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DUALISMO E TRIADISMO NAS TERRAS BAIXAS: OS JÊ SETENTRIONAIS SOUZA, MARCELA COELHO DE. 97ST0725

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DUALISMO E TRIADISMO NAS TERRAS BAIXAS: OS JÊ SETENTRIONAIS SOUZA, MARCELA COELHO DE.

97ST0725

I. Introdução1-Amazônia e Brasil Central diante das teorias clássicas(1)Os materiais sul-americanos desempenharam um papel subordinado na elaboração das teorias clássicas da descendência e da aliança, mas não é difícil ver como, sobre uma base etnográfica e teórica renovada, tal posição relativamente marginal possa se converter num ponto de vista crítico potencialmente privilegiado. Esta vocação crítica se manifesta desde o início da fase moderna de reflexão sobre o parentesco ameríndio, nos anos 60-70, em suas duas frentes principais, o Projeto Harvard/Brasil Central (HCBP) e os estudos guianeses. A relação com as "teorias clássicas" será em ambos os casos fundamentalmente negativa: tratava-se antes de tudo de marcar a

inadequação dos conceitos tradicionais e de fazer valer, contra estes, as especificidades de uma realidade etnográfica até então desconhecida. Todavia, os resultados obtidos numa e noutra frente não foram os

mesmos. As razões para esta diferença, para além das inclinações teóricas dos pesquisadores, estão na posição oposta dos sistemas amazônicos e centro-brasileiros diante das teorias gerais. A ausência de grupos de descedência unilinear e a consequente inaplicabilidade dos "modelos africanos" (ou "australianos") que é por onde começa a crítica americanista do instrumental conceitual tradicional se verificava nos dois casos, mas de modo distinto. Entre os Jê, inicialmente descritos por Nimuendajú & Lowie como exibindo elaborados "sistemas de descendência", descobre-se em verdade uma pletora de grupos institucionalizados todavia apenas frouxamente articulados ao regime matrimonial, independentes de princípios de continuidade genealógica, e de função essencialmente cerimonial. De outro lado, nas sociedades amazônicas, constatava-se um

esvaimento dos próprios grupos ("fluidos", fundados em princípios "flexíveis", etc) em prol do

"minimalismo" de uma sociedade fundada no fluxo das relações interindividuais, ou dos princípios simbólicos de construção do tempo, do espaço e da pessoa.

Não obstante, as terminologias amazônicas exibiam padrões de "duas seções" nitidamente evocativos da aliança simétrica e o casamento de primos aparecia em muitas destas sociedades, enquanto os grupos jê-bororo exibiam pelo contrário sistemas de parentesco especialmente enigmáticos do ponto de vista da teoria aliancista e sobretudo de seus desdobramentos "prescritivistas". Assim, enquanto a Amazônia parecia exigir apenas uma extensão da teoria das estruturas elementares de modo a incorporar sistemas capazes de operar em sociedades "sem descendência", a situação centro-brasileira sociedades "sem aliança"? exigiria, mais radicalmente, uma reformulação capaz de conferir um conteúdo positivo determinado à noção de

(semi)complexidade. Se no primeiro caso os americanistas puderam seguir as trilhas abertas por Dumont e pelo debate sobre os sistemas dravidianos da Índia do Sul já na década de 50, no caso centro-brasileiro será apenas nos anos 80, com o avanço na compreensão das estruturas ditas "semi-complexas", que novas perspectivas de análise efetivamente se abrirão para estes sistemas e para a superação, assim, do acentuado desequilíbrio na compreensão das paisagens típicas da Amazônia e do Brasil Central, permitindo assim avançar no projeto de comparação global dos regimes sócio-cosmológicos sul-americanos.

2. O HCBP diante do paradoxo centro brasileiro

A questão crucial posta pela revisão etnográfica do material de Nimuendajú pode ser formulada nos termos clássicos da relação entre troca simétrica e organização dualista. O paradoxo de sua distribuição

complementar nas terras baixas(2) será abordado pelos participantes do projeto da mesma perspectiva crítica que orienta sua recusa da noção de descendência: a exogamia, mesmo quando presente, seria um aspecto secundário dos sistemas de metades, o dualismo jê independente de qualquer substrato matrimonial(3). As análises centram-se, alternativamente, naquilo que, expresso no princípio da residência uxorilocal, haveria em comum entre todos estes sistemas: a oposição entre a esfera cerimonial masculina e a esfera doméstica feminina, manifesta no plano da aldeia no contraste entre centro e periferia. Para Maybury-Lewis, seria o agenciamente diferencial destas oposições o fator gerador das diferenças entre os arranjos institucionais dos vários grupos (1979: 234-237). Trata-se de acentuar a dependência do parentesco para com as teorias

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indígenas da pessoa e da sociedade, da natureza e da cultura, e de suas mútuas relações, numa perspectivamente claramente inspirada na crítica schneideriana.

Um corolário deste ponto de vista foi, como veremos, a abordagem das terminologias a partir de sua conexão às relações onomásticas e cerimoniais. De modo geral, essa "dissolução culturalista" do objeto produziu resultados importantes, e a recusa de tomar o parentesco como domínio totalizador a priori continua informando a retomada de interesse sobre o tema. Não obstante, deixou várias questões sem resposta(4): a motivação dos traços Crow/Omaha das terminologias, e a indeterminação dos regimes matrimoniais e do lugar da afinidade, por exemplo. Mais amplamente, a o esvaziamento destas questões no quadro de uma abordagem do dualismo como fenômeno ideológico acabou por dificultar a emergência de uma reflexão propriamente sociológica, acarretando um certo isolamento das sociedades em questão na paisagem sul-americana.

Há uma óbvia exceção a esta generalização entre os participantes do projeto. O esforço de Turner pode ser visto, em grande parte, como uma tentativa de enfrentar diretamente o problema da relação entre

representação e estrutura social. Toda sua interpretação da sociedade kayapó gira em torno da articulação entre as unidades segmentares básicas de produção social constituídas pelo grupo doméstico e familiar e as instituições comunais que simultaneamente reproduzem e generalizam a estrutura de relações que é a encarnação daquele processo, assim replicada nos níveis sucessivos da pessoa, do grupo doméstico e da comunidade. Trata-se provavelmente da única tentativa sistemática de ligar as variações entre as diferentes formas de dualismo cerimonial dos jê a processos e estruturas situados no domínio doméstico em que prevalescem os laços de parentesco e afinidade. O modelo é extremamente sugestivo, mas suscita algumas reservas. Primeiro, a "causalidade circular" (Turner 1979: 180) que pretende descrever nem sempre consegue suprimir a impressão de que o nível global das instituições comunais está de certa forma "a serviço" da reprodução da relação de dominância entre genro e sogros fundada no controle que estes últimos mantêm sobre suas filhas, relação que é a "raison d'être" da uxorilocalidade (1984:341-4). Segundo, este viés teórico parece refletir-se numa redução das unidades segmentares da "periferia" à família extensa constituída em torno desta relação que ignora implacavelmente aspectos da ordem doméstica, kayapó inclusive,

unanimemente atestados por outros etnógrafos; refiro-me ao estatuto dos "segmentos residenciais", cuja unidade parece claramente transcender os limites da família extensa encabeçada pelo casal mais velho e fundar-se em outras relações que o controle residual que estes possam exercer sobre suas filhas. Terceiro, a universalidade do princípio uxorilocal nos Jê parece-me obrigar o autor, empenhado em encontrar no plano doméstico as diferenças responsáveis pela diversidade cerimonial, a forçar certos contrastes; seja como for, capacidade deste modelo de efetivamente articular as variações jê e, para além delas, o continuum Brasil-Central/Amazônia, está ainda por ser testada, tendo o próprioTurner se limitado a tentantivas muito modestas neste sentido.

A sofisticação da etnologia do parentesco nas terras baixas não deixou de incidir sobre o estudo de grupos centro-brasileiros, e esforços começam a ser feitos para suprir lacunas analíticas e etnográficas

inevitavelmente legadas pelo enfoque anterior Passo a enumerar as questões principais que me parecem em aberto, numa tentativa de determinação do estado atual do problema, antes de examinar as pontes que o debate tem permitido lançar entre Amazônia e Brasil Central.

