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Fake news: uma investigação discursiva

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Academic year: 2021

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Fake news: uma investigação discursiva

Gabriel Reis Moraes Machiaveli

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Resumo

O presente trabalho pretende investigar as notícias falsas, as fake news (ALCOTT; GENTZKOW, 2017) enquanto formas intensificadoras da polêmica (AMOSSY, 2017) e busca compreender como essas notícias usufruem de modalidades argumentativas para atingir o emocional das pessoas, como a indignação, a raiva, e o confronto; captando e gerando em seu interlocutor um aspecto de credibilidade (CHARAUDEAU, 2007; 2015a; 2015b). Notamos que estas notícias são fabricadas para despertar crenças, ideologias, doutrinas, com caráter de verossimilhança com os fatos reais. São objetos de análise duas postagens sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), que nos revelaram um jogo polêmico entre modalidades: a dicotomização entre bem e mal; argumentos falaciosos contra o outro; e a polarização.

Palavras-chave: fake news; polêmica; notícias falsas; discurso.

1 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; gabriel.machiaveli@gmail.com; https://orcid.org/0000-0002-9766-7498

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Fake News: a discursive investigation

Abstract

The present work intends to investigate the fake news (ALCOTT; GENTZKOW, 2017) as modalities of the polemic (AMOSSY, 2017;) and seeks to understand how this news uses textual tools to reach the emotional of people, such as indignation, anger, and confrontation; capturing and generating in its interlocutor an aspect of credibility (CHARAUDEAU, 2007, 2015a,2015b). We note that this news is fabricated to awaken beliefs, ideologies, doctrines, with character of verisimilitude with the real facts. Two posts about the murder of councilwoman Marielle Franco (PSOL-RJ), revealed a controversial game between modalities: the dichotomization between good and evil; fallacious arguments against each other; and polarization.

Keywords: fake news; polemic; discourse.

Introdução

A notícia falsa (fake news), como todo produto linguístico-discursivo, não é um enunciado novo, uma nova “forma” de manipulação de dados e fatos, mas sim uma memória que é retomada e rearticulada. Se tomarmos os eventos recentes, compreenderemos as Eleições Presidenciais dos Estados Unidos de 2016 e o Brexit como possíveis estopins de discussão deste tema. Dos mais variados assuntos que emblemaram estes eventos, está o possível apoio do Papa Francisco ao candidato (à época) Donald Trump, do Partido Republicano. Essa notícia inverídica foi divulgada pela internet, principalmente nas redes sociais2, com larga escala de acessos e adesões. Isso gerou grande repercussão positiva

na campanha do candidato citado, que conseguiu se eleger naquela ocasião.

A notícia do possível apoio do Papa Francisco ao candidato Donald Trump, em 2016, foi a segunda postagem mais compartilhada em redes sociais3, nos EUA. O Brexit se

destacou também por impulsionar notícias falsas. A maioria das notícias afirmava que o Reino Unido seria tomado por imigrantes em 2030, afirmação que serviu para alarmar a população a favor da saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Tudo isso demonstra o poder das notícias falsas tanto ideológico e político, como também financeiro4.

2 É bom deixar claro que são impulsionadoras e pulverizadoras das notícias falsas.

3 Ver: https://www.buzzfeednews.com/article/craigsilverman/top-fake-news-of-2016#.sdbv8jeMgG. Acesso em: 04 ago. 2018.

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O relatório do Observatório da Comunicação (RELATÓRIOS OBERCOM, 2018, p. 17) definiu as notícias falsas como “um conjunto de práticas pseudojornalísticas baseadas na distorção mais ou menos voluntária de informações jornalísticas (chamadas de “verdades alternativas”), voltadas à desinformação e à deslegitimação dos saberes e actores institucionalizados”.

Entendemos fake news como materialidades discursivas que retomam, enaltecem e reverberam crenças negativas com intencionalidades políticas. Embora estas notícias sejam consideradas sátiras e paródias de determinados temas, observamos que o site de rede social Facebook tem tornado essas notícias “verdadeiras”. Dado que uma pesquisa sobre isso constatou que 23% de três mil entrevistados utilizavam o Facebook como fonte principal de informação e 83% avaliaram como concisas as notícias falsas durante as eleições presidenciais norte-americanas (SILVERMAN; SINGER-VINE, 2016 apud AlCOTT; GENTZKOM, 2017).

Nosso corpus é preenchido por notícias falsas sobre a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em março de 2018, em que a acusam de envolvimento com o tráfico de drogas e com o Comando Vermelho. Desse modo, coletamos duas postagens em redes sociais (uma do Twitter e outra do Facebook) sobre o assassinato de Marielle Franco, nos embasando em notícias sobre as notícias falsas5. Também coletamos uma reportagem

sobre o assassinado de Marielle Franco do site de notícias Ceticismo Político.

Nossa análise será feita a partir de três etapas: 1) entender o que são Fake news (ALCOTT; GENTZKOM, 2017; GARCIA, 2018); 2) analisar o corpus através das modalidades argumentativas da polêmica (AMOSSY, 2017), como a desqualificação do adversário, a polarização e a dicotomização e 3) compreender as materializações de crença e conhecimento arregimentados pelos locutores nas postagens e na notícia, utilizando a teoria dos imaginários sociodiscursivos de Charaudeau (2007, 2015a, 2015b).

