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Por onde anda o outro mundo possível?

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Academic year: 2021

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Por onde anda “o outro mundo possível”?

EMIR SADER

O Fórum Social Mundial (FSM) nasceu no período histórico con-temporâneo, caracterizado por duas grandes passagens:

• Do modelo hegemônico regulador ao neoliberal;

• Do mundo bipolar ao unipolar, sob a hegemonia imperial esta-dunidense.

A primeira fase da luta de resistência surgiu como reação às con-seqüências dessas viradas, concomitantemente com o protagonismo dos movimentos sociais – dos zapatistas, passando por Seattle, as marchas do MST, entre tantas outras manifestações. Nesse período inicial, basicamente durante a década de 1990, viveram-se anos da máxima extensão das relações mercantis na história da humanidade. O imaginável e o inimaginável passaram a ter preço, a ser vendidos e comprados, transformados em mercadorias: o essencial e o acessório, o básico e o supérfluo. O capitalismo realiza sua grande utopia: tudo se vende, tudo se compra. Educação, saúde, água etc., ou seja, tudo. E o que não tem preço – por exemplo, um desempregado, a quem o mercado se nega a pagar sequer o salário mínimo miserável de cada país – é descartável, não tem valor. Por outro lado, sob a hegemonia imperial dos EUA, o mundo ingressou em um período de guerras, turbulências e instabilidades.

Os dois fatores tendem a persistir, mesmo que em crise, pela inexistência atual de alternativas seja ao modelo neoliberal seja à hegemonia estadunidense. Uma situação na qual o esgotamento do

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modelo neoliberal e a modalidade de hegemonia imperial atual ain-da não encontraram no horizonte histórico alternativas, reproduzin-do-se situações de crises não resolvidas, que se alongam no tempo e dão lugar a novas crises. Tudo isso aponta para uma duração relati-vamente longa, marcada por turbulências e instabilidades, que pode-mos caracterizar como uma ampla e profunda crise de hegemonia em escala local e mundial.

O capitalismo evidencia seus limites mais do que nunca na sua história: financeirização, degradação ecológica, concentração máxi-ma de renda, riqueza e poder e militarização dos conflitos – com confrontos quase sempre vinculados às necessidades energéticas das potências centrais. No entanto, o maior drama histórico-contemporâ-neo é que, simultaneamente, as condições para a construção de uma alternativa anticapitalista sofreram profundos e graves retrocessos. Debilitou-se tudo o que tem a ver com o socialismo – de projetos coletivos às formas populares de organização; de formas de regulação estatal à afirmação de direitos; dos temas do mundo do trabalho às idéias de socialismo e de socialização.

Nesse marco, sete anos passados desde a convocação do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), o grande balanço que temos a fazer é acerca do estado no qual se encontra a construção do “outro mundo possível”.

Nesses anos, nosso primeiro objetivo era afirmar que “outro mun-do é possível”, diante da forte hegemonia mun-do “pensamento único” e do Consenso de Washington. Era uma afirmação de que interpreta-ções alternativas e políticas distintas eram possíveis e que o neoliberalismo não era o “fim da história”. Grande parte das nossas lutas iniciais girava em torno ao livre comércio e à Organização Mun-dial do Comércio (OMC), inclusive pelo papel que as históricas mo-bilizações de Seattle haviam representado, como irrupção à superfí-cie da resistência ao neoliberalismo. Esta vinha se acumulando nos anos anteriores, inviabilizando a reunião desse organismo responsável pelas políticas de “livre comércio no mundo”. Certamente, um pri-meiro tema de balanço da luta pelo “outro mundo possível” tem de se dar em torno da força e das fraquezas do livre comércio, assim como da construção de alternativas a essa política.

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Presenciamos na América Latina – continente berço do neolibera-lismo e que por isso apresenta as maiores expressões da resistência a esse modelo – o surgimento do primeiro espaço em escala mundial de intercâmbios alternativos ao livre comércio e às normas da OMC:

a Alba1. Trata-se não apenas de uma iniciativa de integração

profun-da e complementar entre os países do continente, mas também de um intercâmbio feito com base nas necessidades e nas possibilidades de cada um dos países.