II. Classificação Social: relações

Os cognatos

Todos Jê setentrionais dispõe de conjuntos terminológicos distintos para as relações de cognação e de afinidade. O repertório de termos básicos para os cognatos é notavelmente homogêneo, aplicando-se fundamentalmente às mesmas posições genealógicas, com exceção dos primos cruzados (e seus

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aspectos invariantes podem ser descritos a partir de um princípio de "fusão bifurcada" que identifica nas gerações adjacentes paralelos e lineares (MZ=M, FB=F, mBC=C, wZC=C); os cruzados, por sua vez, serão assimilados aos parentes em G±2 (FF=MF=MB; MM=FM=FZ; mZC=wBC=CC)(5), uma configuração tipologicamente problemática que combinaria equações Crow e Omaha simultaneamente. Em GØ, termos distintos segundo o sexo se aplicam aos germanos e primos paralelos.

Esta configuração foi pensada pelos pesquisadores do HCBP em termos da oposição entre relações de substância e nominação, enquanto manifestações do dualismo natureza/cultura que permearia os esquemas sócio-cosmológicos de todas estas sociedades. Melatti (1970; 1973; 1976; 1979) descreve assim a

terminologia krahó em termos da oposição entre relações, efetivas ou potenciais, de procriação e de

nominação, numa análise que se prolonga na interpretação da pessoa como dividida entre duas componentes: o organismo, transmitido entre parentes do primeiro grupo, e o nome, transmitido entre parentes do segundo. Este dualismo nominadores/genitores assume uma feição mais concêntrica em outras formulações. Da Matta supõe que os laços "de substância", manifestos entre familiares imediatos na observância mútua de restrições alimentares por parto ou doença, fundem a identificação dos parentes paralelos ao núcleo familiar na medida em que também a linguagem da consubstancialidade reconheceria uma equivalência entre a troca de sexo e a troca de geração), uma e outra implicando um enfraquecimento da identidade consubstancial (1976: 183-5). Da mesma forma, W. Crocker (1991:236) pensará o problema em termos do encadeamento de laços de sangue, fraseando a distinção como uma oposição entre "biological one-linkers" os membros da família nuclear, que observam restrições uns pelos outros e "further-linkers". No entanto esta divisão, ao ignorar a fusão dos paralelos aos primeiros, não corresponde exatamente à terminologia.

Turner (1966, 1979, 1984) opõe relações intra-familiares e relações "marginais" (ou "alternate", ou "cross-family"), no contexto de seu esforço em pensar as categorias de parentesco em termos das transformações destas relações no curso de desenvolvimento do grupo doméstico. Como o foco da análise (1966: 409-10) não é a terminologia, mas "categorias estruturais" constituídas neste processo, a identidade que esta estabelece entre os paralelos e os familiares não o preocupa, embora ponha problemas para sua pretensão de que o paradigma resultante possa constituir também um paradigma das categorias terminológicas(6). A ordenação concêntrica do campo dos parentes a partir do núcleo familiar ou de substância foi recentemente criticada por Fisher (1991:363-4), que estabelece uma diferença pertinente de nível entre as relações imediatas de filiação e casamento e o parentesco propriamente dito, constituídos como um sistema de transações positivas

(cerimoniais, econômicas, e, eu acrescentaria, matrimoniais) baseadas no reconhecimento do relacionamento. Passemos aos aspectos variantes, isto é, à classificação dos primos cruzados e seus descendentes. Esta obedece a um padrão predominantemente "crow" para a maioria dos Timbira orientais, "omaha" para os Kayapó e Suyá, e oscila entre um e outro entre os Apinayé e Krinkati. Duas ordens de explicação foram aventadas para esta variação: a primeira, levantada por Turner, sugere uma correlação entre o padrão omaha kayapó e sua ênfase sobre a integração de um homem à sua casa conjugal (com a concomitante valorização das relações intra-familiares e da paternidade), por um lado, e o padrão crow e a ênfase Timbira sobre a continuidade dos laços de um homem com sua casa natal (com a valorização da relação avuncular). Explicitada apenas na tese de 1966, a hipótese não é retomada pelo autor em escritos posteriores, mas a associação que propõe entre a ênfase kayapó sobre a paternidade e o viés omaha de sua terminologia reaparecerá na versão de Da Matta da hipótese onomástica.

Esta segunda ordem de hipóteses remete à explicação sucessionista lounsburiana, que vê a transmissão de estatutos terminológicos como eventualmente motivada por regras de transmissão de diferentes estatutos sociológicos, no caso jê, onomásticos(7). O sistema de nominação entre os todos os grupos setentrionais caracteriza-se por uma regra de transmissão cruzada: os nomes passam de "tio/avô" para seu "sobrinho", e da "tia/avó" para sua "sobrinha". Formalmente, isto produz possibilidades de classificação "crow" do ponto de vista masculino (isto é, tomando-se como referência os nomes masculinos(8)), e "omaha" do ponto de vista feminino(9). Estas possibilidades são diferentemente exploradas por cada uma destas sociedades, e pela mesma sociedade em diferentes contextos. Algumas hipóteses foram contempladas para ordenar esta variação. Da Matta (1979: 125-126) e Maybury-Lewis (1979:239-40) explicam a prevalência das equações "crow" entre os Timbira orientais pela importância cerimonial das relações entre "tio materno" e "sobrinho", atribuindo por outro lado à predominância da patrifiliação cerimonial Kayapó (todavia sem consequências onomásticas) sobre a relação avuncular a feição "omaha" de sua terminologia, e à simetria (em termos da

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importância cerimonial) entre MB e "F adotivo" entre os Apinajé a oscilação estrutural que estes

manifestariam entre uma classificação e outra. A mesma oscilação entre os Krinkati se deveria à precedência das relações de nominação que Lave imagina ser aqui maior que entre os demais Timbira devido à

deterioração do sistema de classes de idade (Lave 1979; Maybury-Lewis 1979:239).

Os Suyá contudo oferecem um contra-exemplo decisivo, com sua combinação de terminologia omaha e ênfase sobre a onomástica (Seeger 1981). Além disso, fundando-se uma associação tradicional mas questionável entre padrão omaha e patrilinearidade, padrão crow e matrilinearidade, a hipótese tem o inconveniente de derivar as diferentes soluções classificatórias de razões heterogêneas. Lea (1986:183-6) sugere uma interpretação mais econômica, remetendo a solução omaha kayapó à prevalência da perspectiva de ego feminino, e portanto da identidade onomástica FZ=BD, viés que ela atribui à diferença entre os regimes de circulação de nomes masculinos e femininos.

Há inúmeras evidências de que tanto a combinação "anômala" de traços crow/omaha quanto a oscilação entre um e outro padrão na classificação dos primos se liguem efetivamente à regra onomástica e às diferentes possibilidades abertas por esta, ainda que os princípios responsáveis pelas soluções preferidas em cada caso continuem por ser mais precisamente determinados. A nominação e a terminologia exibem evidentemente uma mesma lógica: uma relação de germanidade cruzada vale uma relação de filiação cruzada; nas palavras de Da Matta, a passagem de sexo equivale à passagem de geração. Mas ainda que remeter a terminologia jê à nominação possa ser uma boa maneira de dissolver anomalias e ordenar racionalmente as variações, tem a desvantagem de isolar estes sistemas classificatórios na paisagem sul-americana, onde há exemplos de equações e oscilações comparáveis, desacompanhadas porém da transmissão onomástica cruzada típica dos Jê. A mesma objeção se aplica à tendência de remeter configurações terminológicas a ideologias de substância. Isto me parece apontar para além da necessidade de separar, como advogam os semanticistas, a transmissão de estatutos terminológicos e estatutos sociológicos, e para algo mais que os limites das tipologias tradicionais e artificialidade das fronteiras entre os tipos, enfatizados por seus críticos. Entre a identificação tautológica da lógica estrutural das terminologias à lógica das regras de equivalência típicas de cada sistema e o particularismo da crítica culturalista que identifica aquela lógica à forma de suas realizações particulares, deve haver lugar para um modelo que, situado noutro nível, seja capaz de especificar estas últimas como variantes intrínsecas a um mesmo sistema de transformações.

