu não acredito que tenho que ver isso”.

Embora tenha aumentado consideravelmente a chamada representatividade nos produtos da indústria cultural e mídia em geral, a homossexualidade não foi, como esperado por alguns interlocutores, “naturalizada”, e é ainda tratada com repulsa, motivo de vergonha e deboche. Schulman (2012) comenta que ao mesmo tempo em que vemos personagens centrais que são homossexuais, existem produtos culturais que transmitem cenários em que a existência homossexual é nula. Portanto, a presença de personagens homossexuais não é um indicativo automático de transformação.

Os locais ocupados na estrutura social e dramas vivenciados por bi/homossexuais enfrentam problemáticas quando são representados nos produtos culturais devido a falta de sensibilidade e empatia com que são enxergados pelos não- homossexuais, sendo situações trágicas compreendidas como cômicas, ainda que não sejam. Há uma parcela de youtubers7 jovens que se propõe a fazer vídeos de

“pegadinhas” com seus pais com a dinâmica da câmera escondida. A “brincadeira” é feita com diversos temas, sendo um dos mais usados, a imitação da cena de revelação.

Pode ser acessado na plataforma do Youtube diversos vídeos com a temática ao realizar

6 ALVES, Pedro. Internautas relatam vaias e aplausos em sessões do filme “Bohemian Rhapsody”.

Disponível em: < https://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,internautas-relatam-vaias-e-aplausos-em- sessoes-do-filme-bohemian-rhapsody,70002590263 >, Acesso em: 25 de nov. 2018.

7 Pessoa que tem canal no site Youtube.

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a busca com as palavras-chaves como: trollei, gay e lésbica. A visibilização da identidade bi/homossexual perante a família de origem são tratadas como cenas de destaque no contexto brasileiro, estando presente igualmente em outros produtos culturais, como a série “Super Drags” em que há um episódio intitulado “A cura gay”.

No referido episódio, o personagem Ralph é expulso de casa após “sair do armário” e tentando a reconciliação familiar busca a “cura gay” em uma instituição religiosa. Os vídeos e produtos culturais trazem à tona a vulnerabilidade pelas quais homens e mulheres LGBT estão expostos, começando pelo ambiente familiar e a violência perpassada por meio da rejeição e acusações que acompanham a descoberta e o rompimento das expectativas de cumprimento da heteronormatividade.

Ao longo do arco-íris

No primeiro capítulo, abordo o encontro de temáticas como sexualidade e família. Trago uma revisão bibliográfica sobre os estudos de gênero e sexualidade, dando um maior enfoque na produção brasileira. Por fim, trato da metodologia usada nesta dissertação e seus desafios éticos em campo.

No segundo capítulo, abordo os processos de revelações das sexualidades dissidentes perante as famílias de origem, abarcando desde a dissonância que ocorre entre o que é dito pelos/as filhos e filhas a respeito da bi/homossexualidade e o que é compreendido pelos familiares, além dos modos que ocorrem as revelações, seja pela decisão consciente de “sair do armário” ou pelo outing.

No terceiro capítulo, trato do que ocorre “após a revelação”, refletindo sobre quais são os elementos que entram em jogo após a revelação e como essas relações familiares são reatualizadas. Ao final, proponho reflexões sobre a relação de pessoas que se identificam como não-heterossexuais e suas famílias de origem no contexto da classe média contemporânea brasileira e suas especificidades relacionadas à religião, política e hierarquias morais.

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1 Quando sexualidade e família se encontram: construção de uma problemática de pesquisa

Neste capítulo, abordarei por meio da revisão da bibliografia antropológica o encontro dos campos de estudos da sexualidade e da família, dando enfoque à produção bibliográfica brasileira e suas especificidades. Abordo também neste capítulo como é compreendida a visibilização da bi/homossexualidade no contexto cultural e social brasileiro e, por fim, tratarei da metodologia utilizada nesta dissertação.

No que diz respeito ao tema de minha pesquisa, em uma das muitas vezes que me foi inquerido o tema de minha dissertação, ouvi como resposta: “E tem a ver?

Família e sexualidade?”. Ainda que o senso comum diga o contrário e faça esforços para separar esses dois âmbitos constituintes da vida, Heilborn et al. (2005, p. 10) afirmam que, na modernidade, família e sexualidade são integradores da identidade de cada indivíduo, portanto “Cabe à família produzir indivíduos autônomos, que por sua vez, reproduzam os valores preeminentes do núcleo familiar”. Os autores apontam que a família é centrada sobre uma tensão estruturante, segundo a qual a formação de indivíduos autônomos implica em um afastamento do núcleo de origem, mas sem uma ruptura explícita com os valores familiares. Outros fatores também devem ser considerados na construção dessa autonomia frente à família, como o processo de individualização, assim como também apontado pelos autores, a flexibilidade que o grupo familiar e grupos religiosos possuem ao incorporarem “novas formas de funcionamento, possibilitando ordenações as mais diversas” (HEILBORN et al., 2005, p. 10). Em “A história da sexualidade: a vontade de saber”, Foucault (1997) argumenta que as famílias atuam como os “principais agentes de um dispositivo da sexualidade”.

Segundo Foucault (1997, p. 100), o “dispositivo da sexualidade” teria como objetivo

“[...] não o reproduzir, mas proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global”.

Assumir uma não-heterossexualidade posiciona os sujeitos em um mapa social (HEILBORN, 1996) que “revelaria” a “natureza” desses indivíduos. A identificação sexual ganha na modernidade um “status” e importante papel na construção do sujeito.

