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A MORTE NECESSÁRIA DO EU QUE ESCREVE EM A HORA DA ESTRELA

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A MORTE NECESSÁRIA DO “EU” QUE ESCREVE EM A HORA DA ESTRELA

Liziane de Oliveira Coelho

 RESUMO: O presente artigo vislumbra discutir o processo de escrita que se realiza na obra A Hora da Estrela (1998), de Clarice Lispector por meio de seu narrador Rodrigo S. M. a partir da teoria de Maurice Blanchot, em seu livro O espaço literário (2011) e de Michel Foucault, em sua conferência publicada O que é um autor? (2009). Tendo em vista os aspectos citados por Blanchot, no momento da criação literária, serão apresentados elementos que evidenciam de que forma é possível percebê-los, na narrativa e como se realiza o “apagamento do autor”, um dos princípios éticos da escrita contemporânea, segundo Foucault. Além disso, de acordo com a teoria de Julia Kristeva, em seu livro: Estrangeiros para nós mesmos (1994), será apresentada a análise da construção da personagem Macabéa, a qual se relaciona intimamente com o “eu” que narra justamente por lhe causar estranheza, pois é possível observar que por meio da diferença que há entre narrador e personagem se manifesta, de forma bastante explícita, a necessidade de escrever; contar a história de Macabéa; dar vida a essa personagem já existente no interior desse narrador.

PALAVRAS-CHAVE: Autor. Morte. Escrita.

1. Introdução

Em sua obra A Hora da Estrela (1998), um dos livros mais surpreendentes que já escreveu,

Clarice Lispector afasta-se durante a narrativa para dar lugar ao narrador Rodrigo S. M. A riqueza

de detalhes com que descreve a dificuldade em entrar em contato com a história que precisa ser

narrada por meio do processo da escrita, remete aos aspectos mencionados por Blanchot, no

momento da criação literária, como a necessidade de solidão; o fato de não saber se a obra está

finalizada; a urgência com que precisa escrever a história de Macabéa; a ausência de um tempo,

ou seja, um tempo sempre presente e a morte do escritor algo que lhe permite escrever.

O prenúncio da autora

Na dedicatória do autor, Lispector escreve como Rodrigo S. M. e expressa a sua necessidade de

escrever a história de Macabéa e a dificuldade em acabá-la. “Esta história acontece em estado de

emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta resposta”.

(LISPECTOR, 1998, p. 10).

A solidão que acontece ao escritor por força da obra revela-se nisto: escrever é agora o interminável, o incessante. O escritor já não pertence ao domínio magistral em que exprimir-se significa exprimir a exatidão e a clareza das coisas e dos valores segundo o sentido de seus limites. O que se escreve entrega aquele que deve escrever a uma afirmação sobre a qual carece de autoridade, que é ela própria sem consistência, que nada afirma, que não é o repouso, a dignidade do silêncio, pois ela é o que ainda fala quando tudo foi dito, o

Texto completo de trabalho apresentado na Sessão (Exílio e Morte do Autor) do Eixo Temático (Estudo de

Teoria Literária) do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC).

Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação (História da Literatura) da (Universidade Federal

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que não precede a palavra, porquanto, na verdade, impede-a de ser palavra iniciadora, tal como lhe retira o direito e o poder de interromper-se. (BLANCHOT, 2011, p. 17)

Ao dar voz ao narrador Rodrigo S. M., Lispector retira-se e a história a ser contada não é

mais de seu domínio. É possível observar a necessidade da ausência da escritora, para que Rodrigo

S. M. possa aos poucos introduzir a história de Macabéa.

Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam.

A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo. (LISPECTOR, 1998, p. 12-13)

A dificuldade em encontrar as palavras adequadas para iniciar a narrativa e esse “falso

livre-arbítrio” os quais o narrador se refere, remete ao momento indeciso da fascinação, segundo

Blanchot.