Os afins

Conjuntos de termos específicos para os afins foram registrados por todos os jê-ólogos, sem que muito se extraísse destas classificações. Melatti (1979:70) procura ordená-las em termos da direção do fluxo das prestações matrimoniais, encontrando uma contradição entre este fluxo, que supõe orientado sempre dos parentes do marido aos parentes da esposa, e a partição das categorias (WB e HZ, designados por um mesmo termo, seriam respectivamente receptores e fornecedores destas prestações). W. Crocker (1991) estabelece uma distinção, "in-house/out-of-house", que separa os indivíduos nascidos (ou incorporados pelo casamento na geração anterior) na família extensa do cônjuge e os afins que se casam na família de um indivíduo. Esta distinção manifesta-se terminologicamente no fato de que todos aqueles do segundo grupo podem se referir a seus afins "in-house" com termos que contém o morfema pree; o fluxo de prestações matrimoniais vai dos afins "out-of-house" para os "in-house", e os afins pree seriam assim sempre os beneficiários. Isto dissolve a contradição apontada por Melatti; como Ladeira (1982:79) já observara, tal contradição emerge não das práticas timbira mas da suposição de Melatti de que as prestações matrimoniais invertem o fluxo de circulação das mulheres.

O fraseamento em termos residenciais pode no entanto causar confusão, na medida em que esta partição categorial é simétrica para ego masculino e feminino, e portanto independente da situação residencial de um ou outro diante dos respectivos afins, que difere em função da regra uxorilocal. Um outro modo de

caracterizá-la é em termos da oposição entre doadores e receptores de cônjuges (de ambos os sexos), indicando uma perspectiva simétrica sobre a circulação matrimonial (Ladeira 1982:82). Vale observar que

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esta partição aparece mais nitidamente na classificação dos afins de mesmo sexo, onde pode ser claramente reencontrada nos casos kayapó, suyá e apinayé. É na classificação dos afins de sexo oposto, e entre estes os de mesma geração, que se concentram as variações. Enquanto os Timbira e Suyá fazem dos cunhados de mesmo sexo esposos classificatórios, entre os Kayapó e Apinayé as mulheres chamaram seus HB/ZH por termos usados por ego masculino para os afins "out-house", enquanto os homens aplicarão a suas WZ/BW formas associadas às que designam a WM, nesta medida termos da série "in-house" uma assimetria que talvez possa ser remetida às diferentes situações residenciais geradas pela regra uxorilocal: a classificação do cunhado co-residente (ZH para a mulher, WZ para o homem), que obedece ao critério doador/receptor de cônjuge, prevalesce e comanda a classificação do cunhado não-coresidente, a ele terminologicamente identificado. A diferença mais óbvia entre as estrutursa das terminologias em questão está nesta identificação dos cunhados cruzados como esposos, ausente nos Kayapó e Apinayé, o que pode provavelmente ser correlacionado a diferentes atitudes diante de práticas como a troca de irmãs ou o casamento repetido entre duas fratrias. Mas, segundo Crocker, também entre os Ramkokamekra esposos classificatórios podem ser equacionados aos afins das gerações adjacentes, com os quais mantém-se relações de evitação. De modo geral, portanto, os afins de sexo oposto se distribuiriam assim entre aqueles a quem sempre se evita (os próximos de geração adjacente) e os demais, que podem alternativamente ser assimilados a estes ou tratados como esposos. Há também evitação entre afins de mesmo sexo, mas neste caso parece estar mais em jogo a subordinação do jovem marido em situação uxorilocal.

Séries alternativas

Termos referenciais e vocativos para consanguíneos e afins são apresentadas pelos diversos autores, sendo em muitos casos coincidentes. Estas terminologias exibem também séries alternativas de formas de referência indireta e tecnonímicas, que como as anteriores correspondem a diferentes possibilidades de mapeamento das posições respectivas de ego (aquele a partir do qual se traça a relação de parentesco) e alter (o referente do termo) em relação aos participantes do ato de fala(10). Ainda que compartilhando frequentemente o mesmo repertório de morfemas básicos, estas possibilidades constituem diferentes séries acionadas segundo o contexto e a intenção do falante.

De particular interesse são os termos chamados por Lea de "triádicos" (1986:260), cuja aplicação leva em conta tanto o relacionamento entre o falante e o referente quanto aquele entre este último e o ouvinte. Apresentados por outros (Vidal 1977; Turner 1966; Seeger 1981) como termos de "referência indireta", foram em geral vistos como associados à evitação entre afins. Lea, que fornece a lista mais completa, contesta esta interpretação, chamando atenção para o fato de que muitos deles não se referem a relações de afinidade. Com efeito, dos 24 termos apresentados 13 se referem a afins do falante; 4 a afins do ouvinte; e 7 a consanguíneos de geração inferior de ambos. Além de serem usados nos contextos interpessoais especificados para cada termo, estas formas são as preferidas em situações formais e discursos públicos. Mas algumas circunstâncias podem exigir a mobilização de ainda outras séries específicas de termos: assim, o choro cerimonial e o canto do chefe entre os Kayapó, e a condição existencial do referente, no caso dos termos para os mortos entre os Krahó e Ramkokamekra.

O não-parentesco

Estas diversas terminologias "de parentesco" não esgotam, no entanto, o repertório jê de sistemas de classificação das relações interpessoais, que inclui também termos que designam especificamente relações onomásticas e laços cerimoniais. A identidade onomástica(11), como se viu, pode ser vista como um princípio interno ao parentesco que inflete a terminologia de modo "prescritivo", a partir da determinação categorial dos

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nominadores e nominados(12) potenciais, independentemente das relações efetivas de nominação. Mas pode também operar a partir destas últimas, através de uma terminologia específica que sobredetermina a

classificação de parentesco (que é como Lave analisa o caso Krinkati). São comuns termos que designam os nominadores e nominados(13), mas há também formas para designar o pai e a mãe deste último(14)

(registradas em geral entre os Timbira, onde são usadas entre irmãos e parecem associadas à preferência pela troca de nomes entre estes parentes, sejam eles próximo-reais ou distante-classificatórios); os Krinkati desenvolveram, além disso, termos específicos para os receptores de nomes da mãe e do pai de ego.

As relações cerimoniais também têm precedência sobre as relações de parentesco. A mais importante delas é certamente a amizade formal, que envolve pessoas de ambos os sexos e em todos os casos combina conteúdos de solidariedade, mediação ritual, e respeito ou evitação desdobrando-se ainda nas relações jocosas que vigoram entre ego e os parentes ou cônjuges do amigo formal. As formas de transmissão variam entre a patrifiliação (real entre Suyá e Kayapó, "adotiva" e classificatória nos Apinayé) e a nominação (no caso Timbira, onde pares de nomes estão previamente ligados pela amizade formal); mas novos vínculos podem ser estabelecidos ritualmente. Há outros tipos de laço cerimonial cuja análise deve ser feita em paralelo: o companheiro, notadamente, que contrasta com o amigo em termos da intimidade, liberdade e jocosidade implicados pelo relacionamento. Mas também os pais adotivos apinayé (arranjadores de nomes e

transmissores de amigos formais), os tutores/pais adotivos kayapó (através dos quais se recrutam os jovens para as metades/casa dos homens), têm um lugar nesta série de figuras que, definidas em geral em oposição ao parentesco, reúnem atributos das relações de consanguinidade e de afinidade, numa relação complexa com estas categorias.

Proximidade e distância

A definição da extensão do campo dos parentes é uma questão eminentemente contextual. O regime de aplicação dos termos gerais para "cognatos" assemelha-se ao que se encontra na Amazônia: a mesma palavra pode ser usada para designar todos os membros da comunidade, ou mesmo os "humanos" de modo geral, assim como para distinguir os parentes próximos do restante da comunidade. Reencontra-se aqui igualmente marcadores de proximidade e distância que se aplicam tanto aos termos gerais quanto à categorias específicas de relação incluindo-se aqui as de afinidade. Proximidade e distância aparecem como condicionadas

genealogica e sobretudo residencialmente, mas também pela lateralidade(15).

