• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: CRISTIANISMO E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NA OBRA DE CLAUDE GEFFRÉ

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "PARTE I: CRISTIANISMO E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO NA OBRA DE CLAUDE GEFFRÉ"

Copied!
26
0
0

Texto

(1)

1

A CONTRIBUIÇÃO DE CLAUDE GEFFRÉ PARA A

TEOLOGIA CRISTÃ DAS RELIGIÕES

Introdução

Este primeiro capítulo apresentará o autor que estudamos a partir do que entendemos ser sua contribuição específica para a teologia cristã das religiões, do seu início até o estágio atual. Começaremos analisando o contexto do surgimento da teologia das religiões e de seu estatuto epistemológico próprio, bem como a contribuição dos teólogos precursores desse novo capítulo da teologia.

Em seguida, analisaremos as principais tendências que orientam o estudo das religiões como tema específico da teologia. Nesse momento, já começaremos a situar Claude Geffré entre os teólogos que se propõem a enfrentar o desafio de responder aos questionamentos em relação ao significado das religiões diante do conteúdo central da revelação cristã.

Por fim, apresentaremos alguns elementos biográficos do autor com o intuito de auxiliar na compreensão do conjunto da sua produção teológica. Este conteúdo, mesmo sumário, ajudará a entender onde o autor busca inspiração para as intuições teológicas que pretende desenvolver. Esse pressuposto tornará mais fácil a leitura que fazemos do pensamento de Claude Geffré nesta tese.

1.

Teologia cristã das religiões: a construção de uma identidade

Mais de quarenta anos depois da primeira tentativa de apresentar um estatuto epistemológico da teologia das religiões,1 pode-se dizer que ela ainda está em gestação. Considerar teologicamente o significado das religiões mundiais é algo relativamente novo para o debate teológico. Esta é uma das razões de ainda não haver posições consolidadas no que concerne ao sentido real das diversas religiões na única vontade salvadora de Deus. Alguns autores já apontaram

1 SCHLETTE, H. R. Die Religionen als Thema der Theologie. Freiburg: Verlag Herder, 1963 –

publicação em português: As religiões como tema da teologia. São Paulo: Herder, 1969. As citações seguintes serão feitas a partir desta tradução.

(2)

possíveis fatores que contribuíram para a emergência das religiões como problema teológico.2 Entre esses fatores merece destaque a própria situação histórica atual em que as diversas religiões nunca estiveram tão próximas. Esta proximidade possibilita um conhecimento maior do que cada tradição religiosa tem de específico. As religiões aparecem não somente como sistemas, mas como mediações de experiências verdadeiramente significativas para seus membros. Do ponto de vista do cristianismo, a vida virtuosa das pessoas das outras religiões quebra idéias pré-concebidas que se tinha delas. Desde o começo da segunda metade do século XX, a teologia católica começa a se debruçar sobre este novo problema: a despeito de todo esforço missionário dos cristãos, as outras religiões crescem naturalmente. O que Deus estaria querendo nos dizer com tudo isso?

O cristianismo vive, de fato, um tempo novo. Em nenhum outro momento da história foi tão contestado em sua pretensão de ser a religião universal. Tal desafio não atinge apenas os círculos teológicos ou hierárquicos, mas chega ao conjunto da comunidade eclesial. De agora em diante, o cristianismo não pode mais se conceber sem levar a sério as outras religiões.

As tentativas de solução começam a surgir. O tema da possível salvação dos infiéis não era estranho à teologia cristã. Desde tempos remotos e até momentos antes do Concílio Vaticano II sempre se defendeu tal possibilidade. Tradicionalmente se considerava a possibilidade de salvação dos “pagãos”, sustentando-se, de um lado, a necessidade de pertença à Igreja para se conseguir a salvação; e de outro, admitindo-se que a vontade salvadora de Deus não se deixa limitar pelas fronteiras eclesiásticas. O que está em jogo na nossa época é mais que isso. De fato, trata-se de compreender o significado humano e salvífico das religiões enquanto religiões. Aqui está a novidade da reflexão teológica sobre elas. Perguntar-se pelo significado das religiões em si mesmas é uma questão teológica relevante. Encontramo-nos ainda no inicio da construção das respostas a esta questão.

Deu grande impulso à teologia das religiões a tese defendida por K. Rahner sobre a vontade salvífica universal, segundo a qual Deus, em Cristo, quer a salvação de todos os homens e a todos ele a oferece. Deduz-se, então, que a graça pode alcançar os homens também fora da Igreja cristã, na concretude de sua

2 FRANÇA MIRANDA, M. “O encontro das religiões”. In: Perspectiva Teológica 26 (1994), p. 9.

(3)

vida humana e mesmo mediante sua vida religiosa, ou seja, não obstante, mas nas e por meio das religiões.3 Schlette segue esta intuição. Este teólogo defende que uma teologia das religiões só é possível em conexão com uma teologia da história. A história humana seria também história da salvação, e as religiões seriam autênticos “caminhos de salvação”, queridos e legitimados por Deus.4 Diz este autor

A história da salvação abrange tudo o que foi realizado e se realiza por parte de Deus para a “salvação” da humanidade no decurso da história da humanidade; ela corresponde ao pressuposto estrutural da existência humana que é designada como “historicidade”. É sabidamente um difícil problema decidir se “historicidade” pode ser concebida, ou mesmo pensada, pela filosofia sem que nela se incluam, expressa ou pelo menos tacitamente, os pressupostos que do ponto de vista histórico provêm do campo da fé vétero e neotestamentária, isto é, da teologia.5

Schlette considera que a categoria de “história da salvação” remete a uma categoria mais geral que ele chama de “epifania como história”. A história inteira é o lugar do desvelamento da glória de Deus. Mostrando-se no tempo e na história, Deus leva o ser humano à salvação. A automanifestação de Deus na história já é realização da sua soberana vontade salvadora. Esta intuição permite considerar a seriedade da história como lugar da ação salvífica e transformadora de Deus a partir de dentro. Deus desvela sua glória em uma história, que é história da salvação, na qual também as religiões não-cristãs são caminhos providenciais de salvação. Então, a história da salvação, no sentido de relação salvífica entre Deus e a humanidade, existe desde o começo, como já falavam termos consagrados na Tradição como “ecclesia ab origine”, “ab initio”, “ab Adam”, “ab Abel” etc. Não há dúvida de que esta perspectiva aberta por Schlette fez avançar a pesquisa teológica das religiões. Na medida em que é possível considerar as religiões como queridas e legitimadas por Deus, é possível admitir também que a história das religiões revela, ao lado do que nelas é negativo, a condução e a

3 RAHNER, K. Curso Fundamental da fé. São Paulo, Paulus, 1989, p. 369-370 - “Se uma religião

não-cristã de início não tivesse ou não pudesse ter absolutamente nenhuma influência positiva sobre o evento da salvação sobrenatural de uma pessoa que não é cristã, estaríamos entendendo esse evento salvífico para essa pessoa de forma inteiramente a-histórica e a-social, o que, porém, contradiz fundamentalmente o caráter histórico e social (eclesial) do próprio cristianismo. Herbert Vorgrimler diz que a teoria de Rahner sobre os cristãos anônimos “não implica uma confissão de fé explícita, todavia, não é por isso menos exigente do que uma confissão explícita da fé”. Karl

Rahner – Experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 279.

4 SCHLETTE, H. R. As religiões como tema da teologia, op. cit., p. 54. 5 Id. Ibid., p. 57

(4)

presença de Deus, embora não seja tão fácil verificar isso objetivamente. Percebe-se, por aí que a relevância de uma teologia cristã das religiões vai muito além do aspecto histórico-religioso. É preciso investigar em profundidade os “vestígios” de Deus nas diferentes tradições religiosas contando-se com o fato incontestável de que eles já estão lá.6

Esta intuição de Schlette permite também redimensionar o papel da Igreja. Sobre a Igreja assim se expressa este teólogo precursor

Por conseguinte, a Igreja, como comunidade dos chamados por Deus, não é, por isto mesmo, a multidão privilegiada daqueles que caminham pela estrada larga do caminho ordinário da salvação, enquanto “os outros”, que estão “nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1, 79), são como que salvos por Deus de forma extraordinária. Antes a Igreja é a comunidade escatológica, chamada dos quatro ventos, que pela existência do mundo deve testemunhar para onde levam os caminhos ordinários (das religiões), e que em nome de Deus exorta a seguir, em obediência e humildade, o caminho extraordinário. Quem trilha o caminho da história salvífica especial não o escolhe por si mesmo, mas é colocado por Deus nesta direção, pois o que há de extraordinário neste caminho é que ele não só é caminho, mas já “verdade” e “vida” (Jo 14,6), pois estando neste caminho o homem já se encontra na presença de Deus, absoluta, escatológica e totalmente “nova” em comparação com os outros caminhos.7

Ele propõe uma mudança no léxico teológico quando apresenta as outras religiões como caminhos ordinários de salvação e a Igreja como caminho extraordinário. Esta consideração positiva das religiões não-cristãs abre caminho para um diálogo autêntico e fecundo delas com o cristianismo.

