• Nenhum resultado encontrado

A COMPOSIÇÃO EM DANÇA NA VERTENTE DA MEMÓRIA E DA BENZEÇÃO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A COMPOSIÇÃO EM DANÇA NA VERTENTE DA MEMÓRIA E DA BENZEÇÃO"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

A COMPOSIÇÃO EM DANÇA NA VERTENTE DA MEMÓRIA E DA BENZEÇÃO

Bianca Bazzo Rodrigues (UFRN)

Bianca Bazzo Rodrigues, bailarina, capoeira e artista-pesquisadora, graduada em Dança (UNICAMP), mestranda em Artes Cênicas (UFRN), foi professora substituta do curso de graduação em Dança (UFV). Estuda e pesquisa as manifestações populares brasileiras nos processos de criações artísticas. E-mail: bibs_bazzo@yahoo.com.br

Resumo

O artigo apresenta de forma reflexiva um processo de composição em dança que tem como foco e campo de vivência o universo cultural das benzedeiras e benzedores do estado do Rio Grande do Norte. A partir, desse contexto o processo artístico trava relações e reconhecimentos entre o artista-pesquisador, sua arte seu campo de estudo. Essas trocas do outro e de si são despertadas e ativadas por um espaço triangular da memória: a memória do campo pesquisado; a memória oral dessas figuras da benzeção e a memória particular desse artista-pesquisador que vão sendo depositadas e reinventadas corporalmente em suas atuações artísticas.

Palavras-chave: Processo de Criação, Memória, Benzedeiras e Benzedores, Dança.

THE DANCE COMPOSITION INSIDE THE MEMORY AND “BENZEÇÃO”

Abstract

The article presents a process of dance composition that study the cultural universe of “benzedeiras” and “benzedores” of the state of Rio Grande do Norte. From in this context the artistic process hangs relationships and recognition between the artist-researcher, his art and his field of study. These exchanges of the other and your are activated by triangular memory space: the memory of the field research, the oral memory of “benzeção” and the particular memory this artist-researcher that are going to deposited and reinvented on the body their artistic performances.

(2)

Introdução

O presente artigo apresenta um processo de criação de uma artista-pesquisadora que tem como campo de investigação as manifestações culturais brasileiras, aqui os espaços da benzeção e a memória em seus desdobramentos artísticos. O processo de composição artístico é alimentado pela vivência in loco nesse contexto popular, da pesquisa de campo junto às benzedeiras e benzedores do estado do Rio Grande do Norte como elemento propulsor de poéticas na criação cênica. E da memória corporal e afetiva desse artista, que percorre tanto a memória do visto e sentido em campo; da memória oral dessas figuras da benzeção; e da memória de outras vivências e experiências, através da produção de um inventário cultural do artista-pesquisador ao qual vão sendo depositadas e reinventadas corporalmente em seu atuar na contemporaneidade.

Nesse eixo que percorre a memória, ativadas através desse tripé de relações, a composição artística volta-se a outro triângulo de relações: o reconhecimento necessário de todas as partes. Do processo de composição que inicia com o reconhecimento desse artista-pesquisador, de sua arte, do seu corpo que dança o de dentro e o de fora quando alimentado pela relação de alteridade junto ao outro. Depois, do reconhecimento dessa matriz popular no próprio corpo, ativadas pelo resgate de suas memórias ancestrais e culturais como objetos instigantes no processo de aprendizagem desse artista-pesquisador. Que antes de dançar o de fora, reconhece o de dentro, o seu corpo com suas memórias e histórias que agem e interagem nessa ginga de cambiar os lados.

O mergulho no encontro do outro e de si, busca uma plasticidade gestual dentro de uma poética de relações humanas e descobertas pessoais, que relidos e re-significados contribuem na construção poética e estética da dança, e no vivenciar dessa matriz popular como propulsora de um fazer artístico rico em (re)conhecimento do indivíduo brasileiro.

O fio condutor que permeia esse processo dialoga com os saberes dos intelectuais populares e com os intelectuais acadêmicos num processo de complementariedade. De uma contenda de entrelaçar os lados, os opostos, que despertam meu corpo em imagens e movimentos e alimentam minha arte de constantes visitas da troca da “porteira pra dentro, da porteira pra fora”, como falava Mãe Senhora, Iyalorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (Salvador – BA).