A maioria dos autores enfatiza, entretanto, o aspecto "manipulável" da distinção próximo/distante, para além do círculo imediato dos familiares co-residentes. Parentes ou afins próximos são aqueles que se comportam como tais, partilhando alimentos, trocando nomes, obedecendo a regras evitativas no caso dos afins, enfim, conformando-se de modo geral às expectativas normativas que definem o relacionamento em questão. O parentesco distante constitui-se, em oposição, como um campo relativamente indeterminado de

potencialidades, a partir do qual se constroem novas relações "próximas" de parentesco, afinidade ou cerimoniais, seja pela atualização destas potencialidades, seja frequentemente pela reclassificação de certos indivíduos através afirmação terminológica e comportamental de um outro tipo de relação.

Esta dinâmica é importante não apenas pelo que atesta da "flexibilidade" do sistema diante dos interesses e estratégias individuais, mas pelo papel chave que pode desempenhar na economia geral das transações onomásticas e matrimoniais. A semelhança, deste ponto de vista, entre os regimes centro-brasileiros e os amazônicos, sugere que se esteja em ambos os contextos diante de fenômenos da mesma ordem.

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Entre os Jê do Norte, "casa-se do outro lado" (Ladeira 1982:15-6; Lea 1985). Quer dizer, casa-se com "não-parentes". A analogia espacial refere-se antes de mais nada à exogamia de segmento residencial: sendo as relações entre estes conceituadas como mediadas pela praça, os outros segmentos estão sempre "do outro lado". A terminologia de parentesco, assim como as partições globais da sociedade representadas pelas metades, nada teriam a dizer sobre o regime de aliança, determinado apenas negativamente pela exogamia de parentela e residencial.

O campo dos cognatos coincidiria assim plenamente com a esfera da consanguinidade (entendida como negação da afinidade), ao contrário do que ocorre na Amazônia "dravidiana", onde consanguinidade e afinidade são categorias complementares que dividem internamente este campo. Ao invés da bipartição dravidiana, temos então uma divisão tripartite: de um lado os consanguíneos (lineares e paralelos), de outro os afins, e no meio os cruzados ("nominadores"). Devemos considerar estes últimos, a partir da interdição de casamento/afinidade que pesa sobre eles, "consanguíneos"? Num certo sentido este, precisamente sim. Mas há indícios de que as coisas sejam mais complicadas. Para começar, certas coincidências terminológicas entre posições cruzadas e afins que chamaram a atenção de mais de um pesquisadores(16). Depois, há o caso dos Suyá, com sua preferência pelo casamento com a prima cruzada matrilateral (uma 'M') e a identificação genealógica, embora não terminológica, entre WF e MB. Os Xikrin (Fisher 1991:ref), por sua vez, fazem em certas circunstâncias do sogro um nominador (o que, aliás, corresponde à regra Panara [:id]). Estes fatos poderiam ser interpretados como reforçando a hipótese de uma derivação da situação jê a partir de um sistema original de casamento matrilateral: a aproximação entre estes tipos de sistemas no plano terminológico fora já feita por Scheffler & Lounsbury (1971) em sua interpretação do parentesco sirionó a partir de uma regra de transmissão paralela somada a uma equação MBD=W, sugerindo uma continuidade que atraiu a atenção de Crocker (1984:81-2) e, mais recentemente, de Hornborg (1986). Mas a maioria das coincidências apontadas pode ser associada a qualquer uma das três fórmulas de casamento de primos, e os próprios Suyá têm como um ideal matrimonial a troca de irmãs, de forma que embora a FZD seja proibida, constatam-se na prática vários casamentos bilaterais, sobretudo distantes.

Além disto, interpretar estas equações como vestígios culturais (Crocker 1984:81-2; Hornborg, 1986:40-41) tem a desvantagem metodológica de abrir espaço para a dispensa fácil daquilo que não se encaixa no modelo como concernente a estados temporais distintos de uma evolução sobre a qual é-se mais ou menos livre para especular. Mas não se trata aqui de recusar por princípio explicações "históricas". A posição instável e ambígua dos cruzados jê não é um privilégio seu, nem internamente ela pode ser aproximada da de outras figuras como o amigo formal por exemplo nem externamente pense-se nos cruzados alto-xinguanos, que quando distantes constituem afins preferenciais, mas que se próximos são assimilados terminológica e matrimonialmente a consanguíneos. De modos diferentes, ambas as analogias remetem à complexidade da expressão da afinidade nas terras baixas, e ao regime de aliança que a condiciona.

Esforços pioneiros foram feitos no sentido de recuperar o valor da aliança entre os Jê (Ladeira 1982; Lea 1995), mas cuja inconclusividade reflete a ausência de estudos detalhados sobre as práticas matrimoniais e as redes concretas que articulam. Não são, por isto, menos sugestivos. Analisando a classificação dos primos entre os Timbira em termos das diferentes possibilidades geradas pela transmissão onomástica, Ladeira (1982:107-8) observa que, dentre todos, apenas "FZD"/"MBS" (reais e classificatórios) não podem trocar nomes, diretamente ou através de seus filhos. Resta-lhes o casamento: "quando não se pode trocar nome deve-se trocar corpo" e ela deve-segue aqui o rastro da complementaridade sugerida por Melatti (1979:78) para propor um modelo baseado na articulação entre o casamento de tipo patrilateral e o intercâmbio onomástico preferencial entre "irmãos" distantes. Lea (1995), por sua vez, deriva da afirmação dos Kayapó Mebenkokre de que é bom casar-se com a filha da amiga formal, um modelo hipotético do funcionamento matrimonial desta sociedade, que tem como unidades as Casas (que se perpetuam em linha uterina), de um lado, trocando homens entre si, e as patrilinhas de amizade formal, de outro, trocando mulheres . O modelo manifesta um claro viés patrilateral, admitindo-se a idéia da equivalência estrutural entre "irmãos" e "amigos formais" que o sustenta, permitindo a releitura do ideal nativo em outros termos: "os homens dão suas filhas aos amigos formais daqueles que lhe deram esposas" (:336). A investigação da relação entre as transações assim modelizadas e a troca onomástica permite ainda a identificar uma troca trigeracional de cônjuges por nomes (:341): assim como no caso Timbira, a circulação de nomes inverte e complementa a circulação matrimonial (:352), sugerindo à autora a operação de um "sistema de herança de afinidade, isto é, um sistema de aliança de

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casamento", onde, "ao contrário dos 'sistemas elementares' […] não se herdariam […] os afins diretamente, mas através dos amigos formais" (:353).

Estas tentativas têm em comum (além do"viés patrilateral" dos modelos propostos, que será importante para uma das hipóteses gerais existentes sobre os sistemas sul-americanos) a reconsideração da onomástica e da amizade formal, geralmente pensadas em relação à esfera cerimonial, em conexão com a lógica de alianças entre as "Casas" ou "segmentos residenciais" da "periferia". A tematização conjunta das relações de parentesco e de não-parentesco abre assim o caminho para uma revisão da articulação entre a aliança e os sistemas de classificação social, que permita dissolver as barreiras entre terminologias "prescritivas" e "não-prescritivas", abrindo caminho para a interpretação matrimonial destas últimas, e assim da posição ambígua que reservam a certas categorias, como a dos cruzados jê. Pois, como diz Viveiros de Castro (1996:13-4), se as relações entre terminologia e aliança não são imediatas, isto não quer dizer que não estejam presentes certamente não se limitam à ocorrência de "spouse-equation rules": liberadas da exigência de exprimir (ou não) diretamente as regras de casamento, as nomenclaturas de parentesco talvez sejam melhor analisadas, em seus diversos níveis e contextos de uso, como um entre outros fenômenos em cuja interface (isto é, no jogo de suas mútuas congruências e deslocamentos) se poderia apreender a estrutura de aliança subjacente.

IV. Amazônia e Brasil central: Pontes

Formulemos grosseiramente a questão: na Amazônia temos troca bilateral sem dualismo (sem dicotomias morfológicas), no Brasil Central, dualismo sem troca bilateral (sem terminologia dravidiana, sem casamento de primos). Como aproximar estas duas situações? Mantendo a mesma simplificação brutal, as alternativas lógicas parecem-me reduzidas grosso modo a duas: ou se "bilateraliza" o parentesco centro-brasileiro, reconduzindo-o (funcionalmente, historicamente, estruturalmente?) ao dualismo dravidiano (e harmonizando-o aharmonizando-o dualismharmonizando-o "superestrutural" das "sharmonizando-ociedades dialéticas"), harmonizando-ou se "desbilateraliza" este últimharmonizando-o, de mharmonizando-odharmonizando-o a acomodar a variante centro-brasileira no modelo.