O Concílio Vaticano II, na Declaração Nostra Aetate, provoca uma real mudança de rota em direção ao diálogo inter-religioso ao considerar que as outras religiões contêm valores espirituais significativos e elementos concretos de santidade, bondade e verdade (NA 2). Trata-se de uma verdadeira virada copernicana no que se refere ao relacionamento com as outras religiões. Não temos dúvida de que as profundas intuições teológicas de Rahner e Schlette ajudaram na formulação desse equilibrado texto conciliar. O Concílio não fechou questão quanto às relações com as outras religiões. Mas abriu possibilidade real de avanço na pesquisa teológica a este respeito.

O período pós-conciliar acabou por consolidar três principais tendências teológicas no debate sobre o significado das religiões: o exclusivismo, o

6 SCHLETTE, H. R. As religiões como tema da teologia, op. cit., p. 67. 7 Id. Ibid., p. 79-80.

(5)

inclusivismo e o pluralismo. Sem pretender sermos exaustivos, apresentaremos a seguir as características centrais de cada uma delas.

A tendência exclusivista aferra-se à afirmação de que só há uma religião verdadeira: o cristianismo e, em conseqüência, uma única Igreja. Todas as outras religiões são falsas e não são caminhos nem mediação de salvação. Apenas a revelação cristã é verdadeira. A Igreja de Cristo é a única mediação de salvação. Se há algo de bom nas outras religiões, isso se deve apenas ao esforço do espírito humano, não a revelações ou ações salvíficas de Deus. Jesus Cristo é o único mediador da salvação. Ele é o único centro e a chave da existência humana. É preciso que se diga que a Igreja católica nunca aceitou um exclusivismo assim tão rígido. Algumas saídas inclusivistas foram sempre apontadas, embora nem sempre tematizadas. Um bom exemplo de atenuação do exclusivismo pode ser a idéia do batismo de desejo ou o voto do sacramento como meios extraordinários de salvação. A tomada de consciência da liberdade religiosa e da responsabilidade individual foi mostrando que o exclusivismo era inviável devido ao seu radicalismo.8

O inclusivismo sucede ao exclusivismo e tenta conciliar a centralidade de Cristo e a salvação nas outras religiões. O Vaticano II assumiu o fato de que pode haver salvação nas outras religiões ou mesmo fora de qualquer religião (GS 22). Em meio a avanços significativos na consideração positiva das outras religiões, o Concílio Vaticano II, no entanto, não chegou a reconhecer que as outras religiões possam ser mediadoras da salvação para seus membros. A reflexão teológica pós-conciliar propõe-se a avançar na compreensão desse dado teológico. Pretende-se mostrar como a verdade cristã, de certo modo, inclui a verdade das outras religiões e reconhece o valor salvífico das mesmas. A tendência inclusivista aceita que as religiões possam mediar a salvação para seus membros, mas não de maneira autônoma, já que a salvação lhes vem mediante Jesus Cristo. Toda a salvação faz referência a Jesus Cristo e, de certa forma, também à Igreja. Jesus e a Igreja cristã são a plenitude de todas as religiões. Os membros das outras religiões não se salvam, então, porque são membros de suas religiões, mas porque são misteriosamente marcados e atraídos para o único Cristo Senhor e Salvador.

8 Esta é uma tendência que se pode ter como superada. Ninguém intelectualmente honesto pode

ainda aceitá-la e muito menos difundi-la. Concordamos com Ch. Duquoc quando diz que o axioma

Extra Ecclesiam nulla salus causou “efeitos sociais muitas vezes destruidores”. Cf. DUQUOC, Ch. “O cristianismo e a pretensão à universalidade”. In: Concilium 155 (5) 1984, p. 67-68.

(6)

Essa tendência, como se vê, não considera a vontade daqueles que não são cristãos de permanecerem assim, mas tudo é interpretado a partir do cristianismo e em termos de uma realização plena no cristianismo, feita de modo irremediável. Ora, a experiência mostra que as outras religiões não expressam nada que se pareça a uma presença oculta de Cristo nem a uma busca dele, seja de que forma for. A pretensa superioridade cristã apresentada assim é inaceitável para qualquer possibilidade de diálogo.9

Mais recentemente, surge a tendência pluralista. O pluralismo religioso passa a ser visto como um valor, não tanto como um problema a ser combatido. O pluralismo quer fazer avançar o inclusivismo. Critica-o por acentuar demais a centralidade de Cristo e a superioridade da religião cristã em relação às outras. Dessa forma, as outras religiões não são valorizadas suficientemente. Chama a atenção para que o cristianismo veja as outras tradições religiosas como elas mesmas se vêem e não como experiências sempre deficitárias. O acento deveria se deslocar do cristocentrismo inclusivista para o teocentrismo pluralista. Dever-se-ia passar de uma atitude apologética para uma atitude mais dDever-se-ialogal. Observa-se que o novo clima cultural em que nos encontramos proporciona um ambiente de convivialidade entre os diferentes. Esse clima deveria chegar às religiões.

Outro fator relevante para a busca da paridade religiosa é a perda gradual do etnocentrismo ocidental. Obviamente sem renunciar à própria identidade cristã, em nenhum de seus aspectos essenciais, é preciso reinterpretá-la sem excluir nem ofender o outro. Um olhar pluralista não encerra num só modo de se expressar o único desígnio salvador de Deus. Apesar das oposições parciais ou mesmo irreconciliáveis entre as tradições religiosas, elas se completam mutuamente em suas diferenças. O que se busca não é a mera redução de uma religião à outra, mas o enriquecimento mútuo por um diálogo sincero. O pluralismo apresentado assim não conduz necessariamente ao relativismo. Aceita-se a revelação de Deus em Jesus, mas em continuidade com e da mesma ordem que o conhecimento de Deus expresso pelas outras religiões. Há um entrecruzamento dos caminhos das diversas religiões que manifestam um teor equivalente de salvação e de verdade. Um pluralismo mais radical chega a relativizar Cristo como o Messias definitivo. Cristo não seria normativo, mas paradigmático. Outra corrente

9 Referências clássicas desta tendência são Jean Daniélou, Henri de Lubac, Von Balthasar.

Também Rahner e Schlette como expoentes da vertente da “presença de Cristo nas religiões”.

(7)

pluralista propõe uma cristologia normativa, embora não necessariamente constitutiva. Por normativo entende-se regra ou modelo autoritativo. Assim, a revelação de Deus em Jesus Cristo corrige e completa todas as outras revelações, mas isso não quer dizer que ele seja o mediador insuperável e constitutivo. Neste contexto, a Igreja não é vista como mediadora indispensável da salvação. Pode, quando muito, ser uma mediação normativa, uma comunidade em que a revelação mais plena do amor de Deus se manifesta.10

A partir do ano de 2003, alguns teólogos latino-americanos começam a esboçar como poderia ser uma teologia das religiões com os contornos do nosso Continente. Uma das primeiras publicações surgiu em espanhol sob a responsabilidade da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo – Região América Latina).11 Trata-se de uma coletânea de ensaios de vários autores abordando o diálogo inter-religioso a partir de vários vieses. Dois anos depois surge o segundo volume desta mesma Associação e basicamente com os mesmos autores. Foi publicado no Brasil em 2005.12 Um ano depois é publicado em português o terceiro volume.13 Aqui já se começa a falar em uma teologia pluralista da libertação. Autores de vários continentes apresentam seus ensaios tentando configurar os vários tratados da teologia sistemática católica a partir do enfoque pluralista. Da questão sobre Deus à antropologia teológica, da cristologia à soteriologia, tudo passa a ser visto a partir da realidade do pluralismo religioso. Felizmente, os autores têm a prudência de assinalar que se trata ainda de buscas de novos fundamentos para entender o pluralismo atual, portanto, não fecham questão sobre os aspectos discutidos. Ainda em 2006, José Maria Vigil lança uma obra que pretende ser uma apresentação mais sistemática do que seria uma teologia do pluralismo religioso com uma proposta de releitura de todo o cristianismo.14 Um ano depois surge outra publicação agora refletindo o caminhar da teologia do pluralismo religioso em uma perspectiva intercontinental.15 Mais

10 Referências importantes desta tendência são P. Knitter; J. Dupuis; J. Hick; R. Panikkar; H.

Küng, entre outros.