(3)

O fazer artístico: reconhecendo as partes

Ser artista-pesquisador como proponho nesse artigo, é ser aquele indivíduo que está o tempo todo estudando, vivenciando e crescendo em sua arte. Artista dentro do universo acadêmico, denominado pesquisador de sua arte, ao mesmo tempo dentro dos espaços populares, que alimentam e dão vida a essa mesma arte. Que assume uma posição política e ética frente ao outro, seu objeto de pesquisa, e frente a sua arte ao desbravar caminhos ainda pouco trilhados no âmbito científico. Artista-pesquisador das fronteiras cognitivas dos saberes populares e dos saberes científicos.

A arte se aprende pela ação, pelo fazer, pela “concreticidade” (PENNA, 1999), termo utilizado pela pesquisadora e educadora Maura Penna para designar uma das características da aprendizagem das linguagens artísticas. Assim, o constante trabalho de composição artística para o artista-pesquisador como valorização, reconhecimento, transformação e conscientização do profissional que se expressa e se comunica artisticamente através da dança.

O trabalho artístico aqui apresentado foi despertado por outros olhares ao desconectar formas e estruturas já tão codificadas pela dança, vivenciando um processo de criação que mergulhou na minha memória corporal e afetiva da artista-pesquisadora dessa vivência. O trabalho permeou outras fronteiras do conhecimento, andou e dançou em trilhas que levaram a outras formas de perceber e sentir a dança.

O primeiro passo dessa ginga, fase relevante e estruturante desse processo percorreu inicialmente o reconhecimento desse artista-pesquisador que configurou na criação de um inventário pessoal, como forma de resgatar sua ancestralidade, suas partes escondidas, não conhecidas, sua história e singularidades. Para depois partir para o contato e reconhecimento do outro, no caso as figuras da benzeção.

Segundo Laplatine (1999), antropólogo francês que propõem em seus estudos uma ruptura metodológica ao campo estudado, coloca que o trabalho em campo e seu vivenciar nos trazem a descoberta do outro e a descoberta de si. Pois, ficamos cientes que possuímos formas culturais impregnadas no corpo, que culminam em nossas posturas, críticas, ações, falas. Para o autor, “de fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa” (LAPLATINE, 1999, p. 21).

(4)

Somos produtos de uma cultura dentre tantas outras, a necessidade de reconhecê-la e entendermos que nossos gestos, ações e reações são marcas dessa cultura, nos fazem antes de olharmos para o outro, reconhecermos o nosso. Na intenção de não levarmos a campo olhares já viciados, ou interpretando-as através de nossos parâmetros. Cada sociedade, grupo, comunidade possuem suas relações peculiares e particulares. Como coloca Fernandes (2004) em seus processos de criação artística que “a memória e história se recolocam também no corpo. Seja nos gestos miméticos e que nos inserem numa tradição, seja nas marcas pessoais e intransferíveis que carregamos em nossos corpos” (FERNANDES, 2004, p.59). Nessa perspectiva, o trabalho iniciou com a busca do artista-pesquisador no reconhecimento de suas partes, antes de se embrenhar na relação com o outro.

Santos (2006) propõe uma metodologia de dança-arte-educação que perpassa por esse caminho da redescoberta de nossas raízes, de nossas tradições e de uma recriação através de nossa arte criativa, ao conduzir o artista na busca de si mesmo. A autora utilizou nesse processo de escuta, primeiramente do de dentro, a leitura do livro “Bisa Bia, Bisa Bel” de Ana Maria Machado, que nos leva a outras temporalidades, num jogo de passado e presente atuando em sintonia.

Penso que esse livro ao remexer em nossa memória particular e vivida, nos projeta para o antes, para o não vivido, para as lembranças de vovó, de nossas histórias ancestrais. E assim, iniciamos a criação de nosso inventário pessoal, que dentro dele tem outras vidas, não só a nossa, os fios ancestrais vão seguindo em outras temporalidades, e quando damos conta ao reviver outras histórias contadas pelos mais velhos, elas se reencontram no presente, ao vislumbramos que o passado se entrelaça ao que hoje somos.