Segundo Bozon (2004), a identidade sexual passa a assumir não apenas um peso na

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esfera da intimidade sexual, como na afetividade em um geral, incluindo as dinâmicas familiares. Em alguns casos, os conflitos familiares relacionados com a “homofobia familiar” podem ter consequências graves como, por exemplo, o assassinato de um rapaz homossexual no interior de São Paulo que foi morto “a facadas e teve o corpo queimado” pela mãe8. No entanto, não podemos nos restringir a uma visão simplista de como essas dinâmicas familiares se rearranjam, visto que há outras dinâmicas possíveis.

Com o propósito de tentar compreender melhor como as sexualidades não- heterossexuais estão sendo vistas atualmente, cito aqui Rubin (2003), que afirma que há em nossa sociedade “hierarquias de valor sexual” que são construídas com base em interesses religiosos, psiquiátricos e populares. Para esse sistema hierárquico, a sexualidade “boa, normal e natural” é a heterossexual, marital, reprodutiva e não- comercial. Logo o sexo “mau” é o homossexual, fora do casamento, promíscuo, não- procriativo ou comercial. Rubin (2003) fala de um aspecto da hierarquia sexual que pode ser observado no discurso brasileiro, a linha imaginária entre o bom e o mau sexo.

Na perspectiva da teórica, contemporaneamente, a homossexualidade, se em casal e monogamicamente, está sendo deslocada para o lado do bom sexo. Ainda assim, Miskolci (2007, p. 109) chama atenção para a concepção de que, mesmo sendo

“casados/as”, quando o tema é adoção para casais homoparentais, essas pessoas ainda são estigmatizadas como possíveis ameaças às crianças, taxados de potenciais pedófilos.

É possível identificar discursos contemporâneos que definem as sexualidades dissidentes como “antifamília”. Busco nesta dissertação compreender sob outra perspectiva a relação desses sujeitos que possuem práticas sexuais dissidentes e se autoidentificam como homossexuais ou bissexuais e suas famílias de origem. Ao contrário da imagem estereotipada do “gay” e da “sapatão” que viveriam isolados em um mundo de sexo promíscuo e drogas, trago neste trabalho reflexões sobre a aceitação, não-aceitação e o convívio familiar desses homens e mulheres com suas famílias de origem. Heilborn, Cordeiro e Menezes (2009) afirmam que a sexualidade adquiriu uma dimensão importante na vida privada dos sujeitos, como representante do íntimo, tornando-se central para o bem-estar psíquico. É com base nisto que compreendo aqui a sexualidade e o conhecimento ou não conhecimento pelos integrantes da família como

8 TOMAZELA, José Maria. Justiça manda a júri mãe que matou filho por ser gay em Cravinhos.

Disponível em: < https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,justica-manda-a-juri-mae-que-matou- filho-por-ser-gay-em-cravinhos,70002025803 >. Acesso em: 19 de set. de 2018.

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um elemento importante para as dinâmicas familiares e para o modo como essas pessoas vivem suas sexualidades e seus relacionamentos interpessoais.

Julgo importante para compreender o status da família na contemporaneidade abordar a questão do individualismo. Franchetto, Cavalcanti e Heilborn (1998) afirmam que diferentemente das sociedades “tradicionais”, as sociedades “modernas” apresentam um “enfraquecimento da totalidade” a partir do aparecimento do conceito de

“indivíduo”. As autoras apontam o feminismo como um desdobramento da “ideologia individualista” e que investe em uma das instâncias mais resistentes à destotalização, a família. Ameaçando, assim, a família nuclear, uma vez que é “uma totalidade hierarquicamente constituída” (FRANCHETTO, CAVALCANTI e HEILBORN, 1981, p. 37). Sorj e Heilborn (1999) apontam que a modernização igualitária-individualista tem como atores privilegiados a classe média e superiores, ainda que não exclusivamente.

O movimento LGBT pode ser compreendido na mesma direção da

“destotalização da família” que o movimento feminista, pois também é uma expressão da transformação social. Os dois movimentos sociais “[...] trazem questões de natureza distinta à instituição familiar, mas ambos indicam, através das identidades sexuais que elaboram, a subtração da sexualidade à família e à sua constituição enquanto domínio autônomo” (FRANCHETTO, CAVALCANTI e HEILBORN, 1980, p. 38). Weeks (2000) destaca que uma existência de identidades lésbicas, gays e bissexuais positivas traz à tona uma possibilidade de pluralização da vida social e escolha individual. A noção da identidade sexual é fundamental, pois oferece “[...] um sentimento de unidade pessoal, de localização social e até mesmo de comprometimento político” (WEEKS, 1999, p. 50-51). Por essa ótica, a identificação sexual não-heterossexual representaria uma ameaça em um nível coletivo, abalando certezas enraizadas, como a “família tradicional brasileira” enquanto instituição fundante da sociedade. É importante ressaltar ainda que as transformações em torno da família e suas configurações veem ocorrendo no contexto brasileiro por diversos aspectos, como pela reconstituição do núcleo familiar, famílias monoparentais, gravidez na adolescência, novas tecnologias de reprodução, entre outros fatores que em sua grande maioria pouco ou nada tem a ver com a homossexualidade em si.

De acordo com Oliveira (2013), os espaços familiares para as pessoas que se identificam enquanto não-heterossexuais podem ser turbulentos ou marcados por

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conflitos e disputas, seja de um modo crônico ou temporário. Esses espaços familiares estão sujeitos a reconfigurações, positivas ou negativas, em função de acontecimentos no decorrer do curso de vida. Tarnovski e Ghiorzi (2014) também compreendem a

“rejeição” e a “aceitação” da homossexualidade como algo dinâmico, não sendo possível abranger toda a dimensão das relações familiares, pois não seguem trajetórias lineares e são perpassadas por afetos, vínculos e afinidades. Oliveira (2013) lança questões que me auxiliaram a pensar meu próprio trabalho:

Como se dá a manutenção das relações familiares, quando a orientação não-heterossexual de um de seus membros é visibilizada?