Amossy (2017) elabora estudos da retórica antiga à contemporânea, ressaltando a importância do dissenso nas democracias pluralistas. Entre suas posições, está compreender o dissenso como fundamental em uma democracia. Ela destaca a polêmica dividida em modalidades, como a dicotomização, polarização, e a desqualificação do adversário, que explanaremos mais adiante. O emocional, o impacto de uma fake

news, contribui para o fenômeno da polêmica, “radicalizando aspectos mencionados

nos debates polêmicos, para questões da sociedade que interpelam fortemente os participantes” (Ibid., p. 146). Para a autora, a indignação (se pensarmos o tema de uma

fake news) radicaliza a polarização social. Por outro lado, o conceito de imaginários 5 Ver notícias: https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,facebook-retira-do-ar-fake-news-contra-marielle-franco,70002240964; https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/03/noticias-falsas-sobre-marielle-mostram-como-o-estado-lida-com-a-favela.shtml. Acesso em: 19 jun. 2018.

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sociodiscursivos (CHARAUDEAU, 2007, 2015a, 2015b) corrobora para analisar quais crenças e conhecimentos os locutores materializam para fortalecer o debate polêmico.

As notícias falsas

É importante fazer um parêntese sobre as notícias falsas. Vivemos numa sociedade ciberconectada diariamente, com grande parte dos usuários gastando seu tempo em

sites de redes sociais, como o Facebook. Em 2016, com a grande repercussão das

notícias falsas, seja pelas eleições norte-americanas e também pelo Brexit, diversas discussões sobre isto revelaram uma sociedade pós-verdade. Quando pós não significaria uma sociedade pós-algo, mas sim, uma sociedade contemporânea que estaria além da verdade. Isto explica a eleição de pós-verdade como palavra do ano em 2016 pelo dicionário Oxford. Todavia, neste trabalho nos atentaremos precisamente ao conceito de fake news, que faz parte desse bojo da pós-verdade, com sua materialidade linguístico-discursiva.

Não há como iniciar nossa exposição sem ressaltar o trabalho de Alcott e Gentzkom, publicado em 2017, que vem sendo bastante utilizado para tratar as fake news. Os autores definem notícias falsas como artigos de notícias que são intencional e verificadamente falsas, com o objetivo de enganar seus leitores (Ibidem, p. 213). Estes artigos assumem um caráter de credibilidade ao reproduzirem padrões delineados por jornais e portais de notícias. Segundo Garcia (2018), as fake news não são notícias manipuladas ou tendenciosas, mas sim mentiras, e este ponto é crucial ao tratarmos da questão linguístico-discursiva do objeto. São informações falsas impulsionadas de duas formas: seja pelo valor financeiro, seja pelo teor político ou ideológico6. A

primeira corresponde às compensações financeiras dos usuários. Quanto mais compartilhamentos uma postagem no Facebook ou um tuíte tiver, mais receita isto gera ao usuário. Portanto, isto impulsionou a criação destas notícias falsas dentro do ambiental virtual. A outra corresponde ao campo das representações sociais, e mais precisamente, às representações políticas dos usuários. Conforme vemos abaixo:

A segunda motivação é ideológica. Alguns provedores de notícias falsas procuram promover os candidatos que eles preferem. O dono de um site famoso, por exemplo, afirma que começou principalmente para ajudar a campanha de Donald Trump (Townsend, 2016). Outros provedores de notícias falsas de direita, na verdade, dizem que eles se 6 O conceito de ideologia não é o escopo deste trabalho. Entretanto, quando citarmos “ideologia”, isto corresponderá, de maneira geral, a um condição sócio-histórica, construída por discursos que se interligam, e se transformam, formando um conjunto de crenças e conhecimentos políticos que refletem determinado grupo.

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identificam com a esquerda mas queriam envergonhar os da direita, mostrando que iriam circular histórias falsas como credibilidade7.

(ALCOTT; GENTZKOM, 2017, p. 217, tradução nossa).

Se tomá-las na história, temos a independência cubana como fruto de uma notícia falsa. Segundo Garcia (2018), o jornal New Yorker, encabeçado pelo magnata William Randolph Hearst, viu no conflito entre Cuba e Espanha uma oportunidade para ilustrar o jornal. Entretanto, na cobertura do conflito, uma notícia falsa culpou a Espanha de ter feito um ataque a um barco com uma mina submarina, o que fez com que os EUA entrassem na disputa. O jornal inventara uma guerra entre Estados Unidos e Espanha que culminou com a independência de Cuba.

Outros fatos semelhantes ocorreram no Brasil. Em abril de 2017, o site Catraca Livre8

elencou os “10 casos mais famosos de notícias falsas na história”, com quatro notícias brasileiras: o bebê-diabo; o chupa-cu de Goianinha; a entrevista do PCC no programa Domingo Legal, de Gugu Liberato; e o caso Escola Base.