11 ASETT. Por los muchos caminos de Dios. Quito: Verbo Divino, 2003 – Tradução brasileira – Pelos muitos caminhos de Deus. Goiás: ASETT – Editora Rede, 2003, v. 1.

12 ASSET. Pluralismo e libertação. São Paulo: Loyola, 2005.

13 TOMITA, L. E., BARROS, M e VIGIL, J. M. (orgs.) Teologia Latino-Americana Pluralista da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2006.

14 VIGIL, J. M. Teologia do pluralismo religioso – para uma releitura pluralista do cristianismo.

São Paulo: Paulus, 2006.

15 VIGIL, J.M, TOMITA, L. E. e BARROS, M. Teologia Pluralista Libertadora Intercontinental.

São Paulo: Paulinas – ASETT, 2007.

(8)

uma vez, o que se vê é um ajuntamento de textos de autores das mais variadas tendências colocando as mais diversas perspectivas de diálogo. Como se trata de um campo novo de pesquisa teológica é natural que as idéias se repitam um pouco, que os teólogos pioneiros nesta reflexão sejam citados abundantemente, mas concretamente não se consegue ainda avançar sem colocar em risco pontos essenciais da fé cristã que não podem ser relativizados jamais. Estamos ainda no começo do caminho.

1.1.

Em busca de um equilíbrio

Estas três principais tendências presentes na pesquisa teológica das religiões parecem não ser mais satisfatórias. O momento atual pede um conhecimento mais aprofundado de cada tradição religiosa. Não se pode mais ficar repetindo à exaustão idéias pré-concebidas e julgamentos apressados sobre o que não se conhece. Qualquer teologia responsável deve limitar-se a considerar elementos concretos o bastante para que se evitem generalizações. Nossa época de inquestionável pluralismo religioso também se caracteriza pela busca do diálogo e da tolerância. Tal peculiaridade também se reflete na pesquisa teológica. Assim, a teologia das religiões que é produzida em nossos dias caracteriza-se pela busca de princípios que sejam consensuais, não sendo, portanto, exclusivos de qualquer tradição religiosa. Se for certo que se deve fugir de qualquer forma de dogmatismo é certo também que não se pode cair em um relativismo irrefletido. Como superar tal obstáculo? Certamente não se pretende banir o princípio dogmático da reflexão teológica sob pena de descaracterizá-la por completo. Não é possível fazer teologia prescindindo da própria tradição. Portanto, qualquer teologia cristã das religiões deve sempre pressupor a pluralidade de expressões, já que será elaborada sempre a partir de perspectivas diferentes.

Por conseguinte, há alguns pontos irrenunciáveis para a teologia cristã. O principal deles é, sem dúvida, a centralidade de Jesus Cristo. O desafio posto à teologia das religiões é buscar o significado do diálogo inter-religioso sem renunciar ao pressuposto da revelação definitiva de Deus em Jesus Cristo, o Verbo encarnado. A teologia das religiões deve abordar as outras religiões a partir deste pressuposto fundamental. Como é possível incluir as outras religiões no único mistério de Cristo? O Magistério eclesiástico ofereceu documentos substanciosos que ajudam a reflexão teológica a balizar o caminho do diálogo.

(9)

Recupera-se uma visão positiva da história humana como história da salvação, como lugar da concretização do único plano salvífico de Deus para toda a humanidade. Desta forma, as diferentes tradições religiosas estão também sob a ação do Espírito Santo (DA 28). Nossa historicidade não nos permite ter um acesso imediato e total à plenitude da revelação, o que só será possível na escatologia (DA 37). Pode-se e deve-se manter a singularidade de Jesus Cristo e aceitá-lo como a plenitude da verdade. Para a fé cristã, a verdade é uma Pessoa, é alguém por quem nos devemos deixar possuir (DA 32; 36). Por isso os cristãos devem sempre estar abertos a captar expressões inéditas dessa única verdade também a partir das outras religiões (DA 49). Portanto, o diálogo inter-religioso não é uma mera tática pastoral, mas uma necessidade de nosso contexto atual. Além do documento Diálogo e Anúncio, o Magistério de João Paulo II apresenta pistas preciosas para a construção de um fundamento sólido para o diálogo entre as religiões do mundo.16

Uma teologia das religiões que leve a sério as outras tradições religiosas da humanidade não deixará de apresentar á fé cristã alguns questionamentos relevantes. Uma nova autocompreensão cristã levará à reinterpretação de alguns de seus conteúdos fundamentais. Apenas para mencionar alguns, a cristologia, a soteriologia, a eclesiologia e a missiologia deverão ser revisitadas a partir dos elementos que emergem do diálogo entre as religiões. Uma idéia de purificação da fé não é estranha ao cristianismo. Ela tenderá a ficar mais forte à medida que o diálogo avance. Estamos convencidos que o teólogo francês Claude Geffré, cujo pensamento aprofundamos nesta tese, contribui significativamente para uma teologia das religiões que tenha o equilíbrio necessário que não permita escamotear os desafios atuais e nem banalizar os conteúdos irrenunciáveis da tradição cristã. É precisamente este autor e seu pensamento que apresentaremos a seguir.

16 Os próximos capítulos desta tese refletirão a inconteste contribuição deste Romano Pontífice

para o incremento do diálogo inter-religioso.

(10)

2.

Claude Geffré: o homem, o cristão, o teólogo

Claude Geffré nasceu em Niort (Deux-Sèvres) na França em 1926. O desejo pela vida religiosa começa a brotar nele por volta dos dezenove anos. De início pensa em entrar na Congregação dos Padres Brancos, pois o trabalho deles na África do norte o impressionava muito. Geffré diz que Charles de Foucauld foi para ele uma figura icônica, alguém que o inspirava para viver no deserto, com toda a carga simbólica que tem esse lugar, mas também concretamente em uma total disponibilidade para os pobres e pequenos.17 Chegou a procurar um seminário dos Padres Brancos, mas por eles não terem noviciado na França naquele período imediatamente após a Segunda Guerra mundial, teve que adiar abraçar sua vocação. Por cerca de três anos hesitou entre os Jesuítas e os Dominicanos. Estava certo, porém, que não queria ser um clérigo diocesano. Esta é a origem de sua vocação à vida religiosa e ao ministério teológico.

Em 1948 entra no noviciado dos dominicanos da Província da França. De 1949-1955 estuda filosofia e teologia na faculdade dos dominicanos em Saulchoir. Completados os estudos, é enviado a Roma para fazer uma tese doutoral e voltar a Saulchoir agora como professor. Doutora-se em teologia em 1957 no Angelicum. Neste mesmo ano publica seus primeiros artigos teológicos.18 Entre 1957 e 1968 é professor de teologia dogmática em Saulchoir. A partir de 1961 começa a publicar textos com mais assiduidade.19 A partir de 1965 torna-se diretor desta faculdade. Ente 1968 e 1988 é professor titular de teologia fundamental no departamento de teologia e ciências religiosas no Instituto Católico de Paris. Neste ínterim torna-se diretor do ciclo de estudos de doutorado em teologia deste mesmo Instituto. A partir do início da década de 1980 torna-se também professor de hermenêutica teológica e de teologia das religiões em Paris. Neste período começa seu interesse

17 GEFFRÉ, C. Profession Théologien, Paris: Albin Michel, 1999, p. 59.

18 Id. “La possibilité du péché”. In: RT, n. 2, avril-juin 1957, p. 213-245 e “Structure de la

personne et rapports interpesonnels”. RT, n. 4, oct-déc, 1957, p. 672-692.