O escritor parece senhor de sua caneta, pode tornar-se capaz de um grande domínio sobre as palavras, sobre o que deseja fazê-las exprimir. Mas esse domínio consegue apenas colocá-lo e mantê-lo em contato com a profunda passividade em que a palavra, não sendo mais do que sua aparência e a sombra de uma palavra, nunca pode ser dominada nem mesmo apreendida, mantém-se inapreensível, o momento indeciso da fascinação. (BLANCHOT, 2011, p. 16)

A morte da autora por meio da escrita

A história da moça nordestina deve ser contada por alguém, pois de tão comum como a de

tantas outras moças nordestinas é ao mesmo tempo excêntrica e não deve ser ignorada. Macabéa

desperta a piedade do leitor, mas também o estranhamento pela naturalidade de sua

insignificante existência, algo que leva o narrador Rodrigo S. M. a se compadecer pelo seu triste

fim. Talvez não fosse trágico o seu fim se não tivesse tido uma vida tão desgraçada. Alguém precisa

falar dessa moça desinteressante, de vida vazia, que não faz a menor falta na vida de ninguém, que

causa repulsa por seus hábitos pouco higiênicos e de aparência nada atraente. Lispector retira-se

e desde o início da narrativa outro “autor” apresenta-se ao leitor, para que aquilo que até o

momento lhe é diferente possa ser incorporado em sua escrita.

O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas.

É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito.

Então eu grito.

Grito puro e sem pedir esmola. Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também eu não faço a menor, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas. (LISPECTOR, 1998, p. 13-14)

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O fato de utilizar-se da voz de um narrador e não de uma narradora é justificado na

passagem acima, uma forma talvez mais eficaz da escritora afastar-se da história, já que o “eu”

masculino que narra a história de Macabéa explica sua presença para dar prosseguimento à

narrativa. A impossibilidade de narrar enquanto voz feminina é a mesma impossibilidade de

escrever sobre Macabéa enquanto Clarice Lispector, a necessidade de “morte” da escritora a qual

se refere Blanchot.

[...] não se pode escrever se não se permanece senhor de si perante a morte, se não se estabeleceram com ela relações de soberania. Se ela for aquilo diante do qual se perde o controle, aquilo que não se pode conter, então retira as palavras de sob a caneta, corta a fala; o escritor não escreve mais, ele grita, um grito inábil, confuso, que ninguém entende ou não comove ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Por que a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela, dispõe extremamente de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é senhora do momento supremo, é senhora suprema. (BLANCHOT, 2011, p. 93)

No decorrer da narrativa, Rodrigo S. M. argumenta sobre a sua obrigatoriedade em

contar a história da miserável existência da moça nordestina e a linguagem que irá utilizar para

descrevê-la, momento em que a escritora vai desaparecendo e a autoridade do “eu” que narra

começa a tomar mais espaço dentro da narrativa.

Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.

Sim, mas não esquecer que para escrever não importa o quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.

É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome.

Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. (LISPECTOR, 1998, p. 14 -15)

O uso de uma linguagem simples e nada rebuscada para contar a história de Macabéa é

justificado na passagem acima. Uma personagem oca, vazia, que nada de extraordinário realizou

durante a sua existência, apenas existiu dia após dia como se todos os dias fossem iguais. Sem

questionar sua vida. Essa moça cheia de pobreza nada tinha de seu, a não ser a sua miséria de vida.

Logo se uma linguagem um pouco mais pomposa fosse utilizada pelo narrador, o que restaria de

Macabéa? Na necessidade de preservar a diferença da personagem, Lispector recorre a esse

narrador que aos poucos é capaz de se aproximar da humilde Macabéa. A linguagem, neste caso,

é acessório primordial para que se possa adentrar na vida singela da personagem.

O escritor pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela. Ele pode acreditar que se afirma nessa linguagem, mas o que afirma está inteiramente privado de si. Na medida em que, escritor, ele legitima o que se escreve, nunca mais pode exprimir-se e ainda menos falar para ti nem dar palavra a outrem.