O bebê-diabo foi uma notícia veiculada pelo jornal Notícias Populares (NP), jornal diário conhecido por manchetes tendenciosas, com base no nascimento de um bebê com deformações na testa. A história falsa repercutiu durante meses no imaginário popular paulista. A história do “chupa-cu” foi impulsionada por uma imagem de um objeto parecido com um animal deformado que, segundo o site, alarmou algumas pessoas da região . Outro caso notório foi a falsa participação do Primeiro Comando da Capital (PCC) ao vivo no programa Domingo Legal. O apresentador Gugu teve que se desculpar e endereçou a culpa a outro jornalista. Mas o caso mais alarmante foi a Escola Base de 1994. Os proprietários de uma escola particular de São Paulo, capital, foram acusados de abusar sexualmente de quatro alunos. Após grande repercussão, o inquérito foi arquivado por falta de provas e os proprietários da escola processaram os jornais. Portanto, não é nova a disseminação de notícias falsas.

Vejamos, as notícias falsas são artigos que usufruem do fazer jornalístico, motivadas principalmente por uma posição política e financeira, como resume Garcia (2018, p. 30, tradução nossa): “As fake news são informações falsas desenhadas semelhantes às

7 No original: “The second motivation is ideological. Some fake news providers seek to advance candidates they favor. The Romanian man who ran endingthefed.com, for example, claims that he started the site mainly to help Donald Trump’s campaign (Townsend 2016). Other providers of right-wing fake news actually say they identify as left-wing and wanted to embarrass those on the right by showing that they would credulously circulate false stories.”.

8 Ver: https://catracalivre.com.br/entretenimento/10-casos-famosos-de-noticias-falsas-na-historia/. Acesso em: 03 ago. 2018.

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notícias com o objetivo de difundir um engano ou uma desinformação deliberada para obter um fim político ou financeiro9.

Garcia (2018, p. 44) também nos mostra que as fake news são movidas por interesses. O autor faz uma apropriada distinção entre notícias interessadas e notícias interessantes. Notícias interessadas seriam movidas, sobretudo, por interesses (sejam eles pessoais, políticos ou financeiros) e as notícias interessantes teriam um valor mais amplo, de caráter público. “Não há nada mais interessado e menos interessante do que uma notícia falsa” (Ibidem, tradução nossa10). Para o autor, as notícias falsas são primordialmente

interessadas porque seus próprios criadores têm interesses econômicos e ideológicos. Primeiro porque criar notícias falsas é mais barato do que produzir notícias verdadeiras. Segundo, como afirma Mark Twain (apud GARCIA, 2018, p. 46): “É mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas”. No Brasil, temos um ditado popular sobre isso: “Até explicar que focinho de porco não é tomada...”.

Continuando, Garcia (2018) explica que, para dar credibilidade para as notícias falsas, os criadores copiam interfaces, logos, padrões de estilo de jornais e portais tradicionais, como o caso de um site de notícias falsas – o The National Report – dos Estados Unidos ter copiado o logo do Huffington Post para dar mais confiança aos seus leitores. Lembrando que quanto mais um site seja visto, mais suas postagens sejam compartilhadas, mais receita o autor do site recebe.

Entretanto, existem mais pontos para ressaltarmos sobre as notícias falsas. Segundo Garcia (2008), elas podem ser divididas de sete formas. Ressaltando que não são totalmente independentes à outra. São elas: as notícias como paródias (ver o site Sensacionalista11); são notícias enganosas; são notícias impostoras (quando usam um

falso discurso citado); fabricadas (falácias para prejudicar alguém – ver o caso de Maria do Rosário12 (PT)); notícias com contexto falso; e notícias manipuladas (redirecionam

informações e usam imagens para criar falsidades).

Todo esse bojo que citamos acima faz parte do jogo das Fake news. Exporemos na próxima seção nossos pressupostos teóricos para abordarmos as notícias falsas em sua dimensão discursiva.

9 No original: “Las fake news son informaciones falsas diseñadas para hacerse passar por noticias con el objetivo de difundir un engaño o una desinformación deliberada para obtener un fin político o financiero”.

10 No original: “No hay nada más interessado y menos interessante que uma notícia falsa”. 11 https://www.sensacionalista.com.br/

12 Ver: https://www.boatos.org/politica/maria-rosario-pm-matou-assaltantes.html. Acesso em: 19 jun. 2018.

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A credibilidade e a captação: a gênese dos saberes

Todo meio de comunicação se sustenta por meio de uma validade. Essa validade é dada pelo leitor que lê o jornal, pelo telespectador, pelo ouvinte, e mais recentemente, pelo usuário da sociedade em rede. Essa validade, esse modo de conquistar uma confiança do usuário a um meio, podemos chamar de credibilidade e de captação. Charaudeau (2015a) afirma que a finalidade do contrato de comunicação da mídia deve pertencer a duas visadas: da credibilidade e da captação. A credibilidade está voltada ao fazer saber, a uma intenção de informar criteriosamente os cidadãos. Enquanto a captação está voltada ao fazer sentir, à sedução.

A finalidade do contrato de comunicação midiática se acha numa tensão entre duas visadas, que correspondem, cada uma delas, a uma lógica particular: uma visada de fazer saber, ou visada de informação propriamente dita, que tende a produzir um objeto de saber segundo uma lógica cívica: informar o cidadão; uma visada de

fazer sentir, ou visada de captação, que tende a produzir um objeto

de consumo segundo uma lógica comercial: captar as massas para sobreviver à concorrência. (CHARAUDEAU, 2015a, p. 86).