19 Id. “Théologie naturelle et révélation dans la connaisance du Dieu Un”. In: L’Existence de Dieu,

Tournai: Casterman, 1961, p. 297-317; "Les sacrements et le Temps”. In: MD, n. 65. 1961, p. 96-108; “Philosopher dans la foi: E. Gilson-J Maritain”. In: VS, n. 469, février 1961, p. 220-230; “Doctrines théologiques (Dieu)”. In: BT, t. XI, n. 2, 1961, p. 349-368. A produção teológica de Geffré vai se tornando cada vez mais abundante a partir deste período. Na bibliografia final desta tese elencaremos cronologicamente o que foi possível registrar desta vasta produção.

(11)

maior pela pesquisa teológica das religiões e, em especial pela nova situação do cristianismo no contexto de pluralismo religioso vigente.

Sua vida acadêmica se desenvolveu também fora da França. Foi muitos anos professor visitante na Faculdade de ciências filosóficas e religiosas da universidade Saint-Louis em Bruxelas. Também na faculdade de teologia da universidade de Sherbrooke e na universidade Laval em Quebec, ambas no Canadá. Trabalhou ainda como professor convidado em Friburgo na Alemanha e também na Sorbonne em Paris.

Além destas atividades, foi durante muitos anos diretor da coleção “Cogitatio fidei” das edições du Cerf. Membro fundador da Revista Internacional de Teologia Concilium. Membro da comissão de filosofia do Centro Nacional de Letras da França entre 1987-1991. Membro do grupo de pesquisas islano-cristã (GRIC – em francês). Membro do conselho internacional da Conferência Mundial de Religião e Paz (WCRP). Foi ainda vice-presidente da Associação de Teologia Católica Européia.

Na década de 1990 Geffré é encarregado de dirigir a Escola Bíblica e arqueológica de Jerusalém, mantida pelos dominicanos. Em certo momento ele diz que se sentiu tenso diante desta responsabilidade, visto que não tinha uma formação teológica especificamente ligada à pesquisa bíblica. No entanto, estar naquela cidade emblemática foi decisivo para ele. Afirma que foi em Jerusalém que começou a se sentir atraído a aprofundar o diálogo inter-religioso.20 Aquela cidade carregada de simbologia deveria ser a antecipação histórica da Jerusalém celeste. A realidade não mostrava isso. As três grandes religiões descendentes de Abraão conviviam juntas no mesmo espaço, mas não conseguiam viver em paz. Mas Jerusalém continuava sendo uma cidade símbolo de uma utopia: a coexistência possível dos diferentes entre si. Esta estada em Jerusalém vai ser decisiva para a maturidade da teologia das religiões que Claude Geffré tenta sistematizar. Em vários de seus escritos vai aparecer com força o termo

convivialidade. É essa possibilidade real de convivência entre os diferentes que ele apresenta como a plausibilidade das religiões nos dias atuais. Construir essa convivência é tarefa irrenunciável das tradições religiosas.

20 GEFFRÉ, C. Profession Théologien, op. cit., p. 11.

(12)

Conviver em Jerusalém serviu também para Geffré concluir que as graves causas subjacentes aos diversos conflitos que existem na Terra Santa não têm soluções fáceis. A complexidade das relações entre judeus e palestinos não pode ser minimizada. Também as crispações entre católicos latinos e ortodoxos de diversas tradições não podem ser esquecidas. Sem falar nas outras tantas confissões cristãs que têm aquela cidade como referência. Ou seja, o diálogo entre as religiões sempre será marcado por tensões sérias que precisam ser avaliadas com certa profundidade.

Geffré diz que Jerusalém é uma testemunha privilegiada da história religiosa da humanidade. Começando pelo povo de Israel, povo eleito para ser a expressão histórica do mistério da gratuidade de Deus. Deus escolheu Israel porque quis. Mas Jerusalém testemunha também uma profunda ambigüidade. A história religiosa da humanidade é marcada por uma permanente dualidade. Ao mesmo tempo em que as grandes religiões do mundo trazem para a humanidade valores fundamentais como a sociabilidade e a generosidade, trazem também um rastro de violência. Essa relação entre religião e violência deverá sempre estar na pauta de qualquer pensamento mais profundo sobre o significado das religiões na história humana.

A teologia de Geffré procurará enfrentar este desafio também. Dirá nosso autor que a violência é um instinto muito forte nas pessoas, mas também é verdade que a convivialidade entre os diferentes está presente desde as origens da civilização. Junto a impulsos violentos também se verificam o desejo de se comunicar, de festejar, de rezar, de adorar, o desejo de contemplar o mundo. Tudo isso também pode se verificar desde a origem. Isso quer dizer que a violência pode ser superada pela vontade das pessoas de conviverem. Esta estada em Jerusalém traz para o horizonte teológico de Geffré uma grande abertura. Ele passa a considerar seriamente o pluralismo religioso como uma questão teológica. A isso ele se dedica até o momento em que escrevemos estas páginas, quando já emérito de suas funções acadêmicas e já octogenário, conserva o pensamento teológico vivo e sagaz que procurou cultivar desde o início.

(13)

2.1.

As raízes de uma teologia do diálogo: o itinerário teológico de Claude Geffré

No livro Profession Théologien Geffré faz referência à grande influência que o padre M-D Chenu exerceu sobre ele. Nos idos de 1948-1949 padre Chenu já era um teólogo renomado. Geffré chegou a conviver com ele em Paris durante seus estudos superiores. Dá testemunho de que se tratava de uma pessoa gentil, afável. Confessa que os ensinamentos de Chenu foram decisivos para alicerçar seu próprio edifício teológico. Esse teólogo era grande conhecedor da filosofia moderna, o que lhe possibilitava ter uma abertura excepcional para questões emergentes daquela época. Geffré não tem dúvida de que a consolidação da teologia como hermenêutica é um legado de Chenu, na medida em que ele vislumbra verdadeiramente o sentido da historicidade do ato e das proposições da fé.

Em 1985 Claude Geffré escreve um artigo memorável em homenagem a seu mestre.21 Nosso autor reconhece neste texto que deve a Chenu a abertura de seu horizonte teológico. Foram as profundas intuições desse teólogo que fizeram com que Geffré descobrisse as raízes de uma teologia do diálogo. Notadamente reconhece que um texto publicado em 1937 com o título “Une école de théologie: le Saulchoir”, onde aquele teólogo dominicano apresenta a idéia do “estatuto histórico” do cristianismo, influenciou toda sua formação acadêmica. Este olhar teológico para a história fez de Chenu, no entender de Geffré, o precursor da teologia dos sinais dos tempos.22 Levar a sério a historicidade da teologia é estar atento ao teandrismo da fé que responde como um eco ao teandrismo da Palavra de Deus. A atenção à dimensão teândrica da Palavra de Deus encarnada em uma palavra humana é o que leva o dominicano a procurar evitar toda espécie de absolutização de fórmulas que são históricas e em certo sentido relativas.23 Estas sendas abertas pelo velho mestre de Saulchoir fizeram com que Geffré tomasse para si que o trabalho do teólogo não consiste unicamente em uma dimensão

21 GEFFRÉ, C. “Le réalisme de L’incarnation dans la théologie du Père M-D Chenu”. In: R. S. P. T. 69 (1985), p. 389-399.

22 Id. Ibid., 389.

23 Id. Ibid., p. 394 – “Le christianisme est tradition, parce qu’il vit d’une origine première, à savoir

l’événement Jésus-Christ lui-même. Mais Il est nécessairement en même temps interprétation

créatrice , parce que cette origine ne peut être redite qu’historiquement.”

(14)

acadêmica, mas deve também estar embevecido por uma paixão profética. O lugar teológico por excelência é a vida concreta da Igreja. A história não é somente um lugar teológico, mas uma dimensão consubstancial ao próprio ato teológico.24

A teologia de Geffré parte das intuições fundamentais de Chenu. A partir da concordância com seu mestre naquilo que é essencial, Geffré avança em sua própria reflexão levando adiante a intuição da ação do Espírito Santo não somente no interior da Igreja, mas também no agir histórico da humanidade. Mais tarde nosso autor vai rever esta visão muito otimista da história. Em uma de suas principais obras ele afirma

Guardemo-nos de otimismo um tanto ingênuo e sublinhemos que a história humana continua profundamente ambígua. Devemos evitar cair numa visão muito antropomorfa da ação de Deus na história como se Deus estivesse mais engajado em certos acontecimentos.