E de que modo a diacronia pode afetar as relações da “família” com este sujeito? Mudanças vivenciadas na família impactam, ao longo do tempo, o modo como um homossexual se relaciona com seus pais, irmãos e/ou outros parentes? (OLIVEIRA, 2013, p. 11)

O trabalho “Relações familiares, gênero e sexualidade: uma etnografia com gays e lésbicas da cidade de Cuiabá” de Ghiorzi (2014) é uma pista para compreendermos esses sujeitos, suas famílias e dinâmicas. Pela perspectiva da visibilidade da homossexualidade no interior da rede de parentesco, a autora aborda as dinâmicas e negociações dos/as filhos/as pela manutenção da sua posição no seio familiar, podendo significar investimentos financeiros ou de tempo. Em suas considerações finais, a autora aponta que o investimento financeiro e a disponibilidade de auxiliar a família, assim como o bom desempenho profissional e a independência financeira são fatores que auxiliam na transformação do estigma da homossexualidade.

Rubin (2003) afirma que as famílias atuam ativamente no reforço da conformidade sexual, envolvendo a negação, para os dissidentes eróticos, do conforto e recursos que a família possui, visto que não se é esperado da família acolher a não conformidade sexual, sendo comum a punição, exílio e mais atualmente, a “esperança”

da cura gay. Embora seja comum ouvirmos histórias de sofrimento psíquico e emocional sobre a vida de pessoas com “carreiras sexuais” desviantes, no Brasil inteiro vem surgindo grupos de apoio, como o “Mães pela diversidade”9, grupo de acolhimento

9 Mães pela Diversidade saem do armário para enfrentar LGBTIfobia contra os filhos. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/maes-pela-diversidade-saem-do-armario-para-enfrentar-lgbtifobia-contra- os-filhos/ >. Acesso em: 09 ago. 2018.

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para pais e mães de LGBTs. O grupo marca presença em paradas da diversidade e na luta por direitos, considerando-se como “saídos do armário”, pois se posicionam ativos na luta pela “igualdade”.

1.1 A herança dos estudos de gênero e sexualidade

Para a Antropologia, a sexualidade constitui o pilar sobre o qual se assenta a sociedade, estando sujeita a normas que variam de acordo com cada sociedade em específico. Segundo Loyola (1998), a observação da sexualidade se deu primeiro em culturas distintas e depois o olhar foi direcionado a nossas próprias culturas, problematizando questões como sexualidade e reprodução, sexualidade e gênero, além de tentar desconstruir ideias essencialistas sobre a sexualidade.

No campo da problematização da questão da sexualidade e do gênero, os

“estudos sobre a mulher” se situam como marco inicial. De acordo com Sorj e Heilborn (1999), esses estudos criaram um espaço importante de institucionalização da reflexão com diálogo com o feminismo, buscando preencher lacunas sobre a vida social da mulher, uma espécie de reconstrução da história feminina, assim como “impor um reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente” (SCOTT, 1995, p. 73). A partir dos anos 1980, ocorre a substituição do termo mulher pela categoria gênero, e a partir daí, incluindo os homens nesses estudos, dado que se passava a compreender que se a feminilidade era construída, de certo a masculinidade também. Gênero passa a ser usado como conceito analítico, e compreendido como relação de poder. A substituição dos termos “mulher” “e feminismo” por gênero, segundo as autoras, favoreceu a aceitação acadêmica. Como explica Scott (1995), enquanto conceito aplicado nos estudos sobre sexualidade, gênero possibilitou “[...]

distinguir a prática sexual dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens”.

Portanto, se passou a estudar não apenas as relações homem e mulher, mas entre homens e entre mulheres.

Como contribuição para o campo de estudos da sexualidade, devemos ressaltar que as acadêmicas feministas “[...] implementaram o projeto de repensar o gênero, o que teve um impacto revolucionário sobre as noções do que é natural” (VANCE, 1995, p. 10). Repensar gênero possibilitou a separação da sexualidade e do gênero. Sobre a diferenciação entre os estudos de gênero e sexualidade, Vance (1995) sistematiza:

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[...] a sexualidade e o gênero são sistemas distintos entrelaçados em muitos pontos. Embora os membros de uma cultura vivenciem esse entrelaçamento como natural, sem costuras e orgânico, os pontos de conexão variam historicamente e nas diversas culturas. Para os pesquisadores da sexualidade, a tarefa não consiste apenas em estudar as mudanças na expressão do comportamento e atitudes sexuais, mas em examinar a relação dessas mudanças com alterações de base mais profunda no modo como gênero e sexualidade se organizam e inter- relacionam no âmbito de relações sociais mais amplas (VANCE, 1995, p. 12).

Ainda que a sexualidade esteja presente na tradição da disciplina, para Loyola (1999) o estudo da sexualidade ocupou por um tempo um estatuto marginal. No entanto, as mudanças de valores advindas de grandes eventos como o avanço em métodos contraceptivos, a dissociação entre sexualidade e reprodução biológica, a epidemia da AIDS/HIV, demandaram e possibilitaram o impulso das investigações sobre as práticas e representações sociais ligados à sexualidade e possibilitando que se constituísse assim um campo de estudos legítimo. Como aponta a autora (1999, p. 32), a antropologia compreende a sexualidade como um modo de refletir o social e a sociedade, além das perspectivas possíveis, “[...] a sexualidade pode ser abordada em relação à família, ao parentesco, ao casamento e à aliança como constitutiva, e ao mesmo tempo, perturbadora da ordem social [...]”.