A visada da credibilidade está voltada para uma racionalidade, para um conteúdo experimentado e comprovado. Nisso podemos ver a objetividade do jornalismo e a função do lead (lide13) como forma de dar mais informação ao leitor de maneira sucinta.

Nesta visada, o que importa é informar o receptor, prioritariamente. Todavia, como afirma Charaudeau (2015a, p. 92), a mídia se instala neste espaço limítrofe entre a informação e a persuasão.

Assim, o contrato de informação midiática é, em seu fundamento, marcado pela contradição: finalidade de fazer saber, que deve buscar um grau zero de espetacularização da informação, para satisfazer o princípio de seriedade ao produzir efeitos de credibilidade; finalidade de fazer sentir, que deve fazer escolhas estratégicas apropriadas à encenação da informação para satisfazer o princípio da emoção ao produzir efeitos de dramatização.

13 O lead é o primeiro parágrafo da notícia e nele o leitor deverá encontrar respostas a seis questões: O Quê, Quem, Quando, Onde, Porquê e Como; sendo que as duas últimas questões – Porquê e Como – podem as mais das vezes omitir-se do lead, guardando-se para o parágrafo subsequente. A razão é que, antes de mais nada, os leads têm duas funções a cumprir: informar imediatamente o leitor das características mais importantes do facto que se noticia; e serem atraentes apelando à leitura do resto do texto. Leads muito pesados dificultam a compreensão e desencorajam a leitura (GRADIM, 2000, p. 57)

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Charaudeau (2015a) nos mostra essa região fronteiriça entre o saber e o sentir presente nas manifestações discursivas midiáticas. Nas palavras do autor, a mídia está “condenada a procurar emocionar o seu público, a mobilizar sua afetividade, a fim de desencadear o interesse pela informação que lhe é transmitida” (Ibid.). Tratam-se de procedimentos linguístico-discursivos que norteiam o fazer jornalístico. É importante salientar duas questões pontuais que nos ligam, de maneira aproximada, às Fake news. A primeira é sobre o efeito de verdade e a segundo sobre o valor de verdade.

Segundo o autor, o efeito de verdade parte da subjetividade de um sujeito para o mundo; constitui-se de um “acreditar ser verdadeiro”, movido, sobretudo, por julgamentos compartilhados em determinada comunidade. Este efeito possui uma mobilidade de adesão e de convicção, determinada por saberes compartilhados.

O efeito de verdade não existe, pois, fora de um dispositivo enunciativo de influência psicossocial, no qual cada um dos parceiros da troca verbal tenta fazer com que o outro dê sua adesão a seu universo de pensamento. O que está em causa aqui não é tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de “credibilidade”, isto é, aquilo que determina o “direito à palavra” dos seres que comunicam, e as condições de validade da palavra emitida (Ibidem, p. 49).

Enquanto o efeito de verdade faz parte de uma convicção no “verdadeiro”, o valor de

verdade se institui a partir de uma evidência; é a partir de uma posição explicativa,

baseada em procedimentos científicos, que esse valor pode se reafirmar.

Dado o exposto, o jogo entre a captação e a credibilidade se dá no campo dos imaginários. Para isso, Charaudeau (2015b) propõe uma gênese de saberes14, dividida entre saberes

de conhecimento e saberes de crença. Os saberes do conhecimento são da ordem do mundo para o sujeito. São formulações baseadas em eventos científicos e da natureza, como a física, química, etc. São informações concretas que não partem do sujeito e, na maior parte das vezes, não são questionadas.

[...] o saber científico é construído das explicações sobre o mundo que valem para conhecer o mundo como ele é e funciona. Estamos na ordem da razão científica que se baseia em procedimentos de observação, experimentação e cálculo, que usam ferramentas de visualização do mundo (microscópio) ou operações (informática), e cuja garantia objetiva é que estes procedimentos e instrumentos 14 Para aprofundar mais sobre os saberes, ver: Figueiredo (2013).

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podem ser rastreados e usados por qualquer outra pessoa com a mesma habilidade.15 (CHARAUDEAU, 2007, p. 55, tradução nossa).

Já os saberes de crença são saberes essencializados (doxa), como uma opinião sobre determinado tema, a constituição dos imaginários de um grupo, entre outros. Segundo Charaudeau (2007, p. 56, tradução nossa), os saberes de crença “[...] não se relacionam com o conhecimento do mundo no sentido de que temos dado a ele, mas sobre as avaliações, apreciações, julgamentos sobre fenômenos, eventos e seres do mundo, seu pensamento e comportamento16”.

A gênese dos saberes contribui para identificar as representações arregimentadas pelos interlocutores para sustentar uma tese, como veremos na análise, o que nos aproxima de modalidades polêmicas, como a desqualificação do adversário e a polarização.

Apologia da polêmica

A polêmica foi/é foco de diversos estudos de variadas áreas do conhecimento. Seu interesse se dá no campo político, linguístico e filosófico, principalmente por se formar a partir de preceitos retóricos. No entanto, neste trabalho, nos limitaremos a tratar a polêmica em um quadro teórico proposto por Amossy (2017). Conforme a autora, a polêmica é uma modalidade argumentativa que se constitui a partir da erística e da sofística, tornando-se uma modalidade argumentativa através de uma crescente co-construção de respostas e réplicas ao embate das teses antagonistas (Ibid., 2017, p. 49-50). A polêmica formaria, então, estruturas de troca verbal classificadas como modalidades. Dentre essas modalidades, se destacam a dicotomização, a polarização, ocasionadas pela situação de comunicação (democracia pluralista), e também, a desqualificação do adversário.