Notemos, particularmente, que, na tradição bíblica, a expressão ‘sinais dos tempos’ é ambígua. [ ] O verdadeiro sinal dos tempos é Cristo, que coincide com a vinda do reino, é um fator de divisão, de conflito, de crise. O mesmo se pode dizer do anúncio do Evangelho pela Igreja hoje.25 Mais recentemente Geffré voltou a alertar quanto à dificuldade de se distinguirem adequadamente os “sinais dos tempos”, daqueles sinais que apontam com certa segurança para a presença de Deus.26 Uma conseqüência direta disso é a intuição de fundo da teologia como hermenêutica, característica central do pensamento de Geffré. Ele define a teologia como um novo ato de interpretação do acontecimento Jesus Cristo sob a base de uma correlação crítica entre a experiência cristã fundamental dada pelo testemunho da Tradição e nossa experiência histórica de hoje.27

24 GEFFRÉ, C. Profession Théologien, op. cit., p. 13 – Aqui o autor destaca a necessidade de se

descobrir o sentido da Palavra de Deus para a comunidade que a lê e interpreta a partir da realidade em que se encontre.

25 Id. Como fazer teologia hoje – Hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 192.

Tradução do original em francês - Le christianisme au risque de l’interprétation. Paris: Cerf, 1983. As referências a esta obra serão feitas a partir da tradução em português.

26 Id. “Théologie de l’incarnartion et théologie des signes des temps chez le Père Chenu”. In: Marie-Dominique Chenu. Moyen Âge et modernité. Paris: Cerf, 1997, p. 131-153 – “Dieu est toujours présent dans l’histoire. Mais il n’y a pas de signes des temps où l’on puisse attester sa présence de manière sûre. À la lumière de la croix de Christ, nous sommes invités à reconnaître sa trace là où ne l’attendait pas, dans les marges de l’histoire, c’est-à-dire là où la passion dês hommes s’identifie à la passion de Dieu.”

27 Id. “Le réalisme de L’incarnation dans la théologie du Père M-D Chenu”, art. cit., p. 396. Esta

idéia, por ser central no pensamento do autor, voltará algumas vezes em outras partes desta tese.

(15)

2.2.

Teologia é interpretação: as fontes de uma convicção

Outro grande teólogo que exerceu profunda influência em Geffré foi Paul Tillich. A concepção da teologia como hermenêutica encontra também raízes no método da correlação de Tillich quando este articula a mensagem e a situação.28

Para descrever o trabalho hermenêutico da teologia, Geffré o exprime em termos de correlação, numa fórmula inspirada em Tillich. A teologia como hermenêutica se apresenta como um desafio de reescrever a partir de escrituras anteriores. Pode-se defini-la como um novo ato de interpretação do acontecimento Jesus Cristo sobre a base de uma correlação entre a experiência cristã fundamental testemunhada pela tradição e a experiência humana de hoje. O primeiro pólo da correlação é constituído pelos documentos da tradição, que têm na Escritura sua fonte primeira. Pode-se dizer que o primeiro pólo é o que se entende por revelação divina. Aqui Geffré chama a atenção para a adequada compreensão do termo

revelação, eximindo-o de qualquer concepção que a considere como um algo dado e acabado. Prefere usar expressões como “O Evangelho” ou “A mensagem cristã”, duas expressões que apelam para a resposta da fé e designam um processo sempre dinâmico.29 O segundo pólo, a experiência humana de hoje, é mais difícil de explicitar. Para tal, nosso autor usa várias expressões. Para ele, a teologia deve conter inseparavelmente uma hermenêutica da Palavra de Deus e uma hermenêutica da existência humana, sobre a base de uma correlação entre Deus e o ser humano, de modo que nenhuma afirmação sobre Deus não implique uma afirmação sobre o ser humano.30

Inspirado por Tillich, nosso autor alerta para dois excessos que a teologia autêntica deve evitar: de uma parte, a pretensão de poder construir um sistema da pura doutrina cristã deslocada da situação histórica; de outra, a simples redução da mensagem cristã a uma determinada situação cultural.31 Tentando ir além de

Tillich, Geffré propõe a noção de “pré-compreensão”. Defende que se deve sempre compreender os textos fundadores do cristianismo a partir de certa

28 GEFFRÉ, C. “L’herméneutique chrétienne”. In: M. Clévenot ( ed.). L’État des religions dans le monde, Paris: Cerf, 1987, p. 453-454.

29 RICHARD, J. “La théologie comme herméneutique chez Claude Geffré et Paul Tillich”. In:

JOSSUA, J. P. (ed.). Interpréter. Paris: Cerf, 1992, p. 72.

30 GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje, op. cit., p. 30.

31 Id. “La Révélation hier et aujourd’hui. De l’Écriture à la predication ou les actualizations de la

Parole de Dieu”. In: Révélation de Dieu et langage des homes". Paris: Cerf, 1972, p. 96.

(16)

compreensão. Não é possível uma hermenêutica sem uma pré-compreensão e sem um engajamento do sujeito interpretante, ou seja, sem uma interação entre o objeto textual a se estudar e o intérprete.32 Cada intérprete já tem uma pré-compreensão. É esta compreensão que se tem da própria existência, do mundo, da história que constitui o contexto de compreensão do texto fundador. Assim, toda experiência e toda compreensão é indissociável de uma linguagem que as exprime. A tarefa hermenêutica da teologia ganha um desafio novo: como traduzir a mensagem religiosa da revelação bíblica para nossa época e para a experiência humana em uma cultura que se exprime de forma essencialmente não religiosa?

Desde a década de 1960 Geffré começa a trazer para o debate teológico a necessidade de uma crítica profunda à maneira como os desafios suscitados pela nova situação histórica traziam para a inteligência da fé. Impulsionado pela abertura proporcionada pelo Concílio Vaticano II, nosso autor também propõe uma revisão de todo edifício tradicional da teologia cristã. Percebia a angústia de muitos cristãos diante do desfasamento entre as expressões do mistério cristão e o horizonte cultural do ser humano moderno.33 Uma atitude crítica coerente com os novos tempos haveria de proporcionar aos crentes a segurança de que necessitavam para circular no novo mundo que se desdobrava diante deles. É fundamental tomar consciência da dinâmica da realidade. Portanto, não há como a teologia não se interrogar sobre como anunciar o Deus de Jesus Cristo a um homem para quem a religião já não é concebida como um fato dado e acabado. Como é impossível à fé cristã renunciar ao seu dever de anunciar Jesus Cristo, resta-lhe buscar novas maneiras de afirmar a razoabilidade da fé. Não se logrará êxito nesta tarefa incentivando qualquer espécie de arcaísmo religioso. Já naquela época, Geffré percebia, juntamente com outros teólogos contemporâneos, que o caminho para a fé se reinserir no coração do homem moderno seria restaurar aquele sagrado original que coincide com a verdade do homem como mistério de abertura a uma transcendência, ao seu assentimento a uma Palavra de que não dispõe.34

32 GEFFRÉ, C. “Nouvelle pratique scientifique et pratique de la théologie”. In: Teologia e scienze nel mondo contemporâneo. Milan: Studia Universitatis S. Thomae in Urbe: Ed. Massimo, 1989, p. 17.

33 Id. “Dessacralização e santificação”. In: Concilium n. 9, 1966, p. 95. 34 Id. Ibid., p. 107.

(17)

Nesta primeira etapa de sua vida teológica Geffré é eminentemente um teólogo fundamental. A problemática da realidade se reflete na própria teologia. Uma conclusão que logo se impõe é que o homem moderno não tem a capacidade de compreender a mensagem cristã porque ela é transmitida, em grande parte, em uma mentalidade e linguagem de culturas e experiências passadas. Sem menosprezar a tradição teológica conservada até então, o movimento teológico pós-conciliar pretendia uma reformulação-renovação da própria mensagem cristã e de sua teologia. É um elemento característico do círculo teológico de Geffré a convicção de que o futuro do povo de Deus, da mensagem cristã e da teologia não são uma invenção absolutamente nova, nem uma simples ruptura com o passado, mas a reinterpretação do núcleo fundamental da fé em íntima conexão com a vida real dos crentes.