Aí onde está, só fala o ser – o que significa que a palavra já não fala mas é, mas consagra-se, à pura passividade do ser. (BLANCHOT, 2011, p. 17 – 18)

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As marcas da ausência de um tempo definidor para a realização dessa escrita e a

dificuldade de construir um final digno a essa história que merece ser contada e talvez precise de

um “gran finale” para ter alguma relevância são evidentes na escrita desse “eu” que narra.

Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece porém que eu mesmo ainda não sei bem como esse isto terminará. E também porque entendo que devo caminhar passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça. (LISPECTOR, 1998, p. 16)

O “eu” que narra através de Rodrigo S. M. ao relatar seu problema em lidar com a

temporalidade da narrativa e a intensidade com que anseia iniciar a história de Macabéa, é a voz

da escritora que reaparece no desaparecimento. Esse “eu” que narra confunde-se com o “eu” que

escreve.

Quando escrever é descobrir o interminável, o escritor que entra nessa região não se supera na direção do universal. Não caminha para um mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se ordenaria segundo a claridade de um dia justo. Não descobre a bela linguagem que fala honrosamente para todos. O que fala nele é uma decorrência do fato de que de uma maneira ou de outra, já não é ele mesmo, já não é ninguém. O “Ele” que toma lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor por intermédio da obra. “Ele” não designa o desinteresse objetivo, o desprendimento criador. “Ele” não glorifica a consciência em um outro que não eu, o impulso uma vida humana que, no espaço imaginário da obra de arte, conservaria a liberdade de dizer “Eu”. “Ele” sou eu convertido em ninguém, outrem que se torna outro, é que, do lugar onde estou, não possa mais dirigir-me a mim que aquele que se me dirige não diga “Eu”, não seja ele mesmo. (BLANCHOT, 2011, p. 19)

A solidão essencial, no momento da criação literária, descrita por Blanchot é bastante

evidente na voz de Rodrigo S. M. quando questiona o seu próprio exercício de escrita, o que talvez

tenha uma importância maior do que a própria história de Macabéa, pois a prática da escrita para

esse narrador é uma necessidade, independente de ser sobre uma história comovente como a da

moça nordestina ou não.

Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, “por força de lei”. Sim, minha força está na solidão. [...] (LISPECTOR, 1998, p. 18)

O escritor precisa dessa solidão e de acordo com Blanchot está sujeito à solidão ao

escrever uma obra, independente de sua vontade. Essa solidão ocorre porque o que pertence ao

escritor não é a obra, mas apenas um livro inacabado. Já o escritor pertence à obra que se encerra

com a sua ausência. Enquanto Lispector escreve A Hora da Estrela esta é somente mais uma de

suas histórias, que precisa ser narrada de acordo com a personagem Macabéa e que merece ter

alguma importância por ser diferente, mas que ainda está inacabada e mesmo recorrendo a esse

narrador para ausentar-se é penoso terminá-la. Após encerrada a obra, ela torna-se independente,

Clarice Lispector pertence à obra A Hora da Estrela e não o contrário.

A solidão da obra tem por primeiro limite essa ausência de exigência que jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada. Ela é desprovida de prova, do mesmo modo que é carente de uso.

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Não se verifica nem se corrobora, a verdade pode apoderar-se dela, a fama esclarece-a e ilumina-a: essa existência não lhe diz respeito, essa evidência não a torna segura nem real, apenas a torna manifesta.

A obra é solitária: isso não significa que ela seja incomunicável; que lhe falte o leitor. Mas quem a lê entra nessa afirmação da solidão da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solidão. (BLANCHOT, 2011, p. 12 – 13)

A obra pertence à Clarice Lispector ou a autora pertence a sua obra?