A dicotomização das oposições, a polarização e o descrédito lançado sobre o outro se estabelecem sobre uma série de operações linguageiras que mobilizam um vasto leque de procedimentos retóricos. Como modalidade argumentativa, a polêmica é, antes de tudo, uma arte da refutação (Ibid., p. 98).

15 No original: “Le savoir savant construit des explications sur le monde qui valent pour connaissance du monde tel qu’il est et fonctionne. On est dans l’ordre de la raison savante qui s’appuie sur des procédures d’observation, d’experimentation et de calcul, lesquelles utilisent des instruments de visualisation du monde (microscope) ou d’opérations (informatique), et dont la garantie objectivante est que ces procédures et ces instruments peuvent être suivis et utilisés par toute autre personne ayant même compétence.”.

16 No original: “ne portent pas sur la connaissance du monde au sens que nous venons de lui donner mais sur des évaluations, des appréciations, des jugements à propôs des phénomènes, des événements et des êtres du monde, leur pensée et leur comportement”.

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Explica Amossy (2017) que a dicotomização ocorre quando duas opiniões se excluem uma da outra, ou seja, propõe estabelecer dicotomias como esquerda/direita. São do campo do conceito formado pela estratificação social. O que importa na dicotomização é compreender como ela é formulada sócio-historicamente (crenças, ideologias, circunstância histórica) em determinada sociedade. Trata-se de uma categorização da sociedade, enquanto a polarização se dá por meio da enunciação.

A polarização está no campo actancial, isto é, no campo da tomada de palavra dos interlocutores. Quando a polarização se instaura, há um jogo polêmico entre o Proponente (aquele que toma a palavra e que propõe o debate) e o Oponente (aquele que terá seu argumento refutado). “A polarização não apresenta apenas uma divisão em branco/preto, direita/esquerda – ela põe também um “nós” diante de um “eles” (Ibid., p. 56). Amossy (2017) explica que o efeito da polêmica é dividido em duas formas cruzadas: 1) a partir de uma violência que autoriza a polarização social e a confrontação de posições dicotômicas; 2) e por meio de uma regulação que é tributada dos quadros sociodiscursivos, institucionais e culturais, que autorizam o desenrolar da confrontação no espaço público. Desse modo, a polêmica é definida tanto como conflito – polarização e dicotomização – quanto pela desqualificação do adversário.

Na disputa que se desenrola face um terceiro, ela se distingue [a polêmica] sempre pelas tentativas de desqualificação do Oponente. “O discurso polêmico”, escreve Kerbrat-Orecchioni (1980, p. 12), “é um discurso desqualificador, o que quer dizer que ele ataca um alvo [...] e que põe, a serviço dessa visada pragmática dominante – gerar o descrédito do adversário e o discurso que ele presumidamente sustenta –, todo o arsenal de seus procedimentos retóricos e argumentativos” (Ibid., p. 58-59).

Com a polarização, os interlocutores se refutam para garantir a adesão de um auditório, um terceiro espectador.

O Oponente refuta, assim, as razões do adversário, mostrando que seu discurso é indigno de confiança e não merece que o apoie. A polêmica responde, então, ao discurso adverso, enfraquecendo-lhe os argumentos por todos os meios possíveis, seja pela negação, seja pela reformulação orientada, seja pela ironia, seja pela modificação dos propósitos... [...] (Ibid., p. 59).

Dessa forma, ao desqualificar o adversário, o interlocutor coloca em cena argumentos erísticos e sofísticos, tentando vencer o debate de qualquer forma. Analisaremos nosso corpus a partir destas modalidades: 1) a desqualificação do adversário; 2) a dicotomização; e 3) a polarização. Notemos uma possível semelhança com as fake news: o convencimento de um auditório.

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A polêmica instaurada: uma análise

Nesta seção, nosso objetivo é analisar duas postagens sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), ocorrida em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro (RJ). Sua morte gerou grande repercussão na mídia17 e nas redes sociais, sobretudo, na sua relação

com os espectros políticos, isto é, na posição social de Marielle, no conjunto das vigências partidárias, com outros polos ou extremos. Isto gerou diversas manifestações pelo Brasil, e, principalmente, dentro das redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram. Diversas personalidades se solidarizaram com Marielle, seja pela comoção e ou pelo pedido de uma investigação rigorosa sobre o crime. Coletamos manualmente duas publicações que nortearam campanhas contra as fake news. Dado o exposto, segue abaixo a postagem do deputado Alberto Fraga (DEM) sobre a morte da vereadora, publicado no Twitter:

Figura 1. Postagem do deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF).

Fonte: twitter.com

A postagem acima foi apagada18 pelo referido deputado após repercussão negativa. Mas

isso não elimina os efeitos causados por ela, assim como sua posição no entorno dos discursos sobre esquerda e direita19 no Brasil. Portanto, por mais que essa postagem

não possa ser verificável (posto que foi deletada), nada indica que esta não possa ser analisada, tendo em vista seu caráter, à primeira vista, tendencioso e polêmico.