Ademais, para Vance (1995, p. 15), “[...] a sexualidade é uma área simbólica e política ativamente disputada [...]”, e é nesse aspecto que a Antropologia Social pode entrar com sua contribuição, tencionando mostrar a perspectiva desses sujeitos, pois comportamentos “homossexuais”, assim como suas práticas e significados não são universais. No decorrer da consolidação do campo, vemos o espaço na disciplina crescer e dar espaço para vivências sexuais, até então consideradas periféricas passarem a ocupar um lugar de destaque, realizando um diálogo com esses sujeitos através da etnografia.

O campo de estudo sobre homossexualidade permeia o campo de estudos do

“comportamento desviante” ao mesmo tempo em que o questiona. Segundo Louro (2008), há um esforço para desassociar a homossexualidade dessa “categoria”, relacionando-a com a “normalidade” ou “naturalidade”. Para o senso comum, o centro da problemática do sujeito com comportamento desviante tem uma de suas origens a perspectiva médica. Gilberto Velho (1985) comenta que a perspectiva médica

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compreende o “desviante” como patológico, procurando diferenciar o “são” do “não- são”, sendo essas pessoas consideradas até mesmo como uma ameaça a existência da sociedade. Ainda segundo o autor (1985, p. 27), o indivíduo desviante não está fora de sua cultura, até mesmo porque “Existem áreas de comportamento em que agirá como qualquer cidadão „normal‟”. De acordo Miskolci (2007), desde a “invenção” médico- legal no final do século XIX, a homossexualidade vem representando uma “ameaça”, tanto à reprodução biológica, à divisão tradicional de poder entre homem e a mulher na família e sociedade, assim como à manutenção de valores e moralidades, sendo colocados, por esses motivos, na categoria desviante. Para Parker (2002), nas décadas de 1930 e 1940, o comportamento homoerótico era considerado patológico, tanto pelos códigos moralistas tradicionais quanto pela polícia, justiça e medicina, todas essas instituições trabalhando em conjunto para combater o “desvio”.

A sexualidade, seus significados e conteúdos devem ser compreendidos como não sendo fixos e variando de acordo com os contextos históricos e sociais, divergindo de uma sociedade para outra, assim como entre diferentes grupos sociais. Todavia, por mais que tenham ocorrido alguns avanços na conquista de “direitos sexuais” e um maior debate público sobre a homossexualidade, a sua compreensão no contexto brasileiro contemporâneo ainda compartilha algumas visões de mundo que mostra Carmen Dora Guimarães (2004) em “O homossexual visto por entendidos”. O trabalho da autora, originalmente trata-se de uma dissertação defendida em 1977, orientada por Gilberto Velho, participando da iniciação dos estudos sobre comportamento desviante no Brasil e estudos sobre as camadas médias e seus valores individualistas. A autora traz o termo

“entendido” como uma nova identidade gay de classe média surgida em 1960. Carmen Dora Guimarães (2004, p. 65) ao estudar o network dos entendidos, destaca que seus

“nativos” migravam e viam na grande metrópole do Rio de Janeiro uma possibilidade de

[...] oferta de espaços sociais legítimos e exclusivos (lugares públicos, como faixas de praia, bares, saunas, boates) para uma clientela de identidade sociossexual estigmatizada, como é o caso dos indivíduos do network, nos quais não há maiores sanções ou proibições.

De acordo com Fry (1982), o termo “entendido” configura um sistema de relações que está em oposição ao sistema hierárquico. O autor apresenta três modelos identitários para representar homens que se relacionam, seja sexualmente ou

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afetivamente, com homens no Brasil: no sistema A “homens” e “bichas”, o que diferencia uma classificação para outra é o papel de gênero e o comportamento sexual, sendo o que executa o papel passivo classificado como “bicha” e o que faz o papel ativo como “homem”; no sistema B, são “homens” e “entendidos”, e o que define cada identificação é a orientação sexual, pois o “entendido” tem liberdade no que concerne aos papéis de gênero e passividade/atividade. No sistema B, tanto os papéis de gênero quando o comportamento sexual são irrelevantes, tratando-se de um sistema igualitário.

Já no sistema C, o modelo médico do século XIX, distingue homossexuais e heterossexuais, sendo os homossexuais subdivididos entre “pederastas ativos” e

“pederastas passivos”, tendo como base o papel de gênero e comportamento sexual.

Com a entrada da medicina no campo da homossexualidade, ocorre o deslocamento de

“pecado” para “doença”. Por último, o sistema D, modelo médico moderno, divide o

“mundo masculino” entre homossexuais, heterossexuais e bissexuais.

Com uma perspectiva mais “igualitária” da homossexualidade, ampliação de possibilidades de modos de vida, acesso a tecnologias reprodutivas e novos arranjos de conjugalidade, o campo de estudo das sexualidades se expandiu e propiciou a ampliação de temáticas interdisciplinares. As contribuições vão desde o envelhecimento (HENNING, 2016; CARDOSO e CHAVES, 2012), homoparentalidade (TARNOVSKI, 2002; UZIEL, MELLO e GROSSI, 2006; UZIEL, 2007), cidadania (CARRARA, 2016), lazer (FRANÇA, 2013; BRAZ, 2010) e conjugalidade (LOPES, 2009;

HEILBORN, 2004; MELLO, 2005).