Seguindo o questionamento de Michel Foucault, em sua conferência, na qual toma o

termo emprestado de Beckett: “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala.” é

interessante pensar no recurso utilizado por Lispector ao atribuir a história de Macabéa ao autor

Rodrigo S. M. Autor fictício, que a escritora cria como estratégia para seu desaparecimento. A

história de uma personagem de vida insignificante escrita por um “autor desconhecido”. A obra A

Hora da Estrela teria tamanho reconhecimento se não fosse vinculada ao nome de Clarice

Lispector? Algo que será problematizado por Foucault, em seu texto O que é um autor. O

apagamento do autor é uma das características da escrita contemporânea, segundo Foucault, é

uma forma de analisar a estrutura de uma obra em si, independente de quem a escreveu, deve-se

deixá-la falar por si só, sem atribuições.

A obra que tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. Vejam Flaubert, Proust, Kafka. Mas há outra coisa: essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. Tudo isso é conhecido; faz bastante tempo que a crítica e a filosofia constataram esse desaparecimento ou morte do autor. (FOUCAULT, 2009, p. 5)

Não se trata de colocar em dúvida o valor estético da obra A Hora da Estrela, mas

importa refletir sobre o que afirma Foucault no que concerne uma análise crítica em relação à

estrutura de uma obra, desvinculando-a de seu autor.

Inicialmente, a noção de obra. É dito, de fato (e é também uma tese bastante familiar), que o próprio da crítica não é destacar as relações da obra com o autor, nem querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência; ela deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas. Ora, é preciso imediatamente colocar um problema: “O que é uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome da obra? De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é um autor?” Vamos as dificuldades surgirem. Se um individuo não fosse um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições, poderia ser chamado de “obra”? [...] (FOUCAULT, 2009, p. 5 – 6)

O que Foucault propõe ao discutir a questão da autoria relaciona-se com os aspectos

que se referem à validação de uma obra. Ou seja, é o nome de Clarice Lispector atribuído ao livro

A Hora da Estrela que faz dele uma obra? Ou a obra A Hora da Estrela que faz de Clarice Lispector

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Interessa pensar que durante um longo período as obras eram criadas para imortalizar os

escritores, segundo Foucault não há uma teoria da obra, buscar uma resposta para classificar o

que é obra e o que não é, e isso é tão problemático quanto à individualidade de um autor.

Percebe-se que a abundância de questões se coloca a propósito dessa noção de obra. De tal maneira que é insuficiente afirmar: deixemos o escritor, deixemos o autor e vamos estudar, em si mesma, a obra. A palavra “obra” e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor. Uma outra noção, acredito, bloqueia a certeza da desaparição do autor e retém como que o pensamento no limite dessa anulação; com sutileza, ela ainda preserva a existência do autor. É a noção de escrita. A rigor, ela deveria permitir não somente dispensar a referência ao autor, mas dar estatuto à sua nova ausência. No estatuto que se dá atualmente à noção de escrita, não se trata, de fato nem do gesto de escrever nem da marca (sintoma ou signo) do que alguém teria querido dizer; esforça-se com uma notável profundidade para pensar a condição geral de qualquer texto, a condição ao mesmo tempo do espaço em que ele se dispersa e do tempo em que ele se desenvolve. (FOUCAULT, 2009, p. 6 – 7)

A problemática em analisar uma obra e classificá-la ou não como obra a que Foucault

se reporta está no fato de que mesmo que uma obra, como A Hora da Estrela esteja atribuída a

outro autor, ainda assim existirão marcas que farão com que o seu autor reapareça como o que

acontece em algumas passagens de A Hora da Estrela, mesmo narrando a história do começo ao

final como Rodrigo S. M., Lispector deixa transparecer alguns traços que são típicos de sua escrita,

alguns termos empregados em sua linguagem são unicamente seus e é possível encontrá-los em

outros livros seus. Ou seja, não há um desaparecimento por completo do autor.