Para Santos (2006) esse processo de reconhecimento ganha sentido como forma da expressão da identidade cultural, da redescoberta de nossas origens, influencias herdadas. De uma expressão do singular, chegamos a expressões plurais que nos leva a acreditar no nosso próprio ser, a rever o conhecimento, a buscar o desconhecido. Uma forma de nos vermos como atuantes desse processo, cultivando uma memória das diversas personas existentes na sociedade através da dança. Como coloca Carla Ávila:

A memória imaterial dos povos primitivos é a grande responsável pela formação da identidade, pelo corpo e cultura brasileira. Registrá-la e estudá-la serão sem dúvida auxílios nos processos reflexivos em busca

(5)

de uma nova compreensão e diálogo com nossos múltiplos contexto globais e locais em tempos de contemporaneidade. Aliado a essas justificativas, o objetivo desta reflexão contempla os aspectos expressivos e simbólicos das danças populares brasileiras e suas intinerâncias e inter-heranças no processo de criação em dança contemporânea. [...] ajudando-nos a compreender melhor, nossos hábitos, e nossa própria cultura valorizando as nossas diversidades. (ÁVILA, 2007, p.19)

Depois de ativado esse processo de reconhecimento de nossas histórias e memória, sejam elas ancestrais ou do próprio artista-pesquisador, parte-se para o reconhecimento do outro, vivenciadas através da pesquisa de campo, aqui nos espaços da benzeção. Espaço-tempo este onde há outras “memórias subterrâneas” nos dizeres de Von Simpson(1997), das memórias que estão localizadas nas profundezas de nossa sociedade. Passadas adiante por esses guardiões da memória, através dos seus ritos, mitos, rezas, festejos, danças, etc.

A memória e fala do corpo dessas pessoas inseridas dentro de uma tradição projetam a um imaginário que é popular, pertencentes a toda população. Conviver e compartilhar a existência dessas práticas em tempos contemporâneos nos faz rever e repensar as culturas populares que resistem no espaço-tempo de agora. Elas teimam em manter viva a tradição, ao mesmo tempo em que metamorfoseiam constantemente para continuarem atuantes.

Nessa proliferação de sentidos, formas simbólicas, ritos, cantos, rezas, gestualidades e memória, seja ela subterrânea como nos fala Von Simpson (1997), seja a nossa memória do campo, das nossas marcas que nos vão constituindo no que somos, o artista-pesquisador se delicia com esse manancial de poéticas para a criação artística.

A partir, do inventário pessoal e da vivência em campo, parte-se para a criação artística, ativadas através de laboratórios de criação, no intuito de que toda a complexidade de símbolos e gestos trazidos dessas vivencia se constituam em movimento. Os movimentos desses laboratórios buscam emergir do vivido, das emoções vistas e sentidas, para os processos internos e individuais do artista-pesquisador, nesse espaço há uma permissividade de experimentar e experienciar outros gestuais, outras sensações, livres de padrões convencionais de movimento.

O processo de criação perpassa um percurso interior, dando uma liberdade de movimentação ao permitir ao corpo engendrar algo mais que um sentido funcional, que

(6)

ao serem lapidados todo esse manancial de pulsações de vida no fazer artístico, transforma-se em movimento poético. Nesse espaço de desbravamento de nosso percurso interior, podemos experimentar o canto, a fala, o choro, os gestos contidos, pequenos, como se as sensações fossem pequenas pulsações. Mas aos poucos, o corpo se dilata, explode em movimentos que aparentemente não possuem uma estética, mas que vão ganhando sentido e forma ao serem constantemente revisitados, e ao perceber e sentir essas relações e reconhecimentos de que, o que é do outro de alguma forma é nosso também e vice-versa. Somos uma identidade Brasil.

Nesse processo a memória do artista-pesquisador também é abarcado, o visto, o sentido, o revisitado ficam impregnados no corpo, como a fotografia que Bel perde de sua avó ao colocá-la junto ao corpo, por debaixo da roupa. Porém, na imaginação de Bel ela não perdeu a fotografia, ela se transformou numa tatuagem em seu corpo, Bel ficou marcada para sempre com o retrato de sua Bisa Bia. Assim o que é de sua bisa, personalidade, gestos, costumes agora fazem parte de Bel, ela mora dentro dela agora, pois “(...) ela ficou pintada na minha pele. Mas não dá para ninguém mais ver. Feito uma tatuagem transparente, ou invisível (...). Agora Bisa Bia está morando comigo de verdade. Bem lá dentro” (MACHADO, 1990, p. 20-21).