1.1.2 Os campos antropológicos: homossexualidade e família

Com o desenvolvimento da antropologia urbana no Brasil, foi possível focar o direcionamento dos estudos para “[...] uma metrópole, com suas mazelas e também com os arranjos que os moradores fazem para nela viver (ou sobreviver), combinando o antigo e o moderno, o conhecido e a novidade, [...], a periferia e o centro” (MAGNANI, 2000). Conforme explica Perlongher (1993), “bichas”, gays e “michês”, situavam-se em uma “região moral”, localizados nas margens, sendo elaborados depois conceitos como gueto gay, um território espacial que concentra espaços de sociabilidade para pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. De acordo com Perlongher (1993, p. 5), “[...] o gueto gay [...] se inscreve – territorial e historicamente – no campo

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da marginalidade [...]”. Para explicar o território ocupado pelos michês, Perlongher (1987) recorre ao termo conceitualizado por Park (1979) da Escola de Chicago, “região moral”, um espaço de encontro guiado por desejos latentes, unindo pessoas por gostos e temperamento, não sendo necessariamente um domicílio, mas um ponto de encontro.

Com o crescimento das metrópoles, possibilitava-se um anonimato e a proliferação desses pontos de encontros, tornando-se terreno fértil para práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo de forma casual e anônima. “O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo” de Nestor Perlongher (1987) é um excelente exemplo de conciliação entre os estudos da antropologia urbana e da sexualidade. O autor escreve sobre o “gueto gay” de São Paulo, fazendo uma “cartografia” dos personagens sociais e os lugares que ocupam no centro da cidade.

Essa “organização social do espaço sexual” é abordada por Richard Parker (2002) em Abaixo do Equador. O autor busca compreender como se dá a “organização sexual do espaço social”, girando em torno de três eixos: prostituição (travestis, michês e clientes), o circuito comercial gay e grupos gays fazendo uma análise comparativa entre o Rio de Janeiro e Fortaleza. Examina também a mudança da organização cultural dos desejos e práticas entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, mudanças essas que alteraram a estrutura da experiência homossexual. Ainda que o autor delimite seu estudo aos homossexuais masculinos, aponta algo importante para a compreensão da homossexualidade em geral, o conceito de homossexual no Brasil é recente, sendo produto de uma dialética cultural complexa e contínua. Segundo o autor, esta mudança na organização da sociedade brasileira se dá, principalmente, nas áreas urbanas mais desenvolvidas, constituindo uma “gramática cultural”, na qual um forte elemento é a relação entre as práticas sexuais e os papéis de gênero, mais especificamente a atividade masculina como ativa e a feminina como passiva. Com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira e o crescimento do mundo urbano no século XIX, novos modelos de conceptualização, em especial médico e psicológico surgem e são traduzidos gradualmente para o discurso da cultura popular, para uma escolha do objeto sexual.

Embora pareça que os estudos antropológicos sobre família foram deixados de lado por um período, de acordo com Fonseca (2003), o que ocorreu foi uma

“reabilitação” do campo de estudo pela pesquisa feminista, ainda que autora ressalte que esse “novo” campo de parentesco que ressurgia tinha pouco em comum com o parentesco dos estudos clássicos. Segundo a autora, no final dos anos 1970, a disciplina

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sofreu grandes mudanças, sendo uma delas o início do interesse dos pesquisadores e pesquisadoras na própria sociedade, deixando de lado as sociedades tradicionais, e dando ensejo para novas perspectivas e rearranjos de categorias analíticas.

De acordo com que as mudanças estruturais e de valores em torno da família foram se modificando na contemporaneidade, uma demanda tanto social quanto em nível de políticas públicas é gerada. Para Velho (1981, p. 68), a contribuição antropológica consiste em “[...] procurar contextualizar a família no quadro mais amplo do universo de representações e da cultura propriamente dita”. Essa contextualização se faz cada vez mais necessária, como demonstra Fonseca (2002), principalmente nos contextos atuais de defesa da “família tradicional brasileira”, que seria composta por um homem e mulher heterossexual, modelo de família nuclear patriarcal que não expressa a diversidade da sociedade brasileira. Embora Fonseca (2002, p. 5) aponte que os modelos das famílias contemporâneas são diversos, sem possuir um modelo único, afirma ainda que “[...] as relações familiares, de uma forma ou outra, parecem continuar ocupando um lugar de destaque na maneira em que a maioria de nós vemos e vivemos o mundo”.

A família, como compreende Mello (2005), ocupa o papel fundamental de mediação entre indivíduo e sociedade, sendo o modelo moderno uma construção econômica, política, social e cultural demarcada temporal e espacialmente. Dado que estamos falando de família brasileira, o modelo de família hegemônico no Brasil é alicerçado em modelos cristão-burgueses. Creio ser necessário pontuar aqui que dos/as vinte e três informantes, dez informantes têm pai e mãe casados, dois informantes têm

“mães viúvas”, dez têm pai e mãe separados e um não informou.

Embora atualmente se fale em famílias plurais e suas mais diversas composições, ressalto que as famílias de origem dos/as interlocutores/as que têm suas histórias presentes aqui, têm uma configuração familiar “tradicional” de modelo conjugal, formado em um contexto de camadas médias por um casal heterossexual e sua descendência, tendo foco nas relações de consanguinidade, com variações como:

famílias monoparentais, seja por “mães viúvas” ou “mães solteiras”, e famílias recompostas. As dinâmicas familiares levam em conta um princípio de reciprocidade que pode ser pensado no viés do conceito de “relatedness” de Carsten (2014), analisando as relações como um conjunto de elementos para além do biológico, como alimentação, convivência e afeto, trocas que produzem os laços de parentesco. Em

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especial, no contexto de classe média, o princípio da reciprocidade da parte dos pais seria os elementos que produzem esses laços de parentesco e em retribuição, os filhos devem retornar o sucesso profissional, o orgulho e a continuação da família, dinâmica nem sempre espontânea e sim imposta pelos laços de parentesco. Com base na discussão de Sahlins (2013) sobre “o que é parentesco” e a ideia de uma “mutualidade de ser”, Carsten (2014) parte do princípio que há várias “substâncias” que perpassam a prática do parentesco, “substâncias” nos mais diversos sentidos, desde “substâncias corporais” como sangue ou outra matéria corporal até comida, fotografias, roupas e outros bens materiais. No caso das famílias de classe média, os “confortos” e investimentos financeiros são bens que são repassados e podados quando ocorre a identificação com uma sexualidade não-heterossexual.