1. Dualismo

Na primeira alternativa, enquadra-se o trabalho de Hornborg (1986), que procura dar à questão clássica que motiva seu estudo a distribuição complementar nas terras baixas entre o dualismo terminológico das nomeclaturas dravidianas e o dualismo corporado [corporate] dos sistemas de metades uma resposta igualmente "clássica": a equivalência funcional entre estas instituições. A aplicação do raciocínio de Lévi-Strauss ao caso centro brasileiro envolve contudo uma complicação: a não-exogamia das metades, que pareceria dificultar a caracterização destas instituições como outras tantas "codificações" da troca bilateral. Não para Hornborg: "metades não precisam ser exógamas para que se as possa considerar como codificações da aliança simétrica" (:40): permanece havendo entre o dualismo corporado "agâmico" e a aliança simétrica codificada por terminologias dravidianas uma equivalência funcional e uma relação histórica.

Há por trás disto uma concepção da noção de estrutura social como designando "regularidades objetivas no fluxo de energia, matéria e informação entre pessoas" (:8), realidade empírica e comportamental que, se inacessível, não deixaria de constituir a referência objetiva em relação a qual o sentido e o valor dos modelos, êmicos e éticos, podem ou devem ser elucidados. No caso em pauta, terminologias de duas seções,

organização dualista, troca de irmãs, casamento de primos, endogamia de parentela ou local, seriam todos codificações particulares de uma mesma estrutura, descritível em termos éticos como de troca direta ou aliança simétrica (Hornborg 1988: 301). Abre-se, assim, o caminho para a generalização para além das fronteiras do dravidianato da hipótese de Rivière da aliança simétrica como substrato da organização social

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dos povos das terras baixas. Este substrato, observe-se, pode ser processual, mas não deixa de ser substantivo: um invariante, num plano aquele onde o que importa é "não omodo como as categorias sociais são

constituídas, mas o modo sob o qual circulam as prestações" (:303) distinto daquele em que se joga a variação. Esta, para Hornborg, é algo da ordem do código, do sistema classificatório, visto como modelos nativos de uma estrutura mais profunda; equivalentes do ponto de vista de sua capacidade de expressá-la, as várias soluções neste plano não são por isto absolutamente indiferentes quanto aos processos objetivos que organizam. Aqui entra em cena uma teoria da transformação estrutural que toma a congruência sócio-estrutural das regras como base de sua "intercambialidade no tempo", por um lado, e suas "levemente diferentes implicações estruturais", por outro, como base para a eventual divergência nas "trajetórias" de cada sistema (:15-6, 21-2). Pensando a classificação dravidiana como codificação da "mais simples possível forma de troca" (: 16, 320), a troca de irmãs (e o casamento bilateral que é consequência de sua reiteração através das gerações), trata-se de identificar as "regularidades lógicas" inerentes a este paradigma que, "juxtaposed with other factors, such as patterns of post-marital residence, local group size, or nature and degree of regional integration" (:321), resultariam nos desenvolvimentos divergentes observados. O problema da variação assume uma dimensão histórico-evolutiva concebida empiricamente, a "estrutura" se converte em origem (ou destino, dada a reversibilidade das trajetórias [:242]). A empresa de Hornborg torna-se assim em grande parte uma tentativa de determinar os fatores responsáveis pelas trajetórias divergentes da organização social ameríndia, cujo quadro geral é dado por uma hipótese referente à relação entre variação terminológico-matrimonial e amplitude dos universos sociais que as respectivas estruturas podem integrar: "Há uma correlação entre organização dualista, aldeias grandes, e alargamento da exogamia, de um lado, e entre cognatismo, terminologia de duas seções, grupos pequenos e isolados, e casamento de primos cruzados bilaterais, de outro" (:302)(17).

A solução de Hornborg foi recentemente reforçada pela análise de Houseman & White (1996), que partem de premissas muito similares no que toca à relação entre redes empíricas de troca e princípios classificatórios e normativos, assim como à natureza prototípica das terminologias dravidianas e à dimensão histórico-evolutiva da variação, em sua de algumas redes matrimoniais sul-americanas, através de tratamento informático de genealogias Araweté, Parakanã, Makuna, Yanomamö, Trio, e Pakaa-Nova. Os autores produzem um conceito de "lados matrimoniais" (sides) que, correspondendo a uma bipartição global hereditária da rede matrimonial (do ponto de vista de cada sexo) de um modo que exclui a aliança entre co-afins aliados de aliados são aqui sempre consanguíneos aparece assim como o substrato sociocêntrico minimamente compatível com as terminologias dravidianas, cuja inerente indeterminação permite gerar, segundo condições locais, soluções centradas em "viri-sides", "uxori-sides", e "dual sides" (Houseman & White 1995).

A hipótese da generalidade de estruturas de tipo "sides" na Amazônia leva-os contudo a uma previsão problemática: "não esperaríamos encontrar um sistema iroquês plenamente desenvolvido nas terras baixas sul-americanas; um tal sistema, na medida em que classifica os filhos de primos por exemplo do modo oposto ao tipo Dravidiano, é formalmente incompatível com a organição em sides" (:12-13). O problema é que, assim como na América do Norte (Trautmann & Barnes 1996), também aqui a existência de terminologias

"iroquesas" parece certa. Mesmo que se possa discutir o quão "plenamente desenvolvidas" sejam estas, parece claro que o "iroquanato" merece um lugar no leque de variações a serem consideradas. Isto nos deixa diante de duas alternativas. Ou esquemas deste tipo realmente co-existem com estruturas dualistas de aliança, o que obrigaria a aceitar a independência entre terminologia e casamento, ou talvez a estrutura de "sides" não seja tão geral assim. Para que isto não nos deixe no mesmo ponto de saída (de um lado o dualismo dravidiano, de outro estruturas a ele irredutíveis), seria preciso demonstrar neste caso que as configurações dravidianas e as estruturas de sides são elas mesmas casos particulares de uma estrutura mais geral, igualmente capaz de gerar as soluções crow/omaha e iroquesas (entre outras) e não apenas de se degenerar nelas.

2. Triadismo

Pode-se tomar como ponto de partida da hipótese não-dualista de Viveiros de Castro o confronto do modelo dravidiano de Dumont com a complexidade da paisagem amazônica. Num primeiro momento, tratou-se

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fundamentalmente de pensar a variação e complexidade observadas a partir da imposição do concentrismo da oposição próximo/distante (a disseminação de um critério deste tipo sendo amplamente atestada pela

etnografia) sobre o diametralismo da oposição dravidiana afins/consanguíneos. A interferência do gradiente de distância sobre a bipartição categorial da terminologia no dravidianato amazônico modificaria assim a lógica desta última, desestabilizando sua referência genealógica e produzindo uma estrutura hierárquica em que o englobamento da afinidade pela consanguinidade no pólo da proximidade se inverte no extremo oposto do continuum, onde a afinidade passa a englobar a consanguinidade, englobamento que é também o que articula a abertura do parentesco para fora de si mesmo. Verifica-se, assim, uma fratura na categoria da afinidade: de um lado, a afinidade efetiva dos aliados reais é atraída para o campo da consanguinidade; neutralizada, "a afinidade reduz-se aos afins"; de outro, descolada de seu suporte, a afinidade potencial "se condensa numa pura relação articulando termos que precisamente não estão ligados pelo casamento. O afim verdadeiro é aquele com quem troca-se não mulheres mas outras coisas: mortos e ritos, nomes e bens, almas e cabeças" (Viveiros de Castro & Fausto 1993: 149).