Nesse contexto, os intercâmbios entre a Venezuela e Cuba não são baseados nos preços de mercado, mas no que cada país pode ofertar e o outro necessita. Os venezuelanos fornecem petróleo ao país caribenho, não conforme os preços de mercado, mas pelo que podem oferecer e na quantidade de que a ilha necessita. Cuba, por sua vez, aporta pessoal e tecnologia da melhor medicina social do mundo, métodos de educação – que permitiram que a Venezuela erradicasse o analfabetismo, como somente os cubanos fizeram na região –, treinadores esportivos, entre outros serviços.

É um modelo do que chamamos no Fórum Social Mundial de comércio justo, de intercâmbio solidário, que foi adotado pela Alba e nas relações com países convidados, como o Equador e o Haiti. É no marco desse modelo de intercâmbio que são possíveis projetos como a Operação Milagre, pela qual mais de um milhão de pessoas recu-peraram sua visão, não apenas tratadas em Cuba ou na Venezuela, mas também na Bolívia, favorecendo a paraguaios, equatorianos, ar-gentinos e pessoas de outras nacionalidades; e a Escola Latino-Ame-ricana de Medicina (Elam), que forma as primeiras gerações de médi-cos pobres do continente sob os cânones da melhor medicina social do mundo, a cubana.

Essa mesma lógica de integração está inscrita no plano financeiro, com a recente criação do Banco do Sul. Os governos da região cria-ram um banco com parte das suas reservas – em lugar de depositá-las em instituições financeiras do Norte e depois pedir-lhes empréstimos para projetos regionais, pagando juros mais caros para financiar em-preendimentos de integração regional e desenvolvimento socioeco-nômico. Mesmo no seu começo, o Banco do Sul aponta uma nova

1 Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Processo de integração regional que se

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lógica financeira, oposta à do Fundo Monetário Internacional (FMI) e à do Banco Mundial (BM) e que pode desembocar na criação de uma moeda única regional, políticas econômico-financeiras comuns e um Banco Central regional.

Todas são iniciativas possíveis porque se realizam não na esfera mercantil, mas sim na esfera pública, da solidariedade e da comple-mentaridade. Inúmeros outros projetos de cooperação se realizam com esse caráter nas áreas energética, tecnológica, cultural, de mídia alternativa, investimentos em infra-estrutura, segurança alimentar, entre muitos outros. Revela-se que democratizar e lutar contra o neolibe-ralismo é desmercantilizar e criar espaços de intercâmbio com essas características, que podem multiplicar-se enormemente.

É na América Latina que está começando a se criar o “outro mundo possível”. É aqui que está se gestando o primeiro espaço concreto de alternativas ao neoliberalismo, à OMC, ao livre comércio, ao mundo dominado pelo poder do dinheiro e da mercantilização.

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Podemos considerar, sem risco de simplificações excessivas, que o mundo atual está dominado por três grandes poderes, articulados entre si: o das armas, o do dinheiro e o da palavra. A construção do “outro mundo possível” passa necessariamente pela superação des-ses poderes, gerando alternativas nesdes-ses três planos: o político-mili-tar, o econômico e o ideológico.

O poder do dinheiro é o mundo neoliberal, mercantil, do livre comércio e das movimentações de capital, no qual tudo é mercado-ria, tudo se vende, compra e tem preço ditado pelo mercado. É o mundo gerado e reproduzido cotidianamente pelo modelo hegemô-nico atual do capitalismo. A Alba é a conquista mais avançada de espaços de sociabilidade fundados não no reino do dinheiro, mas no da solidariedade. São espaços que necessitam ser apoiados, para se fortalecerem e se expandirem.

O poder das armas, como cabeça da coalizão dominante no mun-do mun-do século XXI, é o fundamento da hegemonia imperial mun-dos EUA. Tínhamos conseguido realizar as maiores mobilizações populares da história na luta contra a guerra do Iraque, mas não demos continuidade a essa luta. É nossa obrigação moral e política apelar para que nossos prêmios Nobel, assim como outras personalidades identificadas com

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o FSM e as entidades vinculadas à luta pela paz no mundo, se orga-nizem e façam com que voltemos a aparecer no cenário mundial, demonstrando que “outro mundo é possível” também nesse plano; que outra forma de buscar a superação dos conflitos que não seja pela intensificação da guerra é possível; que soluções pacíficas, jus-tas, duradouras e negociadas são possíveis. Podemos tratar de fazê-lo a partir dos principais epicentros da “guerra infinita” do Império: Iraque, Palestina, Colômbia e Afeganistão.