Nesse sentido, esse processo de criação-relação-reconhecimento busca experienciar o que Santos (2006) propõem em sua proposta de trabalho. Para a autora:

O ser humano brasileiro precisa trabalhar sua auto-estima, sua plenitude, além de modelos exteriores. Se ficarmos apenas no que existe, não haverá inovação; copiar modelos é negar a criação. A nossa busca com essa proposta de trabalho artístico educacional é encontrar um estilo original para expressar e falar do corpo, com enfoque no indivíduo. Isso só vai ser possível com a troca de fora para dentro e de dentro para fora. Descobrir pelo movimento corporal a si mesmo e ao outro sem dicotomia. Uma forma de pensar diversa daquela que historicamente se teve. (SANTOS, 1996, p.31)

Assim, busco deixar que essas lembranças, de memórias recentes e ausentes aflorem no processo criativo, acreditando ser esse um diferencial para o fazer artístico em dança, do artista-pesquisador que se reconhece no seu objeto de pesquisa. Que dança os processos cambiantes do de dentro e do de fora, que dança as “Todas as vidas” que existem dentro de nós, como no poema vida de Cora Coralina. Que dançam, despertam e lutam para que as memórias, as histórias contadas e encantadas permaneçam no presente e quiçá no futuro, aqui nos movimentos da dança.

(7)

O fazer ritual: o espaço de benzeção

Nas mãos dessas senhoras e senhores retentores da reza que propicia a cura, nas orações dessas pessoas que fizeram de suas práticas o alicerce de seu viver. Da fé que transmitida pelos seus gestos, mantidas em suas falas, observadas nas folhas de ramos que murcham ao se fazer presente esse ritual.

Mulheres e homens que se veem como possuidores de um dom, dado ao santo Deus lá de cima, não importa em qual religião ele se apegue, se dentro de alguma manifestação ou não. Foi dado esse dom, então é preciso ouvi-lo, recebê-lo e praticá-lo as pessoas que precisam de ajuda. Adentram assim, a um imaginário popular, a memória coletiva e suas representações simbólicas.

A prática do benzimento é um saber embebido na mistura dos conhecimentos dos povos em solo brasileiro, da mistura das crenças, das tradições e religiosidade indígena, africana e europeia. De uma tradição que vem sofrendo um hibridismo ante as diversas formas sincréticas em nosso território, tecendo releituras diversificadas em cada região do país sobre esse ritual da benzeção.

No limiar do século XXI a benzeção e o curandeirismo ainda são práticas religiosas populares, em plena vigência, mesmo que (re)significadas. [...] Ao penetrar no território das doenças religiosas e, por consequência da medicina rústica, desvela-se um mundo de magia, cujos códigos de linguagem e ritual simbólicos permitem o contato entre o material e o espiritual. Nele os dons de curar são astúcias que permitem as práticas culturais de grande parte de sujeitos sociais que, contra as próprias limitações que ocorram sua luta pela sobrevivência, recorrem a este lugar utópico, ao mesmo tempo palpável e real. (MACHADO apud SILVA, 2007, p. 138)

Praticadas principalmente por pessoas das classes populares, mas não únicas a elas, encontradas tanto no meio urbano quanto no rural. Suas crenças são advindas de um processo sociocultural e de herança que se mantem viva até hoje, imbricadas numa trama de relações e valores que adentra o universo da medicina popular, das religiões populares, aos fazeres rituais desse povo, propiciando a cura aos desconfortos físicos, emocionais e espirituais que acometem o doente.

Nos estudos de Brandão (1980) dentro das religiões populares o milagre é rotineiro, advindas da fé entre as divindades e os fiéis. O milagre é a retomada da ordem natural das coisas, que foi quebrada pela provação dos santos ou da invasão

(8)

das forças do mal. Torna-se assim, o milagre um acontecimento necessário, acessível, rotineiro e reordenador nas religiões populares.

Ganham força e sentido em meio a uma sociedade que de muito sofreu com o acesso médico, com a desigualdade social. Na procura dos alívios espirituais e físicos, se agarraram ao poder mítico dessas benzeções. De uma prática não-oficial que muitos a veem com maus olhos, de um confronto com a medicina científica, mas que geram um paradoxo ante os relatos de quase todas as benzedeiras e benzedores da pesquisa, quando os mesmos disseram que muitos médicos já indicaram aos seus pacientes as rezas dessas pessoas, quando a ciência não encontrava mais soluções para a enfermidade. E todas foram atendidas? “Com a graça de Deus e da fé da gente”1

Pois sem ela, a fé, não existiria cura. Sem a aliança entre aquele que benze e aquele que é benzido, não haveria o reconhecimento dessa prática. Lévi-Strauss (1989), antropólogo das populações marginais (tidas primitivas ante a civilidade europeia), relata que é necessário para o funcionamento simbólico um espaço triangular. Ou seja, para se obter a eficácia dos símbolos, deve-se existir as relações entre, no estudo particular que o antropólogo pesquisou, o reconhecimento do doente, do feiticeiro e da comunidade.