Nosso autor defende que a tarefa contínua da teologia como inteligência da fé é elaborar uma linguagem que se apóie sempre nos conceitos fundamentais da revelação e, ao mesmo tempo, busque ultrapassá-los a fim de tornar seus conteúdos inteligíveis a cada momento histórico em que se encontre o cristianismo.35 A teologia não deve renunciar a sua função especulativa e sistemática, mas deve tomar liberdade de dizer aquilo que na revelação lhe é confiado. O desafio é construir uma linguagem ontológica não-objetivante de Deus. O pensamento teológico deve buscar apropriar-se da verdade revelada a partir de seu lugar próprio: a economia do Verbo encarnado. Só podemos conhecer o Deus de Jesus Cristo a partir da particularidade da história de Jesus.36 Deus precisa ser pensado no horizonte da história e da escatologia. O futuro é o modo de ser mais próprio do Deus bíblico. É preciso tirar todas as conseqüências da concepção cristã da história. Uma teologia elaborada a partir desses pressupostos será capaz de ultrapassar o dualismo metafísico de Deus e do mundo e procurará pensar melhor de que modo Jesus Cristo é a realidade de Deus e a realidade do mundo.

Geffré advoga uma nova época para a teologia. Como profundo estudioso do método teológico, insiste na dinâmica própria da fé e na especificidade da Igreja cristã inserida na história como autênticos “lugares teológicos”. A partir daí

35 GEFFRÉ, C. “Sentido e não-sentido de uma teologia não-metafísica”. In: Concilium n. 6, 1972,

p. 790.

36 Id. Ibid., p. 792. Esta intuição será muito importante na formulação da cristologia de Geffré

como veremos no capítulo dois desta tese.

(18)

sublinha o pluralismo teológico como componente essencial da reflexão sobre a fé nos dias atuais. Tal pluralismo, ligado a uma pluralidade de experiências de vida, deve ser capaz de constituir algo de universal a partir das particularidades.

Outra exigência do pluralismo atual é ressaltar a hermenêutica como constitutiva do método teológico. A hermenêutica, compreendida como o movimento capaz de possibilitar a autocompreensão da fé e do ser humano em uma determinada época, foi assumida pelo método teológico muito recentemente. Dessa forma, a teologia fundamental passa a ser uma reflexão sobre a estrutura da existência humana como condição de acolhimento da fé.37

Nos anos sucessivos, o autor continua a produzir um número significativo de artigos e conferências em que busca fundamentar melhor sua compreensão da teologia como hermenêutica. Em 1983 lança um livro reunindo estes escritos e procurando lhes dar um tratamento mais sistemático.38 Um elemento

característico desta obra é a crítica que Geffré faz em relação à autoridade do magistério eclesiástico. Coerente com sua concepção da teologia como reinterpretação criativa da mensagem cristã, o autor reconhece a legitimidade de uma pluralidade de interpretações possíveis, já que é tarefa dos teólogos procurarem respostas adequadas aos questionamentos feitos à fé em cada momento histórico. É nesta perspectiva que ele se pergunta se o magistério pode determinar a fé através de definições dogmáticas em um momento em que a Igreja reconhece a realidade de um pluralismo teológico insuperável. Diz nosso autor

Mas, em caso de conflito, em caso de pluralidade irredutível de interpretações, qual será o critério para julgar o que é conforme à fé da Igreja e o que não é? [ ] Não se pode contentar com apelar para a letra da Escritura. Não se pode também apelar para uma espécie de invariante quimicamente pura, que seria o conteúdo mínimo da fé cristã na forma de um enunciado imutável e irreformável através dos séculos. Certamente o critério deverá ser sempre procurado em função do que está no centro da confissão cristã, Jesus, o Cristo, a sua vida e a sua pregação. Mas isso ainda é muito geral.

O verdadeiro critério será sempre não norma estática e exterior, mas critério dinâmico, a saber, uma relação proporcional entre as várias

37 GEFFRÉ, C. Un nouvel âge de la théologie. Paris: Cerf, 1972, p. 60 - 61 – “On sait mieux

aujourd’hui que ‘intelligence de la foi’ et ‘intelligence de soi’ sont inséparables. Je ne puis interpréter l’histoire du salut qu’en function de l’interprétation vivante que je fais de moi-même comme être historique situé dans une tradition et une culture particulière. L’herméneutique est l’exigence même de la foi, dans la mesure où la vérité révélée n’est pas une vérité morte, mais une vérité vivante, toujours transmise dans une médiation historique et qui a besoin d’être actualisée sans cesse.”

38 Id. Le christianisme au risque de l’interprétation, op. cit.

(19)

idéias-força que constituem a substância do cristianismo e que se referem a Cristo como seu centro.39

Olhando a experiência dos primeiros cristãos, essas “idéias-força” seriam o anúncio feito por Jesus Cristo de um Deus salvador; o ser humano Jesus definido por sua relação com o Pai e ligado a uma experiência de libertação; o mistério da sua morte e ressurreição como indicativo de que a história humana terá sua realização plena não no tempo presente, por isso deverá manter-se sempre em uma perspectiva escatológica.

Ao defender a liberdade hermenêutica do teólogo, Geffré não parece articular bem as três instâncias de regulação da fé que ele mesmo elenca, a saber: o povo de Deus ou sensus fidelium, o magistério eclesiástico e a comunidade dos teólogos.40 O pensamento do teólogo que reinterpreta criativamente o dado revelado parece ser a instância decisiva. Claro que este entendimento não pode ser aceito irrefletidamente. O risco subjacente a esta maneira de conceber o ministério teológico é não percebê-lo como um auxílio dado à comunidade eclesial em seu esforço de compreensão do significado de sua fé. Atentando-se para este risco que deve ser evitado, a concepção da teologia como hermenêutica defendida por Claude Geffré conserva toda sua pertinência e relevância. Há que se notar o mérito do autor em persistir na correlação crítica entre a tradição cristã e a experiência humana contemporânea. É a prática do conjunto dos cristãos que conduz o movimento da reinterpretação do cristianismo. Este é um dado interessante e que pode ser computado positivamente para o autor.

No início da década de 1990, Geffré deu início ao enfrentamento da crise pela qual começa a passar a teologia européia. O pluralismo teológico hodierno é um fato e o diálogo entre as várias teologias ocidentais e de outras latitudes já está estabelecido. Perguntava-se então: qual o lugar da teologia européia no atual contexto mundial? O autor apresenta três contribuições específicas da teologia européia. A primeira é a sua função crítica. Diante do perigo de fundamentalismos e arcaísmos teológicos, cabe à teologia européia recordar que, sob o pretexto da autenticidade religiosa, não podemos escapar das exigências da razão crítica. Fazer uma leitura crítica é tomar os textos com objetividade e considerar seu contexto histórico. Aqui se dá o que ele chama de uma “hermenêutica da

39 GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje, op. cit. p. 101-102. 40 Id. Ibid., p. 97.

(20)

suspeita”,41 em que se pergunta sobre as condições de produção dos textos do passado a fim de se perceber sua relevância para o contexto de quem os lê na atualidade. A segunda função é o enfrentamento da modernidade técnica. Aqui se inclui toda a problemática da globalização e do crescimento tecnológico em escala planetária. A Europa está imersa nesta realidade. Geffré afirma ser responsabilidade teológica refletir sobre a fé em uma sociedade secularizada e sobre o modo como esta pode inspirar e consagrar valores profanos de uma civilização técnica planetária.42 A terceira função é presença da Igreja na nova Europa. Pessoalmente, ele não considera plausível uma nova catolização da Europa. Postula que a posição da Igreja não deve ser nem autoritária nem marginal. Ela pode e deve dar testemunho de sua visão do ser humano e o mundo, em suma, deve anunciar sem temor os valores evangélicos, já que não podem estar em contradição total com alguns valores também defendidos pelas sociedades laicas de nossos dias. Contra a tirania do mercado, o Evangelho recorda a dignidade de todos os seres humanos, especialmente daqueles de que a sociedade se esquece. Diante das intolerâncias, dos fanatismos, dos nacionalismos e anti-semitismo, em uma Europa pluricultural e plurireligiosa, a Igreja deve sustentar a utopia da não-violência. Não se trata de uma simples tolerância, mas do respeito ao diferente na sua diferença.43

O valor inalienável da diferença começa a se tornar central no pensamento de Claude Geffré no início da década de 1980, mas somente nos anos 90 ele se debruçará sobre este tema de maneira mais engajada. Seu maior esforço intelectual será pensar em um mundo que se abre ao ecumenismo entre as Igrejas cristãs e em direção às outras religiões. Nosso autor não ignora que começa a entrar em um terreno pouco explorado e largamente minado. Mas também está convencido de que seria uma grave omissão não procurar dar respostas às questões suscitadas pelo contexto atual. Isso não se fará apenas repetindo receitas antigas, como observa L. Renwart em uma recensão sobre um dos últimos livros de Geffré.44 Na verdade, fechar-se nessa posição representa um grave risco para a

41 GEFFRÉ, C. “La teología europea en el ocaso del eurocentrismo.” In: Selecciones de Teología

n. 32, 1993, p. 297. Original em francês “La théologie européenne à la fin de l’européocentrisme”. In: Lumière et Vie, 201, 1991, p. 97-120.