Já dizia Da Matta (1987, p. 125) que no Brasil “Quem não tem família já desperta pena antes de começar o entrecho dramático; e quem renega sua família tem, de saída, a nossa mais franca antipatia” (apud MACHADO, 2001, p. 15). Como explicita Duarte (2005), o valor que o brasileiro atribui à família funciona como ordem de identificação social estruturante. Em sua pesquisa sobre famílias eleitas por pessoas LGBT, Weston (2003) aponta que há um estereótipo sobre a “tragédia da vida gay” que gira em torno de um suposto “isolamento”, em uma ausência de parentesco, seja pela família de origem ou pela impossibilidade de construir a sua própria família, assim como a “incapacidade” de manter relações estáveis, sendo compreendidos como seres mais sexuais que sociais. É pensando a especificidade brasileira sobre família e sobre os estereótipos que são atrelados a pessoas LGBT, que pretendo contribuir para a reflexão de como essas pessoas veem e vivem a dinâmica familiar, até mesmo porque vivemos em um momento de transformações, e é necessário desmistificar a imagem “solitária”

delegada ao/à homossexual e compreender as relações que pessoas LGBT estabelecem com suas famílias de origem.

1.2 As identidades sexuais e suas especificidades

No que diz respeito à bissexualidade, Seffner (2003) aponta como uma dificuldade a falta de representatividade da “população masculina bissexual brasileira”.

Para o autor, a necessidade de “sigilo” atrelado à falta de movimento social direcionado à identidade, assim como ausência de lideranças, dificulta a criação de uma identidade

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bissexual, questionando ainda: “[...] como falar de uma identidade sem uma cultura a ela associada?” (SEFFER, 2003, p. 240). Lago (1999), em sua pesquisa sobre a bissexualidade masculina, conclui que no grupo estudado, a bissexualidade não se constituía como uma identidade e tampouco uma recusa em assumir uma homossexualidade, mas cabe como uma alternativa ao temor da identificação com a homossexualidade. Em meu campo, ocorreram duas situações específicas: um interlocutor não definiu sua sexualidade em um empenho de não se “limitar”, se autodenominando “sem rótulos” e outro esclareceu que mantinha relações exclusivamente sexuais com homens, mas que essa parte de sua vida não se cruzava com outros âmbitos, mas que se fosse necessário denominar sua identidade sexual esta seria “bissexual”. Apesar dos dois interlocutores, outras interlocutoras se identificam enquanto bissexual, compreendendo como uma identidade sexual e sendo algo constituinte de suas vidas.

No que diz respeito à lesbianidade, destaco aqui o trabalho de Perucchi (2001) sobre “homoerotismo feminino” e as relações sociais estabelecidas em um “gueto GLS”

em Florianópolis, que aponta como causa do “silêncio” sobre a homossexualidade feminina a “lógica discriminatória” que a sexualidade feminina em geral é tratada.

Portinari (1989) atribui o silêncio sobre a homossexualidade feminina “ao prolongado monopólio exercido pelos representantes do sexo masculino sobre a história e cultura”

(PORTINARI, 1989, p. 42). Regina Facchini (2008, p. 23), argumenta que ao se aproximar da temática “mulheres que fazem sexo com mulheres” percebeu que “o sexo entre mulheres nem sempre era considerado sexo”. Na pesquisa de Almeida e Heilborn (2008) sobre a identidade lésbica e sua crescente autonomização, as autoras investigam um movimento iniciado em 1970 e que em 1990 ganha forças com a criação de ONGs lésbicas no Brasil. As autoras afirmam que o movimento “lésbico” se posiciona como um novo movimento, relacionado com o aumento de fluxos de informações e veículos para propagação de “gostos”. As autoras ainda apontam a existência de um

“lesbianismo político” no Brasil, que representaria, através de sujeitos diferentes, três correntes: lesbianismo feminista, lesbianismo radical e lesbianismo separatista.

Considerando o referencial apresentado aqui, finalizo com uma avaliação de Simões e Carrara (2014, p. 88) sobre uma particularidade do campo de estudos sobre homossexualidade: “É interessante notar que raramente esses recortes incluem as relações que esses sujeitos mantêm com pessoas fora do círculo de iguais, em contextos

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mais amplos de suas vidas – com amigos, familiares ou mesmo com cônjuges [...]”. A medida que a homossexualidade é mais visível na esfera pública, novos temas e questões políticas surgem no discurso social, como a questão que abordo aqui da relação com a família de origem.

1.3 A metodologia de pesquisa ao “estranhar o familiar” e suas implicações éticas

Se nos tempos malinowskianos buscava-se sempre compreender o outro

“selvagem”, com o começo da antropologia urbana, seja estudando na cidade ou fazendo estudo da cidade (MAGNANI, 2013), começamos enquanto antropólogos a refletir e nos posicionar também de uma forma relativa, ou seja, como passíveis de sermos, em alguma de nossas identidades ou pertencimentos como “o outro” a ser estranhado. Para Magnani (2000, p. 21), a antropologia é um jogo de espelhos em que a presença do “outro” possibilita uma caráter relativizador e a “[...] imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade”. E é nesta posição que os sujeitos da minha pesquisa se situam, como os fora do centro e marginalizados em alguma medida.