.

Se a comunidade não reconhece as práticas desse feiticeiro, o próprio não existiria, o autor chega até a discorrer em seu livro sobre os falsos feiticeiros, e que mesmo assim, dentro desse triangulo de relações e reconhecimentos passam a serem consideradas verdadeiras suas práticas de cura. Oliveira (1985) relata que o reconhecimento do dom pela benzedeira não basta, é necessário que a comunidade ao qual atua partilhe com ela esse momento singular. Sendo necessária a crença da população no dom dessas figuras.

Vejo essa relação com as atuações das benzedeiras e benzedores. Pois é preciso a confiança e fé nas rezas e práticas simbólicas dos mesmos, e o reconhecimento da comunidade para com esses benzedores. Sem esse reconhecimento não poderíamos vislumbrar essas figuras, presentes e atuantes da comunidade ao qual se inserem.

11

Conforme entrevista concedida por Dona Antônia, moradora da cidade de Parnamirim - RN em 28/04/2011.

(9)

Torna-se evidente nas falas de Seu Pedrinho, benzedor e rezador da comunidade do sítio de Vera Cruz – RN. Das várias idas a sua humilde casa, uma cabana feita por ele mesmo de barro, sustentada por algumas madeiras que insistem em vergar para o lado, com algumas placas de aço. Casinha em seu interior, de chão batido, de fogão feito por dois tijolinhos no chão, e aquela velha panela, toda pretinha, e um cheiro embriagante subindo pelo ar.

Em suas falas, Seu Pedrinho morador há apenas dois anos na região, se sentia muito discriminado pela população. Não havia o reconhecimento para com seus feitos e suas práticas. Para as pessoas o que Seu Pedrinho fazia era coisa de catimbozeiro, seus santos, santos de religião do “coisa ruim”. É perceptível o desgosto de Seu Pedrinho, das manhãs e tardes que passamos ouvindo suas histórias e seus ensinamentos, ele sempre se reportava a forma como as pessoas o tratavam, até chegou a achar, quando da nossa primeira visita que éramos da polícia, e que iriamos levar seus santinhos embora.

Falas carregadas de presença, falas carregadas de vivência, mulheres e homens que fizeram no decorrer de suas vidas o ofício de ajudar ao outro, sem pedir nada em troca, apenas a gratificação de ver suas orações serem socorridas. Essa rica e complexa trama social das práticas do benzimento se afirma nas discussões levantadas por Lévi-Strauss (1989). Tanto as benzeções quanto essas figuras não existiriam sem o reconhecimento da população.

Nesse sentido utilizo nesse artigo como metáfora metodológica, esse espaço triangular apresentado por Lévi-Strauss. Nesse estudo a necessidade, não só do tripé de reconhecimento entre benzedor, doente e comunidade, como já afirmado acima. Mas um outro espaço triangular que se dá na relação entre o artista-pesquisador que reconhece a prática da benzeção como alimentadora de sua arte, o reconhecimento assim do outro, do processo de alteridade.

Do reconhecimento do que é seu, ou seja, de suas histórias, de sua ancestralidade e origem, do seu corpo que dança essas investidas. E por ultimo, o reconhecimento de sua arte nesses espaços populares. Sem esse espaço triangular, de trocas do outro e de si não aconteceria a eficácia simbólica, aqui dessa arte que tem como impulso reconhecer as diversidades, cambiar com outros saberes, e dançar essas muitas vidas que guardamos dentro de nós.

(10)

Esse processo triangular se estende para as relações com a memória, fio condutor dos processos dessa pesquisa: a memória do campo pesquisado, a memória oral dessas benzedeiras e benzedores e a memória de vivências desse artista-pesquisador através da produção de seu inventário pessoal.

Dessa peleja entre encontro e reencontros entre as diversas partes, outrora diferente e oposta, prolifera uma arte ritual que vê nesses espaços da benzeção movimentos genuínos, singulares, reais e exponentes de um fazer cotidiano que extrapola temporalidades e espacialidades. No espaço cotidiano, o sagrado está presente. Através da memória oral dessas benzedeiras e benzedores de sua arte ancestral de curar o outro, ensinada pelos mais velhos, convivemos no presente com o passado que nos projeta para o futuro, ao pensar nos caminhos que a contemporaneidade vem nos impondo.