Penso então que tal uso da noção de escrita arrisca manter os privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori: ele faz subsistir, na luz obscura da neutralização, o jogo das representações que formaram uma certa imagem do autor. A desaparição do autor, que após Mallarmé é um acontecimento que não cessa, encontra-se submetida ao bloqueio transcendental. Não existe atualmente uma linha divisória importante entre os que acreditam poder ainda pensar as rupturas atuais na tradição histórico – transcendental do século XIX e os que se esforçam para se libertar dela definitivamente? Mas não basta, evidentemente, repetir como a afirmação vazia que o autor desapareceu. Igualmente, não basta repetir perpetuamente que Deus e o homem estão mortos de uma morte conjunta. O que seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer. (FOUCAULT, 2009, p. 7)

A discussão que se sugere, no presente trabalho, sobre as questões que tangem o

desaparecimento do autor e sua relação com a obra, já foi pensada por outros teóricos além de

Blanchot e Foucault. Mas o que interessa ressaltar é a complexidade desse assunto, que não há

como encerrar apenas em uma breve análise. A obra A Hora da Estrela, de Lispector serve aqui

como material bastante rico para outras investigações em relação ao apagamento do autor. O que

se propõe, nesse artigo, é apenas possibilitar a abertura, para que outras questões possam ser

pensadas sobre o assunto, na obra de Lispector.

Pensando na construção da personagem Macabéa, poderia se dizer que há a

possibilidade de o desaparecimento do autor estar intimamente relacionado ao fato de que nessa

obra Lispector irá contar uma história baseada em elementos que fazem parte de uma realidade

exterior, ou seja, ao invés de mergulhar numa escrita subjetiva para produzir um romance de teor

mais psicológico, Lispector se debruça sobre a história de uma personagem comum, tão comum

que poderia ser qualquer uma e, principalmente, uma personagem que não pensa sobre sua

própria vida, e é exatamente esse o ponto. Talvez seja essa a maior dificuldade em adentrar no

mundo de Macabéa, alguém muito distante da escritora. O fato de lhe ser tão diferente é o que

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causa a necessidade de criar um narrador que seja capaz contar a história de Macabéa. Um

narrador humilde, mas não tão humilde ao ponto de facilitar a escrita.

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espalhados.

Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo.

Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa tão inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. E se for triste a minha narrativa? Depois na certa escreverei algo alegre, embora alegre por quê? Porque também sou um homem de hosanas e um dia, quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina. (LISPECTOR, 1998, p. 19)

Custa-lhe contar a miserável história de alguém tão real porque essa miséria existe, de

fato, e não há como ignorá-la. Alguém precisa apresentar Macabéa e se não for Lispector que seja

Rodrigo S. M. A presença desse narrador/autor desempenha uma função quase que de mediação

entre quem constrói a personagem e a própria personagem.

Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu constato que a pobreza é feia e promíscua. Por isso não sei se minha história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá.

Mas quais? Também não sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz: é que realmente não sei o que me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere. (LISPECTOR, 1998, p. 22)

Macabéa ocupando o lugar de estrangeira dentro da obra

Macabéa é uma personagem demasiado simples que de tão simples causa

estranhamento no leitor e até mesmo no próprio narrador. A moça nordestina além de estar à

margem da sociedade, também não faz parte daquele meio em que se encontra. É alheia a tudo a

sua volta. Sem questionar. Sem nada esperar. O que parece ser crucial na criação dessa

personagem, além da sua diferença, é que ela não tem um destino e quando procura sabê-lo é

brutalmente atropelada, uma vida que se acaba que nunca teve destino, a não ser a condição de

viver uma vida sem expectativas, sem qualquer nenhum proveito.

Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. (KRISTEVA, 1994, p. 9)

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É exatamente essa consciência da diferença de que fala Kristeva, que Macaíba desperta

no leitor e narrador. Macabéa não faz parte de nenhuma comunidade especifica; não tem família;

não possuí um papel social definido, a não ser o seu emprego de datilógrafa que ela nem mesmo

domina. Além disso, a personagem não se encaixa em nenhum padrão de beleza. O que caracteriza

Macabéa é justamente a sua diferença. Uma moça pobre; desprovida de beleza; sem qualquer

habilidade e nordestina, algo que já é, no Brasil, um estigma negativo, nas grandes cidades como

São Paulo.

Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humilde – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada diria: “desiguinar”. (LISPECTOR, 1998, p. 15)

A construção dessa personagem que não faz parte de lugar algum e que está fora do

sistema socialmente aceitável, provoca um sentimento de espanto no próprio narrador que, no

mesmo momento que a enxerga como uma estranha se compadece de sua condição.

A indiferença é a carapaça do estrangeiro: insensível, distante, no fundo ele parece fora do alcance das agressões que, contudo, sente com a vulnerabilidade de uma medusa. É que o afastamento onde o mantemos corresponde àquele em que ele próprio se aloja, recuando até o centro indolor daquilo que chamamos de alma, essa humildade que, definitivamente, constitui-se de uma nítida brutalidade. (KRISTEVA, 1994, p. 15)

O afastamento do qual fala Kristeva é o mesmo que distância Macabéa de seu narrador,

quando ele relata o fato da personagem lhe escapar. É preciso se reconhecer de certa forma nessa

estrangeira que é Macabéa para conhecer a sua história.

Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com a sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe:

- Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1998, p. 24 – 25)

Macabéa parece ser indiferente à brutalidade de seu chefe assim como parece ser

indiferente a todos os outros acontecimentos, como a agressividade das palavras de Olímpico.

Como se estivesse alheia a sua própria vida.

Livre de qualquer laço com os seus, o estrangeiro sente-se “completamente livre”. O absoluto dessa liberdade, no entanto, chama-se solidão. Sem utilidade ou sem limite, ela é tédio ou disponibilidade supremos. Sem os outros, a solidão livre, como o estado de ausência de gravidade nos astronautas, destrói os músculos, os ossos e o sangue. Disponível, liberado de tudo, o estrangeiro nada tem, não é nada. Mas está pronto para o absoluto, se um absoluto pudesse elegê-lo. “Solidão” talvez seja a única palavra que tenha sentido. Sem outra, sem ponto de referência, ela não suporta a diferença que, sozinha,

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discrimina e faz sentido. Ninguém melhor do que o escolhido para gozar ou tê-la suportado para padecer. (KRISTEVA, 1998, p. 19 – 20)

A solidão em que se encontra o estrangeiro, talvez seja o elo que aproxima Macabéa do

“eu” que narra. Já que mesmo tendo uma vida tão diferente e estranha ao narrador, ambos estão

“condenados” à solidão. Macabéa além de não ter família, se encontra numa cidade que não é a

sua. Vive com pessoas desconhecidas e não possui amigos, a não ser a sua colega de trabalho

Glória, que acaba se envolvendo com Olímpico. Em razão de sua condição miserável Olímpico,

única pessoa com a qual ela tem algum envolvimento afetivo, abandona-a. Macabéa desfruta dessa

solidão e parece contentar-se com essa existência penosa, sem contestar. A sua existência solitária

lhe parece natural.

Considerações finais

A análise realizada por meio desse trabalho é bastante breve no que se refere à morte do

autor e sua relação com o narrador e personagem, pois através dessa perspectiva ainda há muito

a se investigar sobre a construção desse narrador/autor e de uma personagem tão singular como

Macabéa.

O importante é enfatizar que esse processo de apagamento do autor, ainda é uma linha

bastante tênue, pois como afirma Foucault é possível perceber o seu aparecimento em algumas

lacunas. Na obra de Lispector, em especial, fica bastante claro durante a narrativa.

Além disso, a solidão essencial apresentada por Blanchot é bastante evidente na

construção da obra em questão, permitindo ao leitor refletir sobre o processo de escrita. Esse

diálogo que o “eu” narrador mantém com o leitor antes de dar inicio a história de Macabéa,

comprova o que Blanchot afirma em relação à ausência de tempo e a dificuldade em terminá-la

durante processo da criação literária.

Referências

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

FOUCAULT, M. O que é um autor. In:________. Ditos & Escritos III. Trad. Inês Autran Dourado

Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

Referências

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