17 Notemos que mídia, neste momento, não é o mesmo que suporte, mas sim uma instituição dotada de editores, jornalistas, apresentadores, bem como de expectadores, ouvintes e leitores. 18 Ver: https://noticias.r7.com/prisma/coluna-do-fraga/desembargadora-e-deputado-que-criticaram-marielle-apagam-posts-19032018. Acesso em: 08 set. 2018.

19 Compreendemos os espectros políticos esquerda e direita a partir das noções apresentadas por Bobbio (1995). Segundo o autor, o traço definitório da diferença entre ambas as partes se dá na compreensão da desigualdade social. A esquerda se pautaria para estancar a desigualdade social, enquanto a direita a pautaria como uma coisa natural. Uma naturalidade.

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Segundo Amossy (2017), uma das modalidades da polêmica se caracteriza pela desqualificação do adversário, como vimos na seção “Apologia da Polêmica”. Tomando a postagem acima, podemos afirmar que o deputado usa esta modalidade para atacar a reputação da vereadora assassinada. “Usuária de maconha”, “defensora de facção rival”, “ex esposa do Marcinho VP” [sic] nos direcionam a confirmar a desqualificação, bem como a identificar a polarização (mito da esquerda = eles da esquerda). Há o proponente deputado que desqualifica a oponente Marielle. No plano dos actantes, como afirma Amossy (2017), consideramos que a postagem se inscreve na posição de direita, levando em conta a dicotomização (que é o campo do conceito) entre direita e esquerda. A marca linguística “mito” remonta à desqualificação, seu sentido aqui é tomado negativamente, e relaciona-se a uma base de saberes compartilhados sobre insurreições provocadas pelo espectro da esquerda política.

Compreendemos que a palavra “mito” não designa, aqui, apenas uma apreciação

ou indicação de falsidade ou de exacerbação ideológica, mas sim, um conjunto

de discursos dispersos sobre o “mito” Che Guevara, o “mito” de Lênin, etc. Isso

remonta

à

questão de posições dissidentes entre quem percebe a história cubana

como Revolução e quem a percebe como uma Ditadura. É preciso fugir um pouco

do texto em questão para compreendermos esses conjuntos de saberes, por

exemplo, seu aspecto moral. “Usuária de maconha” não é apenas uma depreciação,

mas sim um conjunto de discursos conservadores que retomam, transformam, e

instituem valores a partir de seus saberes de crença, como vimos em Charaudeau

(2015b).

O deputado, ao usar adjetivos, afirmações conservadoras (“engravidou aos 16

anos”) e ética (“usuária de maconha”), suscita uma aproximação entre bem e mal.

O bem, na polarização em que o deputado se inscreve, norteia uma relação de que

mulheres não podem engravidar antes dos 16 anos; não podem usar maconha;

não podem ter

vínculo algum com uma comunidade, como no caso, as favelas, e indo mais longe, ao tráfico. Isto mostra sua posição enquanto “possuidor” de uma moral dos bons costumes. Isso acentua o caráter de desqualificação da oponente, e de polarização entre “eles fazem o errado” e “nós fazemos o certo”.

Na esteira de Charaudeau (2015b), a postagem demonstra um discurso carregado de saberes de opinião, como vimos na seção “A credibilidade e a captação”. São carregados de opiniões de um grupo contra outro. São apresentados termos como o “mito”, que representa o imaginário. Neste caso, o adjetivo “novo” aponta para que o “mito” seja a representação dos líderes da esquerda. Como vimos, o “mito” faz parte de um conjunto de saberes sobre determinado tema, que se adapta, se transforma, e se institui continuadamente. Temos, como exemplo, o “mito” Ernesto Che Guevara. Diversos

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discursos permeiam o cotidiano brasileiro, como opinião de grupos de direita20 e de

esquerda sobre o mito Che Guevara, um dos líderes da chamada Revolução Cubana. Isso demonstra a evidente polêmica, instaurada a partir de um acontecimento (o assassinato), em que o deputado se filia a discursos falaciosos. É oportuno destacar que a postagem não é uma interação polêmica, partindo da premissa de que Marielle não viveu para responder aos ataques verbais que sofreu, por exemplo, a próxima postagem (publicada no Facebook) que analisaremos. Trata-se de uma postagem de conteúdo enunciativo que, segundo Charaudeau (2008), ocorre no processo em que o locutor anuncia seu ponto de vista.

Figura 2. Postagem da desembargadora Marilia Castro Neves sobre o assassinato de

Marielle Franco Fonte: facebook.com

A autora da postagem é uma Desembargadora da Justiça. No texto, ela realça pontos sobre o caso Marielle Franco, como – relembrando a postagem do deputado que analisamos antes – sua possível relação com o tráfico, com o Comando Vermelho, entre outras questões. Cabe a nós destacar, mais precisamente, o uso das aspas no texto. A autora utiliza três vezes o sinal tipográfico. Nosso intuito é analisar seu emprego mais de perto. As aspas, e agora retomaremos estudos sobre o discurso do outro, como o de heterogeneidade mostrada, são formas de trazer o outro no próprio discurso. Authier-Revuz (2004) destaca que o uso das aspas são marcas de um distanciamento do enunciador com o seu próprio dizer. Neste caso, afirma a autora, que “as palavras aspeadas são palavras assinaladas como ‘deslocadas”, ‘fora de seu lugar”, pertencendo e adequando um outro discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 221).