De todas essas ações, símbolos, ritos, corpo, memória vão sair minhas situações e criações em cena. Que busca um diferencial no trabalho em dança, ao dialogar minhas vivências e memória com esse espaço popular brasileiro. Do mesmo modo que tais culturas não dissociam corpo e alma, racional e emocional, aqui os processos internos de criação trafegam por esses mares.

Espaço que podemos falar e dançar as muitas vidas dentro de nós, acolá, ancestral, particular, de todos. Ao buscar uma organicidade do movimento das imagens vistas, sentidas e vividas. Dessa proliferação de formas o intuito não é discutir valores sincréticos, representações sociais, mas absorver os gestos, os ritos, as falas, os objetos para a cena. Coando as partes, transpassando para os meus processos técnicos e poéticos. Na procura de uma estética orgânica, não a reprodução do visto, mas transcendê-lo ao buscar o meu corpo nessa investida.

A escolha das benzedeiras como fonte de inspiração, é decorrente das minhas próprias memórias e que as vejo como pedaços de vida no contexto popular rico em possibilidades de criação. Torna-se um manancial de repertório para o artista em suas criações, pois acredito que o trabalho poético e simbólico nesse espaço constitui território de formação cultural e social, geradora de uma reafirmação de valores e identidade brasileira através da linguagem em dança.

(11)

Considerações: da terra se tira o caldo

Reconhecer e transmitir artisticamente a necessidade da compreensão desses terrenos, das transformações ocorridas em seus paradigmas, ajuda a entender todo um ideal comunicativo desses polos com o mundo. Da arte que se faz necessária para o intérprete se comunicar artisticamente, cultivando seu fazer e levando-o a refletir sobre suas inquietações, tanto de corpo como de cultura artística no complexo sistema social. Uma criação em dança no terreno da pluralidade sociocultural brasileira ao dançar essas muitas vidas que guardamos dentro de nós, fundamentais para a experiência do artista-pesquisador, através de suas atuações tanto cênicas, de pesquisa e ação cultural nas questões da sociedade, para que não aconteça uma segregação cultural.

Do trabalho da composição artística alimentada pelo estudo e vivência nas tradições de nossas manifestações culturais e memória, acredito assim, que o público possa se identificar de alguma forma com o trabalho. De uma balança contrária de sentidos encontramos um denominador comum, anulando qualquer aparente contradição ao sentir os opostos, mas que quando percorrido pelas lembranças e memória elas já não são tão diferentes assim.

Despertando emoções, instigando a recordações e vivências, e que dessa mediação e provocação dos sentidos através da dança, possamos promover na população experiência estética. Na intenção, se não de uma educação, ao menos a reflexão do indivíduo brasileiro cheio de particularidades, história e memória.

Um trabalho no terreno das manifestações tradicionais, mas que transpassada para o fazer artístico alia ao que somos hoje. O artista assumindo um papel fundamental na formação de pensamentos nesse terreno como de criações na área artística. Coloco aqui o pedido de Cora Coralina na parte que dedica ao leitor:

Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a raso. É o que procuro fazer, para a geração nova, sempre atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições, sociologia e folclore de nossa terra. Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida. (CORALINA, 1985, p.39)

Sim, Coralina, mesmo que meus tempos passem distantes de muitas estórias despertadas em seu livro, pedacinhos foram vividos, mesmo que fugazes cheiros e poeiras tenham ficado. Eles são despertadores para outras vivências. Sim, Cora Coralina, dançaremos essas histórias de todos.

(12)

Por isso, a busca de um processo artístico no terreno da cultura popular, como fator diferencial no reconhecimento para o artista-pesquisador como campo possível de atuação e reflexão em sua produção artística. Dessa forma, o processo proporciona outros artistas a enveredarem por essas trilhas, ao seguir seus próprios caminhos semelhantes, no mergulho de suas memórias e pesquisas de campo em outros espaços, mas que se enlaçam, se entrecruza e se encontram num mesmo rizoma. Que do movimento poético proliferem situações sensíveis, estéticas no todo, que passem a olhar essa cultura do povo como, mais do que pertencente a nossa sociedade, possuidora de saberes próprio.