42 Id. Ibid., p. 298.

43 Id. “La teología europea en el ocaso del eurocentrismo”, art. cit., p. 299.

44 RENWART, L. Comentário sobre Profession Théologien. In: Nouvelle Revue Théologique n.

123, 2001, p. 289-290.

(21)

Igreja, embora não seja tão fácil detectá-lo. Uma convicção persegue o teólogo francês: o espírito humano é necessariamente aberto ao Absoluto. Por esta razão qualquer abordagem teológica das religiões não pode se contentar com uma mera representação fenomenológica de crenças oferecidas a livre escolha de cada um.

Em 2001 Claude Geffré lança mais um livro composto a partir de uma coletânea de vários escritos publicados em várias fontes onde busca fazer uma síntese de sua produção acerca da teologia como hermenêutica.45 Efetivamente ele afirma que a hermenêutica cristã sempre existiu. A novidade não está aí. Então por que se fala de uma virada hermenêutica para a teologia de hoje? Evidentemente se trata de uma virada na linguagem teológica, provocada pela importância da hermenêutica na filosofia moderna. Basta pensar em Schleiermacher, Heidegger, Gadamer e Ricoeur, por exemplo. A razão teológica ficou séculos atrelada ao logos da filosofia grega. A razão especulativa predominante foi construída a partir da relação entre um sujeito que conhece e um objeto a conhecer. O que nosso autor postula é que esta mesma razão possa ser identificada com um compreender hermenêutico. E apresenta um exemplo simples para isso. Pensemos na leitura de um texto qualquer. Nenhuma leitura é puramente ingênua, ela sempre se processa a partir de certa pré-compreensão, que aflora no momento mesmo em que se interpreta o texto. O leitor interpreta o texto e este interpreta aquele. É sob essa perspectiva que se insiste quanto à historicidade do texto e a historicidade do leitor. Geffré diz que no seu projeto de uma teologia hermenêutica ele insiste na relação que existe entre a experiência histórica do crente e a experiência histórica mais vasta da Igreja, sempre condicionadas pela historicidade comum a ambos. Ele reconhece que percebe uma correlação mútua e recíproca entre a experiência fundamental da primeira comunidade testemunhada nos textos do Novo Testamento e a experiência histórica dele como teólogo inserido na Igreja de hoje. Apontar a necessidade de uma virada hermenêutica na teologia significa perguntar-se sobre o próprio ato teológico. Ao voltar-se sobre os textos fundadores do cristianismo, ao colocar novas questões suscitadas pelos novos contextos, o teólogo busca sempre uma

45 GEFFRÉ, C. Croire et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie. Paris: Cerf, 2001.

Tradução em português – Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. As referências a esta obra serão feitas a partir da tradução brasileira.

(22)

interpretação melhor desses textos. É tarefa irrenunciável da teologia articular a fé cristã com a cultura particular onde ela se encontre.46

Uma leitura teológica da Escritura será sempre diferente de uma leitura fundamentalista. As leituras teológicas podem ser também leituras espirituais. Os Padres da Igreja, por exemplo, faziam da Escritura uma leitura espiritual, uma leitura teológica e uma leitura alegórica, mas isso não constituía uma leitura fundamentalista. É esta liberdade de interpretação que precisa ser recuperada.

Essa virada hermenêutica na teologia apresenta uma formulação tipicamente ocidental na sua origem, mas tem um alcance universal. As teologias produzidas em outras partes do mundo também se valem de sua intuição de base: a mensagem cristã precisa ser reinterpretada à luz de uma experiência histórica significativa ou de uma sensibilidade maior a experiência histórica que as pessoas vivem. Nesse sentido, pergunta-se nosso autor: o que é a teologia da libertação senão uma reinterpretação da teologia da redenção à luz da típica opressão e marginalização de milhões de seres humanos alienados de sua dignidade? Estes teólogos são teólogos hermenêuticos. O mesmo se diga das teologias africanas. Elas buscam reinterpretar a mensagem cristã na medida em que levam a sério os valores positivos das religiões tradicionais da África. No que concerne à Ásia, isso é ainda mais claro. Os teólogos asiáticos, em particular os indianos, reinterpretam o mistério cristão à luz das riquezas doutrinais e místicas das tradições ancestrais hinduístas e fazem efetivamente uma teologia diferente que chama a atenção para aspectos que a teologia européia, por exemplo, não tinha se dado conta ainda.47 Um dos grandes debates na Igreja hoje é em torno de discernir em que consiste a pretensão do cristianismo em ser a realização plena de todos os valores das outras religiões do mundo, quando há diferenças reais, irredutíveis e insuperáveis que afloram nesse face a face típico da nossa época.

Então, para Geffré, é toda a teologia dogmática que tende a se compreender como hermenêutica da Palavra de Deus.48 Embora na prática os termos “dogmática” e “hermenêutica” sejam indícios de práticas diferentes, a revolução que separava as duas tendências arrefeceu-se com o tempo. Hoje, reconhecer com relativa serenidade que teologia é interpretação é corriqueiro.

46 GEFFRÉ, C. “Le tournant herméneutique”. In: Lumière et Vie n. 250, avril-juin, 2001, p. 73. 47 Id. “Le tournant herméneutique”, art. cit., p. 77.

48 Id. Como fazer teologia hoje, op. cit., p. 63.

(23)

Embora cada teologia procure tirar todas as conseqüências do que implica em cada uma delas este processo hermenêutico. Isso é legítimo porque consagra a legitimidade da sadia pluralidade teológica. A coragem de Claude Geffré em insistir nesse método por pelo menos três décadas foi fundamental para que um consenso mínimo em torno dele em nossos dias seja uma realidade. Mas há ainda outra frente onde esse teólogo audaz também se apresenta como um dos pioneiros. 2.3.

Claude Geffré e a teologia inter-religiosa

A mudança de Geffré para Jerusalém em 1996 representa um salto qualitativo importante em sua reflexão teológica. Aí começa propriamente seu trabalho de considerar o pluralismo religioso como uma questão teológica e de buscar um fundamento desta perspectiva aberta pelo Concílio Vaticano II. A pluralidade de culturas e, conseqüentemente, de religiões inspira a urgência de uma reflexão teológica sobre essa realidade. Nosso autor começa a formular sua teoria do pluralismo religioso como um novo paradigma sobre a idéia da verdade como relação e do diálogo inter-religioso como uma característica que acompanha o cristianismo desde seu nascimento. Outro ponto central na teologia do diálogo formulada por Geffré é a centralidade do nível cristológico da fé cristã, como explicitaremos melhor no capítulo dois desta tese.