20 Kim Kataguiri, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), postou um vídeo na rede social YouTube¸ intitulado “Kim desmonta mito do Che Guevara”. Ver: https://www.youtube.com/ watch?v=gZDR1_IU2kA. Acesso em: 08 set. 2018.

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As aspas se fazem “na borda” de um discurso, ou seja, marcam o

encontro com um discurso-outro. São uma balizagem dessa zona de

demarcação mediante a qual, através de um trabalho sobre suas bordas, um discurso se constitui em relação a um exterior. Essa borda é,·a um tempo só, reveladora e indispensável: acompanhar o mapeamento das palavras aspeadas de um discurso é acompanhar a zona fronteiriça reveladora daquilo em relação ao que lhe é essencial se distanciar: “Diz-me o que tu aspeias ...”; ao mesmo tempo, é pelo fato de colocar algumas palavras como não apropriadas que um discurso constitui, em si mesmo, o complementar dessas palavras: palavras essas plenamente apropriadas, às quais o locutor supostamente adere sem distância; é o trabalho constitutivo das aspas (Ibid., p. 229).

Conforme Authier-Revuz (2004), existem duas formas de identificar as aspas. A primeira parte do conceito de emprego autonímico. O uso das aspas se refere ao signo em si e não ao seu referente. Por exemplo: A palavra “banana” vem da África. Banana aqui citada não é a banana como objeto, mas a própria palavra, isto é, seu próprio signo. Nas palavras de Authier-Revuz (2004, p. 217): “[...] o locutor faz aqui menção e não uso das palavras aspeadas. O que está associado ao significante é todo o signo – significado e significante”. Outra forma de identificar as aspas é a conotação autonímica. A palavra aspeada traz na enunciação uma interpretação fora, isto é, uma exterioridade do discurso.

Existem funções que aspas exercem no interior de um enunciado. Podem ser empregadas com características de aproximação, como familiaridade; podem ser pedagógicas e condescendentes. Outra forma se dá por um “narcisismo ofensivo”; por aspas de proteção; e por último por ênfase.

O enunciado em que aparece a palavra lutadora entre aspas aparenta ser uma negação em si. Ao empregar as aspas, a desembargadora nega o fato de Marielle ter sido uma lutadora. Seria um distanciamento da desembargadora em relação a quem concorda que a vereadora assassinada era uma lutadora. Isto demonstra, o uso das aspas, a modalidade de polarização da polêmica. Esse distanciamento seria, como vimos, “nós e eles”. Ao usar as aspas, além de se ter no fio do discurso um tom irônico, ou seja, um “efeito de não assumir a enunciação por parte do locutor e de discordância em relação à fala esperada para tal tipo de situação” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2016, p. 291, grifos dos autores), a desembargadora subverte sua própria enunciação. Ao dizer lutadora com aspas ela desqualifica a vereadora, direcionando sua posição para “engajada com bandidos”. Como ocorre também em “descumpriu seus ‘compromissos’”. Seu uso se dá por forma de ironia. Compromissos entre aspas nos abre para a interpretação de sentidos.

Compromisso pode ser parafraseado como “combinações” ou “artimanhas”. Ao indicar as

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Para analisar o enunciado em que aparece, entre aspas, “longe da favela”, podemos utilizar o método parafrástico. Isso nos daria o seguinte:

(1) Ela, mais do que qualquer outra pessoa “longe da favela”. (2) Ela, mais do que qualquer pessoa que não mora na favela.

(3) Ela, mais do que qualquer pessoa que não pertence à comunidade de uma favela. Isso nos mostra não só um afastamento da desembargadora com o seu dizer, embora possamos entender o uso das aspas como “os outros dizem isso e eu concordo”, mas uma reafirmação de sua crença. Notemos, por exemplo, que logo após o “longe da favela”, aparece o enunciado “até nós sabemos disso”. Isso remonta à polarização eu e eles, nós e eles. Ao utilizar o pronome da 1ª pessoa do plural, ela reafirma sua distância, seu não lugar na favela, seu distanciamento com “bandidos”. O texto da desembargadora é marcado pela desqualificação do acontecimento. É marcado pela desqualificação do adversário, nas palavras de Amossy (2017).

O processo de julgamento da desembargadora sobre o acontecimento nos mostra o uso dos saberes de crença, precisamente de opinião, de julgamento. Ao abordar o ocorrido, ela se distancia e deprecia a vereadora.

As duas postagens mostraram as modalidades da polêmica em sua evidência. O efeito visado foi neutralizar a opinião pública sobre a morte da vereadora. No entanto, os autores acentuaram argumentos falaciosos, buscaram neles uma aproximação e uma distância, uma possibilidade de certo e errado, bom e mau, direita e esquerda. Sobre fake news, ainda que as postagens não usufruam de ferramentas padronizadas do fazer jornalístico, notemos um aspecto que engloba o conteúdo das duas: mentiras. Como Garcia (2018) afirmou: notícias falsas são mentiras interessadas.