Passei pelo que Velho (1981, p.131) chama de “estranhar o familiar”, passando exatamente pela descrição feita pelo autor, “O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a respeito de fatos, situações”. Da mesma maneira que o autor, acredito que não se trata exclusivamente de transformar o familiar em exótico, mas compreender o fato estudado de acordo com a sua complexidade, a que vai além do que deixamos passar no dia-a-dia.

Pela pesquisa envolver pessoas que fazem parte do meu cotidiano e que poderão ter acesso ao trabalho aqui desenvolvido, se faz necessário pensar as implicações éticas de estranhar um familiar tão próximo. Coelho (2013) reflete sobre o acesso que os “nativos” tem às etnografias e no resultado que podemos esperar após esse contato, principalmente em um contexto em que os “nativos” se interessam e querem saber o que foi teorizado sobre eles. Acredito que passarei pelo que relata a autora, pois alguns/mas interlocutores/as frisaram que querem ler a pesquisa finalizada.

(27)

A autora pontua que “nativo” e “etnógrafo” são posições em uma relação imbricada de poder e o projeto etnográfico é “dizer do outro aquilo que ele não sabe de si”

(COELHO, 2013, p. 30).

Durante minha etnografia, refleti sobre questões éticas, como ter como ponto de partida a rede de relações pré-existente. Velho (1998), em sua tese “Nobres e Anjos”, lidou com pessoas que faziam parte do seu círculo de amizades. Por também incluir pessoas próximas, maioria das minhas entrevistas foram conduzidas em tom de conversa, e que por saber do contexto histórico de alguns momentos relatados, deixava de questionar, por exemplo, “porquê” tal pessoa sentia determinada emoção devido a tal acontecimento. Portanto, foi comum durante a produção de meu trabalho que durante a transcrição ou momento de reflexão, eu entrasse em contato com os participantes para sanar dúvidas ou acrescentar perguntas.

A maioria de meus/minhas interlocutores (com exceção de dois), concluíram ou estão cursando o ensino superior. Em virtude de a maioria ser da área de Humanas, tiveram contato prévio, mesmo que superficial, com a Antropologia Social. Como já mantinha laços de amizade com alguns interlocutores/as anteriormente, houve um deslocamento, assim como com Guimarães (2004), de minha identidade como “amiga”

para identidade de “pesquisadora”. Não foram raras as vezes que, em confraternizações em que havia apenas pessoas homossexuais e uns dos temas tratados era de meu interesse, que um amigo fazia questão de sinalar: “Pega rápido o celular e grava!” ou

“Ela vai anotar tudo e vai parar na pesquisa dela”. Por estar diariamente inserida no campo, vivenciei provocações em inúmeras reuniões com amigos em que a conversa se direcionava para sexualidade, sempre alguém dizia: “cuidado, ela tá anotando tudo e vai botar na pesquisa”. Assim como quando pude conhecer os pais de um informante e fiz uma introdução sobre minha pesquisa e perguntei a eles sobre a relação que tinham com o fato do filho se identificar enquanto homossexual, e o filho em provocação respondeu:

“Pega seu bloquinho. Anota tudo, senão depois você esquece!”.

Aqui adentramos um ponto importante na Antropologia: a subjetividade do autor daria uma maior autoridade para a pesquisa? Poderia apenas o homossexual estudar homossexual, mulher estudar mulheres? Gilliam e Gilliam (1995) abordam como a Antropologia contemporânea impele o/a pesquisador/a a se reconhecer enquanto produto do processo cultural, admitindo assim estar incluso/a na observação feita.

(28)

A reflexão sobre a questão da produção de um conhecimento situado também se faz importante, uma vez que ocupo uma posição enquanto mulher, negra e bissexual.

Donna Haraway (1995) questiona a busca de uma produção de conhecimento objetivado, em que apenas uma perspectiva imparcial poderia alcançar a objetividade almejada. Acredito que a minha posição na estrutura social faz a diferença na relação pesquisadora-pesquisados/as, visto que previam que eu já tivesse passado por situações de conflitos familiares ou que, como apontado por um interlocutor, eu entenderia sua frustração em um mundo “feito para homens heterossexuais”, visto que sou mulher.

Salem (1978), ao refletir sobre sua pesquisa entrevistando famílias, identifica um importante fator: características subjetivas que se convertem em recursos importantes para o papel de pesquisadora. Exemplifica com o fato de ser mãe e esse fator a ter aproximado das mães das famílias pesquisadas, criando uma “aura” de compartilhamento de um mesmo código social. Em minha pesquisa, ser percebida como alguém que compartilha de uma sexualidade dissidente apareceu por meio de fragmentos discursivos, como “você deve saber como é” ou “você já deve ter passado por isso, né”, criando assim entre nós uma situação de cumplicidade. No entanto, segui a orientação de Kaufmann (2013), deixando transparecer que quem estava em destaque era a/o entrevistada/o, fazendo sempre uso de uma escuta atenta e dando importância para cada frase dita.