Nesse artigo, que percorreu o universo da benzeção nos mostra que tais práticas de benzimento são atos de fé, e o meu papel de artista-pesquisadora nesses espaços é absorver força dramática, valores, rito e sua reinterpretação estética no fazer artístico no âmbito da criação cênica em dança. Os valores sincréticos nesse momento, apesar de apropriados e re-significados ganham uma nova tonalidade e textura no meu entendimento artístico contemporâneo. Meu papel como artista-pesquisadora e propulsora de olhares diversos sobre inspirações diversas que toma meus processos de criação. Questionar sobre nossa identidade, sobre nossos fazeres e atuações, sobre nossos meios de comunicação e nossos “caixas-sistemas” que nos rotulam. Aqui através da imersão no campo popular, de memórias esquecidas e marginalizadas.

Artista-pesquisadora do mundo contemporâneo, esse onde cada vez mais as redes de comunicação estão “mais midiáticas, via satélite e menos pulsação cardíaca, corpo físico. Essa transmutação da comunicação faz-nos interrogarmos sobre nossos viveres na contemporaneidade, não estática, questionando a nossa atualidade” (ÁVILA, 2007, p.17).

Sabemos que há uma grande diversidade cultural em nosso país, porém são poucos os que conhecem as histórias dessas “Todas as vidas”. Faz-se necessária uma produção crítica e reflexiva dessa parcela da população participante na formação da sociedade brasileira, transmissora de valores e cultura. Aqui, nos colocamos como artistas andarilhos nessas estradas de chão de terra, através da construção poética e possível em dança. Dançaremos assim, as riquezas pluriculturais em nossa sociedade.

(13)

Referências

ÁVILA, C. Itinerâncias e inter-heranças: do Ritual do Congado da Zona da Mata

Mineira, ao processo de criação da performance em dança contemporânea.

Campinas: UNICAMP, 2007. Dissertação (Mestrado em Artes), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2007.

BRANDÃO, C. R. Os Deuses do Povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo: Brasiliense, 1980.

CORALINA, C. Todas as vidas. In: Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora, 1985.

FERNANDES, C. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetições e transformações. São Paulo: Anna Blume, 2004.

LAPLATINE, F. Aprender Antropologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. LÉVI – STRAUSS, C. Antropologia estrutural. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. MACHADO, A. M. Bisa Bia, Bisa Bel. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990. OLIVEIRA, E. R. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985.

PENNA, M. Ensino de arte: um momento de transição. Revista Proposições, Campinas, vol.10, n. 03, 1999.

SANTOS, I. F. Corpo e Ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança-arte-educação. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

SILVA, G. S. Um cotidiano partilhado: entre práticas e representações de Raizeiros e Benzedeiros (Remanescentes de Quilombo de Santana da Caatinga- MG). Brasília: UNB, 2007. Dissertação (Metrado em História). Universidade de Brasília, 2007.

SIMPSON VON, O. Os desafios contemporâneos da história oral. Campinas: CMU/UNICAMP, 1997.

Referências

Documentos relacionados

“reviver acontecimentos marcantes”, nem sequer recebeu menção oficial durante o ano do.. centenário da cidade. Nesse sentido, o tema a que nos propomos examinar torna-se relevante

E é assim que, conscientemente ou não, cada um concorre para o resgate da Memória, porque o Homem é um ser eminentemente social que necessita de comunicar.. Fá-lo-á de mil

Ele era um homem bonito (sorri) e isso influi. Ele era bonito e enérgico”. Entretanto, a “sua inteligência era medíocre”. Ao ressaltar esses aspectos desabonadores do

RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar a importância da memória para a existência do ecossistema linguístico, que pode também ser olhado como comunidade (de língua

A obra Memórias da Adesão à Mesa das Negociações, organizada por João Rosa Lã e Alice Cunha, com edição da Book Builders, vem colmatar esta lacuna na literatura

(BEN ZVI, 2019, p.7. Pormenorizar essa questão significa avaliar as construções de memória em seus próprios termos, identificando na documentação diferentes mecanismos de gestão da

O seu pensamento torna-o um dos mais importantes renovadores do marxismo na América Latina, talvez o mais importante depois de José Carlos Mariátegui?. Por Michael

Desse modo, longe de se tratar de uma memória arquivo, temos em Psicanálise uma memória- duração, que persiste e insiste continuamente, nunca é a mesma (cf. Trata-se