Caso não atuemos na luta contra as guerras e pela paz, ficaremos ausentes da disputa de um dos grandes temas que se desenvolvem no mundo porque, ainda que não quiséssemos que fosse assim, os EUA colocaram o tema da guerra como central e fortaleceram essa centralidade pela intensificação dos conflitos. O FSM estará alheio desse cenário, dramaticamente tornado central no mundo do século XXI, se não tomarmos iniciativas na luta por soluções alternativas – o que praticamente nenhum governo, nenhuma organização interna-cional de peso tem feito.

No entanto, os processos de integração também contribuem para a construção de um mundo multipolar. A América Latina é a única re-gião do mundo com projetos de integração relativamente autônomos em relação aos EUA, opostos aos tratados de livre comércio (TLCs) e ao neoliberalismo. Esse deve ser um dos objetivos mais importantes da nossa luta para enfraquecer o poder imperial unipolar dos EUA, que conduz o mundo para a multiplicação dos conflitos bélicos.

O poder da palavra, estruturado sobre o monopólio privado dos meios de comunicação, termina sendo o essencial. Constrói, de for-ma antidemocrática, os consensos que permitem a reprodução do poder das armas e do dinheiro. Nesse campo avançamos pouco. Dispomos de órgãos de imprensa alternativos, mas nem sequer arti-culados entre si. Temos reduzidas e ainda pouco ricas experiências de comunicação de caráter público. Como resultado de muitos fato-res e apesar do declínio do neoliberalismo e das debilidades da hegemonia imperial dos EUA, o certo é que as idéias dominantes continuam sendo as do livre comércio, do liberalismo e do neolibe-ralismo, do “modo de vida norte-americano”.

Temos, regularmente, de avaliar e medir nossos avanços e pontos fortes e fracos para orientar nossa luta pelo “outro mundo possível” da forma mais eficiente e abrangente. Adequar a organização e as formas de ação do FSM deve ser expressão da avaliação da luta

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antineoliberal e contra-hegemônica no mundo de hoje, mas não das dinâmicas internas das instâncias do FSM.

Ao longo de toda uma primeira etapa de defensiva das forças antineoliberais, os movimentos sociais tiveram papel protagônico na resistência. Seja porque parte importante das forças políticas aderiu ao neoliberalismo; seja porque outra parte participou, mas de manei-ra tímida, nessa luta; ou seja porque os movimentos sociais expres-sam de maneira mais direta os interesses centralmente atacados pelo neoliberalismo: direitos sociais, meio ambiente, emprego etc.

A partir do final do século passado, começaram a surgir sintomas claros de esgotamento do modelo neoliberal, em particular na América Latina, com as crises nas três principais economias do continente: Méxi-co, em 1994; Brasil, em 1999; Argentina, em 2001 e 2002. No mesmo período começaram a aparecer forças políticas novas, que passaram a se propor como a superação do neoliberalismo. A primeira foi o boli-varianismo venezuelano, dirigido por Hugo Chávez, eleito em 1998. Em seguida, se elegeu Lula, no Brasil, em 2002; Nestor Kirchner, na Argen-tina, e Tabaré Vasquez, no Uruguai; em 2003, Evo Morales, na Bolívia, em 2005; Daniel Ortega, na Nicarágua, e Rafael Correa, no Equador, em 2006; e Fernando Lugo, no Paraguai, em 2008.

Em poucos anos – menos de uma década –, o cenário político latino-americano mudou radicalmente. Se Clinton não cruzou o rio Grande, ao longo de todo o seu primeiro mandato, nem sequer para assinar o TLC da América do Norte com o México e o Canadá – North American Free Trade Agreement (Nafta) –, é porque considerava que o continente se comportava conforme os ditames do Império. Em poucos anos, cada vez mais governos se pronunciaram contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), privilegiando a integração regional em detrimento dos tratados de livre comércio. Os EUA não lograram o apoio de nenhum governo da região na Organização das Nações Unidas para a invasão do Iraque.