1.3.1 Por dentro da vida dos/as interlocutores/as

É buscando compreender arranjos e estratégias de convivências que realizei minha pesquisa de campo com vinte e três informantes, sendo catorze homens e nove mulheres que se autoidentificam enquanto homossexual ou bissexual. Dos interlocutores, catorze já eram conhecidos, alguns em decorrência de amizades de longa data e outros conhecidos corriqueiramente por amigos/as em comum, sem muita intimidade em virtude da pouca convivência. Os interlocutores/as são oriundos dos mais diversos estados como Mato Grosso, Minas Gerais, Brasília, Paraná e Goiás. Dentre os entrevistados, alguns migraram para São Paulo capital em busca, ainda, do que mostram os nativos estudados por Carmen Dora Guimarães (2004) em “O homossexual visto por entendidos”, uma “busca de liberdade” que reside tanto na distância geográfica da família quanto na possibilidade de anonimato de uma grande metrópole. Os/as

(29)

interlocutores/as mantêm alguns laços: Thiago e Breno10 são namorados e moram juntos; Sérgio e Luiz são irmãos por parte de pai; Otávio e Henrique namoram; Heloísa e Joana namoram; Yasmin e Paula são ex-namoradas; Carla e Fabiana estão noivas. O fato dos/as interlocutores/as serem heterogêneos no sentido de mobilidade urbana traz a possibilidade de identificar realidades e mundos que se cruzam. Os principais dados dos interlocutores podem ser visualizados no quadro abaixo:

Nome fictício

Idade Cidade atual

Profissão Material utilizado na análise

Thiago 24 Cuiabá Servidor público Entrevista gravada e conversas informais pela internet

Breno 29 Cuiabá Estudante Entrevista gravada

Sofia 21 Cuiabá Estudante Entrevista gravada

João 24 Cuiabá Publicitário Entrevista gravada e

conversas informais

Sérgio 3

31

São Paulo Servidor público Entrevista gravada, conversas informais e observação participante

Luiz 1

18

Interior de São Paulo

Atleta Entrevista gravada e observação participante Roberto 30 São Paulo Servidor público Entrevista gravada,

observação participante, conversas informais e entrevista complementar pelo telefone.

Mário 20 São Paulo Servidor público Entrevista gravada Otávio 24 Cuiabá Publicitário Entrevista gravada e

10 Todos os nomes dos/as interlocutores/as foram alterados.

(30)

conversas informais Henrique 24 Cuiabá Estudante Entrevista gravada

Mariano 25 Cuiabá Gerente

Financeiro

Entrevista gravada e observação participante

Carla 24 Cuiabá Profissional de

comunicação

Entrevista gravada

Heloísa 2

24

Cuiabá Publicitária Entrevista gravada e conversas informais pela internet

Joana 2

20

Cuiabá Estudante Entrevista gravada e conversas informais

Maria 2

22

Cuiabá Servidora pública Entrevista gravada e conversas informais

Yasmin 2

20

Cuiabá Servidora pública Entrevista gravada

Paula 3

33

Cuiabá Servidora pública Entrevista gravada Priscilla 22 Cuiabá Estudante Entrevista gravada e

conversas informais

Gustavo 25 Cuiabá Estudante Entrevista gravada

Fábio 30 Cuiabá Professor

universitário

Entrevista gravada

Estevão 2

27

Cuiabá Jornalista Entrevista gravada

Pedro 2

20

Brasília Estudante Entrevista gravada

Fabiana 2

33

Cuiabá Jornalista Entrevista gravada

Pontuo aqui que os integrantes da pesquisa fazem parte de uma rede social.

De acordo com Portugal (2007), fazer parte de uma rede social pode “gerar lucro” em forma de oportunidades estruturais, fluxo de informação facilitado e acesso a outras redes. O acesso a essas redes sociais se deu através do método de bola de neve. Para

(31)

Biernacki e Waldorf (1981), trata-se de um método aplicável em estudos que abordam temas delicados, principalmente temáticas sobre comportamento desviante. Além das entrevistas também foram feitas observações participantes, seja em encontros com a família dos interlocutores em suas casas, churrascos e boates.

Defino aqui os/as interlocutores como pertencentes ao que Velho (1981) chama de segmentos das “camadas médias urbanas”, tendo em vista que estar nessas camadas vai além de um dado financeiro, mas inclui consumo, modos de ver a vida, trajetórias e projetos. Acredito ser necessário aproximar esta dissertação do que diz Velho (1981) em sua obra Individualidade e Cultura, pois ainda que as relações de parentesco sejam centrais nesta pesquisa, os projetos de vida, a noção de “independência” e “felicidade”

estão transpassadas pela noção de individualidade. Além da sexualidade caracterizada com desviante, ainda que em níveis diferentes, pois uns categorizam como homossexual, outros bissexuais e outros ainda como “sem rótulos”, acredito que esses indivíduos têm em comum uma experiência partilhada.

Como técnica de investigação, utilizei entrevistas semi-abertas guiadas por um roteiro e gravadas. Baseado em sua experiência em campo, Lopes (2010) problematiza a entrevista como “forma de interação”. Para o autor, a presença do gravador enquanto 3ª pessoa, signo da sociedade e seu sistema de hierarquias, modifica o resultado da relação entrevistador – “nativo”. Enquanto os interlocutores de Lopes (2010) construíam um self de respeitabilidade, em meu campo era construído um self das boas relações familiares, em que alguns dramas eram ocultados. Assim como Ghiorzi (2014) encontrou em campo, ocorreu também a “construção personalizada do sentido” para transmitir a ideia de uma dinâmica familiar harmônica. Ressalto aqui que a percepção das ocultações foi possível pela minha convivência com alguns interlocutores e por já estar ciente de alguns dramas familiares anteriormente, assim como de algumas contradições durante a narrativa.

A maioria das entrevistas foram “formais”, com data, hora e local marcados, com um roteiro semi-estruturado com adição e modificação de questionamentos de acordo com a evolução da entrevista. Os lugares de entrevista foram diversos, os que moravam sozinhos davam preferência para entrevista em casa, por ser mais confortável.

No mais, as entrevistas foram feitas em bares, na UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) e parques, porém sempre evitando locais em que haveria possibilidade de encontrar conhecidos, dando preferência pela privacidade e discrição dos informantes,

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