Ademais, podemos analisar uma notícia publicada pelo site ceticismo político21 sobre o

acontecimento discursivo Marielle Franco. Poderemos compreender também como um efeito de verdade é tomado com caráter verdadeiro a partir de um aparato noticioso. Nessa notícia, vemos o poder do discurso relatado nas narrativas. A notícia falsa não só foi anterior ao dito pela desembargadora (já-dito), mas também uma suíte sobre os seus próprios enunciados.

21 Ver em: https://www.ceticismopolitico.org/desembargadora-quebra-narrativa-do-psol-e-diz-que-marielle-se-envolvia-com-bandidos-e-e-cadaver-comum/. Acesso em: 10 jun. 2018.

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Figura 3. Imagem capturada do título da notícia sobre a opinião da desembargadora

Fonte: www.ceticismopolitico.org

O discurso relatado é uma das formas de legitimar uma voz, uma posição, um engajamento, uma decisão. Isto é, é uma condição inerente à produção jornalística que distancia a responsabilidade da enunciação. São discursos retomados de uma enunciação anterior para reafirmar uma posição. Segundo Charaudeau (2015a, p. 163, grifos do autor), “o discurso relatado funciona estrategicamente como um discurso de

prova, tanto em relação ao outro quanto a si mesmo”. O discurso relatado tem o efeito

de causar tipos de provas, como de autenticidade (quando alguém reafirma o ocorrido); de responsabilidade; de verdade (que tem a função de fundamentar os propósitos do locutor-relator).

No caso em questão, há a desembargadora como o locutor de origem, e o site Ceticismo Político, como locutor-relator, produzindo um posicionamento de poder, quando, nas palavras de Charaudeau (2015a, p. 163), o efeito visado é “eu faço saber a você o que você não sabe”. Isso se destaca na escolha do léxico do título. A palavra “narrativa” remete a uma invenção, a uma história contada, e a direção do argumento de que a desembargadora “quebra” a narrativa, visa o efeito de “ela diz a verdade”. Isso mostra também o posicionamento de engajamento do site, quando o relato da desembargadora revela uma adesão do locutor-relator aos propósitos da desembargadora.

A adesão ao posicionamento da desembargadora revela um efeito valorativo, isto é, a declaração da desembargadora é fruto de uma apreciação e julgamento do acontecimento Marielle. Trata-se de um efeito de opinião advindo de uma pessoa conhecida e com o poder jurídico.

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Com efeito, podemos destacar que a adesão do site Ceticismo Político, embora implícita, corroborou para a disseminação de discursos falaciosos a respeito da vereadora Marielle Franco. A instância midiática, enquanto site de notícias políticas, intensificou a polarização polêmica ao dar voz a notícias falsas.

Considerações finais

O intuito deste artigo foi proporcionar um encontro entre a polêmica e as fake news. Para isso, mobilizamos um corpus que evidenciou essa possível aproximação de análise. Como vimos, as fake news são materialidades discursivas, ideológicas e financeiras, capazes de cooptar no interlocutor uma credibilidade e uma reafirmação de sua identidade.

A análise revelou a polêmica como modalidade argumentativa, mobilizando as características apontadas por Amossy (2017). Tanto o Deputado quanto a Desembargadora utilizaram argumentos falaciosos para desqualificar a vereadora Marielle. Sobre a dicotomização, concluímos que os autores das postagens estão posicionados sobre uma questão moral, avaliada a partir do bem e mal, posso e não posso, entre outras. A polarização foi identificada quando os autores se pautaram no jogo em que “nós somos o bem” e “eles não”, mobilizando questões da ordem íntima, com o objetivo de refutar a posição política, na época, ocupada por Marielle.

É importante ressaltar que o assunto não se encerra neste artigo. Como dissemos, as alusões das postagens a uma moralidade nos remetem a outros estudos, por exemplo, de Paveau (2015), em que a autora reflete sobre ética e moral de modo discursivo.

REFERÊNCIAS

ALCOTT, H.; GENTZKOW, M. Social media and fake news in the 2016 election. Journal of

economic perspectives, v. 31, n. 2, p. 211-236, 2017.

AMOSSY, R. Apologia da polêmica. Tradução Monica Magalhães Cavalcante. São Paulo: Contexto, 2017.

AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo. Revisão técnica da tradução Leci Borges Barbisan e Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.

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CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c’est bien, les imaginaries, c’est mieux. In: BOYER, H. Stéréotypage, stéréotypes: fonctionnments ordinnaries et mises en scène. Langue(s), discourse. v. 4. Paris: Harmattan, 2007. p. 49-63.

CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2015a. CHARAUDEAU, P. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2015b.

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. Coordenação da tradução Fabiana Komesu. 3. ed. 2. reimpr. São Paulo: Contexto, 2016.

FIGUEIREDO, I. Imaginários sociodiscursivos sobre a surdez: análise contrastiva de discursos do jornal visual a partir da produção e recepção. 2013. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.

GARCIA, A. M. Fake News: La verdade de las noticias falsas. Barcelona: Plataforma Editorial, 2018.

GRADIN, A. Manuel do jornalismo. Série Estudos em Comunicação. Covilhã: Universidade da Beira do Interior, 2000.

PAVEAU, M.-A. Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas. Tradução Ivone Benedetti. Campinas: Editora da UNICAMP, 2015.

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