Os governos que privilegiam a integração regional puderam der-rotar a Alca e promover avanços no Mercado Comum do Sul (Mercosul) e, mais recentemente, em outros projetos de integração, como o Ban-co do Sul, o gasoduto Ban-continental, a União das Nações da América do Sul (Unasur), o Conselho Regional de Segurança, entre outros que mencionamos anteriormente.

Alguns desses governos, no entanto, mantiveram no essencial o modelo econômico herdado, promovendo adequações que lhes

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mitem desenvolver políticas sociais inovadoras, que são as que lhes dão significativo apoio social, em menor ou maior grau. São gover-nos como o brasileiro, o argentino, o uruguaio e o nicaragüense.

Outros, além de privilegiar a integração regional, avançam na di-reção da ruptura do modelo neoliberal e dão início à construção do que podemos chamar de pós-neoliberalismo. Reorganizam suas polí-ticas econômicas em torno de prioridades claramente sociais, enfren-tam de maneira mais aberta a hegemonia imperial estadunidense e desenvolvem políticas externas alternativas ao livre comércio.

Muito significativo da passagem de um período de resistência ao de disputa de hegemonia foi a fundação, pelos movimentos sociais bolivianos, de um partido – o Movimiento Al Socialismo (MAS) –, para restabelecer os laços da esfera social com a esfera política e colocar-se em condições de lutar pelo governo nacional. Foi esse passo que permitiu, pela primeira vez, a eleição de um indígena à presidência da república e, a partir daí, a nacionaliza-ção dos principais recursos naturais, a convocanacionaliza-ção da Assembléia Constituinte e a aprovação de um novo projeto constitucional que aponta para a refundação do Estado boliviano.

Era um passo indispensável para poderem começar a construir “o outro mundo possível” e não apenas resistirem ao neoliberalismo. Caminho similar, de recomposição da relação entre a esfera social e a política, em nova forma de fazer política, está sendo posto em prática, com suas particularidades nacionais, no Equador e na Venezuela, inaugurando nova etapa na luta antineoliberal, passando da resistência à construção de uma hegemonia alternativa.

A esfera social, pela proximidade com as aspirações de distintos setores do povo, é particularmente sensível e adaptada às lutas de resistência, mas suas próprias virtudes – reivindicações concretas, organização de base – não lhe propiciam a capacidade para transfor-mar os movimentos sociais em forças políticas. Há múltiplas expe-riências de coordenações de movimentos sociais, mas seu agregado, por mais amplo que consiga ser, não compõe uma força política de caráter nacional, com estratégia e capacidade de ação em condições de lutar por uma hegemonia alternativa. A soma de reivindicações sociais não constitui uma plataforma política nem a unidade de for-ças sociais compõe uma força política nacional.

A política não é o agregado das forças sociais, mas sim uma sínte-se de outro caráter. O MAS foi fundado por movimentos sociais; não

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é um partido federativo. Teve de formular uma estratégia, forjar alianças políticas e elaborar um programa e uma plataforma com capacidade para conquistar a hegemonia nacional.

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A luta pelo “outro mundo possível” se desenvolve pelos movi-mentos sociais, culturais, entidades civis e forças políticas. Não se pode pensar em um FSM hoje sem a participação de forças como o MAS boliviano, a Aliança País do Equador e o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), que são partidos dirigentes dos processos po-líticos de construção do “outro mundo possível” em seus momentos mais avançados. Diferentemente dos partidos tradicionais, rearticulam suas relações com as forças sociais, transformam a força da resistên-cia ao neoliberalismo em forças políticas hegemônicas.

Se antes a América Latina era laboratório de experiências neoliberais, hoje tornou-se o elo mais frágil da cadeia neoliberal, conquistando um lugar essencial neste novo começo de século. Oito anos após a sua primeira edição, a construção de alternativas concretas ao neoliberalismo, da passagem a uma fase pós-neoliberal, é o tema central para o FSM. A rearticulação entre a força social e a esfera política é condição para a resolução da crise hegemônica que caracteriza o mundo contemporâ-neo. Em torno desses temas, o FSM tem de redefinir sua natureza, funções, formas de funcionamento e atividades centrais.

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