Em seguida, buscou-se relacionar o concentrismo característico dos regimes de classificação social na Amazônia à estrutura de aliança própria à região. O parentesco (cognação e aliança) opera de forma limitada do ponto de vista da estruturação das condições de reprodução global destas sociedades, não tanto por causa da carência de instituições unilineares (em alguns casos elas estão presentes), mas porque a estrutura de aliança obedece ela mesma a uma fórmula eminentemente local: a troca patrilateral. Entenda-se: o que está em jogo é uma reelaboração da distinção entre a troca bilateral fundada no método das classes e aquela fundada no método das relações em termos do contraste levistraussiano entre as estruturas globais de

reciprocidade geradas pelo casamento matrilateral e as estruturas meramente locais engendradas pela "receita" patrilateral. Duas modalidades distintas de troca restrita emergem desta aproximação, numa reformulação aliás no espírito daquela aventada pelo próprio Lévi-Strauss, quando afirmava que a troca restrita deveria ser vista como caso particular da troca generalizada: de um lado, a troca bilateral exclusiva, dualista, compatível com uma partição da sociedade em um número qualquer de classes matrimoniais redutível a 2, e definida como dupla troca matrilateral; de outro, a troca bilateral inclusiva, ou multibilateral, minimamente representável por um modelo a três parceiros casando-se bilateralmente entre si, de tal modo que aliado de aliado é também aliado (Viveiros de Castro 1990: 45-47; 72-73; 77-78), produzida pelo "achatamento geracional" da troca patrilateral que se revela, assim, seu "esquema elementar" (Viveiros de Castro & Fausto 1993: 152): a reversão geracional da direção das alianças entre os 3 parceiros é substituída pela diversificação, na mesma geração, permitida pelo desdobramento das fratrias(18).

É a uma estrutura de aliança deste último tipo que parece se referir o modelo do dravidianato concêntrico, proposto por Viveiros de Castro como uma variante sociológica do dravidianato, em que a oposição dravidiana consanguíneos/afins vigora mas não possui um significado genealógico estável. Seu regime concêntrico "potencialmente ternário" situa-o na transição entre o dravidiano propriamente dito e o iroquês mas um iroquês, observe-se, visto como uma variante da qual o esquema dravidiano seria visto "como redução e não como origem", e a "dinâmica da aliança não apenas não se encontra 'prescritivamente' codificada na terminologia, como não depende necessariamente de preferências matrimoniais genealógicas específicas; ela é o resultado da diferenciação global do campo social em zonas (…) criadas pelos estados anteriores do sistema matrimonial (1996:65-6).

À série de transformações amazônicas especificadas por este modelo podem ser incorporadas sem

descontinuidade as variantes centro-brasileiras. Em particular, a instabilidade intrínseca dos termos para os primos cruzados, detectada por Fausto para o caso tupi-guarani (1995), e generalizada por Viveiros de Castro para o dravidianato concêntrico, foi apontada por este último como uma ponte possível:

"Do ponto de vista etnográfico, é posível que as terminologias 'iroquesas variante 3', ou 'dravidiano A' com neutralização do cruzamento em GØ, tão difundidas nas terras baixas do continente (…), assim como as terminologias de projeção oblíqua do Brasil Central […] estejam manifestando a mesma instabilidade e o mesmo vácuo terminológico que marca a posição dos primos cruzados nos sistemas tupi-guarani. O padrão 'dravidianato concêntrico' teria assim como uma de suas propriedades precisamente a posição liminar dos primos cruzados, ora atraídos pela consanguinidade dos germanos, ora repelidos para a afinidade dos estrangeiros". (1996: 57).

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Os mesmos autores sugerem, além disso, uma aproximação entre a obliquidade jê e traços tipologicamente anômalos como a projeção de ambos os cruzados em G+1 para a geração superior (e a equação recíproca dos "sobrinhos" aos "netos") e o que fazem outros grupos amazônicos, especialmente aqueles que exibem preferências matrimoniais avunculares o que conferiria a sistemas como o dos Sirionó, Yuqui, Tupi-Mondé, Txikão, Arara, um lugar estratégico na reconsideração comparativa do parentesco centro-brasileiro (Viveiros de Castro 1996: 82; Viveiros de Castro & Fausto 1993: 157-159, 160).(19)

Conclusão: O Centro e a Periferia

O modelo do dravidianato concêntrico sem dúvida facilita a aproximação entre os sistemas de classificação social e os regimes de aliança amazônicos e centro-brasileiros. Deste prisma, porém, o dualismo cerimonial jê não apenas permanece como problema como parece tornar-se ainda mais enigmático. Como articular o regime concêntrico, ternário e ego-centrado do parentesco e da aliança ao caráter diametral das bipartições

sociocêntricas que organizam em geral o domínio das instituições comunais?

A suposta "dicotomia absoluta" entre estes domínios a periferia doméstica e o centro público foi questionada por Lea (1986:2, 67-8), através de uma reinterpretação da natureza dos segmentos residenciais kayapó. Pensando-os a partir da noção de "Maison", a autora pretende reabrir o debate em torno do valor da noção de descendência na América do Sul e entre os Jê em particular. A aplicabilidade do conceito de Lévi-Strauss me parece discutível, devido a particularidades do caso assim como a dificuldades inerentes à formulação levistraussiana. Não obstante, a reconsideração do caráter dos segmentos residenciais à luz da descendência parece realmente abrir caminho para a reintegração de vários elementos da etnografia destes povos que permaneciam de outro modo como meras curiosidades: assim, as casas nominadas dos Suyá, as "linhagens rituais" dos Ramkokamekra, as prerrogativas cerimoniais das casas Kayapó e Xikrin, e de modo geral as referências frequentes à estabilidade da ordem espacial das casas no círculo, reproduzida em aldeias e acampamentos…

O que me parece desde já claro é que isso irá requerer, efetivamente, uma verdadeira "amerindianização" (Rivière 1993) da noção de descendência. Está em jogo mais do que a pouca valorização do idioma genealógico, embora isto seja parte do problema. O paradigma africanista se funda numa distinção entre parentesco (kinship) e descendência (descent) que introduz uma diferença de nível entre o plano doméstico e o político-jurídico, e o rendimento simbólico da linguagem da filiação estaria ligado à sua projeção como uma espécie de modelo geral nos níveis mais inclusivos de integração do socius. Mas este lugar os ameríndios reservam e nisto os Jê não parecem muito diferentes dos povos amazônicos à afinidade potencial (Viveiros de Castro 1996:72-3).

A determinação desta categoria na Amazônia permitiu a Viveiros de Castro (1993:177-8) analisar

conjuntamente uma série de figuras (parceiros de troca comercial caribe, amigos xinguanos, compadres piro, parceiros de partilha de cônjuge araweté…) que, escapando aos dualismos afim/consanguíneo e

parente/estrangeiro, guardam no entanto uma referência complexa às categorias de parentesco: os "terceiros incluídos", "cristalizações rituais e políticas" da afinidade potencial. Incluem-se naturalmente nesta série os amigos formais jê. A análise de Azanha (1984) dos termos timbira que designam os não-parentes

(mekritxwyy) e os amigos formais (ikritxwyy), a partir da presença em ambos do mesmo morfema krit, é especialmente sugestiva neste sentido:

Os mekritxwyy realizariam, neste sentido, o 'englobamento dos contrários', do mecahkrit, permitindo ou possibilitando a sua convivência recíproca. Mas se meu ikritxwyy é aquele que me permite viver entre meus contrários, então ele só pode ser, necessariamente, um deles, um cahkrit; e se ele é o que 'vale por mim' (me 'representa' e 'me protege') eu não posso, por isso, transformá-lo num deles: logo, com meu amigo formal não posso nem rivalizar-me nem manter relações sexuais. É por isso então que se designa o 'amigo formal' pelo

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termo ikritxwyy: 'meu /krit/ que é como um morto /xwyy/, um cahkrit por assim dizer 'vazio' … daquilo que define a relação com os mecahkrit: a guerra e as relações sexuais (:35).

À afinidade metafórica dos amigos formais combina-se provavelmente aquela que une as metades cerimoniais, cuja interação é frequentemente regulada pelo mesmo respeito/vergonha que caracteriza a relação entre afins (Turner 1991:91; Melatti 1979:330-6). Se este é o caso, o descolamento entre o dualismo cerimonial jê o regime ternário da classificação social e aliança estariam expressando uma diferença análoga àquela entre a afinidade real/potencial na Amazônia. A "dicotomia" entre os níveis global e local em que operam estas categorias seria portanto constitutiva destas formas sociais, ainda que a modalidade de sua expressão centro-brasileira a oposição centro/periferia , com o agenciamento específico que acarreta das relações entre interior e exterior, exija uma conceituação particular. Isto abre toda uma via para a análise das variações registradas no plano da organização político-cerimonial jê-bororo, que poderia talvez substituir com vantagem os modelos disponíveis, capturando a dinâmica complexa de replicação e inversões que parece marcar a relação entre a ordem da praça e a da periferia.

notas

1 Esta comunicação deriva de uma pesquisa em andamento, de caráter bibliográfico, que tem como objeto o parentesco jê-bororo, e como objetivo lançar uma ponte entre estas sociedades e aquelas típicas da Amazônia, com as quais têm sido contrastadas desde os primórdios de nossa etnologia. O universo etnográfico que pretende cobrir inclui não apenas todos os Jê (e Bororo), mas também uma série de formas sociais "transicionais" que destes se aproximam seja por suas terminologias oblíquas, seja por suas morfologias dualistas, seja pela complexidade de seus sistemas de aliança. O que se segue é uma condensação do projeto original (Coelho de Souza 1996) temperada pela leitura do material referente aos Jê setentrionais. Ficam de fora os Panara, por falta de tempo e dificuldade de acesso à um dos dois trabalhos importantes existentes sobre este povo (a tese de Heelas). As convenções utilizadas para as posições de parentesco são as do inglês; além das mais habituais, uso C para "children", filho ou filha, e GF e GM para "grandfather" e "grandmother", respectivamente.

2 Lévi-Strauss já notara que, para exemplos de organização dualista, as sociedades jê-bororo não exibiam, contudo, os correlatos previstos: nem a terminologia (com seus traços crow/omaha) nem as regras

matrimoniais (interditando o casamento de primos bilaterais) mostram-se compatíveis com a estrutura de troca restrita de que a organização dualista seria o equivalente funcional; ambas podiam manifestar, por outro lado, indícios ora da troca matrilateral, ora da troca patrilateral, na mesma sociedade, como no caso Xerente (Lévi-Strauss [1952]1974b: 136). A reflexão sobre esta situação conduz Lévi-Strauss a uma reformulação de sua teoria que fará do dualismo manifestação ideológica de uma estrutura triádica subjacente (e da troca restrita uma forma particular da troca generalizada (Lévi-Strauss, [1952]1974b, [1956]1974: 167]), uma idéia que irá ecoar em desenvolvimentos recentes.

3 Não se trata, para Maybury-Lewis, de negar que os Jê Centrais e os Bororo, com metades e clãs exógamos, possam ser pensados nestes termos, mas de desmarcar a importância destes "sistemas de aliança" de modo a evitar uma distinção prejudicial entre estes grupos e os Jê do Norte: para ele, além disso, considerá-los "as alliance systems means stressing the primary importance in them of the communication of women through marriage, and it is precisely this primacy which our analyses do not confirm" (1979: 306). Registremos essa idéia do "lugar secundário" da circulação matrimonial, que expressa a recusa do domínio do parentesco como esfera englobante do social pelo grupo de Maybury-Lewis (Gordon 1996: 69-70): se no interior do paradigma "harvardiano" ele apenas reflete a subordinação da esfera doméstica à esfera cerimonial, sem que as

especificidades dos regimes de casamento possam ser relacionadas à sua posição na dinâmica sociológica geral destas sociedades, veremos que ele é passível de uma interpretação diferente, que recupera, e qualifica, o papel da aliança nestes sistemas.

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4 Desde cedo apontadas por J. Overing Kaplan em sua resenha de Dialectical Societies (1981: 154-5). Para uma apreciação dos estudos de parentesco sul-americanos dos anos 60/70 que informou largamente minha leitura deste material, ver Viveiros de Castro 1993:155-159.

5 Todos os parentes em G+2 enquadram-se nestas categorias; o FMB, no entanto, segundo Melatti, é um 'F' entre os Krahó; entre os Ramkokamekra, oscilaria entre 'F' quando envolvido na transmissão onomástica (isto é, segundo compreendo, quando nominador do F), e 'GF', quando não. Os Suyá consistem uma exceção, na medida em que distinguem MB_FF=MF; no entanto, o termo para os avôs pode ser analisado em uma forma contraída do termo para o MB acrescida de um sufixo significando "velho", a distinção entre os termos é neutralizada na estrutura de recíprocos, e as atitudes relacionadas a ambas categorias são similares; apesar disto, os Suyá insistem que os termos são definitivamente diferentes e apontam para diferentes tipos de parente (Seeger 1981:129).

6 Em 1966: 410-11, ele parece atribuir esta identidade ao fato de que não há contraste entre as posições de irmãos do mesmo sexo no que toca ao status residencial na primeira fase do seu ciclo de vida; mas nesta fase, não há tampouco contraste entre os de sexo oposto… Como Lave (1967:95) observa: "Turner does not resolve the analytical problems created by postulating: (a) one to one relations between domestic group structure and the intensional definitions of kin categories and (b) fusion of same sex siblings (which is required to generate kin categories correctly) wich contradicts the fact that brothers are explicitly separated in their affinal domestic group affiliations. In crucial ways brothers are separated even within the natal domestic group since naming relations with different kit (˜i-ngêt) give them different ceremonial prerrogatives".

7 Roger Keesing pode ter sido o primeiro a sugeri-lo, num paper não publicado devotado à análise da terminologia Ramkokamekra reportada por Nimuendajú, ao qual não tive acesso mas que é mencionado por Scheffler & Lounsbury (1971) e amplamente discutido por Lave (1967: ref). Scheffler e Lounsbury

desenvolvem uma versão própria desta idéia ao sugerir que a regra de transmissão paralela que formulam para dar conta da nomeclatura Sirionó definiria um novo tipo terminológico que, correspondendo ao caso jê, teria ali como correlato a transmissão cruzada de nomes, "sombra" estrutural do princípio ordenador da

terminologia.

8 A identificação de ego a seu nominador-homônimo MB acarreta as equivalências MBC=C [BC, para sua irmã]; como o F, por sua vez, nominará o FZS, FZS=F, FZD=FZ.

9 A identificação de ego à FZ nominadora faz de FZC=C [ZC, para seu irmão]; como M nomeia MBD, temos que MBD=M, MBS=MB.

10 Uma terminologia de referência é aquela onde Ego é o falante e Alter um terceiro; no vocativo, a posição de Alter é a de ouvinte; na referência indireta do tipo "teu X", Ego é o ouvinte; e a tecnonímia pode ser vista como um caso em que Ego é um terceiro, cuja relação a Alter é evocada no termo usado pelo falante; etc. 11 Esta identidade parece ser mais forte nos casos timbira e suyá, onde os nomes formam conjuntos fechados transmitidos em bloco, que entre os Kayapó, onde cada cojunto de nomes portados por um indivíduo se compõe a partir de diferentes nominadores.

12 Lea distingue, no caso kayapó, nominadores e epônimos, uma vez que nem sempre a pessoa que transmite o nome é a mesma que o detém (como na transmissão de nomes de parentes mortos). Neste caso, é o epônimo que deve estar nas categorias prescritas de nhenget (MB/GF) ou kwatui (FZ/GM), e o nominador pode ser mesmo um dos pais da criança (ref). Como esta distinção não tem relevância no contexto desta discussão, refiro continuar chamando "nominador" ao detentor anterior do nome (o nominador-epônimo ou epônimo de Lea), para facilitar a comparação.

13 Krahó: ipantu, aquele a quem ego masculino deu seu nome ou todos os xarás mais novos de ego; Krinkati: comaiyront, com o mesmo significado mas aplicando-se também a mulheres; Ramkokamekra: itúware. Entre os Apinayé, krãtum e krãduw aplicam-se respectivamente a nominadores e nominados homens; os

equivalentes suyá são krã-tumu e krã-ndu, de extensão classificatória. Os mesmos termos entre os Kayapó são apresentados por Lea como formas vocativas aplicadas às categorias de MB/GF e GC/ZC (1986:230, 264-5); Turner registra krãtum(-re) como forma específica para o MBS e krãnu como alternativa exclusivamente masculina para os GF/ZC. Melatti também registra ikrãtum entre os Krahó como sinônimo para MB/GF.

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14 Entre os Krinkati ( ), e Krahó (ipantu-hum e ipantu-m˜entxi); entre os Ramkokamekra, itúware-m˜eh˜um e itúware-m˜entsii seriam usados como vocativos para B e Z, respectivamente, tenham estes efetivamente trocado nomes ou não.

15 Assim, os Ramkokamekra reconhecem como próximos primos paralelos matrilaterais até a quarta geração, enquanto que os patrilaterais já na segunda geração são considerados distantes, e todos aqueles em cuja ligação intervenham ascendentes masculinos derivam rapidamente para o não-parentesco (Crocker 1991: ref). Se isto corresponde à unidade dos segmentos residenciais uxorilocais, a situação inversa pode ser encontrada no caso Xikrin, cujo viés agnático se manifesta no uso da qualificação "parentes verdadeiros" para o grupo de descendentes de dois ou mais irmãos homens (Vidal 1977:54)

16 Nos Krahó (Melatti 1979:64), entre os termos ikrãtumye (WF/HF) e ikrãtum (MB/GF), e itïktïye (HZ) e atïktïi ("tua FZ/GM"); esta última correspondência é também apontada entre os Ramkokamekra por Crocker (1977:268; 1984:82), que assinala ainda a presença no termo para o (teu) WF apreequêt e (teu) MB aquêtti do mesmo morfema quêt. Aliás, a presença do mesmo morfema formador dos termos para MB/GF nos termos para os sogros é recorrente nas terminologias kayapó, apinayé e suyá, embora isto pudesse ser explicado a partir do significado geral de "velho" associado a estes termos (ref). Vale ainda assinalar que um dos termos triádicos kayapó, amàyngets, usado para o WB ou ZH por um homem falando com seus filhos, é na verdade a 2ª pessoa do termo màyngets, vocativo que designa o WF, de modo que ele estaria dizendo "teu sogro" ao se referir ao MB e FZH do ouvinte.

17 A noção de que o dravidianato clássico, associado ao casamento de primos, seria especialmente adaptado a ambientes demográficos restritos, em oposição a padrões terminológicos cuja referência matrimonial é bem menos determinada, mas que em todo caso se caracterizam por uma maior extensão da exogamia (e

consequentemente, supõe-se, uma maior capacidade de integração social), reaparece em estudos recentes que tomam como objeto a distribuição dos vários padrões terminológicos encontrados entre os grupos norte-americanos (Trautmann & Barnes 1996; Ives 1996). O debate gira em torno da relação entre terminologias dravidianas (tipo A, na linguagem de Trautmann & Barnes), iroquesas (tipo B), e crow/omaha ("unilineares"): Trautmann & Barnes sugerem que as segundas constituiriam o contexto de emergência destas últimas, com base em suas distribuições geográficas respectivas; sua discussão parece supor a irredutibilidade de um e outro padrão a quaisquer lógicas de tipo matrimonial e sua descontinuidade em relação ao padrão dravidiano. O argumento de Ives é mais afim ao de Hornborg: do lugar que ocupa em seu raciocínio a idéia de que a exogamia local trabalha contra o casamento de primos e a classificação dravidiana, à tentativa de pensar a produção de padrões terminológicos "desviantes" a partir da ação dos processos sociais dela decorrentes sobre uma estrutura dravidiana original…

18 Na base desta formulação está uma tentativa de redefinição dos conceitos de "elementaridade" e

"(semi)complexidade" que converta a descontinuidade essencial entre tipos de sistemas numa diferença entre registros ou regimes de operação de estruturas de aliança especificadas em termos não-genealógicos em termos de redobramento de alianças de parentes, e não de casamento na consanguinidade (bouclage). Pois se todo casamento consanguíneo é um redobramento, nem todo redobramento envolve um casamento

consanguíneo (Houseman & White [1995]: 16-17): "Se marier comme un parent ne signifie pas forcément se marier avec un parent: les bouclages sont des cas particuliers de redoublements, et non pas le contraire" (Viveiros de Castro 1993b: 126); assim, "a especificação genealógica do cônjuge como 'cruzado' é um caso-limite de sua determinação categorial como 'afim'; o casamento com um cognato cruzado é a redução 'elementar' de uma estrutura de repetição de alianças que não possui uma inscrição genealógica a priori." (1996: 21). Definem-se assim duas famílias de estruturas, distinguidas segundo permitam o redobramento de alianças por consanguíneos de mesmo sexo (troca matrilateral) ou de sexo oposto (troca patrilateral),

operando em regimes ou registros distintos "conforme o redobramento de alianças coincida (SE), esteja a uma distância fixa global (SSC), ou mantenha uma relação indeterminada (SC) com os bouclages consanguíneos" (:77). A coincidência definidora da elementaridade seria perfeita apenas nos diagramas. A "distância fixa" corresponderia a um desdobramento "mecânico, e modelizável por uma multiplicação fixa" (:65) das linhas diagramáticas do diagrama elementar correspondente; "fórmulas globais, onde o desdobramento pode ser 're-dobrado' sem perda de informação estrutural" (:65). A "relação indeterminada" remeteria ao desdobramento "local, flutuante e múltiplo, não dando origem à linhas fixas: a inexistência de unidades de tipo 'classe', isto é, capazes de defição intemporal, faz com que a relação entre o redobramento das alianças e os bouclages consanguíneos se torne indeterminável a priori" (:id). Mas estas duas famílias de estruturas não operam

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indiferentemente nestes registros: "a estrutura patri-multibilateral tende a operar de modo privilegiado em regimes complexos e complexos, ao passo que a matri-bilateral em regimes elementares e

semi-complexos" (:78). Mantém-se assim o contraste levistraussiano entre as implicações sociológicas da "fórmula global" matrilateral e da "fórmula descontínua" patrilateral (1967: 513) mas com uma inversão importante, pois na leitura de Viveiros de Castro, a constatação dos limites da fórmula patrilateral como mecanismo totalizante parece se converter em apreciação dos limites da perspectiva que toma o parentesco como locus de totalização do social.

19 Retrospectivamente, o contraste entre as duas linhas de abordagem que tentei traçar me parece um tanto forçado, marcando prematuramente fronteiras num terreno todavia largamente por explorar. Antes de definir duas hipóteses claramente articuladas e distintas, constituem esforços simultâneos de reconceitualização de objetos e redefinição de categorias cujos pontos de encontro e afastamento ainda estão por determinar. Um exemplo de cruzamento entre estas perspectivas é o ensaio recente de Henley: assumindo boa parte da argumentação de Viveiros de Castro, e apoiando-se no mesmo "vácuo terminológico" apontado por Fausto, este autor propõe um novo "ideal type" que denomina "Normal Amazonian", o qual se poderia por em paralelo ao "dravidianato concêntrico" (Henley s/d: 51), guardadas no entanto algumas distâncias. Em particular, Henley pretende estabelecer este tipo como representando "the primitive system from which the great majority of extant Amazonian kinship systems have evolved" (:id) numa defesa explícita da concepção de modelos que sejam ao mesmo tempo "histórico-evolutivos" e "sociológicos e estruturais" (id: 52; Viveiros de Castro 1993a: 150-151). Junta-se, assim, a Hornborg, em termos da associação respectiva entre variantes digamos "involuídas" deste modelo original (dravidianato, "australianato") e ambientes demográficos restritos, de um lado, e variantes "dissolvidas" ("iroquanato", "crow/omaha") e complexidade sócio-política, de outro com a diferença provavelmente significativa de que as primeiras deixam de ser origem para consistir uma "specialized adaptation to marginal areas of low population density" (:1), um ponto que religa toda esta discussão ao debate sobre a questão do desenvolvimento sócio-cultural do continente.

Marcio Ferreira da Silva

Universidade Estadual de Campinas-IFCH Departamento de Antropologia e-mail marcios@turing.unicamp.br Coordenadores Aparecida Vilaça (UFRJ-MN-PPGAS) Márcio Silva (UNICAMP-IFCH-DA).

Referências

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