A tese fundamental do autor francês é que o diálogo inter-religioso é intrinsecamente um ato de esperança e de comunhão e de que sua motivação maior vem de um fundamento intrínseco à fé, não somente de uma simples atitude de respeito ao outro, por mais louvável que isso seja. O diálogo que se deve construir com as outras culturas e religiões precisa chegar a um nível mais profundo. Deve partir de uma decisão que vise perceber o caminho misterioso de Deus até o coração humano mediante as diversas experiências religiosas. É neste sentido que o diálogo já é uma forma de missão.49 A teologia do diálogo inter-religioso de Geffré vai além do que afirma a teologia do “acabamento” e da “preparação evangélica” das outras religiões até que se encontrem com o cristianismo e encontrem nele sua plena realização. A partir de uma concepção escatológica do Reino de Deus, nosso autor propõe, dentro de uma lógica da

49 No capítulo quatro desta tese apresentaremos de maneira mais aprofundada este tema.

(24)

mediação da revelação, considerar as outras religiões como mediações derivadas, ao mesmo tempo em que mantém a mediação singular e insubstituível de Cristo.50 A intenção do autor é oferecer ao debate teológico uma motivação para o engajamento prático no diálogo entre as religiões sustentado por uma teologia que sublinhe as diferenças irredutíveis delas, mas também a abertura a uma plenitude da verdade que aponte para Deus em seu mistério.51

Geffré sugere que o momento atual da humanidade favorece o florescimento de uma mística do diálogo que nos permite descobrir traços comuns entre as religiões mesmo em meio às diferenças paradoxais. É nesse sentido que o autor propõe um caminho para a teologia que seja capaz de se abrir a uma perspectiva de favorecer uma compreensão mais profunda do cristianismo. Esse caminho passa pela possibilidade de uma teologia inter-religiosa.52 Aqui acontece um momento de passagem muito importante na reflexão teológica do autor.

O autor reflete sobre a profunda diversidade entre a experiência de Deus no Ocidente cristão e nas grandes religiões orientais. O cristão adora um Deus pessoal que foi revelado em Jesus Cristo, mas, graças à experiência do Oriente, sabemos melhor que esse Deus de muitos nomes está sempre muito além dos nomes que nós podemos Lhe dar.53 Ele falará de uma “emulação recíproca” entre as diversas religiões como um caminho por onde se pode transitar sem a supressão das diferenças reais que devem ser reconhecidas com serenidade. As diferenças não serão suprimidas, mas assuntas. A teologia inter-religiosa que ele defende como possível é aquela que é capaz de manter as identidades particulares e a acolher a fecundidade de uma interpelação recíproca até o ponto de ir além do diálogo.54 Esta perspectiva de aprofundamento teológico possibilita uma reflexão

50 Sobre esse conceito de Geffré tomamos uma posição mais pessoal no capítulo cinco.

51 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte, op. cit., p. 182 – “Selon la foi chrétienne, l’expression

suprême de cette communication de Dieu c’est le mystère de l’incarnation. Mais loin de porter atteinte à la transcendance inviolable de Dieu, ce ‘devenir-homme’ de Dieu nous renvoie plûtot à une conception plus exigeante de la trancendance du Dieu unique. Nous sommes invités en effet à penser la trancendance de Dieu selon l’amour et non simplement selon l’être. La toute-puissance de son amour conduit le Dieu infini et éternel à faire alliance avec l’éphémère de l’histoire sans compromettre en rien son Altérité inaccessible”.

52 Id. “From the Theology of Religious Pluralism to an Interreligious Theology”. In: KENDALL,

D. O’COLLINS, G. Many and Diverse Ways – In honors of Jacques Dupuis. New York: Orbis Books, 2003, p. 45-59.

53 Id. De Babel à Pentecôte, op. cit., p. 313.

54 Id. Profession Théologien, op. cit., p. 286-287 – “Car s’il importe de maintenir nos identités et

de respecter l’originalité de chaque religion, il importe tout autant de découvrir qu’il y a un au-delà du dialogue qui implique une certaine transformation dans l’intelligence du christianisme – comme il en va de la transformation de telle grande religion en dialogue avec lui.”

(25)

nova da experiência histórica do cristianismo. O diálogo intra-religioso favorece uma metamorfose recíproca. Geffré faz referência à parábola do semeador para exemplificar que o Evangelho pode assumir formas imprevistas quando se encontra com terrenos novos e diversos.55 Diz nosso autor que

As riquezas das outras religiões não completam a plenitude da revelação que nos foi confiada em Jesus Cristo, mas elas podem obter-nos uma reinterpretação enriquecedora do mistério insondável de Deus e da relação religiosa do ser humano com Deus. O mistério de Cristo ultrapassa a religião crista mesmo sendo ela a religião da revelação última. Podemos pensar que os valores positivos de cada tradição religiosa encontrarão seu cumprimento no mistério de Cristo num além da história, e que este cumprimento respeitará sua originalidade própria que pode provir do próprio Espírito de Deus que sopra onde quer.56 Determinado a viver hoje o diálogo inter-religioso como atitude fundamental da fé cristã, nosso autor busca conciliar a teologia mística da busca de Deus como ponto comum das religiões, com a atenção devida à experiência histórica, à práxis e à dimensão política da fé. Dessa forma, qualquer teologia cristã será sempre engajada na busca da inteligência da fé a partir da historicidade da fé e do lugar onde se encontre o sujeito crente.

O diálogo autêntico entre as religiões fará com que elas compreendam melhor seus próprios papéis no atual cenário mundial. Além de suas querelas antigas, elas perceberão que devem estar a serviço, não delas mesmas, mas das grandes causas da humanidade. Diante dos graves desafios da globalização, o diálogo inter-religioso tem a chance de favorecer um estímulo recíproco entre as religiões em vista da construção da paz e da lenta emergência de uma comunidade humana mais convivial.57

Conclusão

Geffré assume uma posição eqüidistante tanto de um inclusivismo eclesiocêntrico, quanto de um teocentrismo radical. Sua teologia deixa claro que um cristianismo de diálogo somente será possível a partir de uma cristologia

55 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte, op. cit., p. 341.

56 Id. “A crise da identidade cristã na era do pluralismo religioso”. In: Concilium 311 – 2005/3, p.

25.

57 Id. “O Deus de Jesus e os possíveis da história”. In: Concilium 308 – 2004/5, p. 80.

(26)

normativa. Seu intento é manter o Cristo como centro, mas sem fechar-se à fecundidade da interlocução com a pluralidade religiosa de nossos dias.

A novidade de Geffré, em continuidade às intuições do Vaticano II, é considerar as religiões inseridas no projeto salvífico de Deus. Nenhum projeto teológico ou pastoral será exitoso se não considerar seriamente o valor de cada tradição religiosa em si mesma. Nosso autor ajuda a reflexão teológica a admitir a possibilidade de recursos diferenciados, convergentes e complementares orientados para uma meta comum presente nas religiões não-cristãs.58 Entre o cristianismo e as outras religiões o que deve haver é coexistência e reciprocidade. O intercâmbio entre as diversas experiências religiosas é sinal eloqüente de uma convivialidade possível. As outras tradições religiosas seriam concreções particulares de um processo universal de alguma maneira ligado a Jesus Cristo. O autor defende que somente um jeito novo de compreender a unicidade de Jesus Cristo será capaz de também considerar positivamente as outras religiões.59

A apresentação sistemática do pensamento teológico de Claude Geffré que desenvolvemos nesta tese irá confirmar algumas intuições deste autor aqui apenas esboçadas, questionar outras e provocar a continuidade do debate sobre a autocompreensão cristã em uma época de pluralismo religioso como a nossa. Com tal intuito, começamos no capítulo seguinte a examinar mais detidamente a cristologia deste autor.

58 TEIXEIRA, F. Teología de las religiones – una visión panorâmica. Quito: Abya Yala, 2005, p.

93.

59 GEFFRÉ, C. “La singularité du christianisme à l’âge du pluralisme religieux”. In: Doré, J. et

Theobald, Chr. (org.). Penser la Foi. Recherches en théologie aujuord’hui. Mélanges offerts à

Joseph Moingt. Paris: Cerf-Assas Éditions, 1993, p. 368-369.

Referências

Documentos relacionados

Este desafio nos exige uma nova postura frente às questões ambientais, significa tomar o meio ambiente como problema pedagógico, como práxis unificadora que favoreça

O score de Framingham que estima o risco absoluto de um indivíduo desenvolver em dez anos DAC primária, clinicamente manifesta, utiliza variáveis clínicas e laboratoriais

94 Figura 33 – Matriz de gráficos de dispersão para as concentrações dos elementos químicos determinados em folhas das espécies arbóreas coletadas em Setembro

É necessário juntar o documento comprovativo da doação e do cumprimento das obrigações fiscais (Atenção! A faculdade de remeter documentos digitalizados está reservada

mítico fundador do Clube de Cinema de Santos. Imagens escrachadas do que seria o dia-a-dia de Legeard – perambulando pelas ruas de Santos, pesquisando arquivos sobre

As abraçadeiras tipo TUCHO SIMPLES INOX , foram desenvolvidas para aplicações que necessitam alto torque de aperto e condições severas de temperatura, permitin- do assim,

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto